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ARQUIVAMENTO DO INQUÉRITO
ACUSAÇÃO
REFORMULAÇÃO DA DECISÃO
PRINCÍPIO DA PRECLUSÃO
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
INEXISTÊNCIA
Sumário
I – Um dos princípios processuais que enformam o direito processual é o princípio da preclusão, que se pode definir como «a perda, a extinção ou a consumação de uma faculdade processual». II – Este princípio manifesta-se em várias vertentes, sendo uma delas habitualmente designada por consumativa, que é precisamente a perda da oportunidade de se praticar o ato processual, por o ato já ter sido praticado, já estar consumado. III – Encontramos uma das materializações desta vertente do princípio da preclusão no artº 613º do Código de Processo Civil, ao estabelecer que uma vez proferida a sentença fica esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa, preceito aplicável também ao Processo Penal por força do artigo 4º da respectiva codificação. IV – Conferir ao Ministério Público a prerrogativa de reformular ou substituir uma acusação ou um despacho de arquivamento constituiria uma violação dos princípios da igualdade e da proporcionalidade consagrados nos artigos 13º, nº 1 e 18º, nº 2, da Constituição da República Portuguesas, pois tratar-se-ia de conceder àquele uma faculdade que não tem paralelo quanto aos demais sujeitos processuais. V – De resto, no que respeita ao despacho de arquivamento proferido ao abrigo do artº 277º nº 2 do C.P.Penal, a lei apenas permite a reabertura do inquérito, a requerimento de outros sujeitos processuais e nunca oficiosamente, pelo Mº Pº[O que extrai do facto de o nº 2 do artº 279º do C.P.Penal se referir "ao despacho do Mº Pº que deferir ou recursar a reabertura do inquérito ..."], e desde que tenham surgido novos elementos de prova que invalidem os fundamentos do arquivamento. VI – Assim sendo, a reformulação oficiosa de um despacho de arquivamento e, a par, a da acusação igualmente já antes deduzida, gera a sua inexistência. VII –O vício de inexistência afasta-se do princípio geral da tipicidade das nulidades, bem como do princípio geral da sua sanação, uma vez que a função da categoria da inexistência é precisamente a de ultrapassar a barreira da tipicidade das nulidades e da sua sanação pelo caso julgado, pois que é insanável.
Texto Integral
Processo nº 114/20.0T9PRD-A.P1
1ª secção
Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal da Relação do Porto
I - RELATÓRIO
Nos autos de Inquérito que correram termos na Secção do DIAP de Marco de Canaveses, Comarca do Porto Este, com o nº 114/20.0T9PRD, por despacho proferido em 11.03.2021, o Ministério Público declarou encerrado o Inquérito, determinou o seu arquivamento relativamente ao arguido AA e deduziu acusação contra E..., Unipessoal, Lda. e BB, imputando a estes dois arguidos a prática, em coautoria, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social p. e p. nos artºs. 6º, 7º, 105º nº 1 e 107º nº 1 todos do RGIT.
Depois de a acusação ter sido notificada aos arguidos, o Ministério Público proferiu novo despacho em 02.04.2021, em que voltou a declarar encerrado o Inquérito, determinou o seu arquivamento relativamente ao arguido BB e deduziu acusação, agora contra E..., Unipessoal, Lda. e AA, imputando-lhes a prática, em coautoria, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social p. e p. nos artºs. 6º, 7º, 105º nº 1 e 107º nº 1 todos do RGIT.
Notificado da acusação deduzida em 02.04.2021, o arguido AA requereu a abertura de instrução pugnando pela sua não pronúncia.
Remetidos os autos ao Juízo de Instrução Criminal de Penafiel - Juiz 2, o Sr. Juiz de Instrução declarou «a inexistência jurídica da acusação datada de 02/04/2021, proferida a fls. 391 a 394, julgando-se consequentemente, extinta a presente fase de instrução, por falta do seu objeto», determinando a remessa dos autos para julgamento, tendo por objeto a acusação deduzida a fls. 329 a 339 dos autos.
Inconformado, o Ministério Público interpôs o presente recurso, cuja motivação condensou através das seguintes conclusões:
1. O Ministério Público não se conforma com a decisão de declarar inexistente o segundo despacho final e valorar o primeiro, para assim determinar que não há instrução criminal (por falta de objeto), remetendo para julgamento, valendo a primeira acusação.
2. Com efeito, em 11.03.2021, no âmbito do inquérito do qual o signatário foi titular, foi proferido despacho de arquivamento quanto a AA e de acusação contra a empresa E..., Unipessoal, Lda. e contra BB.
3. Em 02.04.2021, verificado o lapso, através da Segurança Social, por mim, foi proferido novo, corrigido e correto despacho de arquivamento quanto a BB e de acusação contra a empresa E..., Unipessoal, Lda. e contra AA.
4. Em 30.04.2021, o arguido AA requereu a abertura da instrução, com dois fundamentos: prescrição e limite inferior de 7.500 €.
5. Em 21.09.2021, o processo foi remetido para a Instrução Criminal de Penafiel, com despacho de sustentação, por mim proferido, de que não há prescrição, nem se aplica esse limite a este caso concreto, com fundamentação na jurisprudência uniformizadora, dominante e recente.
6. Sucede, que o M. Juiz 2 da Instrução Criminal de Penafiel, em 27.09.2021, decidiu declarar inexistente o segundo despacho final e valorar o primeiro, para assim decidir que não há instrução criminal (por falta de objeto), remetendo para julgamento a primeira acusação.
7. Não se pode concordar! Na verdade, em primeiro lugar deve prevalecer a Justiça Material e não um formalismo vazio de conteúdo.
8. Com a não realização da instrução e sem uma decisão de mérito sobre a substância do caso concreto, temos uma conclusão materialmente injusta, numa operação de formalismo jurídico alheia aos princípios do processo penal.
9. Tratando-se de lapso de mera troca de nomes de pai e filho (com o mesmo apelido), a decisão ora recorrida conduz a um resultado absurdo, ilógico e de uma profunda injustiça.
10. AA, que deve ser acusado e responder pelo crime que praticou, fica livre deste processo e de qualquer outro, de nada adiantando a extração de certidão contra ele (atento princípio da consunção) e faz prevalecer, quanto a este, um arquivamento que lhe não é destinado e, inversamente: BB, que não tem responsabilidade criminal, terá de responder, em julgamento, por crime que não praticou.
11. Em segundo lugar, invoca-se o princípio geral do aproveitamento dos atos processuais.
12. No acórdão do STJ de 03-06-2015, in www.dgsi.pt, decidiu-se que: "O primeiro destes enunciados normativos (O NCPC, no seu artº 146º) já se extraía do disposto na lei substantiva relativamente ao erro de cálculo ou de escrita, no mesmo sentido apontando também grandes princípios enformadores do anterior CPC, como é o caso dos do processo equitativo, do direito à tutela judicial efetiva, da boa-fé processual, da adequação formal e da prevalência do fundo sobre a forma, para além, num plano mais concreto, do disposto nos artigos 666º nº 3 e 607º (atual 614º do CPC), em matéria de correção de inexatidões e lapsos manifestos constantes de sentenças e despachos, regime que traduz o afloramento de um princípio mais geral de aproveitamento dos atos processuais que deve considerar-se aplicável aos atos das partes".
13. Veja-se o disposto nos artigos 249º do CC, 380º nºs 1 e 2 do CPC que permite a correção de sentenças, e atos decisórios em geral e nos artigos 146º, 614º e 616º do CPC, que permitem o suprimento de atos formais de atos das partes e retificação de erros materiais e a reforma da sentença, inclusive.
14. Em terceiro lugar, nenhum dos arguidos arguiu qualquer inexistência, nulidade e/ou irregularidade e/ou reclamou ou impugnou o segundo despacho final retificativo do Ministério Público, de 02.04.2021, nesta matéria.
15. Não está em causa nenhuma nulidade insanável, esta nulidade estava dependente de arguição, pelo que o M. Juiz não podia conhecer dela, ex officio (artigo 118º e ss. do CPP).
16. Todavia, o M. Juiz considerou inexistente o segundo despacho de 02.04.2021, sem que as defesas tivessem requerido ou arguido o que quer que fosse, nesta matéria (artigo 121º do CPP).
17. Mais, os arguidos aceitaram, enquanto despacho final do inquérito, o segundo despacho final do Ministério Público, o retificativo - o de 02.04.2021.
18. Em quarto lugar, o segundo despacho final do Ministério Público, retificativo, não é inovatório em relação ao primeiro, o de 11.03.2021.
19. Como resulta do teor de ambos, apenas se corrigiu o nome dos arguidos, havendo apenas e somente um lapso de escrita evidente e notório, atendendo ao contexto da decisão onde se insere.
20. Em quinto lugar, o lapso (troca de nomes dos arguidos, pai e filho) foi corrigido em tempo útil, passados poucos dias, em sede de inquérito, com as devidas notificações, contraditórios e sem prejuízo para ninguém.
21. Lapso esse, aliás, perfeitamente desculpável, porque os arguidos são pai e filho e têm o mesmo apelido.
22. Em sexto lugar, nem a defesa, nem ninguém levantou questões ou dúvidas, todos entenderam que existiu um mero lapso (que foi corrigido), menos o M. Juiz, que não realizou a instrução, nem proferiu uma decisão de mérito (como devia!), sobre as questões colocadas pela defesa do arguido AA, antes proferindo uma decisão materialmente injusta, numa operação de formalismo jurídico alheia aos princípios do processo penal.
23. Da análise de todo o processo em causa percebe-se claramente que o segundo despacho final do Ministério Público foi uma retificação, correção do primeiro e é este (o segundo) que deve valer, contrariamente ao que o M. Juiz declarou e decidiu, que devia valer o primeiro.
24. Aliás, nem a defesa, nem ninguém levantou questões ou dúvidas, todos entenderam que existiu um mero lapso (que foi corrigido), menos o M. Juiz. Repete-se.
25. Acresce que só houve necessidade de um segundo despacho final do Ministério Público precisamente por ter havido um lapso no primeiro.
26. Lapso esse que foi corrigido, em tempo, com todas as notificações e garantias para a defesa que entendeu, percebeu e aceitou.
27. Tanto mais, que o arguido AA requereu a abertura da instrução apenas com dois fundamentos: a prescrição e questão do limite dos 7.500 €. Nem sequer levantou dúvidas e questões sobre o lapso da troca de nomes.
28. Em sétimo lugar, o M. Juiz a quo não percebeu que o que estava em causa era apenas uma retificação de um lapso de escrita, evidente e notório, facilmente percetível, no contexto da decisão em que se insere, se se tivesse apercebido, seguramente teria retificado o lapso.
29. Ora bem, como resulta da decisão recorrida, o M. Juiz partiu de um pressuposto erróneo de que estavam em causa despachos finais do Ministério Público diferentes, que vicia o que é pretendido e exigível.
30. Curiosamente, o M. Juiz a quo não fala, em nenhum lugar, na sua decisão de 27.09.2021, ora recorrida, em lapso, o que comprova que a sua decisão está baseada em erros e vícios.
31. Em oitavo lugar, cito, desde já, os recentes acórdãos do TRP de 18.11.2020, in https://www.direitoemdia.pt/search/show/546d48a21d2f17316d3dc90851ea9ba1e4398c6ede2e3801702e7cc0e0242e2 e de 15.02.2019, in www.dgsi.pt. Ambos no sentido, que também se defende, da prevalência da realização da justiça material e não de uma conclusão materialmente injusta, numa operação de formalismo jurídico alheia aos princípios do processo penal.
32. Pelo que o tribunal ao declarar inexistente o segundo despacho final e valorar o primeiro, para assim decidir extinta a fase da instrução criminal (por falta de objeto), remetendo para julgamento, a primeira acusação, em nossa opinião, violou o disposto nos artigos 20º da CRP, 249º do CC e no artigo 380º nºs 1 e 2 do CPP que permite a correção de sentenças e atos decisórios em geral e nos artigos 146º, 614º e 616º do CPC que permitem o suprimento de atos formais de atos das partes e retificação de erros materiais e a reforma da sentença, inclusive.
33. Pelo que se requer ao M. Juiz a quo, titular do processo, na 1ª instância, antes da expedição do recurso, que admita a retificação/correção do lapso de escrita em causa, considerando, para todos os efeitos legais, o segundo despacho final do Ministério Público, o retificativo - o de 02.04.2021, como sendo retificativo do primeiro - o de 11.03.2021 e o segundo despacho final como sendo a única decisão final em sede de inquérito, aliás, como todos os sujeitos processuais perceberam, incluindo as defesas, nos termos dos artigos 249º do CC e 146º nº 2 do NCPC, ex vi artigo 4º do CPP), o que poderá e deverá ser feito, no despacho de sustentação ou reparação (artigo 414º do CPP), com as legais consequências.
34. Caso o M. Juiz a quo insista no erro, devem V. Exas, Venerandos Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação do Porto, corrigir tal situação.
35. Devendo, pois, o presente recurso ser julgado procedente e, por via disso, revogar-se o despacho recorrido que declarou inexistente a segunda acusação, para assim decidir extinta a fase de instrução criminal (por falta do seu objeto), remetendo para julgamento a primeira acusação e ser proferida, em sua substituição, outra decisão que:
I - Declare o segundo despacho final do Ministério Público, o de 02.04.2021, como sendo retificativo do primeiro, de 11.03.2021 e
II - Como sendo o único despacho final de inquérito e
III - Que determine a abertura da instrução (com vista a uma decisão sobre as duas questões de mérito suscitadas pela defesa do arguido AA: a prescrição e o limite dos 7.500 €).
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Na 1ª instância não foi apresentada qualquer resposta ao recurso.
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Neste Tribunal da Relação do Porto o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
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Cumprido o disposto no artº 417º nº 2 do C.P.Penal, não foi apresentada qualquer resposta.
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Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
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II - FUNDAMENTAÇÃO A decisão sob recurso é do seguinte teor: transcrição
«Registe e autue como instrução. Questão prévia:
Compulsados os autos, caberá apreciar a tramitação prosseguida em sede de inquérito e extrair as eventuais consequências jurídicas em relação aos seguintes atos processuais:
- Em 11/03/2021, o Ministério Público declarou encerrado o presente inquérito, proferindo despacho de arquivamento dos autos, relativamente ao arguido AA, tendo deduzido acusação contra a sociedade "E..., Unipessoal, Lda." e o arguido BB, pela prática, em coautoria, do imputado crime de abuso de confiança contra a segurança social, previsto e punido pelo artº 105º nº 1 e 107º nº 1, ambos do RGIT;
- O referido despacho foi devidamente notificado aos citados intervenientes processuais;
- Contudo, em 02/04/2021, proferiu novo despacho de arquivamento em relação ao mencionado arguido BB, e deduziu nova acusação, agora, contra a aludida sociedade e o arguido AA, imputando-lhes a prática do citado crime de abuso de confiança contra a segurança social, previsto e punido pelo artº 105º nº 1 e 107º nº 1, ambos do RGIT;
- Em 30/04/2021, o arguido AA veio requerer a abertura da instrução, nos termos e com os fundamentos exarados a fls. 389 a 399 dos autos.
Decidindo:
Face à consignada tramitação processual, cabe decidir da legalidade intrínseca dos atos decisórios proferidos pelo MP, no presente inquérito.
Ora, artº 262º nº 1 do Código de Processo Penal define a finalidade e âmbito do inquérito: investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação.
E se o objeto do inquérito é suscetível de modificações na sua materialidade e qualificação jurídica durante o seu decurso, há um momento em que ele tem de ser finalmente rígida e formalmente definido e esse momento é o das decisões sobre o respetivo encerramento. Logo, concluídas as diligências de investigação e recolha das provas sobre a notícia do crime - o inquérito -, o Ministério Público há de tomar necessariamente uma de entre cinco opções: o arquivamento, numa das suas três modalidades (arts. 277º nºs 1 e 2 e 280º do C.P.P.), a suspensão provisória do processo (art. 281º do C.P.P.) ou a acusação (art. 283º do C.P.P.). Não cabendo o arquivamento, em qualquer das suas modalidades, ou a suspensão provisória do processo, e tendo sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado crime e de quem foi o seu agente, o Ministério Público deduz acusação (art. 283º nº 1 do C.P.P.).
Esta é formalmente a manifestação da pretensão de que o arguido seja submetido a julgamento pela prática de determinado crime e por ele condenado com a pena prevista na lei. E consubstancia um pressuposto indispensável da fase de julgamento, uma vez que por ela se define e fixa do objeto do julgamento, não podendo, sem mais, o julgador alargar o objeto do seu juízo a factos ou pessoas que não constem na acusação.
Por assim ver, verifica-se que a fase do inquérito encerra-se, designadamente com a prolação da acusação, conforme resulta do art. 276º nº 1 do C.P.P., e com tal encerramento cessa a direção do Ministério Público nesta fase processual (art. 263º nº 1 do C.P.P.). Sendo que a única possibilidade legal de reabertura do inquérito encontra-se prevista no artº 279º do C.P.P. - conforme decorre claramente d aletra da norma "...o inquérito só pode ser reaberto ..."-, e ocorre quando esta fase tiver sido encerrada com a prolação do despacho de arquivamento, nos termos do art. 277º nºs 1 e 2 do C.P.P., "se surgirem novos elementos de prova que invalidem os fundamentos invocados pelo Ministério Público no despacho de arquivamento". Do despacho que deferir ou recusar a reabertura do inquérito há reclamação para o superior hierárquico imediato - art. 279º nº 2 do C.P.P.
Isto porquanto, num estado de direito, a realização da justiça tem de ser feita através do processo penal, que declara o direito do caso segundo modos admissíveis e válidos, no respeito pelos valores constitucionalmente vigentes, tornando seguro e estável o direito declarado. Regulando as «condições e os termos do movimento processual destinados a averiguar se certo agente praticou um certo facto e qual a reação (penal) que lhe deve corresponder - regulamentação jurídica da realização do direito penal substantivo, através da investigação e valoração de um comportamento do acusado da prática de um facto criminoso» (Cfr. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I Vol., 1974, p. 28-29).
Nesta senda, um dos princípios processuais que enformam o direito processual é o princípio da preclusão, que se pode definir como «a perda, a extinção ou a consumação de uma faculdade processual» (Cfr. Chiovenda, apud Teixeira de Sousa, Preclusão e Caso Julgado, disponível em http://www.academia.edu/24956415/TEIXEIRA_DE_SOUSA_M.Preclus%C3%A3o_e_caso_julgado_05.2016.)
Este princípio manifesta-se em várias vertentes, sendo uma delas habitualmente designada por consumativa, que é precisamente a perda da oportunidade de se praticar o ato processual, por o ato já ter sido praticado, já estar consumado.
Encontramos, pois, uma das materializações desta vertente do princípio da preclusão no artº 613º do Código de Processo Civil, ao estabelecer que uma vez proferida a sentença fica esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa. Princípio que se estende aos despachos, nos termos do nº 3 do mesmo normativo. No Código de Processo Penal não há disposição semelhante, embora a sua aplicação se harmonize perfeitamente com as normas deste diploma, designadamente com a previsão, no seu artigo 380º, e a título excecional, dos estritos casos em que os lapsos da sentença e dos demais atos decisórios do juiz e do Ministério Público. Sendo, por conseguinte, aquele artigo 613º do Código de Processo Civil aplicável também ao processo penal, por força da remissão feita no artigo 4º do Código de Processo Penal.
Isto posto, atendendo à anterior tramitação processual, temos forçosamente de concluir que aquela outra acusação deduzida posteriormente, a 02/04/2021, apenas aparentemente merece essa designação, já que a sua validade como tal é absolutamente insustentável segundo as regras processuais penais, por ter sido deduzida em frontal oposição com o modo admissível e válido de declaração do direito ao ponto de a ordem jurídica não a poder validar (neste sentido, Ac. TRG de 24/04/2017, in www.dgsi.pt).
E, precisamente para casos como este, em que o ato não tem o mínimo de requisitos imprescindíveis ao seu reconhecimento jurídico, a doutrina e a jurisprudência admitem pacificamente no quadro das invalidades a figura da inexistência, que é insuscetível de sanação (Cfr. Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, reimp. Lisboa, 1981, vol. I, págs. 268 a 273, vol. III, págs. 9 e 10; Germano Marques d Silva, Curso de Processo Penal, vol. II, 3ª ed., Lisboa/S. Paulo, 2002, págs. 92 a 94; Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 15ª ed., Coimbra, 2005, págs. 293 a 294).
Ora, sendo a acusação datada de 02/04/2021, juridicamente inexistente, não lhe pode ser atribuído qualquer valor jurídico, nem dela podem advir consequências e modificações no mundo do direito e dos factos. Logo, nenhum efeito terá, designadamente, sobre o objeto da presente instrução, que incide especificadamente sobre a acusação deduzida contra o arguido AA.
Deste modo, soçobrando a acusação proferida em segundo lugar, restará a apreciação jurisdicional sobre a acusação datada de 11/03/2021, por ser a única processualmente válida.
Em face do exposto, declara-se a inexistência jurídica da acusação datada de 02/04/2021, proferida a fls. 391 a 395, julgando.se, consequentemente, extinta a presente fase de instrução, por falta de objeto.
Registe e notifique.
Após trânsito, remeta os autos para julgamento, ao Tribunal competente, tendo por objeto a acusação deduzida a fls. 326 a 339 dos autos.»
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III - O DIREITO
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar[1], sem prejuízo das de conhecimento oficioso.
No caso em apreço, como se extrai das conclusões formuladas pelo recorrente, a única questão submetida à apreciação deste Tribunal consiste em saber se, depois de ter sido deduzida acusação e de esta ser notificada aos arguidos, pode o Ministério Público deduzir uma nova acusação, substituindo um dos arguidos por pessoa que da primeira não constava.
Como acima referimos, em 11.03.2021, o Ministério Público declarou encerrado o inquérito, determinou o arquivamento do mesmo relativamente ao arguido AA e deduziu acusação contra a sociedade E..., Unipessoal, Lda. e contra o arguido BB.
Esta acusação foi devidamente notificada aos arguidos.
Entretanto, em 02.04.2021, sem qualquer justificação prévia, o Ministério Público declarou de novo encerrado o inquérito, determinando agora o arquivamento do mesmo relativamente ao arguido BB e deduziu acusação contra a sociedade E..., Unipessoal, Lda. e contra o arguido AA.
Atenta a natureza e amplitude do/s despacho/s proferido/s pelo Ministério Público, impõe-se que a questão suscitada seja analisada numa dupla vertente:
- na parte em que acusa um arguido relativamente ao qual havia determinado o arquivamento do inquérito nos termos do artº 277º nº 2 do C.P.Penal, sem que previamente tenha procedido à reabertura do inquérito nos termos permitidos no artº 279º do C.P.Penal;
- na parte em que arquiva o inquérito relativamente a um arguido que anteriormente acusara da prática de um crime, dando "o dito por não dito", sem invocar qualquer fundamento que o justifique.
Como resulta do artº 262º do C.P.Penal, o inquérito, cuja direção cabe ao Ministério Público (artº 263º do mesmo diploma) compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação.
No que respeita ao seu âmbito, o inquérito é constituído por atos de investigação para esclarecer a notícia do crime e de recolha de provas dos factos apurados pela investigação. O fim expresso do inquérito é a decisão sobre a acusação. Considerando, porém, que o processo penal tem custos morais muito graves para o arguido, mais não seja os decorrentes da publicidade que lhe é inerente, importa acautelar que só seja submetido a julgamento aquele sobre quem recaia fundada suspeita de responsabilidade criminal.
Assim, findo o inquérito, o Ministério Público há-de tomar uma de entre cinco opções, que põem termo ao inquérito e são, por isso, também designados como atos decisórios de encerramento do inquérito: o arquivamento nas suas três modalidades (artº 277º nº 1, 277º nº 2 e artº 280º, todos do C.P.Penal), a suspensão provisória do processo ou a acusação.
Através da dedução da acusação o Ministério Público propõe ao tribunal a apreciação de um concreto tema atinente à realização de uma pretensão punitiva do Estado, conformando simultânea e necessariamente os limites da intervenção jurisdicional, podendo por isso afirmar-se que o objeto do processo é fixado e definido pela acusação.
Ora, fixado o objeto do processo através da acusação, poderá o Mº Público proferir nova acusação, contra os mesmos ou outros arguidos, alterando factos ou imputando novos ilícitos criminais aos mesmos ou a outros arguidos?
Entendemos que a resposta não pode deixar de ser negativa.
Como refere Damião da Cunha[2] "... tanto o despacho de arquivamento como o ato de acusação, correspondem a um «dever de decidir» por parte do MP - pelo que implicam sempre o dever de o MP não proferir nova decisão quanto à matéria decidida - dever que se institui quando alguém é constituído arguido. Visto por este prisma, e em obediência estrita a um princípio de acusação materialmente entendido, o ne bis in idem significa, para o MP, tanto «processualmente», como «institucionalmente», a impossibilidade de proferir uma nova decisão (através de nova acusação ou de um despacho de arquivamento), e, por isso, de voltar a exercer os poderes de autoridade sobre a matéria decidida". ... "se, de facto, a proibição do ne bis in idem, presente no processo penal, tem uma intenção política de garantia do arguido, exatamente como proibição de «duplo processo» (sobre os mesmos factos), tal garantia tem que valer já na fase de inquérito, o que implica que ninguém possa ser constituído duas vezes arguido quanto ao «objeto» da fase de inquérito."
Dissertando também sobre esta questão, Paulo Dá Mesquita[3] explica que "da articulação do modelo jurídico-constitucional do Ministério Público com a estrutura do processo penal, em particular dos princípios do acusatório e do contraditório, resulta uma tendencial irretratabilidade dos atos decisórios do inquérito, sendo essa auto-vinculação imediata quando em causa está um despacho de acusação".
E acrescenta mais à frente aquele autor[4] este princípio da irretratabilidade da ação penal tem como corolário lógico, no que respeita ao despacho de acusação, a vinculação externa do Ministério Público, com a consequente proibição de intervenção intra-orgânica revogatória, poder de intervenção que, no ato processual de encerramento do inquérito, se cinge apenas a determinadas decisões de arquivamento.
Debruçando-se também sobre este tema, escreve Tiago Geraldo[5] "... se quer a acusação, quer o arquivamento, são resultados do exercício de um mesmo poder – o da ação penal –, então têm de se caracterizar pelo mesmo efeito de vinculação (ou de autovinculação) do MP". E mais adiante refere[6] "... mais do que proibição de duplo julgamento ou punição, o ne bis in idem, no quadro de um sistema acusatório como o que vigora entre nós, e ao contrário do que tradicionalmente se diz, deve ser entendido como um princípio aplicável e dirigido à própria ação penal. Promovida essa deslocação sistemática, o ne bis in idem passa então a significar que o MP, tanto processualmente como institucionalmente, está em regra impossibilitado de voltar atrás para exercer uma vez mais os seus poderes de autoridade – que necessariamente perturbam a paz jurídica daquele que é (ou foi) perseguido pelo sistema penal – sobre matéria já anteriormente decidida pelos responsáveis dessa magistratura, seja contradizendo um anterior arquivamento com uma nova acusação, seja substituindo uma acusação por outra de teor diferente. Do ne bis in idem assim entendido resulta, numa palavra, uma proibição, de carácter geral, de reiteração da ação penal já realizada ou, dito de outra maneira, uma proibição genérica (incidente sobre o MP) de voltar a resolver, em sentido contraditório, um conflito penal já previamente resolvido. Neste quadro, às decisões finais de inquérito tomadas pelo MP estará associado não só um efeito negativo, de preclusão, traduzido na consumpção da ação penal, mas também um efeito positivo, de vinculação, obrigando institucionalmente o MP a conformar-se com a sua decisão e a não reiterar, quanto ao mesmo objeto do processo, a ação penal – ou seja, e para o que aqui concretamente nos interessa, vinculando o MP a não contradizer a decisão de arquivamento. Recuperando o que dissemos no ponto anterior, tais efeitos incidirão, quer sobre o thema decidendum, quer sobre o thema probandum do arquivamento, no sentido de que o MP, perante o mesmo conjunto de factos e provas, está obrigado a manter e não contrariar a sua anterior decisão, tenha ela sido tomada com base em razões de mérito ou na falta de prova para acusar".
Esta questão foi igualmente apreciada no Ac. da RL de 11.05.2016[7], a propósito de uma acusação que substituiu uma proferida anteriormente ainda não notificada, nos seguintes termos: “a questão que se coloca é saber se proferido um determinado despacho – no caso, uma acusação, que é o despacho mais importante da fase do inquérito, porque o finda e dá contornos definitivos ao processo – é, ou não, legal, a sua substituição por outro, ainda que o primeiro não tenha sido cumprido, ou seja, não se mostre notificado aos intervenientes processuais. E a resposta é, naturalmente, que não é possível. Um dos princípios que enforma o nosso direito processual, civil e penal, é o da preclusão. Significa ele, entre o mais, que uma vez praticado determinado ato ele adquire foros de definitivo naquele processado (preclusão intraprocessual ou efeito intraprocessual da preclusão). Este princípio tem um campo de aplicação muito amplo, quer em processo civil quer em processo penal e aplica-se, nomeadamente, a todos os atos petitórios e contestatórios das partes (por exemplo, apresentação de queixa, dedução de acusação particular, dedução de instrução, pedido de indemnização civil, contestação crime e contestação cível). Mas aplica-se também aos atos dos Magistrados. Tal resulta, diretamente, do disposto no artº 613º/CPC, aplicável em processo penal, por força do qual proferida sentença fica esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria em causa (efeito preclusivo do caso julgado, intra e extra processual). Tal norma é aplicável aos simples despachos decisórios intercalares – o que fundamenta a figura do caso julgado formal e material (artºs 619º a 621º, do CPC, aplicável ao CPP, ex vi artº 4º). Proferida a sentença ou proferido um despacho que decida sobre determinada questão, fica precludida a possibilidade do Tribunal voltar a pronunciar-se sobre essa mesma questão, sendo que a decisão proferida só permite a correção de lapsos materiais (artº 614º/CPC) e, no âmbito CPP, daqueles a que se refere o artº 380º/CPP. ... Tal significa que, no que ao caso releva, uma vez proferida a acusação (ou qualquer despacho do MP no âmbito do inquérito), seja qual for o tratamento que lhe tenha sido dado (isto é, tenham eles sido notificados, ou não) está precludida a possibilidade de o MP renovar a prática do ato. O ato praticado tornou-se definitivo e parte integrante do processado"[8].
No caso em apreço, como se disse, o Ministério Público reformulou o despacho final proferido em 11.03.2021, o qual fora já notificado aos arguidos, substituindo-o por outro em que determina o arquivamento nos termos do artº 277º nº 2 do C.P.Penal relativamente ao arguido BB (a quem na 1ª acusação imputara a prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social p. e p. nos artºs. 105º nº 1 e 107º nº 1 do RGIT) e deduz acusação contra o arguido AA (para além da sociedade), sendo certo que no primitivo despacho final determinara o arquivamento dos autos nos termos do artº 277º nº 2 do C.P.Penal, quanto a este arguido.
Ora, conferir ao Ministério Público a prerrogativa de reformular ou substituir uma acusação ou um despacho de arquivamento constituiria uma violação dos princípios da igualdade e da proporcionalidade consagrados nos artigos 13º, nº 1 e 18º, nº 2, da Constituição da República Portuguesas, pois tratar-se-ia de conceder àquele uma faculdade que não tem paralelo quanto aos demais sujeitos processuais. O assistente não tem a faculdade de completar, reformular ou substituir a acusação particular ou o requerimento de abertura de instrução, nomeadamente quando tais peças processuais são omissas na narração dos factos imputados ao arguido relativamente ao tipo subjetivo da infração (cfr. a este propósito os AFJ nº 7/2005 de 12.05.2005 e nº 1/2015 de 27.01.2015).
Aliás, no que respeita ao despacho de arquivamento proferido ao abrigo do artº 277º nº 2 do C.P.Penal, a lei apenas permite a reabertura do inquérito, a requerimento de outros sujeitos processuais e nunca oficiosamente, pelo Mº Pº[9], e desde que tenham surgido novos elementos de prova que invalidem os fundamentos do arquivamento.
Ou seja, mesmo relativamente ao despacho de arquivamento proferido em 11.03.2021, o Ministério Público jamais o poderia ter reformulado. Não só porque, com a referida reformulação procede à substituição de arguidos, como também por não resultar de quaisquer elementos novos de prova entretanto surgidos.
O despacho proferido pelo Ministério Público em 02.04.2021 subverte o quadro legal processual penal, quebra a previsibilidade legal que decorre do mesmo para os sujeitos processuais, com clara violação da confiança que os arguidos nele depositam e das garantias legais nele previstas.
Como se referiu no Ac.R.Guimarães de 24.04.2017, supra citado, "a acusação representa um ato decisório que não pode ser repetido, por com a sua prolação se ter esgotado o poder do magistrado titular do inquérito sobre o respetivo objeto, independentemente de a acusação conter ou não deficiências que possam comprometer o seu êxito. Pois a consequência do esgotamento do poder de finalizar o inquérito, com a dedução da acusação, é precisamente a de que o magistrado não possa mais, por sua iniciativa, alterar a decisão que proferiu, ainda que logo a seguir se arrependa, designadamente por vir a constatar que nela errou".
Contrariamente ao que sustenta o recorrente, o segundo despacho (proferido em 02.04.2021) não é meramente retificativo do primeiro, tratando-se antes de uma verdadeira substituição, não subsumível à disciplina do artº 380º do C.P.Penal.
Com efeito, o Mº Público não se limitou a substituir os nomes dos arguidos, por lapso na sua identificação.
Se bem analisarmos o texto da primitiva acusação, o Mº Pº arquiva o inquérito relativamente ao arguido AA (pai) e acusa o arguido BB (filho). Na segunda acusação arquiva o inquérito relativamente ao arguido BB e deduz acusação contra o arguido AA.
Porém, na primeira acusação alegara: "O arguido BB é o gerente desta sociedade comercial, pois é este quem manda e dá ordens na empresa, tal como resulta também do registo comercial e do Sistema de Informação da Segurança Social (SISS)".
Enquanto na segunda acusação alega: "O arguido AA é o gerente desta sociedade comercial, pois é este quem manda, dá ordens na empresa, paga a trabalhadores e fornecedores, não obstante ser o seu filho BB quem consta, como gerente, no registo comercial."
Ou seja, na primeira acusação, o Mº Público não cometeu qualquer lapso! E muito menos, um lapso retificável nos termos do artº 380º do C.P.Penal. O Mº Pº acusa o arguido BB, como gerente de facto e de direito.
Mais tarde, ao verificar que dos autos consta que o arguido BB era apenas gerente de direito (por, como tal, constar do registo comercial), deduz a segunda acusação contra o arguido AA, imputando a este a gerência de facto da sociedade arguida.
Não se trata de um mero lapso na identificação do sujeito passivo da relação processual, mas antes de um verdadeiro erro de imputação objetiva e subjetiva.
É certo que o artº 380º nº 1 al. b) e nº 3 do C.P.P. permite a correção da sentença que contiver erros, lapsos, obscuridades ou ambiguidades e que esta possibilidade se aplica aos atos decisórios do Mº Pº.
Contudo, para que se admitisse a retificação pretendida através da dedução da segunda acusação, necessário seria que a retificação não importasse modificação essencial da acusação, o que não é o caso, como vimos.
Acresce que, nos termos do artº 249º do Cód. Civil, subjacente à faculdade prevista no citado artº 380º nº 1 al. b), os erros de cálculo ou de escrita apenas permitem a respetiva retificação quando revelados no próprio contexto da declaração ou através das circunstâncias em que aquela é feita. Ora, o que se verifica no caso sub judice, é precisamente o contrário. Do texto e do contexto da primitiva acusação conclui-se que o Mº Pº pretendia, efetivamente, acusar o arguido BB, único gerente registral da sociedade arguida e a quem, para além da gerência de direito, imputa atos de gestão de facto.
Refira-se, além do mais, que o Ministério Público profere o segundo despacho (em 02.04.2021) sem qualquer justificação prévia, designadamente reveladora da sua intenção de retificar um "mero lapso de escrita".
Contrariamente ao invocado pelo recorrente, não é aplicável ao processo penal o disposto nos artºs. 615º e 616º do Cód. Proc. Civil no tocante à nulidade e reformada sentença penal, precisamente porque o CPP dispõe de norma própria sobre tal matéria – artº 380º. Ora, nem neste artigo, nem em qualquer outro se prevê a reforma da sentença, nos exatos termos em que é contemplada no processo civil, no artigo 616.º, e que o recorrente entende aplicável, face ao disposto no artigo 4.º do CPP, desconsiderando o regime previsto no artigo 380.º antes referido[10].
O que o recorrente pretendeu fazer com a dedução da segunda acusação foi uma verdadeira substituição e não uma mera reformulação, retificação ou correção, estando assim afastada a subsunção ao regime previsto no artº 380º do C.P.Penal.
Dir-se-á, finalmente, que o termo "processo" tem múltiplos significados, mas o que ora nos interessa é o que respeita a "uma sequência de atos juridicamente preordenados praticados por certas pessoas legitimamente autorizadas em ordem à decisão sobre se foi praticado algum crime e, em caso afirmativo, sobre as respetivas consequência jurídicas e sua justa aplicação"[11].
Como procedimento legal que é, deve respeitar a tramitação legalmente prevista, sob pena de deixar de ter a natureza de processo judicial, potenciando-se o caos. Ora, devendo a acusação ser proferida no final do inquérito, a que se segue a fase de instrução (facultativa) e a fase de julgamento, pergunta-se "até quando se poderá admitir que o Mº Pº formule acusações corrigidas", designadamente acrescentando e retirando arguidos a quem vai sucessivamente imputando a prática do crime investigado?
Alega ainda o recorrente que o Sr. Juiz considerou o segundo despacho "inexistente", sem que as defesas tivessem requerido ou arguido o que quer que fosse.
Ora, o vício de inexistência afasta-se do princípio geral da tipicidade das nulidades, bem como do princípio geral da sua sanação. A função da categoria da "inexistência" é precisamente a de ultrapassar a barreira da tipicidade das nulidades e da sua sanação pelo caso julgado: a inexistência é insanável[12].
Assim, atento o vício imputado na decisão recorrida à segunda acusação deduzida pelo ora recorrente, vício esse com o qual concordamos plenamente, o seu conhecimento não estava dependente de arguição por qualquer interessado, sendo de conhecimento oficioso pelo tribunal.
Inexiste, assim, fundamento para a revogação da decisão recorrida, que não é merecedora de qualquer censura, devendo manter-se.
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IV - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, confirmando-se consequentemente a decisão recorrida.
Sem tributação.
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Porto, 02 de fevereiro de 2022
(Elaborado pela relatora e revisto por ambos os signatários)
Eduarda Lobo
Castela Rio
__________ [1] Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada). [2] In O Caso Julgado Parcial - Questão da culpabilidade e questão da sanção num processo de estrutura acusatória, pág. 485. [3] In Direção do Inquérito Penal e Garantia Judiciária, Coimbra Editora, 2003, pág. 207. [4] Ob. cit., págs. 290/291. [5] In "A Reabertura do Inquérito (ou a proibição relativa da repetição da ação penal)", pág. 192. [6] Ob. cit., pág. 200 e ss. [7] Proferido no Proc. nº 88/10.6JAPDL.L1-3, Des. Maria da Graça Santos Silva, disponível in www.dgsi.pt. [8] No mesmo sentido se pronunciou o Ac. R. Guimarães de 24.04.2017, Proc. nº 180/07.4JABRG.G1, Des. Fátima Furtado, disponível in www.dgsi.pt. [9] O que extrai do facto de o nº 2 do artº 279º do C.P.Penal se referir "ao despacho do Mº Pº que deferir ou recursar a reabertura do inquérito ..." [10] Neste sentido, v. Ac. do STJ de 18.10.2018, Proferido no Proc. nº 636/17.0PBCSC.L1-9, Cons. Cláudio Ximenes, disponível inwww.dgsi.pt [11] Cfr., neste sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. I, pág. 8. [12] Cfr., neste sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. II, pág. 106.