ACIDENTE DE TRABALHO
FASE CONCILIATÓRIA
ARBITRAMENTO DE REPARAÇÃO PROVISÓRIA
RESPONSÁVEL PELA REPARAÇÃO
Sumário


I- Só se pode recorrer à analogia quando existe uma lacuna na lei, só sendo possível recorrer à aplicação da lei existente em caso semelhante, quando a lei existente é omissa.
II- A fixação de pensão ou indemnização provisória evidencia uma clara similitude com o procedimento cautelar de arbitramento de reparação provisória, previsto no art.º 565 do CC e regulado nos artºs 388.º a 390.º do CPC, integrando-se no grupo de procedimentos cautelares respeitantes a prestações pecuniárias que conduzem, ainda que a título provisório, ao pagamento periódico de uma determinada importância em dinheiro.
III- Precisamente por as situações reguladas serem idênticas e semelhantes e por estar em causa essencialmente prevenir e garantir as necessidades essenciais do sinistrado vítima de acidente de trabalho, nada obsta a que na fase conciliatório dos autos emergentes de acidente de trabalho seja admissível tal procedimento.
IV- Para que seja decretado o procedimento cautelar de arbitramento de reparação provisória é necessário que se verifiquem determinados requisitos, designadamente que esteja indiciada a existência da obrigação de indemnizar a cargo do requerido, não podendo por isso ser essa responsabilidade imputada a terceiro, designadamente ao FAT. Tal não constitui qualquer lacuna na lei que cumpra suprir.

Vera Sottomayor

Texto Integral


Acordam na secção social do Tribunal da Relação de Guimarães

APELANTE: X – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A.
APELADO: J. C.
Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo do Trabalho de Braga - Juiz 2

I – RELATÓRIO

Nos presentes autos de acção declarativa de condenação, com processo especial emergente de acidente de trabalho, em que é sinistrado J. C. e responsável X – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A. na fase conciliatória dos autos, veio o sinistrado, por apenso, intentar procedimento cautelar especificado de arbitramento de reparação provisória, ao abrigo do disposto nos arts. 388.º e 389.º do Código de Processo Civil, com vista à fixação da indemnização provisória, no valor mensal de 696,00€ devida desde a data do acidente (29-04-2021), contabilizada à razão diária de €23,20, acrescida da quantia mensal de €350,00, devidos a título de prestação de auxílio por terceira pessoa.
Como se fundamenta, em resumo, na decisão recorrida, o sinistrado foi admitido, aos 01.12.2016, ao serviço da sociedade Y – Casa … Agrícola, S.A., para exercer, sob as ordens e direcção desta e na respectiva sede, localizada na Póvoa de Lanhoso, as funções de agricultor, ultimamente auferia a retribuição mensal de €800,00 x 14 meses, acrescida da importância de €81,40 x 11, a título de subsídio de alimentação. O seu horário de trabalho era distribuído pelos cinco dias úteis da semana, das 8h00-12h00 e das 14h00-18h00, horário esse passível de sofrer variações, em função das necessidades da entidade empregadora. Esta, por seu turno, tinha transferido para a ré a responsabilidade infortunística respeitante a acidentes de trabalho de que ele, requerente, fosse vítima. No dia 29.04.2021, o requerente iniciou pela manhã e retomou, após o período de almoço, a sua jorna de trabalho, sendo que uma das tarefas que tinha para realizar, por determinação da sua entidade empregadora, consistia na pulverização de campos de milho com herbicida. Cerca das 17h30m, colocava água com herbicida num pulverizador acoplado a um tractor agrícola, sendo que o sistema de pulverização era activado/desactivado através de cardãs ligados ao veículo, a dado momento, enquanto enchia o depósito do pulverizador com água, as calças que trazia vestidas prenderam-se no cardã do tractor, com o que o seu pé esquerdo foi puxado para o sistema de engrenagem do pulverizador, ficando esmagado, em consequência do que veio a perder os sentidos. Foi-lhe prestada assistência médica e veio a ser submetido a amputação transtibial do membro esquerdo, mantendo-se na condição de internado até 28.05.2021. Actualmente, continua em tratamentos de fisioterapia, no CS da …, não tendo retomado, nem estando em condições de retomar, o exercício da sua profissão. O acidente foi participado à Ré, que no dia 05.08.2021, declinou a responsabilidade pela reparação do acidente, alegando o incumprimento de regras de segurança. Mais alega o requerente que necessita, quatro horas por dia, do auxílio de terceira pessoa para realizar as tarefas da sua vida diária, como vestir-se, ir à casa de banho, levantar-se e deitar-se, prestação a fixar em medida não inferior a € 350,00 por mês; que era com a sua remuneração que provia ao respectivo sustento e, juntamente com a remuneração do seu cônjuge, às despesas do agregado, composto por ambos e, ainda, por um filho menor, de 10 anos. A remuneração do seu cônjuge é insuficiente para prover a todas aquelas despesas, encontrando-se o seu agregado no limiar da pobreza e dependente de auxílio de familiares próximos.
Designada data para audiência final, veio a requerida deduzir oposição, alegando, em síntese, que o sinistro em causa nos autos ocorreu pelas 17h40m e, por conseguinte, fora do seu horário de trabalho, que era das 8h00-12h00 e das 13h30 às 17h30. Nesse dia o requerente havia terminado a prestação de serviço, por conta da sua entidade empregadora, pelas 17h00, tendo-se dado o acidente que o vitimou, quando se encontrava a preparar o tractor e os equipamentos a ele acoplados, de sua pertença, para realizar trabalhos por conta própria, em terrenos próprios ou de terceiros. Acresce ainda dizer que o sinistro resultou de negligência do requerente e da violação por ele de regras de segurança. Concluiu, pugnando pela descaracterização do sinistro, com a consequente exclusão da sua responsabilidade. Caso assim não se entenda, considera que por haver desacordo entre as partes, seria o Fundo de Acidentes de Trabalho a adiantar o pagamento de prestações/indemnizações.
Não tendo sido possível conciliar as partes teve lugar a audiência final, e por fim foi proferida decisão da qual se fez constar o seguinte dispositivo.

“Pelo exposto, julga-se o presente procedimento cautelar parcialmente procedente, por parcialmente provado, termos em que se decide:

a). Fixar no montante diário de € 23,20, vencido desde 30.04.2021, o valor da indemnização a que, provisoriamente, o requerente J. C. tem direito, a título de ITA, que perdurando para além dos 12 meses, passará a ter o valor diário de € 24,85, com a consequente condenação da requerida X – Companhia de Seguros, S.A., no seu pagamento;
b). Absolver a requerida do mais peticionado.
Custas a cargo do requerente e da requerida, na proporção do respectivo decaimento, com taxa de justiça que se fixa no mínimo legal, e sem prejuízo do benefício de apoio judiciário que vier a ser concedido ao primeiro.
Registe e notifique.”

Inconformada com esta decisão, veio a Requerida interpor recurso de apelação para este Tribunal da Relação de Guimarães, apresentando alegações que terminam mediante a formulação das seguintes conclusões:

“I. A Recorrente interpôs o presente recurso, visando, desde logo, a reapreciação da prova gravada, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 80.º do Código de Processo do Trabalho, por entender que a matéria de facto dada como indiciariamente demonstrada pela Meritíssima Juiz de 1.ª instância, foi erradamente dada como provada, atenta a prova produzida, impondo-se, por essa razão, a sua reanálise e alteração, nos termos do presente recurso.
II.(…).
III. Com interesse para o presente recurso, foi dado como indiciariamente demonstrada a seguinte matéria de facto:
“d) Esse horário podia sofrer variações, em função das necessidades da entidade empregadora.
f) Na data mencionada em b), a entidade empregadora encarregou o requerente de, entre o mais, proceder à pulverização de um campo de milho com herbicida.
g) Essa tarefa ia ser realizada pelo requerente através da utilização de um tractor, ao qual se encontravam acoplados, através de cardã, dois equipamentos, um de pulverização e uma roto-fresa, tudo pertença do próprio.
i) Na sequência e em cumprimento da determinação referida em f), cerca das 17h40m da data aí considerada, o requerente encontrava-se a preparar a mistura de herbicida e de água no depósito do equipamento de pulverização.”
IV. Tendo concluído o Tribunal a quo que “apurou-se que o evento sob consideração teve lugar no local de trabalho e, também, no tempo deste, na medida em que, embora o mesmo haja tido lugar para além das 17h30m, mais concretamente cerca das 17h40m, a verdade é que se demonstrou que o requerente se encontrava a executar tarefa por conta e sob as ordens da sua entidade empregadora”.
V. Não pode aceitar as conclusões vertidas na sentença proferida, designadamente, no que concerne aos pontos d), f), g) e i) da matéria indiciariamente demonstrada, uma vez que, quer a prova testemunhal, quer a prova documental deveriam ter permitido o Tribunal concluir de forma diversa.
VI. a XIII (…)
XIV. Conforme apontado na sentença, foi notório o conhecimento das testemunhas inquiridas da posição da seguradora e que os depoimentos tenderam a ajustar-se no sentido de ultrapassar previsíveis resistências, pelo que é manifestamente questionável a veracidade dos depoimentos das testemunhas inquiridas.
XV. Das regras da experiência comum resulta, desde logo, que os depoimentos prestados logo após a ocorrência dos eventos, são mais genuínos e tendem a pautar-se pela verdade.
XVI. a XX (…)
XXI. Resultou, isso sim, da prova produzida em Audiência de Julgamento, e resulta da matéria de facto dada como indiciariamente demonstrada, que o tractor e os equipamentos a ele acoplados eram propriedade do Recorrido…
XXII. A ser verdade, o que não se concede, mas apenas por mera hipótese de raciocínio se coloca, sempre se dirá que, era o mesmo remunerado pela sua Entidade Empregadora, quer em numerário, quer em troca de equipamentos, quando usava o seu tractor e equipamentos a ele acoplados, pelo que se coloca a questão se, afinal, não estávamos perante uma prestação de serviços, externa à prestação de trabalho propriamente dita…
XXIII. Atento o exposto no presente articulado, é manifesto que o Tribunal não poderia ter dado como indiciariamente demonstrado os pontos d), f), g) e h) da Factualidade Demonstrada, impondo-se, por essa razão, decisão diversa, designadamente, que tal matéria seja dada como não demonstrada.
XXIV. Nos termos do artigo 122.º, n.º 2, do Código de Processo de Trabalho, nos casos em que haja desacordo sobre a existência ou a caracterização do acidente como de trabalho “a pensão ou indemnização provisória e os encargos com o tratamento do sinistrado são adiantados ou garantidos pelo fundo a que se refere o n.º 1 do artigo 82.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro”.
XXV. Nos termos do artigo 10.º do Código Civil, há que aplicar tal artigo analogicamente ao caso dos presentes autos.
XXVI. É manifesto, atento a matéria em causa nos presentes autos, que existe desacordo, desde logo, quanto à caracterização do acidente como sendo acidente de trabalho, na medida em que a Recorrente invocou, desde logo, que o acidente em causa não foi um acidente de trabalho, bem como, caso assim não se entendesse, a descaracterização do acidente de trabalho por negligência grosseira do Recorrido.
XXVII. Se na fase contenciosa do processo emergente de acidente de trabalho, não seria a Recorrente a responsável pelo pagamento dos valores peticionados, não se pode conceber que, na fase conciliatória, seja a Recorrente responsável pelos mesmos.
XXVIII. Assim, na fase em que se encontram os presentes autos, e atenta a matéria em causa nos presentes autos, é o Fundo de Acidentes de Trabalho o responsável pelo pagamento das quantias em causa nos presentes autos.
XXIX. Pelo que, também por aqui, deve ser revogada a decisão ora colocada em crise.
XXX. Atento o exposto no presente articulado, deve a sentença recorrida ser revogada, e substituída por outra que julgue o pedido improcedente, e assim, absolva a Recorrente do pedido.
Termos em que o recurso deve merecer provimento.
Assim se fará, como sempre, inteira e sã JUSTIÇA!”

O requerente apresentou contra alegação formulando as seguintes conclusões:
“a) A matéria de facto encontra-se corretamente julgada.
b) o arbitramento de reparação provisória é o meio próprio, porquanto dos autos principais ainda não é possível fixar uma pensão ao Sinistrado.
Pelo que, deve manter-se a decisão proferida pelo Tribunal “a quo”.

*
Foi admitido o recurso na espécie própria, com o adequado efeito e regime de subida.
Os autos foram remetidos a esta 2ª instância e foi cumprido o n.º 3 do art.º 87.º do CPT.
O Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido da improcedência do recurso.
O Recorrido veio aderir por inteiro à fundamentação plasmada no parecer.
Colhidos os vistos legais cumpre decidir.

II - OBJECTO DO RECURSO

Delimitado o objeto do recurso pelas conclusões da recorrente (artigos 635º, nº 4, 637º n.º 2 e 639º, nºs 1 e 3, do Código de Processo Civil), as questões que se colocam a apreciação deste Tribunal são as seguintes:

- Da impugnação da decisão da matéria de facto e sua repercussão na decisão de mérito
- Da aplicação analógica do art.º 122.º n.º 2 do CPT nos casos em que haja desacordo sobre a ocorrência e a caracterização do acidente como de trabalho.

III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Os factos provados são os seguintes:

a). O requerente J. C. foi admitido, aos 01.12.2016, ao serviço da sociedade Y – Casa … Agro-Pecuária, S.A., para, sob as respectivas ordens e direcção e no local da sua sede, localizada no Lugar de … ou …, freguesia de …, concelho de Póvoa de Lanhoso, exercer as funções correspondentes à categoria de operador de máquinas agrícolas, nisso se incluindo o cultivo de terrenos e todas as tarefas necessárias para o efeito. ---
b). À data de 29.04.2021, o requerente auferia a quantia de € 800,00 x 14 meses, acrescida da quantia de € 81,40 x 11 meses, a título de subsídio de alimentação, a perfazer um total anual de € 12.095,40. ---
c). O respectivo horário de trabalho tinha a duração de 8 horas por cada dia útil da semana, sendo prestado entre as 8h00 e as 12h00 e entre as 13h30 e as 17h30. ---
d). Esse horário podia sofrer variações, em função das necessidades da entidade empregadora. ---
e). Fora dos períodos de laboração ao serviço da respectiva entidade empregadora, o requerente procedia, por conta própria, ao cultivo de terrenos. ---
f). Na data mencionada em b)., a entidade empregadora encarregou o requerente de, entre o mais, proceder à pulverização de um campo de milho com herbicida. ---
g). Essa tarefa ia ser realizada pelo requerente através da utilização de um tractor, ao qual se encontravam acoplados, através de cardã, dois equipamentos, um de pulverização e uma roto-fresa, tudo pertença do próprio. ---
h). Para o exercício das actividades enquadradas no contexto referido em e)., o requerente utilizava, também, os referidos tractor e equipamentos. ---
i). Na sequência e em cumprimento da determinação referida em f)., cerca das 17h40m da data aí considerada, o requerente encontrava-se a preparar a mistura de herbicida e de água no depósito do equipamento de pulverização. ---
j). A realização dessa tarefa exigia, para que a mistura se realizasse correctamente, que o motor do tractor se encontrasse, como, na circunstância, se encontrava, a trabalhar, o que, por seu turno, determinava que a roto-fresa, também ela acoplada ao tractor, estivesse em movimento. ---
l). O equipamento de pulverização era dotado de uma escada destinada a permitir o acesso ao depósito. ---
m). A determinado momento, quando se encontrava a encher o depósito do pulverizador com água, para o que se socorria de uma mangueira, o requerente desequilibrou-se, caindo sobre a zona da roto-fresa que, estando em movimento, colheu, com uma das suas pás, o respectivo membro inferior esquerdo. ---
n). Em resultado disso, o requerente sofreu lesão traumática nessa zona do corpo, que importou a amputação transtibial do pé esquerdo. ---
o). Na data mencionada em b)., encontrava-se em vigor contrato de seguro do ramo de acidentes de trabalho de trabalhadores por conta de outrem, titulado pela apólice nº ………. …………1, celebrado entre a sociedade Y – Casa ... Agro-Pecuária, S.A., e a requerida, mediante o qual havia sido transferido para esta, relativamente ao ora requerente, o pagamento das prestações a que houvesse de ter lugar emergentes de acidente de trabalho, tendo por base a retribuição mencionada na referida alínea. ---
p). Por comunicação de 05.08.2021, a requerida comunicou ao requerente que declinava qualquer responsabilidade pelas prestações, em espécie ou em dinheiro, devidas em resultado do sinistro que vitimou o requerente, por considerar que o acidente, em resultado da violação por ele de regras de segurança, se encontrava descaracterizado. ---
q). O requerente esteve internado no Hospital de … até ao dia 28.05.2021. ---
r). Mantém, actualmente, os tratamentos de fisioterapia que, depois disso, iniciou, prestados no Centro de Saúde da …. ---
s). Desde a data mencionada em b)., encontra-se absolutamente incapaz para o exercício da sua profissão, que não retomou, nem por conta da sua entidade empregadora nem no contexto referido em e). ---
t). O requerente, a quem não foi, ainda, colocada prótese para substituição do membro parcialmente amputado, locomove-se com o auxílio de canadianas. ---
u). O requerente, por não ter o quarto de banho da respectiva habitação inteiramente adaptado para as limitações que passou a apresentar, faltando, em particular, a instalação de um aplique de apoio na parede do poliban, necessita, para tomar banho, de algum apoio, que lhe é prestado pelo seu cônjuge. ---
v). Com a remuneração que lhe era paga pela sua entidade empregadora, complementada, em medida não apurada, com os proventos da actividade mencionada em e)., o requerente provia, antes do sinistro que o vitimou, ao seu sustento e, juntamente com a remuneração do seu cônjuge, no valor mensal de € 677,00, às despesas do agregado, composto por ambos e, ainda, pelo filho do casal, menor de 10 anos. ---
x). As despesas mensais fixas do agregado, a incluir a amortização da habitação adquirida com recurso a crédito bancário e despesas associadas, medicação, consumos de água, electricidade e gás, alimentação, vestuário e combustível, ascendem a valor superior ao da remuneração do cônjuge do requerente, que constitui, actualmente, a única fonte de rendimento do casal. ---
z). Sem possibilidade de suportar todas essas despesas e sem outros recursos, o requerente passou a depender da ajuda, em particular financeira, de familiares próximos. ---

Os factos não provados são os seguintes:

1. O horário de trabalho do requerente fosse diverso do mencionado na al. c). da materialidade dada como indiciariamente demonstrada, muito em particular que o período de laboração, após a interrupção para almoço, fosse das 14h00 às 18h00. ---
2. A remuneração auferida pelo requerente, ao serviço da respectiva entidade empregadora, constituísse a sua única fonte de rendimento. ---
3. Na data mencionada na al. b)., e após a interrupção para almoço, tivesse sido pelas 14h00m, e não pelas 13h30m, que o requerente retomou o seu trabalho. ---
4. O requerente estivesse especificamente certificado para proceder à tarefa de pulverização com herbicida. ---
5. A ocorrência que vitimou o requerente tivesse tido lugar a hora diversa da referida na al. i). da materialidade dada como indiciariamente demonstrada, muito em particular pelas 17h30m. --
6. O desequilíbrio e queda do requerente haja resultado, concretamente, de as suas calças se terem prendido ao cardã do tractor, puxando o seu pé esquerdo, e que a lesão traumática que sofreu haja advindo do esmagamento dessa parte do membro inferior contra o pulverizador. ---
7. Em decorrência da ocorrência que o vitimou, o requerente haja perdido, e imediatamente, os sentidos. ---
8. Na data em que teve lugar o sinistro que vitimou o requerente, este tivesse terminado as funções que desempenhava por conta da sua entidade empregadora pelas 17h00m. ---
9. No momento dessa ocorrência, o requerente se encontrasse a preparar o tractor e os equipamentos a ele acoplados em proveito próprio, no contexto e para os fins referidos na al. e). da materialidade dada como indiciariamente demonstrada. ---
10. O requerente não se tivesse socorrido, para aceder à zona do depósito do pulverizador, da escada mencionada na al. l). da materialidade dada como indiciariamente demonstrada. ---
11. Ao invés disso, o requerente haja, de motu proprio, decidido aceder à zona daquele depósito através da estrutura das máquinas agrícolas, com partes mecânicas em movimento, apoiando-se, em particular, sobre uma barra existente na roto-fresa, com consciência da situação de perigo em que se colocava e da circunstância de não estar a observar as regras de segurança inerentes à tarefa que desenvolvia. ---
12. Haja sido em resultado disso que veio a desequilibrar-se. ---
13. Já em queda, o requerente tenha, ainda, tentado, em vão, apoiar-se na referida barra. ---
14. Também para se vestir, levantar-se, deitar-se e para realizar outros actos na casa de banho, para além do referido na al. u). da materialidade dada como indiciariamente demonstrada, o requerente necessite, e pelo período de quatro horas por dia, do auxílio de terceira pessoa. –

IV - APRECIAÇÃO DO RECURSO

1. Da impugnação da matéria de facto.

Resulta do disposto no artigo 640.º do C.P.C. o seguinte:

“1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; (…)”.
Acresce ainda dizer que a decisão do tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação nos casos previstos no artigo 662.º do CPC., designadamente se os factos considerados como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diferente ou seja desde que de forma clara e inequívoca resulte uma diferente valoração da prova.
Analisadas as alegações e respetivas conclusões constatamos que a Recorrente indica os pontos concretos da matéria de facto que considera incorretamente julgados; os concretos meios probatórios, ou seja, os depoimentos e documentos que identifica e que impõem decisão diversa e, ainda, a decisão que no seu entender deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Ora, tendo a Recorrente cumprido, o ónus que sobre si impendia, impõe-se agora proceder à reapreciação da matéria de facto impugnada e isto após termos ouvido todos os depoimentos prestados em audiência final e analisado toda a prova documental junta aos autos.
Defende a Recorrente terem sido incorrectamente julgados os factos que constam das alíneas d), f), g) e i) dos pontos de facto provados, que por isso deverão passar a constar dos pontos de facto não provados. Para tanto invoca os depoimentos prestados por A. G., M. F., F. M., as declarações prestadas pelo apelado e os documentos juntos com a oposição.

A factualidade que consta dos pontos de facto impugnados é a seguinte:

d). Esse horário podia sofrer variações, em função das necessidades da entidade empregadora. ---
f). Na data mencionada em b)., a entidade empregadora encarregou o requerente de, entre o mais, proceder à pulverização de um campo de milho com herbicida. ---
g). Essa tarefa ia ser realizada pelo requerente através da utilização de um tractor, ao qual se encontravam acoplados, através de cardã, dois equipamentos, um de pulverização e uma roto-fresa, tudo pertença do próprio. ---
i). Na sequência e em cumprimento da determinação referida em f)., cerca das 17h40m da data aí considerada, o requerente encontrava-se a preparar a mistura de herbicida e de água no depósito do equipamento de pulverização.

Para dar esta factualidade como provada o Tribunal a quo motivou a sua convicção da seguinte forma:

“Aqui chegados, e no que respeita ao que se ordenou sob a al. d)., em conjugação com o que se fez constar da al. f)., a testemunha A. G. afirmou, no depoimento que, em audiência final, lhe foi tomado, que, na data em questão, o requerente foi incumbido de proceder à tarefa de pulverização de um campo de milho, que tinha que realizar nesse dia, independentemente de o fazer para além do horário de trabalho contratualizado – porque o exigisse a tarefa ou por o trabalhador não ter gerido devidamente o seu tempo. É assim, segundo mais disse, na agricultura, sem prejuízo de existir na empresa a prática de “banco de horas”, a permitir que os tempos de trabalho prestados a mais sejam, depois, compensados com a atribuição de períodos ou de dias livres. ---
Por seu turno, do depoimento prestado pela testemunha F. M. resultou que, na data do sinistro, ela não esteve ao serviço da Y, tendo estado, outrossim, a realizar trabalhos, por conta própria, ao serviço da junta de freguesia, no cemitério. Também disse a referida testemunha ter solicitado ao requerente – o que foi, também, pelo próprio confirmado, nas declarações que o tribunal oficiosamente decidiu tomar-lhe – a prestação de auxílio, durante o período da tarde, para transportar terra para o cemitério, o que o mesmo anuiu em fazer, nisso despendendo cerca de uma hora, em tarefa que foi concluída cerca das 17h00m – que é coisa diversa de se dizer, como consta do ponto 8., que mereceu resposta negativa, que o trabalho por conta da Y tenha terminado a essa hora. A testemunha F. M., segundo mais disse, terminada a referida colaboração, permaneceu ainda no cemitério, sendo que, por seu turno, o requerente se foi embora, retornando às instalações da Y, local onde o depoente a ele veio, depois, a juntar-se, a solicitação da testemunha M. F., já após a eclosão do sinistro. ---
Ora, a terem sido assim as coisas, conclui-se que o requerente, para o efeito de prestar auxílio à testemunha F. M., terá, no dia em causa, interrompido as suas tarefas profissionais ao serviço da Y, com inerente perda de tempo, a justificar que, depois de retornado pelas 17h00m, às instalações da empresa, que tem sede numa quinta, tivesse, ainda, pela frente a realização da tarefa de que foi incumbido pela testemunha A. G. e que esta estimou demoraria, em atenção à dimensão do terreno, cerca de uma hora. ---
Opôs-se, porém, ao relato da testemunha F. M. aquilo que a mesma terá dito, na oportunidade da sua audição no âmbito da averiguação promovida pela entidade seguradora, e que consta de fls. 51 vº, sendo que, do teor da parte final dessas declarações aparenta resultar que a testemunha F. M. teria, no dia em causa, estado ao serviço da Y. Simplesmente, é preciso considerar vários aspectos. O primeiro deles é o de que a testemunha F. M. apresenta uma notória, e quase total, falta de literacia, o que introduz complexidades não apenas na leitura, como, sobretudo, na interpretação do que escreveu. O Segundo é de que o próprio manteve, em constância, ao longo do seu depoimento, que, no dia em causa, não esteve a trabalhar para a Y, mas sim ao serviço da junta no cemitério, afirmação em que convergiu a testemunha A. G.. O terceiro é o de que pelo conjunto dos depoimentos prestados pela testemunha M. F. e por F. M., resultou que este foi chamado por aquela para ir ao encontro do requerente, após a eclosão do sinistro, a significar que os mesmos não estariam, nesse momento, na companhia um do outro. O quarto é o de, quanto muito, o que a testemunha F. M., no processo de averiguações da seguradora, declarou, poderia ser valorado para abalar a sua credibilidade, nunca assumindo o valor probatório de depoimento em sentido próprio, prestado, aliás, e na circunstância, por forma escrita e sem as advertências da lei. O quinto, e último, é o de que, para sustentar a pretensão do requerente, teria sido bem mais fácil a testemunha F. M. vir afirmar que estava na quinta e que teria presenciado o sinistro, o que não sucedeu. ---
Ainda a respeito da existência de factos indício de que o requerente estaria a trabalhar por conta da Y, é a circunstância de a quinta onde se localiza a sede desta se encontrar murada por todos os lados, com excepção de um, em que faz confrontação com linha de rio. Ora, visasse o requerente realizar trabalho não na quinta, mas em outros terrenos onde, fora do seu horário de trabalho, prestava, com recurso a esse veículo e respectivos equipamentos, serviços, tal como confirmado, de um modo geral, por todos em audiência – a louvar o que se deu por assente sob as als. e) e h). -, e mal se compreende que estivesse a fazer a preparação da água e do herbicida, de utilização imediata, no local onde veio a sofrer o acidente. De registar, ainda, que o próprio requerente, nas declarações que lhe foram tomadas, confirmando que a quinta se encontra murada, afirmou, também, que a mesma tem pequenas aberturas antigas que deitam para caminhos, por onde não passa, sequer, o tractor, pelo que, querendo, se fosse o caso, realizar serviço em outro local, teria que aceder com o tractor à via pública, percorrendo, ainda, alguma distância. ---
Acresce, ainda, considerar, com relevância em matéria de factos indícios, que a testemunha A. G. afirmou que, no dia 27 que antecedeu a eclosão do sinistro, tinha sido recebido na quinta herbicida, destinado à realização do trabalho em causa, não tendo o requerente, a título próprio, esse tipo de produtos nas instalações da quinta, de modo que estivesse a fazer aí a preparação para realizar o serviço em outro local. ---
Naturalmente, que não deixou de tentar explorar-se a circunstância de o tractor e equipamentos a ele acoplados envolvidos no sinistro serem pertença do requerente, como, à saciedade, resultou demonstrado em julgamento, a louvar o que, a esse respeito, se fez constar de parte da al. g). Simplesmente, pelo conjunto dos depoimentos/declarações prestados, em audiência final, pelo próprio e pela testemunha A. G., resultou que, em várias ocasiões, o requerente cedera a utilização desses equipamentos, por si manobrados, à Y, fosse porque esta não dispusesse de tractor com as dimensões do considerado, fosse por avaria dos equipamentos da Y. Também disseram a testemunha A. G. e o requerente que, por vezes, esse empréstimo de equipamento era pago à razão de € 15,00/hora, destinado a compensar o seu desgaste, sendo que, noutras ocasiões, a Y, como forma de pagamento, emprestava ao requerente equipamentos de que o mesmo não dispunha para realizar as tarefas a que se dedicava, sobretudo ao sábado, por conta própria. Também fizeram significar que o valor em causa – que não incluía o combustível, fornecido sempre pela Y – não constituía uma exorbitância, muito pelo contrário até, já que, de acordo com as declarações do requerente, era bem superior o valor que lhe era pago pelos terceiros a quem, fora do horário de trabalho, prestava serviços, nunca estando ao seu encargo fornecer os produtos de tratamento dos terrenos. ---
A prova que se produziu convergiu, assim, no sentido de sustentar a afirmação de que a tarefa em execução, no momento do sinistro, estava a ser realizada ao serviço da Y e não nos termos que se deram por indemonstrados sob o ponto 9. ---
(…)
No que respeita ao facto que se ordenou sob a al. i)., de o requerente estar a preparar a mistura de água com herbicida, no depósito do equipamento do pulverizador, para além do que o próprio a esse respeito declarou, atendeu-se, também, aos contributos que, circunstancialmente, foram proporcionados pelo teor dos depoimentos prestados pelas testemunhas F. M. e A. G., que declararam, a primeira, ter desligado o motor do tractor, ainda em funcionamento quando chegou ao local, e a segunda a torneira da mangueira utilizada para colocar água no depósito, que se encontrava no chão. ---

Vejamos:
Após análise de toda a prova produzida, designadamente a documental, as declarações do Autor, os depoimentos das testemunhas e os documentos juntos aos autos teremos de dizer que a decisão recorrida se mostra alicerçada na análise critica e conjugada de toda a prova produzida, a qual foi devidamente valorada, não se detetando qualquer meio de prova que imponha decisão diferente, e sem que se encontre qualquer desconformidade entre os elementos de probatórios oferecidos e a decisão proferida pelo tribunal recorrido sobre tais factos.
Com efeito, a factualidade provada espelha a prova produzida, tendo a juiz a quo feito a análise da mesma de forma extremamente especificada, exaustiva, critica e criteriosa, não deixando qualquer dúvida quanto ao processo lógico e racional por si desenvolvido para dar a factualidade apurada como provada, sendo perfeitamente perceptível as razões pelas quais valorizou cada um dos depoimentos ainda que alguns deles apenas tenha considerado parcialmente credíveis. Por outro lado, a argumentação invocada pela apelante não abala a convicção espelhada na motivação que consta de decisão recorrida, não se vislumbrando qualquer razão que imponha a alteração da factualidade provada.

Defende a Recorrente que se o Tribunal a quo considerou que os depoimentos das testemunhas F. M., M. F. e A. G. não foram merecedores de credibilidade quanto ao facto do horário de trabalho do recorrido terminar às 18.00, não podia nem devia o tribunal ter considerado tais depoimentos credíveis relativamente aos outros pontos da matéria de facto. Para tanto transcreve parte destes depoimentos, que incidiram sobre o horário de trabalho, com eles pretendendo provar que quer as testemunhas, quer o autor prestaram os seus depoimentos de forma a imputar a hora em que ocorreu o acidente ao horário de trabalho e por isso quanto aos demais factos a que depuseram também faltaram à verdade, com o objectivo do acidente vir a ser caracterizado como de trabalho.

Não podemos concordar com tal alegação, pois se é certo que existem diversos factores relevantes na apreciação e credibilidade do teor de um depoimento que são sobretudo apreensíveis pelo julgador mediante o contacto direto com os depoentes em audiência, também é certo que do princípio da livre apreciação da prova, não tem limitações, com excepção da prova vinculada, no processo de formação da sua convicção. Não se vislumbra assim qualquer limitação na apreciação da prova que impeça que se valorize apenas parcialmente determinado depoimento, desde que se compreendam as razões que conduzem a tal apreciação, como sucede no caso.
Como acima já deixámos expresso a decisão recorrida fundamentou de forma irrepreensível das razões pelas quais não ficou convencida da alteração sofrida no horário de trabalho do sinistrado reportada a Fevereiro de 2021. Contudo, no que respeita à demais factualidade relativa quer ao facto dos trabalhadores agrícolas, nele se incluindo o autor, não terem hora certa para terminarem a jorna, bem como o facto da entidade empregadora confiar nos seus trabalhadores agrícolas permitindo-lhes que estes prestassem trabalho suplementar sempre que tal se revelasse necessário para poderem cumprir as tarefas que tinham de iniciar e terminar em determinado dia, compensando-os com dias de folga, quando esse trabalho perfizesse 8 horas, não resta qualquer dúvida, quanto à veracidade desta factualidade, pois além de resultar do depoimento da entidade empregadora, resultou das próprias declarações do sinistrado, bem como do depoimento ainda que pouco preciso de F. M., colega de trabalho do autor. Esta testemunha no dia do acidente não estava a trabalhar por conta da Y – Casa ... Agro-Pecuária, S.A., mas pediu ajuda ao autor, tendo este se ausentado do seu trabalho, por mais de uma hora, tendo posteriormente regressado ao seu posto de trabalho, para cumprir com o determinado, ou seja, pulverizar os campos da sua entidade empregadora com o produto que aquela havia comprado. A ausência do Autor a meio da jorna de trabalho para ajudar o colega, bem como o facto deste também não estar nesse dia a trabalhar por conta da Y, Casa ... Agro-Pecuária, S.A., permite-nos concluir pela prova da factualidade que consta do ponto d) dos factos provados, e até ir mais longe, pois os horários variavam não só por conveniência do empregador, mas também dos próprios trabalhadores, permitindo que se ausentassem temporariamente, desde cumprissem com as suas obrigações para com o empregador.
O ponto d) dos pontos de facto provados está totalmente confirmado quer pelo depoimento de A. G. e de F. M., quer pelas declarações prestadas pelo autor, pelo que está bem julgado.
Quanto aos pontos de facto f), g) e i) a fundamentação é clara, coerente e espelha a prova produzida em audiência de julgamento, pois quer do depoimento de A. G., quer do depoimento, voltamos a repetir ainda que pouco preciso, de F. M., quer das declarações prestadas pelo autor, podemos afirmar com segurança que no fatídico dia o empregador havia determinado ao sinistrado que procedesse à pulverização de um campo de milho com herbicida, tarefa essa que iria ser realizada, com o trator pertença do sinistrado, o qual já havia sido utilizado outras vezes ao serviço do empregador, estando o sinistrado a preparar a mistura do herbicida, quando ocorreu o acidente. Tudo indica que não fora o sinistrado ter ido ajudar o F. M. a meio da tarde desse dia e o serviço destinado pelo empregador teria sido realizado, ou pelo menos iniciado, muito antes das 17.30 horas.
Por último, no que respeita às imprecisões/contradições do depoimento da testemunha F. M. prestado quer junto da GNR, quer perante o perito averiguador, quer em audiência de julgamento, as mesmas encontram-se bem dissecadas na motivação da decisão recorrida, apenas se acrescentando que foi com alguma leviandade que a testemunha foi prestando declarações, pois efectivamente não sabia quais os serviços/tarefas que o sinistrado tinha para fazer depois de o ter estado a ajudar no cemitério e de se terem separado, sendo certo que pelo facto do autor prestar serviços a terceiros utilizando o seu trator, tal não permite concluir que no fatídico dia era o que iria suceder, já que toda a demais prova produzida aponta no sentido de que na altura estaria a trabalhar por conta e sob as ordens, direcção e no interesse do seu empregador. Importa ter presente que no decurso do seu horário de trabalho o sinistrado se ausentou por um período de cerca de uma hora, que como nos parece óbvio teria de compensar junto do empregador, daí ter iniciado o serviço que se tinha comprometido a fazer nesse dia perto do termo do seu horário de trabalho.
Em suma, esta factualidade apurada pelo tribunal recorrido têm nas provas suporte razoável, está em conformidade com as regras da lógica, experiência e conhecimento comum, não se vislumbrando que tenha sido cometido pelo tribunal de 1.ª instância qualquer erro tão flagrante que imponha que tal factualidade seja dada como não provada.
Em face do exposto, improcede a impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
E, assim sendo, improcedem também necessariamente as consequências jurídicas que a Recorrente almejava retirar das alterações que pretendia quanto aos pontos de facto por si impugnados, mantendo-se nesta parte integralmente a decisão recorrida.

2. Da aplicação analógica do art.º 122.º n.º 2 do CPT nos casos em que haja desacordo sobre a ocorrência e a caracterização do acidente como de trabalho.

Insurge-se a Recorrente quanto ao facto do tribunal recorrido a ter responsabilizado pelo pagamento da indemnização provisória devida ao sinistrado, dizendo que atento o disposto no n.º 2 do art.º 122.º do CPT quem deveria satisfazer o adiantamento das prestações a que houver lugar seria o FAT, pois se na fase contenciosa do processo tal sucederia atento o facto o desacordo sobre a existência ou caracterização do acidente, por força do art.º 10.º do Código Civil há que aplicar o citado artigo analogicamente ao caso. E sendo o FAT o responsável pelo pagamento das quantias em causa nos autos, conclui a recorrente pela revogação da decisão recorrida.

Estabelece o art.º 10.º do Código Civil sob a epígrafe de “Integração das lacunas na lei” o seguinte:

1. Os casos que a lei não preveja são regulados segundo a norma aplicável aos casos análogos.
2. Há analogia sempre que no caso omisso procedam as razões justificativas da regulamentação do caso previsto na lei.
3. Na falta de caso análogo, a situação é resolvida segundo a norma que o próprio intérprete criaria, se houvesse de legislar dentro do espírito do sistema.

Daqui resulta que só se pode recorrer à analogia quando existe uma lacuna na lei, só sendo possível recorrer à aplicação da lei existente em caso semelhante, quando a lei existente é omissa. Ou seja, quando é de presumir que, se a lei prevê determinado caso e o regula de certa maneira, da mesma maneira teria regulado os outros casos relativamente aos quais procedam razões justificativas daquela regulamentação, assim se evitando dissonâncias no sistema jurídico.
Como veremos no caso não estamos perante qualquer lacuna na lei.
Como se refere no Acórdão deste Tribunal de 4-11-2021, proferido no Proc. n.º 823/12..8TUGMR-D.G1, consultável in www.dgsi.pt “… está já de algum modo consolidado o entendimento de que a fixação de pensão provisória com recurso aos mecanismos específicos previstos no processo de acidentes de trabalho (121º e 122º CPT), pressupõe que se tenha transitado para a fase contenciosa e abandonado a fase conciliatória após realização de tentativa de conciliação, diligência onde se define o acordo ou desacordo das partes relativamente aos elementos essenciais do acidente de trabalho.
Assim, caso o processo demore na sua fase conciliatória e haja necessidade de acautelar a subsistência do sinistrado ou familiares, haverá que recorrer ao procedimento cautelar civil de arbitramento de reparação provisória previsto no artigo 388º CPC e ss – Paulo Sousa Pinheiro Curso de Direito Processual do Trabalho, Almedina, 2020, p. 129, Maria Adelaide Domingos, “Procedimentos cautelares Laborais, Estudos do Instituto do Direito do Trabalho, Vol. V, p. 42-44, na jurisprudência ac. RG de 17-07-2020 e de 7-10-2021.”
Neste mesmo sentido, de que o meio processual adequado para requerer e fixar uma pensão ou indemnização provisória, no decurso da fase conciliatória do processo de acidente de trabalho, é o procedimento cautelar de arbitramento de reparação provisória têm-se pronunciado este Tribunal de forma unânime, designadamente nos Acórdãos de 30/06/2016, proc. n.º 687/15.0T8VRL-A.G1; de 17/07/2020, proc. n.º 3614/17.6T8VCT-B.G1 e de 7/10/2021, proc. n.º 3106/20.6T8VCT-A.G1, consultável este último em www.dgsi.pt
Na verdade, a fixação de pensão ou indemnização provisória evidencia uma clara similitude com o procedimento cautelar de arbitramento de reparação provisória, previsto no art.º 565 do CC e regulado nos artºs 388.º a 390.ºº do CPC, integrando-se no grupo de procedimentos cautelares respeitantes a prestações pecuniárias que conduzem, ainda que a título provisório, ao pagamento periódico de uma determinada importância em dinheiro.
Precisamente por as situações reguladas serem idênticas e semelhantes e por estar em causa essencialmente prevenir e garantir as necessidades essenciais do sinistrado vítima de acidente de trabalho, nada obsta a que na fase conciliatório dos autos emergentes de acidente de trabalho seja admissível o recurso ao mencionado procedimento cautelar, que verificados os seus pressupostos conduz ao desfecho que se pretende acautelar com a fixação da pensão provisória em sede contenciosa do processo.
Para que seja decretado o procedimento cautelar em causa é necessário que se verifiquem determinados requisitos, designadamente que esteja indiciada a existência da obrigação de indemnizar a cargo do requerido, não podendo por isso ser essa responsabilidade imputada a terceiro, designadamente ao FAT. Tal não constitui qualquer lacuna na lei que cumpra suprir.
Ora, este requisito não é totalmente coincidente com os previstos para a fixação de pensão ou indemnização provisória prevista nos artigos 121.º e 122.º do CPT., contudo quando esteja em causa o deferimento ou não do procedimento cautelar de arbitramento de reparação provisória, impõem-se para o seu deferimento que esteja indiciada a existência da obrigação de indemnizar a cargo do requerido, revelando-se por isso de irrelevante e desnecessário que exista ou não acordo relativamente à caracterização ou à ocorrência do acidente como de trabalho, pois o responsável pela reparação será sempre quem indiciariamente seja titular da obrigação de indemnizar.
Não estamos perante qualquer lacuna, nem perante qualquer caso omisso que cumpra suprir, pois tendo resultado da prova produzida, a verificação de todos pressupostos dos quais dependia a procedência do procedimento cautelar neles se incluindo a prova indiciária da existência da obrigação de indemnizar a cargo da requerida, bem andou o tribunal recorrido ao determinar a sua condenação no pagamento da prestação provisória.
Improcede o recurso é de confirmar a decisão recorrida.

V – DECISÃO

Acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, mantendo a decisão recorrida.
Custas a cargo da Recorrente.
Notifique.
17 de Março de 2022

Vera Maria Sottomayor (relatora)
Maria Leonor Barroso
Antero Dinis Ramos Veiga