IMPUGNAÇÃO DA RESOLUÇÃO DE ACTOS EM BENEFÍCIO DA MASSA
DECLARAÇÃO DE RESOLUÇÃO
FACTOS ESSENCIAIS
NULIDADE
PRAZO DE CADUCIDADE
Sumário

I - A impugnação da resolução em benefício da massa insolvente, através da ação prevista no artº 125º CIRE, é uma ação de simples apreciação negativa que, na negação dos factos invocados para fundamentar a resolução operada pelo Administrador da Insolvência, visa a demonstração da inexistência ou da ineficácia, por não verificação dos pressupostos legais, da resolução declarada pelo administrador de insolvência.
II - Sendo a resolução extrajudicial, efetuada por carta registada (art. 123º CIRE), cabe à outra parte (ou ao insolvente) o ónus de a impugnar por via judicial (art. 125º CIRE), podendo atacá-la quer por razões formais quer por motivos substanciais.
III - Pelo referido, a declaração de resolução deve integrar e especificar os factos concretos essenciais que revelem as razões invocadas para a declarada destruição do negócio, no exercício do direito, potestativo extintivo, de resolução, e permitam ao destinatário a sua, posterior, impugnação, sem o que padecerá de nulidade (por falta de fundamento), a conduzir à procedência da impugnação.
IV - E para que se considerem alegados os factos essenciais, basta que estejam densificadas as razões que, no preenchimento dos requisitos legais impostos (cfr. arts 120 e 121º, do CIRE), fundam da resolução do negócio, levando em atenção a existência das presunções legais estatuídas, não acarretando a referida nulidade a sucinta especificação, por maioria de razão, se bem entendida pelo impugnante.
V - Na verdade, cabendo o ónus da prova dos factos constantes da declaração de resolução à massa insolvente, ante presunção legal ilidível, cabe à parte contrária (o impugnante) a alegação dos factos, a provar por si, que a afastem, por forma a poder ilidir a presunção (cfr. art. 349º, 350º e nº1, do art. 343º, todos do CC).
VI - O prazo especial previsto no nº1, do artigo 123º, do CIRE, inserido em legislação especial, que limita o exercício do direito de resolução em benefício da massa insolvente – de seis meses seguintes ao conhecimento do ato, mas nunca depois de decorridos dois anos sobre a data da declaração de insolvência -, prazo substantivo a cujo cômputo se aplica o regime próprio da caducidade, só se inicia com o conhecimento integral da factualidade inerente ao ato indesejado, que permita seja atacado pelo Senhor Administrador de insolvência.

Texto Integral

Apelação nº 3992/19.2T8OAZ-K.P1
Processo da 5ª secção do Tribunal da Relação do Porto (3ª Secção cível)
Tribunal de origem do recurso: Juízo de Comércio de Oliveira de Azeméis - Juiz 1

Relatora: Eugénia Maria de Moura Marinho da Cunha
1º Adjunto: Maria Fernanda Fernandes de Almeida
2º Adjunto: Maria José Simões

Acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto

Sumário (cfr nº 7, do art.º 663º, do CPC):
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I. RELATÓRIO

Recorrente: Banco ..., SA
Recorrida: Massa Insolvente da J..., Lda.

O Banco ..., SA veio, ao abrigo dos artigos 125º e 89º, nº2, do Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas, propor ação comum de impugnação de resolução em benefício da massa insolvente contra a Massa Insolvente da J..., Lda., arguindo a nulidade da declaração resolutiva e a caducidade do direito de resolução.
Alega que a declaração resolutiva que lhe foi dirigida é nula pois que, pese embora o AI tenha identificado como negócio jurídico a resolver o contrato de compra e venda celebrado, a 13 de junho de 2019, entre o “Banco ..., SA” e a sociedade insolvente, não alegou em que medida é que este negócio jurídico se revestiu de caráter prejudicial para a massa insolvente e, bem assim, nada é dito quanto ao requisito da má-fé, não sendo alegado que o autor "Banco ..., SA" tinha conhecimento de um dos factos referidos no artigo 120.º n.º 5 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Sustenta ter caducado o Direito de resolução, pois que em dezembro de 2019, o Sr. Administrador da Insolvência teve conhecimento do contrato de compra e venda celebrado entre a J... e o "Banco ..., SA", bem como do exercício antecipado da opção de compra do imóvel por parte da "J...". Porém, a carta de resolução em benefício da massa insolvente foi remetida a 6 de julho de 2020 pelo que ainda que o Sr. Administrador da Insolvência tivesse o direito de resolver em benefício da massa insolvente o contrato de compra e venda celebrado entre o "Banco ..., SA" e a "J..." já teria decorrido o prazo de caducidade (ou de prescrição) previsto no artigo 123.º n.º 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
A Massa Insolvente, na contestação que apresentou, pugnou pela improcedência da exceção da nulidade da declaração resolutiva, pois o AI, na carta que enviou ao Banco ..., SA, afirmou que o negócio foi celebrado com o propósito de destinar o imóvel – sede da insolvente – a locação financeira a T..., Lda.., sociedade em que o sócio gerente da insolvente tem também participação societária. Para além disso, foi invocado que este negócio mais não foi do que o corolário de sucessivos atos concertados para retirar da esfera jurídica da insolvente o imóvel, com o propósito deliberado de prejudicar a massa insolvente, beneficiar o sócio gerente e desrespeitar o princípio de igualdade dos credores. A invocada prejudicialidade para a massa insolvente da venda ao “Banco ..., SA”, “corolário de sucessivos atos concertados”, celebrada cinco meses antes da presente declaração da insolvência, cabe, plenamente, na previsão da al. g) e h) do n.º1 do art.º 121.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas e cabendo a prejudicialidade do negócio para a massa insolvente em situação prevista no nº 1 do artigo 121º, tal ato presume-se “jure et jure (ou seja, sem possibilidade de prova em contrário) prejudicial para a massa insolvente nos termos do nº 3, do artº 120º, daquele código, abreviadamente CIRE.
E defendeu a Massa Insolvente que a exceção da caducidade do direito de resolução não procede porque o gerente da devedora nada esclareceu, antes manteve a fraude, mas, também, porque, conforme resulta da carta de resolução, a insolvente exerceu o direito de compra antecipada, depois vendeu-o para garantir o contrato de locação financeira à T..., Lda.. e, em face à complexidade dos negócios e de todos os atos que os precederam, descritos na carta de resolução, houve necessidade de averiguar se foram ou não prejudiciais à massa e em Maio de 2020 o TOC prestou esclarecimentos adicionais ao AI após o que este questionou, de novo, o gerente da devedora e, de igual forma, solicitou ao Banco ..., SA elementos documentais para analisar os negócios celebrados, pelo que o envio da carta de resolução ocorreu bem longe dos dois anos permitido por lei.
O Banco ..., SA apresentou resposta afirmando que não tendo a ré massa insolvente alegado/demonstrado os factos constitutivos da presunção do art. 120.º n.º 4 do CIRE, não cabe ao autor ilidir qualquer presunção e, por outro lado, não tendo invocado na carta de resolução os actos jurídicos que integram as alíneas g) e h) do n.º 1 do art. 121.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas também não os pode invocar agora.
E respondeu, ainda, que os alegados contactos para que o AI tomasse conhecimento dos contornos do negócio não foram indicados pelo AI na carta de resolução pelo que tem de ser considerada procedente a exceção da caducidade do direito de resolução.
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Foi proferido despacho saneador a julgar as referidas exceções - da nulidade da declaração resolutiva e da caducidade do direito de resolução - improcedentes e a fixar o objeto do litígio (“Acção destinada a verificar se estão reunidos os pressupostos de que a lei faz depender a resolução do negócio celebrado entre a devedora e o Banco ..., SA, nos termos constantes da carta enviada pelo AI ao Banco ..., SA”) e definir os temas da prova (“1– O prejuízo dos credores como finalidade pretendida pelo Banco ..., SA e pela devedora na celebração do negócio resolvido. 2– O conhecimento pelo Banco ..., SA, na data da celebração do negócio, de que a devedora estava insolvente; 3– O conhecimento pelo Banco ..., SA da especial relação entre a sociedade devedora e a “T..., Lda.”; 4– A existência de simulação do negócio resolvido por não ser o pretendido pelas partes, antes o pagamento do seu crédito (Banco ..., SA) e a transmissão do imóvel a pessoa especialmente relacionada (a devedora)”).
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Apresentou o Banco Autor, recurso de apelação, requerendo seja revogada a decisão objeto de recurso e a sua substituição por outra que declare a nulidade da resolução em benefício da massa insolvente do contrato de compra e venda celebrado, a 13 de junho de 2019, entre o recorrente “Banco ..., SA” e a sociedade insolvente e, assim se não entendendo, declarando-se a nulidade do despacho saneador, se ordene o prosseguimento do processo para a fase de julgamento, para apreciação, também, da exceção de caducidade do direito de resolução, formulando as seguintes
CONCLUSÕES:
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Apresentou a Ré Massa Insolvente de J..., Lda. resposta a pugnar por que seja negado provimento ao Recurso, mantendo-se a decisão proferida pelo Tribunal a quo, Concluindo:
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Após os vistos, cumpre apreciar e decidir o mérito do recurso interposto.
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II. FUNDAMENTOS
- OBJETO DO RECURSO
Apontemos as questões objeto do presente recurso, tendo presente que o mesmo é balizado pelas conclusões das alegações do recorrente, estando vedado ao tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso, acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido – cfr. arts 635º, nº4, 637º, nº2 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.
Assim, as questões a decidir são as seguintes:
1ª- Enquadramento do mecanismo da resolução extrajudicial de negócios em benefício da massa insolvente e da impugnação judicial da mesma;
2º- Se a declaração de resolução padece do vício de nulidade por falta de fundamentos de facto;
3º- Da caducidade do direito à resolução em benefício da massa insolvente.
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II.A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
1. FACTOS PROVADOS
Foram os seguintes os factos considerados provados, com relevância, para a decisão das exceções em causa (transcrição):
1 – A devedora foi declarada insolvente por sentença proferida no dia 21/11/2019;
2 – No dia 22/01/2020 o Exmo. AI apresentou o relatório a que se refere o artigo 155º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas onde informa que da consulta aos dados da empresa na AT e Fiscal verificou a existência do imóvel aqui em causa, o qual não foi indicado pela devedora na relação dos bens, tendo sido informado pela devedora de que este bem é do Banco ..., SA, que havia sido adquirido em Leasing e entregue em Junho de 2019.
3 – A 09/05/2020 o TOC da devedora prestou esclarecimentos adicionais ao AI quanto ao negócio resolvido;
4 – A 15/05/2020 o gerente da devedora presta novos esclarecimentos ao AI.
5 – A carta de resolução foi enviada ao Banco ..., SA a 06/07/2020 e nela o AI não identifica as diligências a que procedeu para se decidir pela resolução.
6 - Na carta de resolução enviada pelo Exmo. AI ao aqui A. Banco ..., SA, vem alegada a seguinte factualidade:
1 – No dia 13/06/2019 a insolvente outorgou um contrato de compra e venda do imóvel onde funcionava a sua sede;
2 – No âmbito desse contrato a insolvente vendeu ao Banco ..., SA e este adquiriu o referido imóvel, pelo valor de 500.000,00€;
3 – Este negócio foi celebrado com o propósito de destinar o imóvel a locação financeira a T..., Lda.., sociedade em que o sócio gerente da insolvente também tem participação societária;
4 – Em conformidade, foi celebrado entre o Banco ..., SA e a T..., Lda. o contrato de locação financeira;
5 – A alienação deste imóvel para garantir o financiamento desta sociedade mais não foi do que o corolário de sucessivos actos concertados para retirar da esfera jurídica da insolvente o imóvel, com o propósito deliberado de prejudicar a MI e violar o princípio da igualdade dos credores;
(…)
11 – A aquisição do imóvel pela insolvente seguida da alienação ao Banco ..., SA resultou na extinção da dívida da insolvente ao Banco ..., SA;
12 – Com o contrato de locação financeira à T..., Lda.., pretendeu a insolvente salvaguardar o gozo do imóvel ao seu sócio-gerente e a possibilidade da sua restituição.
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II.B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
1ª- Do mecanismo da resolução extrajudicial de negócios em benefício da massa insolvente e da impugnação judicial de tal resolução

A resolução em benefício da massa insolvente está regulada nos artigos 120º a 126º, do CIRE, constituindo, a par da impugnação pauliana, um dos mecanismos destinados a prevenir os atos que prejudiquem a integridade da massa insolvente. É da competência do administrador da insolvência (art. 123º) e, uma vez operada a resolução, pode a mesma ser impugnada judicialmente pelas pessoas por ela afetadas.
A resolução em benefício da massa insolvente visa a reconstituição do património do devedor, permitindo a destruição de atos prejudiciais a esse património. Com a resolução pretende-se recuperar bens que saíram do património do devedor, através de atos praticados nos dois anos anteriores à data de início do processo de insolvência, quer o tenham sido em benefício próprio quer no de terceiros. Permite recuperar bens ou direitos que o devedor tentou subtrair à massa, em prejuízo dos credores.
O direito de resolução é um direito potestativo de natureza extintiva. Tratando-se de resolução em benefício da massa insolvente, o seu exercício e válido nascimento depende do preenchimento de determinados requisitos legais, gerais ou específicos - consagrados nos artigos 120.º e 121.º do CIRE. Daquele preceito extraem-se os seguintes requisitos gerais de resolução condicional: a) realização pelo devedor de atos ou omissões; b) prejudicialidade do ato ou omissão em relação à massa insolvente; c) verificação desse ato ou omissão nos quatro anos anteriores à data do início do processo de insolvência; d) existência de má fé do terceiro[1]. Deste último preceito, referente à resolução incondicional, decorre que nesta os requisitos gerais da resolução são dispensados, sendo os atos aí referidos resolúveis, independentemente de quaisquer outros requisitos, para além dos específicos, previstos nesta mesma disposição legal [2].
Assim, a resolução em benefício da massa insolvente pode assumir duas modalidades: i)- uma, a resolução condicional, cujos pressupostos gerais, previstos no art. 120º, consistem na prejudicialidade do ato para a massa insolvente e na má fé do terceiro beneficiado, sendo que, no âmbito desta a prejudicialidade do ato para a massa se presume também iuris et de iure quando tal ato consubstancie qualquer dos tipos previstos no nº1 do artigo 121º ainda que praticados ou omitidos fora dos prazos ali contemplados (art. 120º, nº3), e a má fé de terceiro também se presume juris tantum, nos termos do artigo 120º nº4, podendo ser ilidida por prova em contrário, nomeadamente pela não verificação de qualquer das circunstâncias previstas no nº5, do art 120º, de cujo conhecimento, por parte do terceiro, decorre a existência de má fé;
ii) outra, a resolução incondicional, quando o ato visado se traduza em quaisquer dos atos constantes da tipologia enunciada nas diversas alíneas do nº1 do art. 121º, os quais se presumem prejudiciais à massa insolvente, sem admissão de prova em contrário (presunção iuris et de jure), nos termos do nº3 do art. 120º, não se exigindo quaisquer outros requisitos, designadamente o da má fé, salvo o ressalvado no nº2 do art. 121º[3].
Em princípio, a prejudicialidade do acto necessita de ser demonstrada, nos termos do nº1 do apontado artigo 120º do CIRE e do artigo 342º, nº1 do CCivil, cabendo ao Administrador da insolvência alegar e provar, caso se imponha, a bondade do direito potestativo por si exercitado extrajudicialmente[4].
E, em regra, é requisito da resolução a má fé (cfr. art. 120º e nº2, do art. 121º), sendo que a resolução prevista no nº1, do art. 121º, para determinados atos prejudiciais, não exige a verificação de má fé.
Constata-se, ainda, que o art. 120º estabelece duas presunções: presunção de prejuízo patrimonial contemplada no nº3 e presunção de má fé definida nos termos do nº4. A presunção do prejuízo patrimonial, contida no nº3, não é ilidível, apenas cabendo provar a realização do ato, a presunção prevista no nº4 pode ser afastada pelo devedor ou por terceiro beneficiado com o ato, por prova em contrário (cfr. nº2, do art. 350º, do Código Civil)[5] [6]
A declaração de resolução deve integrar os factos concretos essenciais que revelem as razões invocadas para a destruição do negócio e permitam ao destinatário da declaração a sua posterior impugnação. A impugnação, através da ação prevista no artº 125º CIRE, visa a negação dos factos invocados para fundamentar a resolução operada pelo Administrador da Insolvência [7].
Vem sendo entendido que a ação de impugnação da resolução prevista no art. 125º, do CIRE é uma ação de simples apreciação negativa[8], visando a demonstração da inexistência ou a não verificação dos pressupostos legais da resolução declarada pelo administrador de insolvência. E, dado que a resolução é efetuada por carta registada (art. 123º CIRE), cabe à outra parte (ou ao insolvente) o ónus de a impugnar por via judicial (art. 125º CIRE), podendo atacar quer aspetos formais quer substanciais.
Neste conspecto, bem deixa claro o Tribunal a quo “A resolução em beneficio da massa insolvente, prevista no artigo 120º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, visa a reconstituição do património do devedor (a massa insolvente) por meio de um instituto especifico – a “resolução em beneficio da massa insolvente” – que permite, de forma expedita e eficaz, a destruição de actos prejudiciais a esse património, destinando-se tal expediente a apreender para a massa insolvente não só aqueles bens que se mantenham na titularidade do insolvente, como aqueles que nela se manteriam caso não houvessem sido por ele praticados ou omitidos aqueles actos, que se mostrem prejudiciais para a massa – cfr. Gravato de Morais, Resolução Em Beneficio Da massa Insolvente, 2008, 41; Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 5ª edição, 210; Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Ministério da Justiça, Coimbra Editora, 2004.
Dispõe aquele normativo, no seu nº 1, o seguinte: «Podem ser resolvidos em benefício da massa insolvente os actos prejudiciais à massa praticados dentro dos dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência.», acrescentando o seu nº 2 que «Consideram-se prejudiciais à massa os actos que diminuam, frustrem, dificultem, ponham em perigo ou retardem a satisfação dos credores da insolvência.».
Em princípio a prejudicialidade do acto necessita de ser demonstrada, nos termos do nº 1 do apontado artigo 120º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas e do artigo 342º, nº 1 do Código Civil, cabendo ao Administrador da insolvência alegar e provar, caso se imponha, a bondade do direito potestativo por si exercitado extrajudicialmente”.
Assim, e na verdade, o ónus de alegação (na declaração resolutória) e prova dos mesmos (em, ulterior, ação de impugnação da resolução) competirá a quem invoca a seu favor o dito direito potestativo extintivo e o pretenda fazer valer relativamente à contraparte no negócio resolvido.
Feita esta breve abordagem ao mecanismo da resolução em benefício da massa insolvente, entremos no objeto do recurso, que visa tão só a reapreciação da decisão das exceções da nulidade da declaração resolutiva e da caducidade do direito de resolução, julgadas improcedentes no despacho saneador.
Analisemos:
2ª - Da nulidade da declaração resolutiva
É entendimento doutrinal e jurisprudencial uniforme, o de que a resolução deve ser fundamentada e, a não figurarem da carta resolutiva, enviada pelo Administrador da Insolvência, os fundamentos da resolução, como entende a apelante verificar-se no caso, a declaração de resolução, comunicada através da mesma, está ferida de nulidade e determina a procedência da ação instaurada para impugnação dessa resolução[9].
Cumpre analisar se tal é o caso.
Considerou o Tribunal a quo que não impondo a lei, no que tange às exigências substanciais da carta resolutiva, uma exaustiva explanação dos fundamentos que consubstanciam a resolução, a mesma tem de conter o “quantum satis para o cabal exercício daquele direito potestativo”.
E, na verdade, sendo excessivo exigir que a declaração de resolução contenha uma exaustiva indicação de todos os factos que a justificam, tem a declaração de integrar os factos concretos essenciais que revelem as razões invocadas para a destruição do negócio e permitam ao destinatário da declaração a sua posterior impugnação, impondo-se que “da declaração resolutiva conste um composto factual mínimo que permita não só à parte visada exercer o seu direito de defesa, como ao declarante oportunamente fazer prova dos factos constitutivos do seu direito de resolução que oportunamente invocou [10].
Na declaração de resolução extrajudicial efetuada pelo Administrador da Insolvência deve este especificar os factos que são fundamento da resolução para legitimar o exercício desse direito, não podendo a deficiência de fundamentação da declaração de resolução ser suprida na contestação da respetiva ação de impugnação. Com efeito, ao impugnante cabe, apenas, a negação dos factos invocados para fundamentar a resolução operada pelo Administrador da Insolvência e não podem ser considerados e atendidos novos fundamentos, novos factos essenciais, invocados na contestação da ação de impugnação da resolução[11].
A carta de resolução deve conter a motivação fáctica específica que está na origem da resolução do ato em benefício da massa insolvente, pois, tendo o terceiro o direito de impugnar o ato, através da ação prevista no artº 125º CIRE, este tem de conhecer previamente os concretos factos ou fundamentos que contra ele são invocados[12] para que, quanto a eles, possa assumir uma posição.
Assim, podendo não ser exigíveis, abundantes e completas justificações, com invocação de factos instrumentais, deve entender-se bastante, mas necessária, justificação com invocação dos factos essenciais.
E bem resulta da carta enviada pelo Administrador de Insolvência ao ora Apelante que especificada justificação fáctica essencial existiu e, da petição da impugnação e da contestação da ação, bem decorre que a mesma foi compreendida pelo impugnante.
Na verdade, e porque de ato formal se trata, para que mais percetível seja, exara-se o teor integral da carta que o Senhor Administrador da Insolvência de J..., Lda., enviou ao Autor/apelante Banco ..., SA a resolver em benefício da massa insolvente os negócios jurídicos:
“1. No dia 13 de Junho de 2019, a insolvente outorgou um contrato de compra e venda do imóvel onde funcionava a sede da sociedade, sito em ..., Oliveira de Azeméis, descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob nº ...56, da freguesia ..., inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ...70, da União das freguesias ... e ....
2. No âmbito do referido contrato de compra e venda, a insolvente vendeu ao Banco ..., SA e este adquiriu o imóvel, alegadamente, pelo valor de 500.000.00 €.
3.Este negócio foi celebrado com o propósito de destinar o imóvel a locação financeira a T..., Lda.., NIPC ...SA., sociedade em que o sócio gerente da insolvente tem também participação societária.
4. Em conformidade, foi celebrado entre o B..., SA. e a sociedade T..., Lda., o Contrato de Locação Financeira Imobiliária Nº ...92.
5. Sucede que, a alienação do referido imóvel para garantir o financiamento desta sociedade, mais não foi do que o corolário de sucessivos atos concertados para retirar da esfera jurídica da insolvente o imóvel, com o propósito deliberado de prejudicar a massa insolvente e violar o princípio de igualdade dos credores.
Senão vejamos:
6. Em 8 de Setembro de 2006 foi celebrado entre a insolvente e o B..., SA. o contrato de Locação Financeira Imobiliária nº ...06, pelo prazo de 15 anos.
7. Pela Ap. ...87 de 02 de Janeiro de 2018 foi cancelada o registo do predito contrato, na sequência da celebração de um "Acordo de Rescisão para Regularização de Dívida".
8. Simultaneamente a este Acordo foi registado um novo Contrato de Locação Financeira nº ...05, celebrado pelo prazo de 10 anos, com início a 28/12/2017.
9. Em 15 de Janeiro de 2018 a devedora apresenta-se à insolvência, declarada no dia 24 do mesmo mês, no âmbito do processo nº194/18.9T80AZ, com encerramento a 19.12.2018 na sequência da homologação do Plano de Insolvência apresentado pela insolvente.
10. Cinco meses anteriores à data da declaração da presente insolvência e aquando da celebração do contrato de compra e venda e do subsequente Contrato de Locação Financeira com a sociedade T..., Lda., supra referidos nos pontos 3 e 5, a insolvente celebrou com a mesma instituição financeira um contrato intitulado "Compra e Venda por Opção de Compra Antecipada ao Abrigo do Contrato de Locação Financeiro Imobiliária nº ...05".
11. A referida aquisição do imóvel por parte da insolvente seguida da alienação ao B..., SA. resultaram, antes de mais, na extinção da totalidade da dívida da insolvente ao credor B..., SA.
12. Acresce que, com o aludido contrato de locação financeira à T..., Lda.., pretendeu a insolvente salvaguardar o gozo do imóvel ao seu sócio-gerente e a possibilidade da sua restituição.
13. Assim e pelo exposto, porque prejudiciais à massa insolvente, de má-fé e violadores do princípio da igualdade dos credores, considera-se RESOLVIDO o "Contrato de Compra e Venda" celebrado entre a insolvente e o Banco ..., SA e, consequentemente, o subsequente "Contrato de Locação Financeira Imobiliária Nº ...92" celebrado entre este último e a sociedade T..., Lda.”. (negrito e sublinhado nosso).

Bem resulta, assim, a alegação de, na celebração dos negócios resolvidos:
- ter a alienação do imóvel sido o corolário de sucessivos atos concertados (e, evidentemente, concertados entre quem os celebrou) para retirar da esfera jurídica da insolvente o imóvel;
- ter havido o propósito deliberado de prejudicar a massa insolvente e violar o princípio de igualdade dos credores, isto é, ter havido deliberação entre as partes nos ditos negócios e ter a mesma sido tomada e empreendida com os referidos propósitos (ou seja, terem as partes acordado na celebração dos negócios para prejudicar a massa insolvente e violar o princípio de igualdade dos credores);
- ter da aquisição do imóvel por parte da insolvente seguida da alienação ao B..., SA. resultado a extinção da dívida da insolvente ao credor B..., SA. (em, evidente, vantagem relativamente aos outros credores, que o continuaram a ser, com a manutenção dos seus créditos sem pagamento).
- ter, com o aludido contrato de locação financeira à T..., Lda.., pretendido a insolvente salvaguardar o gozo do imóvel ao seu sócio-gerente e a possibilidade da sua restituição.
- serem o "Contrato de Compra e Venda" celebrado entre a insolvente e o Banco ..., SA e, consequentemente, o subsequente "Contrato de Locação Financeira Imobiliária Nº ...92" celebrado entre este último e a sociedade T..., Lda.”, prejudiciais à massa insolvente, de má-fé e violadores do princípio da igualdade dos credores.
Resulta assim, a alegação de conluio, de concertação, entre as partes outorgantes dos contratos, para se beneficiarem a si - celebração dos mesmos, com intenção de beneficiar o Banco Impugnante (que, desde logo, recebia o seu crédito) e de beneficiar o referido sócio-gerente (que continuaria com o gozo do imóvel) - e prejudicarem a massa insolvente e os credores.
Invoca, pois, o Senhor Administrador de Insolvência que o negócio de compra e venda teve como fim o dar o imóvel em locação financeira a sociedade especialmente relacionada com a devedora, retirando-o da esfera patrimonial da insolvente.
Do teor da carta enviada pelo AI ao Banco ..., SA bem resulta a alegação do conhecimento que o Banco ..., SA tinha do carácter prejudicial do acto, desde logo por ter sido interveniente nos referidos negócios sendo evidente a alegação do propósito deliberado e concertado de prejudicar a Massa insolvente de quem nos negócios teve intervenção, com violação do princípio da igualdade dos credores.
Bem refere o Tribunal a quo estar na carta de resolução exposta a razão pela qual entende o Senhor Administrador de Insolvência que o negócio é prejudicial para a Massa Insolvente - Ter o uso e gozo do bem sido retirado à devedora - e da carta resulta que o Senhor Administrador de Insolvência imputa ao Banco ..., SA o conhecimento da prejudicialidade do ato, porque o Banco ..., SA é interveniente no negócio e porque o Senhor Administrador de Insolvência afirma que o negócio foi feito para retirar o gozo do imóvel à devedora e permitir o seu uso por pessoa especialmente relacionada com a devedora.
Assim, e porque a carta contém, na verdade, os factos essenciais, as razões da resolução, entendemos bem ter o Tribunal a quo considerado estarem invocados os factos essenciais a densificar a resolução em benefício da massa, indiciadores dos requisitos exigidos, bem tendo sido declarada improcedente a exceção da nulidade da declaração resolutiva, sendo que, questão diversa é a da efetiva verificação dos factos e a da procedência da impugnação, que será objeto de ulterior análise e decisão, a final.
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3ª - Da caducidade do direito de resolução
Estatui o nº1, do artigo 123º, do CIRE que “A resolução pode ser efetuada pelo administrador da insolvência por carta registada com aviso de receção nos seis meses seguintes ao conhecimento do ato, mas nunca depois de decorridos dois anos sobre a data da declaração de insolvência” (negrito nosso).
Conheceu o Tribunal a quo no despacho saneador da referida exceção, insurgindo-se o apelante contra tal conhecimento pretendendo seja o mesmo relegado para final.
Analisou o Tribunal a quo a divergência que se desenha quanto à questão e decidiu:
“O artigo 329.º do Código Civil determina que “o prazo de caducidade, se a lei não fixar outra data, começa a correr no momento em que o direito puder legalmente ser exercido” pelo que cabe perguntar se o facto de o n.º 1 do artigo 123.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas se ter referido aos seis meses seguintes ao conhecimento do acto implicará a fixação de outra data que não aquele momento em que o direito pode legalmente ser exercido.
No Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 10.04.2014, processo 738/12.0TBFAF-J.G1, no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 12.05.2014, processo 3324/10.5TBSTS-F.P1, invoca-se, desde logo, a letra da lei, para sustentar que o prazo de caducidade de seis meses se conta a partir do conhecimento puro e simples, ou seja, do conhecimento das partes nele intervenientes, da sua data, do seu objecto e das obrigações dele resultantes para cada uma das partes.
Perante o conhecimento do acto resolúvel, o administrador de insolvência tem que o analisar de forma a avaliar se o mesmo prejudicou a massa insolvente, de forma a poder, se for caso disso impugná-lo no prazo de seis meses, sob pena de caducidade.
Porém, o STJ tem entendido que a resolução tem que ser fundamentada. Tal resolução, com efeito, “embora não exija para a sua plena eficácia uma justificação completa que esgote todos os fundamentos, deverá (…) conter os elementos fácticos suficientes que permitam ao destinatário saber o porquê da resolução, e essa suficiência deverá ser objecto de análise casuística” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29/04/2014). Desta necessidade de fundamentação decorreria que a contagem do prazo só deveria começar a fazer-se a partir do momento em que o administrador está em condições de poder exercer o seu direito de resolução.
Em suma, e nas palavras do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 25/06/2015, “o prazo de seis meses a que se refere o artigo 123.º do CIRE apenas se inicia após o Administrador da Insolvência ter conhecimento integral da factualidade inerente ao acto em crise”.
Para decidir entre estas duas posições jurisprudenciais, importa ter presente, desde logo, que os pressupostos para o exercício da resolução em benefício da massa insolvente são muito variáveis. Em princípio, exige-se a má fé do terceiro (artigo 120 n.º 4), ainda que esta se presuma nos casos em que tenha participado no acto ou dele tenha beneficiado pessoa especialmente relacionada com o insolvente, mas em outras situações previstas no artigo 121.º n.º 1 não é requisito para a resolução a má fé do terceiro (com o caveat do n.º 2 do mesmo artigo 121.º).
Exige-se, também, o carácter prejudicial do acto (n.º 1 do artigo 120.º), mas certos actos presumem-se prejudiciais à massa sem admissão de prova em contrário (n.º 3 do artigo 120.º) e a resolução “incondicional” prescinde por completo de tal requisito. Em resultado, existem situações em que o simples conhecimento do acto praticado pelo devedor e da data em que ocorreu possibilita a resolução do mesmo: pense-se na hipótese de o devedor ter efectuado a doação de um prédio dentro dos dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência. Embora a eventual boa fé do donatário tenha interesse em sede dos efeitos da resolução, o simples conhecimento da existência da doação e do seu momento temporal é suficiente para que o administrador possa resolver a doação. Mas mesmo no âmbito do artigo 121.º e do que a lei designa por resolução “incondicional” a situação pode ser muito diversa: assim, mesmo que o devedor tenha vendido um bem no ano anterior à data do início do processo de insolvência o mero conhecimento da venda não é suficiente para que o administrador possa resolver esse contrato.
Terá, por exemplo, de averiguar se as obrigações assumidas pelo devedor excedem – e excedem manifestamente (artigo 121.º, n.º 1, alínea h)) – as da contraparte e até qual o modo de pagamento utilizado (artigo 122.º do CIRE). Não será, por conseguinte, suficiente para poder optar pela resolução o mero conhecimento da existência do acto.
Esta heterogeneidade de situações tem que ser tida em conta ao interpretar o artigo 123.º n.º 1. Interpretar o preceito como fixando o prazo de seis meses para o exercício do direito de resolução a partir do conhecimento da mera existência do acto teria como resultado um prazo manifestamente excessivo para certas situações (por exemplo, a resolução de uma doação), mas que se poderia revelar muito curto e até insuficiente para outras, em que se torna necessário determinar, designadamente, quem contratou (caso se trate de um contrato) com o devedor, qual a relação entre eles, qual o conteúdo do acto… Partindo da presunção de que o legislador consagrou as soluções mais acertadas (artigo 9.º n.º 3 do Código Civil, que também se refere à presunção de que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados) entendemos que a referência ao conhecimento do acto implica o conhecimento da plenitude do mesmo em tudo o que ele releva para efeitos de resolução do contrato.
A divergência entre as duas posições jurisprudenciais resulta de uma diferente concepção dos deveres do administrador nesta sede. Recorde-se, aliás, que alguma doutrina – é o caso de Fernando de Gravato Morais, em estudo monográfico dedicado a este instituto da resolução em benefício da massa insolvente – defende que ao conhecimento pelo administrador da insolvência deveria ser equiparado o “dever de conhecimento”.
Afirma este autor, com efeito, o seguinte: “Suponhamos, v.g., que o administrador da insolvência porventura tomou conhecimento, em abstracto, da prática de vários actos, mas descurou a sua apreciação em concreto. Parece dever entender-se que essa falta de actuação não pode prejudicar a contraparte dos que negociaram com aquele que se encontra numa situação de insolvência”. E acrescenta, ainda, o mesmo autor. “É certo que tal interpretação não é a que mais favorece os credores da massa insolvente, porque esta fica sem bens ou valores que doutra sorte a poderiam integrar. Mas o legislador foi peremptório na fixação de um prazo. E se se negligenciasse o momento em que o administrador da insolvência devia conhecer o circunstancialismo isso significaria, em concreto, um excessivo alargamento do prazo”. Outra doutrina critica o referido prazo de seis meses referindo-se á “necessidade de rapidamente se pôr termo à incerteza quanto ao destino dos atos em causa, tanto mais que em certos casos eles revestem natureza onerosa”, e pondo reservas quanto ao alargamento do prazo operado pelo legislador, de três para seis meses.
Afigura-se excessivo impor ao administrador da insolvência um dever de investigar ou de averiguar o real conteúdo dos atos praticados pelo devedor, mal chegue ao seu conhecimento a existência dos mesmos. Aceita-se que não deva ficar inteiramente inerte ou passivo, devendo, por exemplo, pedir esclarecimentos e informações ao devedor sobre quem incumbe um dever de colaboração, de acordo com o artigo 83.º do CIRE. Mas seria excessivo, sobretudo porque não dispõe de especiais poderes de investigação impor-lhe o ónus, sob pena de caducidade do direito, de pesquisar as conservatórias, a tentar apurar o verdadeiro conteúdo dos actos praticados pelo devedor.
A tese de que o prazo de seis meses começaria a correr do mero conhecimento da existência do acto conduziria a beneficiar o devedor que praticasse múltiplos actos prejudiciais à massa, mais ou menos complexos, na expectativa de o administrador da insolvência não conseguir descobrir o real conteúdo de todos ou de alguns deles no prazo dos seis meses.
A tese que aqui se acolhe – a de que o prazo de seis meses só deve contar a partir do conhecimento pelo administrador do acto na sua íntegra e, portanto, dos pressupostos de que depende o exercício do direito de resolução não representa uma ameaça excessiva para a segurança jurídica.
Em primeiro lugar, porque além do prazo de seis meses a contar do conhecimento do acto pelo administrador da insolvência, há sempre que ter em conta que a resolução nunca pode ter lugar “depois de decorridos dois anos sobre a data da declaração de insolvência” (n.º 1 do artigo 123.º do CIRE, parte final). Depois porque a oponibilidade da resolução do acto a transmissários posteriores a título oneroso pressupõe a má fé destes (n.º 1 do artigo 124.º). Quanto à contraparte do devedor que veio a ser declarado insolvente, se se tratar de um adquirente a título gratuito, a obrigação de restituir só existirá “na medida do seu enriquecimento, salvo o caso de má fé, real ou presumida” (n.º 6 do artigo 126.º), solução muito criticada pela doutrina, mas que permite proteger adequadamente o donatário nos casos, por exemplo, de doação modal ou de doação remuneratória, negócios que a maior parte da doutrina considera serem gratuitos. Relativamente à contraparte a título oneroso – que até pode ser, no caso concreto, a contraparte de um negócio gravemente desequilibrado, como previsto na alínea h) do n.º 1 do artigo 121.º – a sua tutela decorre dos números 4 e 5 do artigo 126.º.
Em suma, a protecção da contraparte que adquiriu a título oneroso não deve prevalecer sobre os interesses dos restantes credores e da massa.
Subscreve-se, pois, a asserção do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 25/06/2015, de que “o prazo de seis meses a que se refere o artigo 123.º do CIRE apenas se inicia após o Administrador da Insolvência ter conhecimento integral da factualidade inerente ao acto em crise” (seguiu-se o Ac. do STJ de 18/10/2016, em que foi relator Júlio Gomes e proferido no processo nº 7/13.8TBFZZ-G.E1.S1).
Aqui chegados, é forçoso concluir que a resolução foi atempadamente efectivada porque, pese embora o AI possa ter tido conhecimento da existência deste negócio logo em Dezembro de 2019, só em Maio de 2020 recebeu os últimos dos esclarecimentos solicitados, o que demonstra que teve o AI necessidade de analisar os contornos do negócio para, em tempo (antes de decorridos dois anos sobre a declaração de insolvência) resolver o negócio.
No sentido do que agora se conclui não releva o facto de o AI não ter indicado na carta de resolução as diligências a que procedeu até concluir pela necessidade de resolver este negócio uma vez que a carta de resolução não se destina a dar a conhecer ao seu destinatário as diligências a que o AI procedeu, mas sim a comunicar-lhe os factos que fundamentam a resolução, cabendo ao AI, como o AI fez, na contestação da acção onde venha invocada a caducidade do direito à resolução, demonstrar que não observou o primeiro dos prazos (seis meses) por estar a proceder a diligências com vista à decisão da resolução”.
E assim é, na verdade, pelo exposto.
Com efeito, porque o negócio foi resolvido antes de decorridos dois anos sobre a data em que foi declarada a insolvência da devedora e bem resulta que o Senhor Administrador de Insolvência, até dois meses antes de ter enviado a carta de resolução, esteve a inteirar-se dos pormenores do negócio para aferir se o deveria ou não resolver, bem foi, desde logo, no despacho saneador, julgada improcedente a exceção invocada, por os elementos dos autos o permitirem, já, sem necessidade de produção de provas.
Na verdade, mesmo informado em dezembro de 2019 dos contornos do contrato de compra e venda resolvido, teve o Senhor Administrador de se inteirar dos pormenores do negócio (o que ocorreu entre Janeiro e Maio) para se aferir se o havia ou não de resolver, pelo que, tendo a carta de resolução sido enviada ao Banco ..., SA a 06/07/2020, se não mostra verificada a caducidade do direito de resolução.
Deste modo se vem orientando a Doutrina e a Jurisprudência, sendo entendido (para além de que, na verificação da exceção de caducidade[13] do exercício do direito de resolução em benefício da massa insolvente, “o Tribunal pode conhecer de qualquer causa suspensiva ou interruptiva do respectivo prazo, desde que disponha de factos suficientes para esse fim (uma vez que a falta de resposta à excepção não tem efeito preclusivo sobre as considerações de natureza jurídica que os factos invocados como fundamento da mesma possam motivar”), que os “prazos que limitam o exercício do direito de resolução em benefício da massa insolvente (seis meses seguintes ao conhecimento do acto, mas nunca depois de decorridos dois anos sobre a data da declaração de insolvência) são prazos substantivos”, a cujo cômputo se aplica “regime próprio da caducidade”[14], tratando-se, contudo, “de um prazo especial, inserido em legislação especial, que afasta o preceituado no regime geral”[15].
Ora, no caso, em que acrescem à complexidade do negócio em causa - que retirou o imóvel do património da devedora, tendo de ser conhecidos os contornos e pormenores do negócio para se poder aferir da resolução, não bastando o conhecimento do ato puro e simples, sendo necessário e imprescindível o conhecimento dos pressupostos necessários ao direito de resolução[16] - atentos os constrangimentos verificados, incluindo, na verdade, os decorrentes da própria situação de pandemia e, sendo, até, de considerar a suspensão dos prazos, previstos na Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, alterada pela Lei nºs 4-A/2020, de 6 de abril, bem resulta que o Senhor Administrador da Insolvência cumpriu o prazo previsto no nº1, do artigo 123º, do CIRE, sendo que tal prazo de 6 meses, a que se refere este preceito, só se inicia após o Administrador de insolvência ter conhecimento integral da factualidade inerente ao ato não desejado.
Assim, também a exceção da caducidade do direito bem foi, no despacho saneador, que reunia os elementos de facto para tal, julgada improcedente.
Neste conspecto, de nenhuma violação à lei constitucional ou ordinária padece a decisão recorrida, designadamente do direito fundamental do autor/recorrente a um processo justo e equitativo e do direito à defesa, consagrados no art. 20.º nºs 1 e 4 da Constituição da República Portuguesa, antes, e por os autos fornecerem os elementos necessários, nos termos supra expostos, bem foram julgadas improcedentes as exceções invocadas.
Improcedem, por conseguinte, as conclusões da apelação, não ocorrendo a violação de qualquer dos normativos invocados pela apelante, devendo, por isso, a decisão recorrida ser mantida.
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III. DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, os Juízes do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmam, integralmente, a decisão recorrida que julgou improcedentes as arguidas exceções.
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Custas pela apelante, pois que ficou vencida – art. 527º, nº1 e 2, do CPC.

Porto, 7 de fevereiro de 2022
Assinado eletronicamente pelos Juízes Desembargadores
Eugénia Cunha
Fernanda Almeida
Maria José Simões
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[1] Cfr. Ac, RG de 30/11/2017, proc. 90/14.9T8VLN-D.G2, in dgsi.pt, sendo que “Quanto a este último requisito, a lei estabeleceu no nº 4 do art.º 120.º do CIRE, uma presunção, juris tantum, da má-fé do terceiro, “quanto a actos cuja prática ou omissão tenha ocorrido dentro dos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência e em que tenha participado ou de que tenha aproveitado pessoa especialmente relacionada com o insolvente, ainda que a relação especial não existisse a essa data” (cfr. art. 49º do CIRE), pelo que, neste caso, o ónus de ilisão de tal presunção recai sobre o Impugnante da resolução operada pelo Sr. Administrador de Insolvência.”
[2] Ac. RP de 14/7/2020, proc. 8986/17.0T8VNG-D.P1, in dgsi.pt
[3] Ac. da RL de 16/7/2013, proc. 1048/12.8TBPDL-C.L1-7, citado in, Maria José Esteves e Sandra Alves Amorim, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Vida Económica, pág. 194 e seg.
[4] Ac. do STJ de 27/11/2019, proc. 3327/10.0TBSTS-J.P1.S2, in dgsi.pt
[5] Maria José Esteves e Sandra Alves Amorim, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Vida Económica, pág. 191.
[6] V. Ac. da RG de 20/5/2021, proc. 865/18.0T8VNF-C.G2, in dgsi.pt, “a lei tem o cuidado de discriminar, no art. 121.º seguinte do CIRE, actos que se presumem «prejudiciais à massa, sem admissão de prova em contrário, ainda que praticados ou omitidos fora dos prazos aí contemplados» (conforme n.º 3, do art. 120.º antes citado). Fala-se, então, de resolução incondicional, uma vez que, nestes casos (discriminados nas alíneas a) a i) do n.º 1 do art. 121.º citado) a resolubilidade do acto prejudicial à massa insolvente ocorre sem mais requisitos (presumida juris et de jure que está a prejudicialidade do acto, não é necessária a demonstração da má-fé do terceiro interveniente no acto objecto de resolução).
Fora daquele elenco, a resolução, além de exigir a prejudicialidade à massa insolvente (demonstrada ou presumida juris et de jure, conforme respectivamente art. 120.º, n.º 2 e n.º 3 do CIRE), «pressupõe a má fé de terceiro, a qual se presume» iuris tantum «quanto a actos cuja prática ou omissão tenha ocorrido dentro dos dois anos anteriores ao início da insolvência e em que tenha participado ou de que tenha aproveitado pessoa especialmente relacionada com o insolvente, ainda que a relação especial não existisse a essa data» (n.º 4 do mesmo art. 120.º). Fala-se, então, de resolução condicional.
Logo, a lei estabeleceu dois tipos de presunções (que implicam com questões probatórias): uma inilidível (iure et de iure), de prejudicialidade para a massa insolvente dos actos taxativamente enumerados nas diversas alíneas do n.º 1 do art. 121.º do CIRE (resolúveis em benefício da massa, sem dependência de quaisquer outros requisitos, nomeadamente da má-fé do terceiro), falando-se de resolução incondicional; e outra ilidível (tantum iuris), de má-fé do terceiro interveniente em actos cuja prática ou omissão tenha ocorrido dentro dos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência, ou em que tenha participado ou de que tenha aproveitado pessoa especialmente relacionada com o insolvente, ainda que a relação especial não existisse a essa data (art. 120.º, n.º 4), falando-se de resolução condicional.
[7] Ac. da RC de 4/4/2017, processo 104/14.2TBCDR-F.C1, in dgsi.net
[8] Cfr Acs. de RP de 27/4/2017, proc. 636/14.2T8VVD-F.G1 “Visando a ação de impugnação de resolução em benefício da massa insolvente a reversão dos efeitos decorrentes de tal comunicação resolutiva, constitui a mesma uma ação de simples apreciação negativa” e de 23/1/2017, processo 4058/12.1TBGDM-B.P1, in dgsi.net onde se escreve “A acção de impugnação da resolução de acto em benefício da massa insolvente onde apenas sejam impugnados factos invocados para fundamentar a resolução é uma acção de simples apreciação negativa” e Acs. da RG de 11/7/2017, processo 1504/15.6T8GMR-S.G1, onde se considerou ”A ação de impugnação da resolução em benefício da massa insolvente, operada pelo administrador da insolvência, é uma ação de simples apreciação negativa, cabendo à massa insolvente o ónus da prova da verificação dos respetivos pressupostos”. e de 27/4/2017, processo 636/14.2T8VVD-F.G1“Visando a ação de impugnação de resolução em benefício da massa insolvente a reversão dos efeitos decorrentes de tal comunicação resolutiva, constitui a mesma uma ação de simples apreciação negativa”, todos in dgsi.net.
[9] Alexandre de Soveral Martins, Um curso de Direito da Insolvência, 2ª Edição Revista e Atualizada, Almedina, pág. 221, Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 8ª Edição, Almedina, pág. 231, Ac. da RG de 26/3/2009, em CJ 34 (2009), 2, pp. 311-314 e Ac. RE de 27/2/2014, em CJ 39 (2014), 1, pp. 251.254 e Ac. RC de 4/6/2013, proc. 354/12.6TBFND.K.C1, in dgsi.pt
[10] Ac RP de 27/4/2017, proc. 636/14.2T8VVD-F.G1, in dgsi.pt.
[11] A. RG de 13/2/2020, proc. 554/19.8T8VNF-E.G1, in dgsi.pt
[12] Ac. RC de 4/4/2017, proc. 104/14.2TBCDR-F.C1, in dgsi.pt, onde se escreve “1.-A resolução em benefício da massa insolvente visa a reconstituição do património do devedor, permitindo a destruição de actos prejudiciais a este património.
2. -Será excessivo exigir que a declaração de resolução contenha uma exaustiva indicação de todos os factos que a justificam; mas essa declaração há-de integrar os factos concretos essenciais que revelem as razões invocadas para a destruição do negócio e permitam ao destinatário da declaração a sua posterior impugnação.
3. - Esta impugnação visa apenas a negação dos factos invocados para fundamentar a resolução operada pelo AI, não podendo o impugnante ser surpreendido com factos essenciais ou fundamentos novos, com que se pretenda suprir as deficiências da declaração de resolução.
4. - A carta resolutiva deverá conter, ainda que sinteticamente, a motivação fáctica específica que origina a resolução do acto em benefício da massa insolvente, pois, tendo o terceiro o direito de impugnar o acto, através da acção prevista no artº 125º CIRE, este tem de conhecer previamente os concretos factos ou fundamentos que contra ele são invocados.
5 - Sem prejuízo de na resolução incondicional, prevista no art. 121º do CIRE, se mostrar dispensado o requisito da má fé e de existir uma presunção inilidível de prejudicialidade, o Administrador da Insolvência deve indicar na carta resolutiva fundamentação adrede bastante.
6.- Se a carta resolutiva enviada pelo Administrador da Insolvência não indicar os fundamentos da resolução incondicional, a declaração de resolução comunicada através da mesma está ferida de nulidade e determina a procedência da acção instaurada para impugnação dessa resolução”.
[13] Refere Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, idem, pág. 231 “A lei qualifica na epígrafe do art. 123º, nº1, como “prescrição do direito” a situação decorrente da ultrapassagem desse prazo. A qualificação é manifestamente estranha, dado que a situação parece ser antes de caducidade do direito de proceder a resolução”. Neste sentido Carvalho Fernandes/João Labareda, Código da Insolvência, sub art. 123º, nº3, pág 510. Em sentido contrário Gravato Morais, em Resolução em benefício da massa insolvente, Almedina, Coimbra, 2008, p. 161 e segs, que entende que a qualificação legal deve prevalecer. Alexandre Soveral Martins em Um Curso de Direito da Insolvência, nota de rodapé 169, pág. 220 afirma que “A epígrafe do art, 123ºparece qualificar o prazo como de prescrição. Ora, o art. 298º, nº2, do CC, estabelece que, em regra, o prazo que a lei fixa para o exercício de um direito é de caducidade, “a menos que a lei se refira expressamente à prescrição”. O que nos coloca, evidentemente, perante o valor das epígrafes…”.
[14] Ac. RG de 20/5/2021, proc. 865/18.0T8VNF-C.G2, in dgsi.pt, onde se refere ler-se no art. 298.º, n.º 2, do CC que, quando, «por força da lei ou por vontade das partes, um direito deva ser exercido dentro de certo prazo, são aplicáveis as regras da caducidade, a menos que a lei se refira expressamente à prescrição» e “é difícil conceber-se ou admitir que os prazos de caducidade e, entre eles, os de propositura de acções, sejam prazos judiciais; as razões que os determinam são estranhas ao ordenamento processual, isto é, à actividade jurisdicional, pois dizem respeito aos próprios interesses materiais ou substantivos, que são da alçada civil (Vaz Serra, BMJ, n.º 107.º, pág. 217).
Ora, é hoje «consensual que se trata de prazos substantivos e, não obstante a epígrafe» do art. 123.º «se referir a “prescrição do direito”, de prazos de caducidade» (Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, 2.ª edição, Almedina, Fevereiro de 2021, pág. 243).
Logo, importa atender ao disposto: no art. 329.º, do CC, segundo o qual o «prazo de caducidade, se a lei não fixar outra data, começa a correr no momento em que o direito puder ser legalmente exercido»; e no art. 331.º, n.º 1, do CC, segundo o qual que só «impede a caducidade a prática, dentro do prazo legal ou convencional, do acto a que a lei ou convenção atribua efeito impeditivo».
Precisa-se, porém, quanto ao termo inicial do prazo de seis meses para se operar a resolução («seguintes ao conhecimento do ato»), que não está aqui em causa o conhecimento do acto puro e simples, mas também o conhecimento dos pressupostos que podem fundamentar a resolução, excepto no caso de negligência do administrador da insolvência (em que o prazo se conta desde o momento em que o administrador devia ter tido conhecimento dos referidos pressupostos).
Por fim, lê-se no art. 328.º, do CC, que o «prazo de caducidade não se suspende nem se interrompe senão nos casos em que a lei o determine»”.
[15] Ac. do STJ de 27/11/2019, proc. 3327/10.0TBSTS-J.P1.S2, in dgsi.pt
[16] Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, Almedina, pág. 250 e Acs do STJ de 27 de Outubro de 2016, proc. 653/13.0TBBGC-F.G1.S1 e de 27/10/2016, proc. 3158/11.0TJVNF-H.G1-S1, ai citados na nota de rodapé 364.
[17] Ac. TRE de 25/6/2015, proc. 7/13.8TBFZZ-F.E1, in dgsi.pt