I- O conceito de assédio sexual (cfr. artigo 29.º, n.º 3 do CPT) não exige, seja qual for a posição hierárquica do agressor e da vítima, qualquer reiteração, podendo bastar para a sua verificação uma única conduta grave, não sendo necessária uma intervenção do Supremo Tribunal de Justiça para esclarecer tal conceito.
II- Uma decisão que julga lícita a aplicação de uma sanção disciplinar grave, mesmo que a mais severa, o despedimento, a um trabalhador que praticou factos com a gravidade dos que foram provados no presente processo em nada põe em causa interesses de particular relevância social.
Acordam na Formação prevista no artigo 672.º n.º 3 do CPC junto da Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça,
AA interpôs recurso de revista excecional do Acórdão do Tribunal da Relação ... proferido em 29.09.2021 (sobre a decisão da 1.ª instância proferida em 08.06.2021), com fundamento no artigo 672.º, n.º 1 alíneas a) e b) do CPC.
Refira-se que muito embora o Tribunal da Relação tenha rejeitado o recurso de impugnação da matéria de facto por violação dos ónus previstos no artigo 640.º do CPC, esta decisão não foi objeto de recurso.
Neste Tribunal a Ex.ma Relatora decidiu estarem admitidos os pressupostos gerais de admissibilidade do recurso de revista, mormente a tempestividade do recurso, a legitimidade das partes e o valor da ação para efeitos de alçada e sucumbência e remeteu para a Formação prevista no artigo 672.º n.º 3 do CPC junto da Secção Social deste Supremo Tribunal de Justiça para que a mesma se pronuncie sobre a verificação dos pressupostos específicos de admissibilidade da revista excecional previstos no n.º 1 do artigo 672.º do CPC.
O recurso de revista apresentou as seguintes Conclusões:
1. Verificando-se uma situação de dupla conforme nos termos do artigo 671.º, n.º 3 do CPC, aplicável por via do artigo 1.º, n.º 2, alínea a) do CPT, só é admissível o recurso a título excecional se se verificar o cumprimento de alguns dos requisitos previstos nas alíneas a) a c) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC;
2. Atendendo à sensibilidade da questão em discussão e das repercussões que a manutenção da decisão acarreta para o exercício dos Direitos de personalidade do Autor e em termos sociais, nomeadamente, vida familiar, laboral e relações de amizade, verifica-se que está em causa um interesse de particular relevância social;
3. Sem prejuízo da extrema relevância da necessidade de repressão de todas as práticas de assédio em contexto laboral, nomeadamente, as de cariz sexual e da adoção de medidas preventivas para impedir a sua ocorrência, é essencial que se evitem as situações de fronteira, através das quais poderão ser imputadas condutas aos alegados infratores que não correspondem à realidade material dos factos, ou que a existirem não preenchem todos os requisitos necessários para o preenchimento do tipo legal;
4. Estão em causa os direitos de personalidade do trabalhador acusado, nomeadamente, o direito ao bom nome e reputação, honra e dignidade que são tutelados pelo artigo 26.º da Lei Fundamental;
5. O interesse de particular relevância social prende-se com o risco de tratar situações de fronteira de forma injusta e desproporcional em prol da defesa cega de todas as possíveis situações de assédio sexual em contexto laboral ainda que algumas não correspondam à realidade material dos factos, ou não sejam preenchidos todos os requisitos necessários do tipo legal constante do artigo 29.º, n.º 2 e 3 do Código do Trabalho;
6. Esse interesse de particular relevância social também se materializa no risco de validação judicial de despedimento ilícitos dos trabalhadores com base na prática de assédio sexual, sem a obtenção cabal e perentória de elementos de prova que preencham os elementos objetivos e subjetivos do tipo legal aplicável. A consideração do depoimento da ofendida como prova primordial acarreta um risco de elevada subjetividade, devido à animosidade e inimizade que poderá conduzir à empolação da realidade dos factos.
7. Verifica-se uma elevada discricionariedade de apreciação por parte do Tribunal, que, apesar de todos os cuidados exigíveis e necessários do ponto de vista processual e das regras de experiência comum poderá ser conduzido a uma apreciação que não corresponde à realidade e dos factos, e, em consequência, proferir decisões lesivas para os direitos de personalidade dos trabalhadores visados;
8. Em termos sociais, é essencial estabelecer um equilíbrio entre a proteção das vítimas de assédio sexual em contexto laboral e a proteção dos direitos de personalidade dos pretensos agressores, de forma a não conduzir a situações de injustiça com repercussões nefastas para a vida pessoal, familiar, laboral e social destes últimos;
9. O caso concreto do Autor enquadra-se nesse tipo de situações de fronteira em que não foram produzidos elementos de prova suficientes para formar a convicção de que o mesmo praticou e quis praticar atos perante a sua colega subsumíveis a uma situação de assédio sexual, mas que, mesmo assim e apesar da sua antiguidade ausência de registo de infrações disciplinares, a decisão judicial validou o despedimento como lícito e regular;
10. Em face do supra exposto verifica-se em termos concretos o preenchimento do fundamento revista excecional previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC, aplicável por via da alínea a) do n.º 2 do artigo 1.º do CPT, devendo ser admitido o presente recurso;
11. É também essencial a definição de critérios orientadores para o correto preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos do tipo legal quando se verifique uma situação correspondente ao assédio sexual ambiental ou por intimidação que também está abrangido pelo artigo 29.º, n.º 2 e 3 do Código do Trabalho, para a qual é de extrema relevância a intervenção dos Venerados Juízes Conselheiros, para uma melhor aplicação do direito;
12. Nesse âmbito, é essencial também definir o critério do elemento volitivo como requisito determinante para a existência de uma situação de assédio sexual que seja imputável ao pretenso agressor;
13. Pelo que também se encontra preenchido o requisito previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 672.ºdoCPC, aplicável por via da alínea a) do n.º 2 do artigo 1.º do CPT, devendo pelo mesmo ser admitido igualmente o presente recurso de revista;
14. Relativamente aos fundamentos da revista, entende o Autor que verifica-se a violação de lei substantiva, nomeadamente, através da errada interpretação e também de aplicação da norma prevista no artigo 29.º, n.º 2 e 3 do Código do Trabalho, não se verificando assim o preenchimento do conceito de justa causa, e em consequência, existe também violação do artigo 128.º, alíneas a) e f) e 351.º, n.º 1 e 3, todos do Código do Trabalho;
15. O assédio sexual poder ser ambiental ou por intimidação, enquadram-se neste tipo todas as situações indesejadas de caráter sexual que não se enquadrem na tipologia chantagem, onde a pessoa que assedia abusa da sua posição de supremacia para exigir uma prestação de natureza sexual à vítima;
16. O assédio sexual ambiental ou por intimidação não resulta da posição de poder ou de autoridade do agressor perante a vítima, manifestando assim de forma horizontal, entre pares, não existindo distinção de grau de hierarquia entre os sujeitos;
17. Neste tipo de assédio sexual incluem-se todas as solicitações ou incitações de caráter sexual inoportunas, inconvenientes ou ofensivas ou outras manifestações de caráter semelhante, sob forma verbal, não verbal ou física indesejadas ou não recíprocas pelo destinatário, com o objetivo ou o efeito de ofender, perturbar ou constranger a pessoa, afetar a sua dignidade, liberdade, integridade física e moral, ou de lhe criar um ambiente vergonhoso, intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador;
18. Este tipo de assédio sexual é caraterizado por uma forma de constrangimento ou intimidação que não é muito precisa e de difícil identificação, dependendo de muitos fatores de natureza subjetiva e variando de acordo com as condições concretas.
19. Quando estamos na presença de um comportamento manifestado com menor intensidade, é essencial que se verifique e que se consiga provar uma prática reiterada e contínua ao longo do tempo;
20. A situação dos autos foi enquadrada no tipo de assédio sexual ambiental ou por intimidação, uma vez que entre o Autor e a colega de trabalho BB não existia qualquer relação de hierarquia e nem sequer pertenciam ao departamento ou estrutura organizativa, encontrando-se esporadicamente no local de trabalho;
21. Para a verificação deste tipo de assédio sexual é determinante a verificação do elemento volitivo inerente ao comportamento indesejado, não sendo suficiente que se verifique objetivamente que o comportamento assumido pelo Assediante com carácter sexual provocou constrangimento, perturbação, que afetou a sua dignidade, ou lhe criou um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador;
22. É necessário que se comprove que o Assediante ao assumir aquele comportamento tinha perfeita noção do efeito que estava a provocar na Assediada e das consequências físicas, psicológicas e legais daí decorrentes. Ou mesmo que não tivesse esta intenção direta, não pudesse ignorar que aquele comportamento poderia ser virtualmente capaz de provocar na vítima os efeitos descritos no n.º 2 do artigo 29.º do Código do Trabalho;
23. É também necessário que se verifique uma prática assediante reiterada, verbal, não verbal ou física ao longo de um determinado período de tempo;
24. No caso concreto em apreço verifica-se que em nenhum momento foi aferido o preenchimento do elemento volitivo. Não se verifica qualquer referência quanto à real intenção do Autor para a prática das alegadas condutas e nem se o mesmo tinha a perceção ou não podia ignorar que aquelas condutas poderiam assumir natureza sexual e perturbar ou constranger a colega BB. Saliente-se que o Autor sempre negou de forma perentória que tivesse procedido a qualquer comportamento com natureza assediante de cariz sexual;
25. Faltando o preenchimento deste requisito volitivo materializado na previsão (“com o objetivo”) não se pode considerar que esteja preenchido o tipo legal de assédio sexual conforme previsto no artigo 29.º, n.º 2 e 2 do Código de Trabalho;
26. Acresce que, a reiteração e intensidade da conduta com conotação sexual no caso de assédio sexual ambiental ou por intimidação constituem requisito adicional e têm que ser valorados em termos concretos, o que decorre necessariamente de uma interpretação extensiva do termo “comportamento indesejado”;
27. Em face do supra exposto e não tendo sido considerado e verificado o preenchimento do elemento volitivo que consta do artigo 29.º, n.º 2 e 3 do Código do Trabalho, verifica-se salvo devido respeito, um erro de interpretação daquela norma e da também da sua aplicação ao caso concreto, consubstanciando violação de lei substantiva para efeitos da alínea a) do n.º 1 do artigo 674.º do CPC aplicável por via da alínea a), do n.º 2 do artigo 1.º do CPT;
28. Não se mostrando preenchidos os requisitos previstos no artigo 29.º, n.º 2 e 3 do Código do Trabalho, não pode ser igualmente considerado que o Autor violou os deveres constantes nas alíneas a) (respeitar e tratar o empregador, superiores hierárquicos e companheiros de trabalho com urbanidade e probidade) e f) (guardar lealdade ao empregador) do artigo 128.º do mesmo Código;
29. Relativamente ao preenchimento dos requisitos previstos no artigo 351.º, n.º 1 e 3 do CT, verifica-se que não ficou demonstrada a verificação e comprovação de que o Autor tinha consciência e vontade e assumir uma conduta de carater sexual com o objetivo de constranger ou perturbar a colega de trabalho BB, faltando a conduta culposa;
30. Não existindo o preenchimento deste requisito, não se verifica a impossibilidade da subsistência da relação de trabalho. Pelo contrário, tendo em conta a antiguidade do Autor sem qualquer registo disciplinar anterior, a entidade empregadora poderia sempre ter optado pela aplicação de sanção menos gravosa. Ao ter aplicado a sanção de despedimento, para além da sua ilicitude a mesma também é desproporcional à situação concreta e violadora dos direitos de personalidade do Autor, nomeadamente o direito ao bom nome, reputação e honra.
31. Não existe assim nexo de causalidade entre a conduta e a impossibilidade de subsistência da relação laboral;
32. Esta conduta provocou danos psicológicos ao Autor com repercussões negativas ao nível familiar, social e laboral, cujo ressarcimento é imputável à Ré nos moldes peticionados em sede de primeira instância;
33. Em suma, não se verifica a violação dos deveres previstos no artigo 128.º, n.º 1, alíneas a) e f) e nem o preenchimento dos requisitos previstos no artigo351.º, n.º 1e 3, todos do Código do Trabalho, correspondendo a violação de lei substantiva por erro de aplicação, o que constitui fundamento de revista nos termos do artigo 674.º, n.º 1, alínea a) do CPC.
E rematava pedindo que fosse admitida a presente revista excecional e substituído por decisão nos termos e com devidos efeitos previstos no artigo 682.º do CPC.
Continente Hipermercados S.A. respondeu sustentando a inadmissibilidade da revista excecional.
Cumpre apreciar.
Relativamente à alínea a) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC, importa ter presente que o conceito de assédio sexual (cfr. artigo 29.º, n.º 3 do CPT) é diverso do conceito de assédio moral e não exige, seja qual for a posição hierárquica do agressor e da vítima, qualquer reiteração, podendo bastar para a sua verificação uma única conduta grave, como a descrita no facto provado n.º 10.
Não se vislumbra que seja claramente necessária a intervenção deste Tribunal, porquanto não se verifica a propósito uma controvérsia jurisprudencial ou doutrinal que urja esclarecer.
Recorde-se, também, que em qualquer recurso de revista ordinário – e também na revista excecional – a livre convicção que o Tribunal da Relação formou ao apreciar prova que não é legalmente tabelada não é sindicável. Assim o recurso de revista não pode ter por objeto a circunstância de o Tribunal da Relação ter atribuído relevância ao testemunho da vítima do assédio.
A decisão recorrida também não põe em causa interesses de particular relevância social (alínea b) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC).
Sem dúvida que a prevenção e o combate ao assédio sexual no local de trabalho e fora dele é uma questão de grande relevância social, mas tal não é, de todo, suficiente para que qualquer decisão nesta matéria justifique uma revista excecional. É necessário, outrossim, que a decisão recorrida provoque um alarme ou um abalo na consciência da comunidade, de tal modo que a própria decisão ponha em causa os mencionados interesses de particular relevância social. Uma decisão que julga lícita a aplicação de uma sanção disciplinar grave, mesmo que a mais severa, o despedimento, a um trabalhador que praticou factos com a gravidade dos que foram provados no presente processo, justifica-se plenamente e em nada põe em causa interesses de particular relevância social.
Decisão: Acorda-se em não admitir a presente revista excecional.
Custas pelo Recorrente.
Lisboa, 17 de março de 2022
Júlio Manuel Vieira Gomes (Relator)
Joaquim António Chambel Mourisco
Maria Paula Sá Fernandes