SUPRIMENTO JUDICIAL
CONSENTIMENTO
PASSAGEM FORÇADA MOMENTÂNEA
Sumário

I—O processo de suprimento de consentimento no caso de recusa previsto no artigo 1000.º do C.P.Civil é aplicável às situações em que o dono do prédio não consente a entrada do dono do prédio vizinho para este ali colocar andaimes e outros objectos necessários à realização de obras;
II—Apesar de a lei (v. art. 1349.º CC) não se referir expressamente à possibilidade de suprimento judicial do consentimento em caso de recusa, a interpretação do segmento normativo de que o dono do prédio está onerado com uma obrigação ex lege de consentir nesse actos (levantar andaime, colocar objectos, passar por ele materiais ou outros análogos) significa que, caso não seja cumprida, o interessado em aceder ao prédio para poder reparar o seu edifício ou construção, pode e deve recorrer ao processo especial de suprimento de consentimento previsto no art. 1000.º do C.P.Civil.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães
I—RELATÓRIO
D… e mulher M…, residentes na Rua…, concelho de Esposende, intentaram a presente acção especial de suprimento de consentimento contra M… e marido J…, residentes em 26 Rue…, França, pretendendo que, pela procedência da demanda, seja suprido o consentimento dos réus para entrarem no prédio destes e aí colocarem andaimes e outros objectos necessários para a realização das obras referidas na petição inicial.
Alegaram os requerentes, em síntese, que são proprietários de um prédio urbano que confina com um outro pertença dos requeridos, necessitam de realizar obras naquele seu prédio e, para esse efeito, de entrar no imóvel dos réus, mas que estes, apesar de várias insistências, têm negado dar consentimento a essa sua pretensão.
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Proferiu-se decisão que julgou improcedente a pretensão dos requerentes, e absolveu do pedido os requeridos M… e marido J….
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Inconformados com o julgado, os Requerentes interpuseram recurso, terminando com as seguintes
CONCLUSÕES
1. Com o devido respeito, não se nos afigura correcta a decisão ora posta em crise, no que respeita à apreciação da matéria de Direito.
2. Destarte, os Recorrentes pretendem realizar obras na sua casa, cuja construção só é possível através do prédio dos Recorridos, que se recusam a ceder tal entrada, sendo a acção de suprimento do consentimento proposta, o meio próprio para os Recorrentes fazerem valer esse seu direito.
3. De acordo com o disposto enunciado no art. 1349º, nº 1 do CC, o proprietário de um prédio é obrigado a conceder passagem momentânea se um vizinho necessitar, para edificar construção, de colocar nesse prédio objectos e fazer passar por ele materiais para obra , o que claramente sucede no caso em lide.
4. Todavia, não cabe ao Tribunal decidir o tipo de acção que os Recorrentes devem propor, como sucedeu e como é supra referenciado. Assim sendo, parece-nos que julgando a acção do Recorrentes improcedente, com os fundamentos invocados na Douta Sentença, é completamente descabido.
5. A acção de suprimento do consentimento é uma acção especial própria para obrigar os Recorridos a ceder aos Recorrentes a passagem momentânea pelo seu terreno para que estes possam proceder às obras no telhado e na parede, nomeadamente, que o empreiteiro faça o enchimento, reboco e a pintura da referida parede de sua casa, que confronta com o prédio dos Recorridos, dado que para o fazerem, têm obrigatoriamente de entrar no prédio dos Recorridos, onde terão de serem levantados andaimes, escadas, colocar objectos e materiais necessários à realização de tais obras.
6. Tal situação encontra-se, então, regulada no art. 1349º do C.C., em cujo nº 1 se dispõe: "se, para reparar algum edifício ou construção, for indispensável levantar andaime, colocar objectos sobre prédio alheio, fazer passar por ele os materiais para a obra ou praticar outros actos análogos, é o dono do prédio obrigado a consentir nesses actos".
7. A título exemplificativo refere-se que aquela acção especial pode ser intentada nos seguintes casos: para publicação de cartas confidenciais [art", 76º do c.c.); suprimento do consentimento do dono do prédio para nele levantar andaime, colocar objectos, fazer passar por ele materiais ou praticar outros actos análogos. Quando tais actos sejam indispensáveis à reparação de algum edifício ou construção (artº. 1349º. nº. 1 do c.c.); consentimento dos descendentes na venda a filhos ou netos (artº. 877º, nº. 1 do c.c.j.
8. De facto, é inequívoco que a lei admite a acção de suprimento do consentimento no caso dos autos, nos termos do art. 1349º, nº 1 do C.C.
9. Face ao alegado, recebida a acção e após ter sido deduzida contestação pelos Recorridos, deveria ser "designado dia para audiência final, depois de concluídas as diligências que haja necessidade de realizar previamente" ¬cfr. art. 1000º, nº 2 do C.P.C.
10. Como decorre do disposto no art. 1000º e 1001º do C.P.C., "o processo especial de suprimento do consentimento destina-se a suprir o consentimento de alguém para a prática de determinado acto, nos casos em que a pessoa que teria legitimidade para o efeito recusa o consentimento ou quando, por qualquer razão - designadamente por incapacidade ou ausência -, não pode prestá-lo" - vide Ac. Tribunal da Relação de Guimarães, prc. nº 89J11.7TBVVD.G1, de 13.03.2012.
11. Ora, os processos de suprimento têm como pressuposto, primeiro, que seja exigível o consentimento de outrem para o exercício de determinado direito, e, segundo, que a lei admita que seja suprida a falta de tal requisito - cfr. Abílio Neto, Novo Código de Processo Civil Anotado, 2ª ed. Revista e ampliada, jan. 2014, p. 1046.
12. Pires de Lima e Antunes Varela - "Código Civil Anotado", vol. III, 2.ª edição revista e actualizada (Reimpressão), pág. 185. Com efeito, referindo que o Código de 1867 determinava, expressamente, que, neste caso (passagem forçada momentânea), a recusa da autorização seria suprida pelo juiz no prazo de dez dias; referindo que esta referência teria sido eliminada por não ser viável o prazo de dez dias ali mencionado e fazendo referência às vozes (Vaz Serra) que, durante a discussão do projecto, lembraram que a omissão dessa referência poderia conduzir a que se julgasse que a autorização não podia ser suprida pelo juiz, escrevem os referidos Professores: "Parece, porém, que da simples afirmação feita no nº 1 de que o proprietário é obrigado a consentir, se devem deduzir todas as consequências, quer pelo que respeita à indemnização, quer pelo que concerne aos meios processuais, ou até à acção directa ... ".
13. A decisão a proferir nessa acção ou procedimento sempre teria que conduzir ao mesmo resultado: obrigar os Recorridos a consentir naqueles actos e suprindo, por essa via, o consentimento que haviam recusando. Ora, se assim é - e se, afinal, o consentimento sempre poderia ser suprido na decisão a proferir nessa acção ou procedimento cautelar -, não encontramos quaisquer razões válidas para sustentar que os Recorrentes não podem obter a satisfação da sua pretensão através do processo especial que foi especificamente criado para esse efeito e que, sendo um processo mais simples do que a acção declarativa, atingirá o seu desfecho com maior brevidade. Por outro lado e sem negar a possibilidade de recurso ao procedimento cautelar, a verdade é que essa possibilidade sempre estaria condicionada pela verificação dos pressupostos legais que são exigíveis para o efeito e que poderiam não ocorrer.
14. O suprimento do consentimento dos Recorridos, que o Recorrente pretende obter para fins mencionados na petição inicial pode ser obtido através de recurso ao processo especial de suprimento do consentimento, previsto no art. 1000º do c.P.c., e portanto, não existe fundamento para improceder a acção.
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Os Requeridos contra-alegaram referindo que o suprimento do consentimento só é admitido nos casos em que a Lei o admite, sendo o aludido artigo 1349° n° 1 do Cód. Civil como se depreende facilmente, uma norma substantiva. Logo não é possível transpor a situação dos autos para o âmbito deste preceito. É que o suprimento do consentimento apenas será possível nos casos em que a declaração do Tribunal seja bastante para substituir a declaração de vontade de outrem que se mostre injustificada a recusa. No caso dos autos o que os recorrentes pretendem é praticar actos materiais e não actos jurídicos. Ora, assim sendo, só através da acção declarativa comum é que os recorrentes poderão alcançar êxito ou seja atingir os fins que pretendem prosseguir.
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Colhidos os vistos, cumpre decidir.
II—Delimitação do Objecto do Recurso
A questão fulcral a apreciar, delimitada pelas conclusões do recurso, consiste apenas em saber se o processo de suprimento de consentimento no caso de recusa é aplicável aos casos previstos no artigo 1349.º do C.Civil, ou seja, na designada servidão momentânea de passagem [1].
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III—FUNDAMENTAÇÃO (dão-se por reproduzidos os actos processuais acima descritos)
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IV—DIREITO
Os Requerentes alegaram que são proprietários de um prédio urbano carecido de obras, e com vista à realização das mesmas, necessitam de entrar no prédio pertença dos Requeridos, mas estes, apesar de várias insistências, não têm permitido essa actuação.
O tribunal a quo considerou, em resumo, que é inaplicável à pretensão dos Requerentes o processo de suprimento de consentimento porquanto a lei substantiva não permite esse suprimento, defendendo, por isso, o recurso ao processo declarativo comum.
O processo pode ser comum ou especial, aplicando-se este último aos casos expressamente designados na lei—v. art. 546.º, n.º 1 e 2 do C.P.Civil.
Em conformidade com os ensinamentos de A. Varela [2] “o primeiro ponto a investigar na escolha da forma aplicável à dedução de qualquer pretensão em juízo consiste assim em saber se essa pretensão (abstractamente considerada) corresponde alguma das formas especiais de processo (processos especiais) previstos na lei. No caso afirmativo, o pedido terá de ser deduzido e a acção desenvolvida de acordo com o esquema (processo especial) correspondente; no caso oposto, cair-se-á no processo comum, onde também não há um só, mas vários tipos ou formas de processo.”
Os processos especiais de suprimento integram-se na categoria dos processos de jurisdição voluntária (título XV), e, por isso, estão sujeitos às regras estabelecidas nos artigos 986.º a 988.º do C.P.Civil.
Nos processos de jurisdição voluntária, não há, em princípio, um conflito de interesses a compor, mas um só interesse a regular, embora podendo haver um conflito de opiniões ou representações acerca do mesmo interesse [3].
No que concerne ao suprimento de consentimento no caso de recusa, dispõe o artigo 1000.º, n.º 1 do C.P.Civil que “Se for pedido o suprimento do consentimento, nos casos em que a lei o admite, com fundamento de recusa, é citado o recusante para contestar.” (itálico nosso)
Salvo o devido e muito respeito pela argumentação aduzida na decisão recorrida, entendemos que a interpretação do preceito adjectivo em causa não tem assento legal, desde logo em resultado do seu elemento literal.
Com base no elemento literal, a primeira nota que nos parece ser de frisar é que a lei processual exclui tão só os actos cujo suprimento de consentimento não é permitido pela lei substantiva.
Assim, os requisitos legais são dois: admissão legal (de natureza substantiva) de suprimento do consentimento [4] e recusa de consentimento por parte de quem tem essa obrigação.
Ora, alicerçando-se a pretensão dos requerentes na norma substantiva consagrada no artigo 1349.º, n.º 1 do C.Civil, a questão que se coloca é justamente a de saber se a hipótese legal abstracta admite o suprimento judicial quando o dono do prédio, onerado com a obrigação de permitir a entrada e passagem pelo mesmo, se recusa injustificadamente a consentir a realização desses actos.
Nos termos do artigo 1349.º, n.º 1 do C.Civil “Se, para reparar algum edifício ou construção, for indispensável levantar andaime, colocar objectos sobre prédio alheio, fazer passar por ele os materiais para a obra ou praticar outros actos análogos, é o dono do prédio obrigado a consentir nesse actos.”
Para além do elemento literal, o artigo 9.º do C.Civil em matéria da interpretação da lei, determina, para obviar os excessos dos autores objectivistas [5], que seja dada atenção ao elemento histórico, ou seja, à reconstituição do pensamento legislativo e às circunstâncias em que a lei foi elaborada.[6]
Daí a importância da doutrina de A. dos Reis sobre as dificuldades de arrumação sistemática dos processos especiais [7], e na parte que nos interessa para o caso em apreço, os esclarecimentos por si prestados nesta matéria.
Este autor, após elucidar que o consentimento só pode ser suprido judicialmente quando a lei substancial o permitir [8], exemplifica vários casos em que tal sucede.
Assim, um dos exemplos da possibilidade de suprimento judicial de consentimento que o autor indicava era precisamente o da passagem forçada momentânea prevista no artigo 1349.º do C.Civil : --Se for indispensável repara algum edifício, levantar andaime, colocar alguns objectos sobre prédio alheio, ou fazer passar por ele os materiais para a obra, será o dono do dito prédio obrigado a consenti-lo, contanto que seja indemnizado do prejuízo; no caso de negação ou oposição infundadas, responderá por perdas e danos, e a autorização será suprida pelo juiz no prazo de 10 dias (art. 2314.º).
Este último segmento foi eliminado porque a referência à indemnização era desnecessária face ao termos gerais do direito e “os 10 dias são, às vezes insuficientes para a distribuição e a citação…O caso não é tão simples como ao autor do citado decreto se afigurou.” [9]
Acrescentam estes autores que houve quem lembrasse durante a discussão do projecto (Vaz Serra) que a omissão podia conduzir, pelo confronto dos textos, a que se julgasse que no caso de negação ou oposição infundada, o único efeito seria, agora, a obrigação de indemnizar, não podendo a autorização ser suprida pelo juiz.(negrito nosso)
A argumentação da decisão recorrida reflecte nitidamente essa interpretação, na medida em que, ao confrontar os dois preceitos legais, actual e pretérito, verificou que o actual não contém qualquer referência ao suprimento judicial, concluindo que é inadmissível o recurso ao processo de suprimento[10].
Discordam os referidos autores (P. de Lima e A. Varela) desta interpretação, acrescentando que “da simples afirmação feita no n.º 1 de que o proprietário é obrigado a consentir, se devem deduzir todas as consequências, quer pelo que respeita à indemnização, quer pelo que concerne aos meios processuais, ou até à acção directa…”
Neste mesmo sentido pronunciou-se Abílio Neto [11] ao referir como exemplo de suprimento do consentimento o caso do dono do prédio para nele levantar andaime, colocar objectos, fazer passar por ele matérias ou praticar outros actos análogos, quando tais actos sejam indispensáveis à reparação de algum edifício ou construção (art. 1349.º-1 CC) bem como o Acórdão desta Relação de Guimarães de 13.03.2012 [12].
O consentimento imposto pela lei ao dono do prédio constitui uma obrigação ex lege que depende da finalidade do facto (reparação ou construção de um edifício… e a necessidade do acesso (“se…for indispensável…”) [13]
No caso concreto, os Requerentes alegaram que são proprietários de um prédio urbano que confina com um outro pertença dos Requeridos, necessitam de realizar obras naquele seu prédio e, para esse efeito, de entrar no imóvel dos Requeridos, mas que estes, apesar de várias insistências, têm negado esse acesso.
Perante estas alegações dos Requerentes, o meio processual adequado para alcançarem a sua pretensão, isto é, de poderem efectivamente entrar no prédio dos Requeridos e aí colocarem andaimes e outros objectos necessários para a realização das obras, é o processo de suprimento de consentimento por recusa previsto no artigo 1000.º do C.P.Civil.
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V—DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes que constituem este Tribunal da Relação em julgar procedente o presente recurso, revogando a decisão recorrida, devendo os autos seguir os ulteriores e regulares termos processuais.
Custas pelos apelados.
Notifique e registe.
Guimarães, 12 de novembro de 2015
Anabela Tenreiro
Francisca Mota Vieira
Fernando Fernandes Freitas
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[1] Sobre a evolução legislativa relativa a esta limitação ao direito de propriedade v. Lima, Pires de e Varela, Antunes, Código Civil Anotado, vol. III, Coimbra Editora, pág. 183.
[2] Cfr. Manual de Processo Civil, 2.ª edição, págs. 68/69.
[3] Cfr. Andrade, Manuel Dominges de, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, pág. 72.
[4] Cfr. Reis, Alberto dos, Processos Especiais, vol II, pág. 459 : É à lei substantiva, e não à lei processual, que compete fixar os casos em que a recusa ou falta de consentimento pode ser suprida; e o princípio geral a enunciar não pode ser senão este : o consentimento só pode ser suprido judicialmente quando a lei reguladora do respectivo acto jurídico permitir o suprimento. Se a lei substancial nada disser a tal respeito, tem de concluir-se que o suprimento é inadmissível.
[5] Cfr. Lima, Pires de, e Varela, Antunes, Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª edição, Coimbra Editora, pág. 58, nota 1.
[6] Ob. cit. pág. 58, nota 1.
[7] Cfr. Processos Especiais, vol. I.
[8] Cfr. ob. cit., Processos Especiais, vol. II, pág. 459.
[9] Cfr. Lima, Pires de, e Varela, Antunes, citando Cunha Gonçalves, Código Civil Anotado, vol. III, pág. 185.
[10] Ora, sendo embora certo que o artigo 1349º, nº 1 do Código Civil dispõe que o proprietário é obrigado a consentir nos actos aí previstos desde que verificados os requisitos legais, certo é também que tal dispositivo não prevê a possibilidade da recusa desse consentimento ser judicialmente suprido - isto contrariamente ao que sucedia com o preceituado no normativo correspondente do Código de Seabra (artigo 2134º).
[11] v. Código de Processo Civil Anotado, 14.ª edição, pág. 1176, anotação ao artigo 1425.º do anterior CPC, cuja redacção é igual ao actual artigo 1000.º.
[12] Disponível no site www.dgsi.pt.
[13] v. C.Civil Anotado, vol. III, autores acima citados, pág. 187.