CONDUÇÃO PERIGOSA
DESISTÊNCIA DA QUEIXA
OFENSAS CORPORAIS
RELAÇÃO DE CONSUNÇÃO
Sumário

I.– O crime de ofensa à integridade física negligente de que o arguido era acusado, foi arquivado por desistência da queixa. O processo prosseguiu para apreciação do crime de condução perigosa de veículo rodoviário, prática de ilícito este do qual o arguido foi absolvido.

II.– O crime de condução perigosa de veículo rodoviário tutela um bem jurídico complexo, nomeadamente a segurança rodoviária, na perspectiva da protecção do perigo concreto que do exercício de uma actividade em si mesma arriscada – a condução de um veículo automóvel – pode advir para a vida, a integridade física e bens patrimoniais alheios, de elevado valor.
Por seu turno, o crime de ofensa à integridade física negligente, tutela a protecção do direito à integridade física, produzida por qualquer meio.

III.– Temos, pois, que os bens jurídicos tutelados por estes dois normativos têm uma área em comum; isto é, em certa medida (e independentemente do facto de terem depois outros campos de abrangência), ambos tutelam o direito à integridade física.

IV.– A provarem-se factos que preencham os elementos do tipo de ambos os crimes e, caso estejamos apenas perante uma única vítima ou potencial vítima, resultante da actividade prosseguida pelo arguido, estaremos perante uma relação de consumpção entre estes dois ilícitos, devendo tal actuação, segundo as regras legais (designadamente o disposto nos artºs 30 e 79 do C. Penal) ser censurada unificadamente e punida pela moldura penal mais severa.

V.– Na verdade, se por resultado de uma condução negligente, imprevidente, é atingida a integridade física de uma única vítima, o facto de a conduta ter produzido um resultado (um dano físico) já encerra, em si mesma, o perigo concreto que a condução perigosa determinou; isto é, o perigo concreto, concretizou-se em resultado, pelo que fica consumido, englobado, integrado, no crime de ofensa à integridade física negligente. O que sucede é que tal conduta terá de ser punida por recurso à moldura penal mais grave, de entre os dois crimes em relação de consumpção.

VI.– Por outro lado, na acusação, em termos factuais, inexistem elementos que permitam, a provarem-se, concluir ter o arguido tido uma conduta dolosa, pelo que não pode este tribunal proceder à reapreciação de um facto omisso ab initio, nem se mostra sequer equacionável o preenchimento do nº3 do artº 291 do C. Penal.

VII.– Falta na acusação a factualidade atinente à colocação em perigo de outros utentes que não o assistente que, a provar-se, permitiria a eventual integração do crime de condução perigosa; i.e., a acusação carece de enunciação factual que permitisse o preenchimento, autonomamente, do crime de condução perigosa.

Texto Integral

Acordam em conferência na 3ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa

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I–RELATÓRIO


1.–Foi proferida sentença, julgando a acusação deduzida pelo Ministério Público contra o arguido JASR____, improcedente, por não provada, e consequentemente, foi o mesmo absolvido da prática do crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelos art.s 291º, n.º 1, al. b), e 69º, n.º 1, al. a), ambos do Cód. Penal pelo qual se encontrava acusado.

2.–Inconformado, veio o Mº Pº interpor recurso, pedindo a alteração da matéria de facto e a condenação do arguido pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, previsto e punido nos termos do disposto no artigo 291.º, n.º 1, alínea a) e n.º 3 e 69.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, na pena de 90 dias de multa, à taxa diária de € 7,00 e na pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor pelo período de 9 (nove) meses.

3.–O recurso foi admitido.

4.–O arguido não apresentou resposta.

5.–Neste tribunal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.
  
II–QUESTÕES A DECIDIR.

Erro de julgamento e erro no enquadramento jurídico  
  
III–FUNDAMENTAÇÃO.

Erro de julgamento e erro no enquadramento jurídico  

1.–A decisão proferida pelo tribunal “a quo” deu como provados os seguintes factos:
1.-No dia 19 de Setembro de 2018, pelas 9h20, o arguido conduzia o veículo ligeiro de passageiros de matrícula XX-XX-XX, na Praça de ....., em L_____, na faixa central, na via da esquerda.
2.-Nas mesmas circunstâncias de tempo, AM PC______ conduzia o ciclomotor de matrícula YY-YY-YY, no sentido oposto, na Avª. ..... ....., em L_____, na via de trânsito da direita.
3.-À aproximação do cruzamento com a Avª. ..... ....., apesar da sinalização luminosa, vertical e no pavimento obrigarem a seguir em frente, o arguido mudou de direcção à esquerda.
4.-Consequentemente o arguido ficou com o veículo por si conduzido atravessado na frente do ciclomotor conduzido por AM PC______.
5.-Face ao que não foi possível a AM PC_____ deixar de embater com a frente do ciclomotor por si conduzido na lateral direita do veículo conduzido pelo arguido.
6.-Em consequência do embate, JG_____  foi projectado ao chão, onde ficou prostrado.
7.-O local situa-se dentro da localidade, configura um cruzamento, com dois sentidos de trânsito, separados por separador central, comportando cada um dos sentidos três vias de trânsito.
8.-O local apresenta uma visibilidade em toda a sua largura numa extensão de, pelo menos, 50 metros. 
9.-O pavimento, em aglomerado asfáltico, encontrava-se em bom estado de conservação e manutenção, sem anomalias identificadas. 
10.-No sentido em que o arguido circulava o semáforo tem uma seta luminosa com indicação de sentido em frente, sobre um fundo circular preto; existe também um Sinal de Obrigação D1c (seguirem frente); e no pavimento marcas orientativas de sentido de trânsito: seta de selecção M15 (seguirem frente).
11.-A sinalização semafórica emitia, no momento, luz verde no sentido do arguido e do Assistente. 
12.-Como consequência directa a necessária do embate AM PC____ sofreu fractura do escafóide esquerdo. 
13.-E, tais lesões determinaram para AM PC____  : “342 dias para a consolidação médico-legal: sem afectação da capacidade de trabalho geral e com 42 dias de afectação da capacidade de trabalho profissional (período de imobilização gessada)”.
14.-O arguido bem sabia que era obrigado a seguir em frente, pelo que efectuar a mudança de direcção à esquerda descrita, não observou as precauções exigidas pela mais elementar prudência e cuidado que era capaz de adoptar e que devia ter adoptado para impedir a verificação de um resultado que, de igual forma, podia e devia prever, mas que não previu, causando as lesões e as consequências permanentes supra descritas em AM PC_____.
15.-O arguido agiu, livre e conscientemente. 

Mais se provou que: 
17.-O arguido não tem antecedentes criminais registados. 
18.-Vive com a mulher e um sobrinho menor de 7 anos cuja guarda lhe foi atribuída judicialmente; recebe reforma de € 485,00 e a mulher de € 420,00:
Não se provaram quaisquer outros factos com relevância para a decisão da presente causa.

Considerou não provados os seguintes factos:
a)-O arguido agiu deliberadamente.
b)-Sabia o arguido que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
 
2.–E fundamentou tal decisão fáctica nos seguintes termos:
A convicção do tribunal baseou-se na ponderação crítica do conjunto da prova produzida em julgamento, apreciada segundo as regras da experiência comum, sendo que o arguido prestou declarações e no essencial conformou a dinâmica do embate ocorrido e descrito nos factos provados.
Atendeu o tribunal às suas declarações quanto às condições pessoais.
A testemunha depôs de forma sincera, objectiva e coerente, tendo o seu depoimento merecido a credibilidade do tribunal.
O Assistente AM PC____descreveu de forma objectiva e coerente a forma como estava a circular e foi embatido pelo veículo conduzido pelo arguido o que coincide com a dinâmica descrita nos factos provados. Disse que não estava muito tráfego a circular na hora em que o embate ocorreu nem se apercebeu de qualquer manobra de evasão feita por qualquer outro veículo que tivesse sido causada pela manobra de mudança de direcção realizada pelo arguido. 
A testemunha HE_____, Agente da PSP referiu que se deslocou ao local após o embate e elaborou a participação de acidente que consta dos autos de fls. 30-32 cujo teor confirmou e bem assim a assinatura. Foi confrontado com o teor da reportagem fotográfica de de fls. 124-127 cujo teor confirmou.
Quanto à prova documental, o Tribunal formou a convicção com base em: Participação de acidente, fls. 30 a 32; RIC, fls. 40; Comunicação de responsabilidade das Seguradoras, fls. 42 e 43; Documentação clínica, fls. 71 a 76, 78 a 83, 171 a 176, e 232 a 237; e Relatório Técnico de Acidente de Viação, fls.95 a 128; CRC de fls. 337.
Quanto à prova pericial o tribunal atendeu ao Relatório médico-legal, fls. 64 a 68, 156 a 158, e 179 a 182.
A análise dos depoimentos das testemunhas conjugados a prova documental, permitem concluir que o embate ocorreu como consta dos factos provados.
No que toca aos factos não provados, os mesmos assim resultam pelos motivos que constam da fundamentação jurídica. 
 
3.–Por seu turno, em sede de apreciação jurídica, o tribunal “a quo” pronunciou-se nos seguintes termos:
Atentos os factos provados, cumpre proceder ao seu enquadramento jurídico-penal.
De realçar que os factos submetidos a julgamento tinham por base uma imputação do crime que infra se aprecia, sendo certo que o Assistente desistiu da queixa no que respeita ao crime de ofensa à integridade física por negligência pelo que nessa parte o Tribunal já não tomará posição. Cabe apenas ao tribunal dilucidar se os factos provados integram ou não a prática do crime de condução perigosa de veículo rodoviário.
Do crime de condução perigosa de veículo rodoviário Dispõe o art.º 291º do Código Penal que:
Quem conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada: (…)
b)-Violando grosseiramente as regras da circulação rodoviária relativas à prioridade, à obrigação de parar, à ultrapassagem, à mudança de direcção, à passagem de peões, à inversão do sentido de marcha em auto-estradas ou em estradas fora de povoações, à marcha atrás em autoestradas ou em estradas fora de povoações, ao limite de velocidade ou à obrigatoriedade de circular na faixa de rodagem da direita e criar deste modo perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
3-Se o perigo referido no n.º 1 for criado por negligência, o agente é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias.
4-Se a conduta referida no n.º 1 for praticada por negligência, o agente é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias.
O bem jurídico protegido pela norma incriminadora é a segurança da circulação rodoviária e o risco para a vida, a integridade física ou bens patrimoniais alheios de valor elevado, em termos gerais. Trata-se de um crime de perigo na medida em que a sua consumação não requer a efectiva lesão do bem jurídico, bastando-se com a possibilidade ou probabilidade de dano. Por outro lado, é um crime de perigo concreto, no sentido em que implica que se verifique na situação concreta o perigo para o bem jurídico protegido. Tem que se produzir um perigo real para o objecto protegido pelo correspondente tipo. O perigo constitui elemento do tipo, pelo que deve verificar-se um nexo de causalidade entre a actuação do agente o correspondente resultado de perigo.
Os crimes de perigo contrapõem-se aos crimes de dano, já que nestes se requer a efectiva lesão do bem jurídico protegido. - Figueiredo Dias, Direito Penal – Parte Geral – Tomo I, Coimbra Editora, 2004, p. 292
O sujeito activo do tipo legal previsto no art.º 291º é o condutor do veículo.
No que respeita ao tipo subjectivo de ilícito do nº 1 do art.º 291º, é necessário o dolo relativamente a todos os elementos do tipo legal objectivo, incluindo a criação de perigo para os bens jurídicos enumerados (designadamente a vida e a integridade física). É suficiente o dolo eventual, bastando que o agente tenha consciência do perigo decorrente da sua conduta para outras pessoas ou bens alheios de valor elevado, tendo-se conformado com tal situação. Mas não basta que ele represente que é fonte de um possível perigo (abstractamente entendido); terá que conhecer as circunstâncias das quais emana esse perigo e terá que aceitar os seus contornos concretos.Paula Ribeiro de Faria, in Comentário Conimbricense do Código Penal, dirigido por Jorge de Figueiredo Dias, Tomo II, Coimbra Editora, 1999, p. 1088.
O dolo terá que abranger, quer a conduta do agente, quer a criação de perigo.
Nos termos do nº 2 do art.º 291º prevê-se que o agente realiza de forma dolosa a intervenção que coloca em perigo o trânsito mas cria tal perigo de forma negligente (crime de combinação dolo-negligência em sentido próprio). Ou seja, o agente sabe, tem plena consciência da sua incapacidade para conduzir, mas não representa (negligência consciente) ou representa e afasta a possibilidade (negligência consciente) da criação de um perigo para os bens jurídicos em causa. - Paula Ribeiro de Faria, ob. cit.
Neste caso, a acção é dolosa mas o perigo é criado por mera negligência.
Esta actuação é ainda mais censurável que a prevista no nº 3 em que o agente desconhece por negligência a sua incapacidade dessa forma se dispõe a conduzir. Neste caso, quer a acção, quer a criação de perigo decorrem de mera negligência. Ao tipo legal em apreço subjaz não só o perigo que decorre do facto de o agente não se encontrar em condições de conduzir com segurança ou de conduzir com violação grosseira de determinadas regras de trânsito, presumindo-se tal conduta como perigosa, (…) mas também e especialmente uma concreta situação de perigo, reflectida no risco de lesão dos bens jurídicos que se visam proteger (vida, integridade física e bens patrimoniais de valor elevado). E daí que no tipo legal a culpa tenha por referência, quer a acção perigosa (condução de veículo nas condições ou contexto previstos no texto legal) quer o resultado da acção (criação de perigo concreto para os bens jurídicos tutelados).
O conceito de perigo concreto exige a verificação cumulativa dos seguintes requisitos: a existência de um objecto de perigo (a vida ou integridade física de alguém ou um ou mais bens patrimoniais de valor elevado); a entrada do objecto do crime no círculo de perigo; a não ocorrência da lesão por força de esforços extraordinários e não objectivamente exigíveis da vítima ou de terceiros ou devido a circunstâncias criadoras de hipóteses de salvamento incontroláveis e irrepetíveis (por exemplo as forças da natureza).Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, UCP, 2008, Anot. Art.º 272º - Nota prévia, por remissão da Anot ao art.º 291º.
A circunstância que possibilitou a não ocorrência da lesão não deve parecer ao homem médio repetível, controlável, de fácil exercício ou normal. Só se a circunstancia que que possibilitou o salvamento do objecto do crime surgir aos olhos do homem medido como irrepetível, incontrolável, de difícil realização ou extraordinária se pode concluir pela verificação do perigo concreto.
O tipo subjectivo do crime de perigo concreto distingue-se do tipo subjectivo do crime de dano correspondente. Ou seja, o dolo/negligência de perigo não se confunde com o dolo/negligência de dano.
No que ao tipo subjectivo respeita, na modalidade dolosa, e tratando-se de um crime de perigo, o dolo não está directamente relacionado com o dano/violação, mas sim com o próprio perigo, consubstanciando-se na consciência e previsão do perigo ou da acção desencadeados daquele, sendo que nos crimes de perigo concreto a consciência ou previsão do agente está dirigida ao resultado ou evento perigoso. - Rui Carlos Pereira, O Dolo de Perigo, 1995, p. 32, citado por AM PC_____, Código da Estrada Anotado, Coimbra, 2005, anot. art.º 72º;
Assim, verifica-se o dolo da acção sempre que para agente, suposta a voluntariedade do acto, tenha consciência de que não se encontra em condições de conduzir com segurança, por se encontrar em qualquer um dos estados previstos na norma ou sempre que o agente tenha consciência de que a sua condução viola grosseiramente alguma das regras de circulação rodoviária ali previstas.
Por outro lado, verifica-se o dolo na criação de perigo sempre que o agente tenha pelo menos consciência da efectiva possibilidade ou probabilidade de lesão dos bens jurídicos tutelados pela norma face ao seu comportamento, isto é, sempre que o agente haja previsto o perigo ou situação perigosa (resultado ou evento perigoso) e com tal se conforme. - AM PC____, Código da Estrada Anotado, Coimbra, 2005, anot. art.º 72º; o dolo de perigo corresponde a uma negligência consciente de dano.
No caso dos autos o crime está imputado na sua forma de negligência quanto ao dano mas nada é referido quanto ao perigo mas as considerações que antecedem também valem para esta forma de culpa quando o agente age com falta de cuidado a que estava obrigado e de que era capaz na criação do perigo concreto para os bens jurídicos em presença.
 
Lidos os factos provados, verifica-se que não estão verificados os elementos subjectivos do tipo de crime em apreciação porquanto não é imputada ao arguido a colocação em perigo de qualquer bem jurídico (quer a título de dolo quer de negligência), não se fazendo referência a qualquer criação negligente de perigo, mas apenas se faz referência à violação das regras estradais por negligência susceptíveis de consubstanciar o crime de dano pelo qual o processo foi já extinto por desistência de queixa, sendo certo que ao tribunal não é permitido aditar elementos subjectivos do crime imputado, conforme jurisprudência fixada (AUJ n.º 1/2015 in DR, I Série de 27-01-2015: A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal).

Do concurso de crimes
Acresce que o crime de perigo concreto encontra-se numa relação de concurso efectivo com o crime de dano quando o perigo concreto se verificou em relação a outros bens jurídicos além daquele objecto do dano, uma vez que o bem tutelado pela incriminação de perigo não se encontra integralmente tutelado pela punição através do crime de dano.
Assim o crime de perigo concreto encontra-se numa relação de concurso aparente com o crime de dano quando o perigo concreto se verificou apenas em relação ao mesmo bem jurídico que foi lesado, que foi o caso dos autos (em que o arguido vinha acusado dos dois crimes em concurso real).
Há uma relação de subsidiariedade entre o crime de condução perigosa e a ofensa à integridade física por negligência quando o dano se produziu apenas em relação à vítima que foi também objecto do perigo. Assim, o arguido nunca poderia ser condenado pelo crime previsto pelo art.º 291º/1 al. b) e 3 do Código Penal uma vez que estava imputado o crime de ofensa à integridade física por negligência.
Verifica-se pois uma situação de concurso aparente de normas que impede que o arguido seja condenado pela prática do crime de condução perigosa porquanto a sua conduta, para além do dano causado no Assistente não produziu qualquer outro perigo concreto para a vida ou integridade física de outrem ou bens patrimoniais alheios de valor elevado.
Quanto ao crime de ofensa à integridade física por negligência foi já declarado extinto o procedimento criminal por desistência da queixa pelo que os factos dados como provados não integram a prática de qualquer crime.
Assim, deve o arguido ser absolvido do crime que lhe é imputado e bem assim da pena acessória por não se verificar o referido crime.
 
4.–O recorrente sintetiza a sua motivação, nas seguintes conclusões:
1.ª -Nos presentes autos, foi deduzida acusação contra o arguido JASR____, imputando-lhe a prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso real, de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, previsto e punido nos termos do disposto na alínea b), do n.º1 e no n.º 3, do artigo 291.º, e no artigo 69.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal, e de um crime de ofensa à integridade física simples por negligência, previsto e punido nos termos do disposto no artigo 148.º, n.º 1 e 69.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal.
2.ª-Em momento prévio à audiência de julgamento, veio o assistente a desistir da queixa pelo último dos mencionados ilícitos, a qual veio a ser homologada e, em consequência, foi declarado extinto procedimento criminal contra o arguido, quanto ao mesmo.
3.ª-Prosseguiram, então, os autos, para apreciação do imputado crime de condução perigosa de veículo rodoviário.
4.ª-Por sentença de 15.09.2021, veio o Tribunal a absolver o arguido da prática de tal crime.
5.ª-Decisão com a qual, salvo o devido respeito, não pode o Ministério Público conformar-se, não subscrevendo o entendimento perfilhado no que concerne ao enquadramento jurídico dos factos apurados;
6.ª-Nem, tão-pouco, pode o Ministério Público concordar com o elenco dos factos dados como não provados na sentença recorrida, atinentes unicamente ao elemento subjectivo do crime imputado ao arguido.
7.ª-Quanto ao mais, no que à matéria de facto respeita, o Ministério Público não coloca em crise a sentença recorrida.
8.ª-A matéria de facto constante dos pontos a) e b) da matéria de facto não provada resultam dos factos objectivos, provados nos termos expostos na sentença e extraem-se daqueles, analisados à luz das regras da lógica e experiência comum, atentas as concretas circunstâncias do caso, designadamente, as características da faixa da rodagem e do veículo que o arguido conduzia, as condições meteorológicas e do pavimento da estrada, e as circunstâncias descritas em que ocorreu o embate.
9.ª-Considerando os factos apurados e dados como provados pelo Tribunal a quo, conclui-se que o arguido agiu, pelo menos, com dolo eventual, quanto à violação das regras de condução, pois que no local existiam três tipos de sinalização de trânsito que o obrigavam a seguir em frente e, mesmo assim, o arguido decidiu virar à esquerda;
10.ª-O arguido agiu com negligência quanto ao perigo que causou aos bens jurídicos vida, integridade física e bens de elevado valor patrimonial de terceiros, condutores que seguiam na viam onde entrou em contra-mão.
11.ª-Assim sendo, os mencionados factos, dados como não provados, deverão integrar o elenco dos factos provados.
12.ª-Dada a sua especificidade e impondo-se a sua demonstração, não de concretos meios de prova, mas das regras de experiência comum, entende-se que, excepcionalmente, não tem aplicação o disposto na alínea b), do n.º 3, do artigo 412.º, do Código de Processo Penal.
13.ª-Para preenchimento dos elementos típicos do crime de condução perigosa de veículo rodoviário é necessária, por um lado, a violação grosseira das regras de condução rodoviária e, por outro, a verificação de um perigo concreto para a vida, a integridade física, ou para bens patrimoniais alheios de elevado valor.
14.ª-Considerando os factos dados como provados nos pontos 1. e 3. a 10. da sentença em crise, é evidente que o arguido, nas circunstâncias descritas nos autos, agiu em clara violação grosseira das regras de condução rodoviária, pois que efectuou a mudança de direcção à esquerda, entrando numa via em que a circulação apenas era permitida em sentido contrário àquele em que seguia, sendo que, na via em que primeiramente seguia, havia sinalização horizontal, vertical e luminosa que lhe indicavam a obrigação de seguir em frente.
15.ª-Com a referida actuação, o arguido violou, entre o mais, o disposto no artigo 44.º, do Código da Estrada e desrespeitou os sinais de trânsito previstos no artigo 69.º, n.º 2, alínea c), sinal de obrigação D1c e seta de direcção M15, todos do Regulamento de Sinalização de Trânsito.
16.ª-Tais factos, conjugados ainda com os factos 12. a 13. da sentença, revelam que a conduta do arguido criou perigo (concreto) para a integridade física do assistente, na medida em que não fora a sobredita conduta do arguido e o assistente não sofreria as lesões descritas nos autos.
17.ª-Mas a conduta do arguido produziu ainda claro perigo para a vida, integridade física e bens patrimoniais de elevado valor de todos os outros condutores que seguiam na mesma via que o assistente.
18.ª-Não obstante a factualidade dada como demonstrada na sentença em crise, esta, em momento algum se pronuncia no sentido de esclarecer se, no entendimento do Tribunal, tais factos são, ou não, susceptíveis de integrar os elementos objectivos do mencionado ilícito.
19.ª-Não nos parece, todavia, subsistir qualquer tipo de dúvidas.
20.ª-Considerou a sentença que “No caso dos autos o crime está imputado na sua forma de negligência quanto ao dano mas nada é referido quanto ao perigo [....]não estão verificados os elementos subjectivos do tipo de crime em apreciação porquanto não é imputada ao arguido a colocação em perigo de qualquer bem jurídico (quer a título de dolo quer de negligência), não se fazendo referência a qualquer criação negligente de perigo, mas apenas se faz referência à violação das regras estradais por negligência susceptíveis de consubstanciar o crime de dano pelo qual o processo foi já extinto por desistência de queixa, sendo certo que ao tribunal não é permitido aditar elementos subjectivos do crime imputado, conforme jurisprudência fixada”.
21.ª-Salvo o devido respeito, que é muito, não podemos perfilhar de tal entendimento.
22.ª-Com efeito, o crime vinha imputado ao arguido pela previsão da alínea b), do n.º 1 e do n.º 3, do artigo 291.º, do Código Penal, sendo que o n.º 3 da citada norma refere-se, precisamente, à negligência na criação do perigo.
23.ª-Ao contrário do enunciado na sentença, vinha devidamente imputado na acusação (aliás, na mesma medida em que a sentença o deu como provado) que o arguido criou o perigo (entenda-se, de lesão dos bens jurídicos vida, integridade física ou bens patrimoniais alheios de elevado valor) a título de negligência, sendo a imputação que lhe é feita suficiente para preencher tal previsão do elemento subjectivo.
24.ª-Já quanto à conduta que produziu o mencionado perigo, considerando que, como se referiu, o arguido mudou de direcção à esquerda, quando na via em que seguia tinha sinalização horizontal, vertical e luminosa que lhe indicava expressamente que era obrigado a seguir a frente, não se pode, sequer, equacionar a possibilidade de o arguido ter agido com negligência, mas, no limite, com dolo eventual, como supra se expôs.
25.ª-Donde, considerando os factos que se têm como provados, forçoso é, pois, concluir que o arguido JASR____, ao efectuar a manobra de mudança de direcção da forma descrita, conduziu de forma desatenta, não respeitando os diversos sinais de trânsito do local, não respeitando o sentido de trânsito da via em que entrou e não assegurando que executava a manobra de mudança de direcção em segurança, isto é, sem colocar outros condutores em risco, nomeadamente o assistente, tendo conduzido de forma desatenta e imprudente, não observando o dever de cuidado que lhe permitiria evitar acidentes, como o que vitimou o assistente, ao contrário do que podia e devia fazer.
26.ª-O arguido não observou os deveres cuidado impostos pelas normas legais relativas à circulação automóvel e, ao conduzir o veículo do modo e nas condições descritas, não agiu com a diligência e cautela que lhe eram exigíveis e que estavam ao seu alcance para evitar um resultado que podia e devia prever, mas que não previu, dando causa às lesões descritas do assistente, sendo o único causador do acidente em discussão nos autos.
27.ª-Donde se entende estarem preenchidos os elementos objectivos e subjectivo do tipo de crime de condução perigosa de veículo rodoviário.
28.ª-Entendeu também o Tribunal a quo que “o crime de perigo concreto encontra-se numa relação de concurso aparente com o crime de dano quando o perigo concreto se verificou apenas em relação ao mesmo bem jurídico que foi lesado, que foi o caso dos autos (em que o arguido vinha acusado dos dois crimes em concurso real)”, concluindo que, tendo havido extinção do procedimento criminal quanto ao crime de ofensa à integridade física simples, os factos praticados pelo arguido e considerados provados não consubstanciavam a prática de qualquer crime.
29.ª-Uma vez mais, não podemos concordar.
30.ª-Fazendo apelo à regra primordial para distinção entre concurso aparente ou concurso efectivo de normas, constatamos que os bens jurídicos tutelados pelo artigo 138.º e o artigo 291.º, do Código Penal são substancialmente diferentes, pelo que teremos de concluir pela presença de um concurso efectivo de normas, como, aliás, se pronuncia Paula Ribeiro de Faria, no Comentário Conimbricense, e como tem sido entendimento perfilhado por este Venerando Tribunal
31.ª- Ademais, caso se admitisse a tese plasmada na sentença em crise, sempre se dirá que, da prova produzida nos autos (quer das declarações do arguido, quer das declarações do assistente), resultou que o arguido colocou em causa a vida, integridade física e bens patrimoniais de elevado valor de outros condutores que não o assistente, que seguiam na mesma faixa de rodagem que este e, inclusive, tiveram que se desviar daquele.
32.ª-Tal circunstância resulta, aliás, desde logo, das regras da experiência comum, considerando o local (Praça de ....., em L____) e as circunstâncias de tempo em que ocorreu o acidente (dia útil, às 9 horas e 20 minutos da manhã), sendo aquela zona, como é sabido, de elevado tráfego nas chamadas “hora de ponta”.
33.ª-Pelo que, a ser assim, deveria a Meritíssima Juiz a quo, salvo melhor opinião, ter dado como assente que, na via em que seguia o assistente, seguiam outros condutores, sendo que o arguido colocou em perigo (concreto) os bens jurídicos tutelados pela norma, relativamente também a eles.
34.ª-Todavia, o Tribunal tira a conclusão de que o arguido não colocou em perigo qualquer outro condutor, o que não corresponde à verdade nem resulta da prova, não o fazendo por referência a qualquer facto provado ou não provado.
35.ª-Donde, e ao contrário do que foi entendido pelo Tribunal a quo, integrando os factos provados a previsão dos elementos objectivo e subjectivo do crime de condução perigosa de veículo rodoviário, nos exactos termos em que lhe vinha imputado na acusação pública, deve o arguido ser condenado em conformidade, pela sua prática.
36.ª-O mencionado crime é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias e com pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, por período a fixar entre os três meses e os três anos.
37.ª-De acordo com o n.º 1, artigo 40.º,do Código Penal a aplicação de uma pena visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, cumprindo, assim, a função de responder às necessidades de prevenção gerais e especiais que se fazem sentir em cada caso.
38.ª-Já de acordo com o disposto no artigo 70.º, do Código Penal se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, dar-se-á preferência à segunda, sempre que realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
39.ª-No caso dos autos, as necessidades de prevenção geral são muito elevadas, considerando que se trata de crime praticado no exercício da condução, sendo elevadíssima a sinistralidade nas nossas estradas, todos os anos, com elevado número de vítima (feridos e mortos), sendo que, por isso, a comunidade exige dos Tribunal uma punição exemplar para os autores deste tipo de crime, tanto mais que, no caso dos autos a conduta do arguido assume especial gravidade, porquanto a mesma deu origem a um acidente, da qual resultou um ferido.
40.ª-As exigências de prevenção especial mostram-se baixas, porquanto o arguido não tem antecedentes criminais, está social e familiarmente inserido, assumiu em Tribunal a prática dos factos, colaborou com este na descoberta da verdade e apuramento dos factos, não escamoteou a sua responsabilidade e assumiu uma postura de arrependimento que se reputa como sincero.
41.ª-Ponderados todos os factos supra elencados, entendemos que é adequada e suficiente a aplicação de uma pena de multa para a realização das finalidades da punição.
42.ª-Para determinação da moldura concreta da pena a aplicar em cada caso, a culpa constitui o limite máximo da moldura e a defesa da ordem jurídica o seu limite mínimo.
43.ª-De acordo ainda com o disposto no n.º 2, do artigo 71.º, do Código Penal, dentro daqueles referidos limites, a pena ideal encontrar-se-á, ponderando todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele.
44.ª-Assim, na determinação da medida da pena a aplicar ao arguido JASR____deverá ter-se em consideração que as exigências de prevenção geral são, como já o referimos elevadíssimas; as exigências de prevenção especial são, por sua vez, reduzidas; a ilicitude é elevada, atendendo à violação das regras presentes no Código da Estrada e às graves consequências da conduta do arguido, que levaram às ofensas à integridade física do assistente, descritas nos autos; quanto à culpa, o arguido agiu com dolo, quanto à violação das normas de condução, nomeadamente a regras fundamentais como são as atinentes à mudança de direcção, de proibição de efectuar determinadas manobras ou a de proibição de circular em determinadas vias, deveres estradais que recaem sobre qualquer condutor, e agiu de forma negligente, violando os deveres de cuidado a que estava obrigado, relativamente ao perigo que deveria ter previsto e que deveria ter tomado as devidas precauções para evitar.
45.ª-Tendo em consideração todos as circunstâncias enunciadas, a favor e a desfavor do arguido, deverá este Venerando Tribunal condenar o arguido JASR____  em pena de multa, nunca inferior a 90 (noventa) dias, pena que se reputa justa e adequada aos factos que supra se elencaram.
46.ª-Quanto ao quantitativo diário a fixar, considerando o facto dado como provado sob o ponto 18. da sentença em crise, entendemos que, no caso dos autos, deverá ser fixado o valor de 7,00€ (sete euros).
47.ª-As penas acessórias são verdadeiras penas, não obstante serem dependentes da aplicação de uma pena principal.
48.ª-Para a determinação da medida concreta da pena acessória, há que fazer apelo aos mesmíssimos critérios legais de determinação das penas principais, supra enunciados.
49.ª-Culpa e prevenção são pois, e como já supra aludimos, as referências norteadoras da determinação da medida da pena acessória, valores que deverão ser considerados em função de uma das finalidades consignadas no artigo 40.º, n.º 1, do Código Penal, designadamente, a protecção de bens jurídicos; deverá ser também tido em consideração o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste, a gravidade das suas consequências e o grau de conhecimento e a intensidade da vontade, nos crimes dolosos, ou o grau de negligência, que constituem factores decisivos para a avaliação da culpa e, consequentemente, para a ponderação da pena.
50.ª-Posto isto, e revertendo ao caso sub judice, ponderando todas as circunstâncias que se enunciaram para a determinação da medida da pena principal, consideramos justa e adequada ao caso sub judice a aplicação da pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor pelo período de 9 (nove) meses.
51.ª-Do que fica dito, resulta que, ao decidir como decidiu, violou o douto Tribunal a quo, entre o mais, o disposto nos artigos 291.º, n.º1, alínea b) e n.º 3, 69.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, 25.º e 27.º, da Constituição da República Portuguesa,
52.ª-Deve, pois, a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que altere a matéria de facto, nos termos sobreditos, e que, a final, condene o arguido JASR____, pela prática em autoria material e na forma consumada, de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, previsto e punido nos termos do disposto no artigo 291.º, n.º 1, alínea a) e n.º 3 e 69.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, nos termos e nas penas que supra se expuseram.
 
5.–Apreciando.

O recorrente começa por pretender uma reapreciação probatória, afirmando que a mesma se baseia não em depoimentos e declarações, mas sim na análise da matéria de facto dada como assente.
Em concreto, pretende o Mº Pº que os factos dados como não provados (a) O arguido agiu deliberadamente. b) Sabia o arguido que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.) sejam dados como assentes, considerando que, atentas as circunstâncias do incidente, se impõe que se entenda que o arguido sabia que não podia virar à esquerda e que, não obstante, quis fazê-lo de forma deliberada, com plena consciência da proibição da sua conduta.
Pretende ainda o recorrente que sejam aditados como factos assentes que, na via em que seguia o assistente, seguiam outros condutores, sendo que o arguido colocou em perigo (concreto) os bens jurídicos tutelados pela norma, relativamente também a eles.
 
6.–Vejamos.

Como ponto prévio, convém esclarecer que ao arguido era imputada, em sede de acusação, a prática dos seguintes crimes:
- um crime de ofensa à integridade física negligente, p. e p. pelos arts. 148º
nº 1, 15º e 69º nº 1 al. a), todos do CP; e
- um crime de condução perigosa, p. e p. pelo arts. 291º nº 1 al. b) e nº 3, e 69º nº 1 al. a), todos do CP; em concurso aparente com uma contra-ordenação, p. e p. pelo art. 145º nº 1 al. f) do CE, em conjugação com os art. 69º nº 2 al. c), sinal de obrigação D1c e seta de selecção M15, todos do RST, aprovado pelo DecretoRegulamentar nº 22-A/98, de 1 de Outubro.
 
7.–No que se refere ao crime de ofensa à integridade física negligente, houve desistência da queixa, devidamente homologada, tendo sido determinado o arquivamento dos autos nesta parte.
Assim, o processo prosseguiu para apreciação do crime de condução perigosa de veículo rodoviário, prática de ilícito este do qual o arguido foi absolvido (a questão relativa às contra-ordenações foi remetida à autoridade administrativa para procedimento contra-ordenacional).
 
8.–Deste circunstancialismo decorre que em apreciação nestes autos se mostram apenas as questões relativas ao crime de condução perigosa. 
Não obstante, por ter um interesse reflexo na decisão da causa, caberá abordar desde já, ainda que sucintamente, a questão da eventual relação de consumpção existente ou não entre este ilícito e o crime de ofensas corporais negligentes.
 
9.–Dir-se-á então, a este propósito, que o crime de condução perigosa de veículo rodoviário tutela um bem jurídico complexo, nomeadamente a segurança rodoviária, na perspectiva da protecção do perigo concreto que do exercício de uma actividade em si mesma arriscada – a condução de um veículo automóvel – pode advir para a vida, a integridade física e bens patrimoniais alheios, de elevado valor.
Por seu turno, o crime de ofensa à integridade física negligente, tutela a protecção do direito à integridade física, produzida por qualquer meio.
Temos, pois, que os bens jurídicos tutelados por estes dois normativos têm uma área em comum; isto é, em certa medida (e independentemente do facto de terem depois outros campos de abrangência), ambos tutelam o direito à integridade física, por exemplo, confluindo nesse âmbito. Neste mesmo sentido se pronunciou o Ac. do STJ de 22-11-2007, proferido no proc. 05P3638, disponível em www.dgsi.pt:, onde se refere:
“Sendo protegidos no crime de condução perigosa, além da segurança das comunicações, os bens jurídicos individuais vida e integridade física, postos em perigo pela conduta do agente, ainda que estes reflexamente, se ocorrer uma lesão destes últimos como resultado daquela conduta, os referidos bens jurídicos de natureza pessoal passam a ser protegidos não só pelas disposições combinadas dos artigos 291º, 294º e 285º, mas também, de forma genérica, pelos crimes dos arts. 137º e 148º, do CP.
 
10.–Assim, a provarem-se factos que preencham os elementos do tipo de ambos os crimes e, caso estejamos apenas perante uma única vítima ou potencial vítima, resultante da actividade prosseguida pelo arguido, estaremos perante uma relação de consumpção entre estes dois ilícitos, devendo tal actuação, segundo as regras legais (designadamente o disposto nos artºs 30 e 79 do C. Penal) ser unificadamente censurada e punida pela moldura penal mais severa. 
E isto por uma razão simples – se, por resultado de uma condução
negligente, imprevidente, é atingida a integridade física de uma única vítima, o facto de a conduta ter produzido um resultado (um dano físico) já encerra, em si mesmo, o perigo concreto que a condução perigosa determinou; isto é, o perigo concreto, concretizou-se (perdoe-se o pleonasmo) em resultado, pelo que fica consumido, englobado, integrado, no crime de ofensa à integridade física negligente. O que sucede é que tal conduta terá de ser punida por recurso à moldura penal mais grave, de entre os dois crimes em relação de consumpção.
 
11.–Tendo em mente o que acabámos de expor, prossigamos, relembrando que, no momento temporal em que se deu início à produção de prova, ao arguido é imputada apenas a prática de um crime de condução perigosa de veículo. Assim, caberá antes de mais verificar se, face ao mero texto da acusação, aí se encontram descritos factos suficientes para, a provarem-se, preencherem os elementos constitutivos deste tipo de crime.
 
12.–Estipula o artº 291 do C. Penal, na parte que aqui nos importa, dada a imputação constante na acusação, o seguinte:
Condução perigosa de veículo rodoviário
1-Quem conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada:
b)-Violando grosseiramente as regras da circulação rodoviária relativas à prioridade, à obrigação de parar, à ultrapassagem, à mudança de direcção, à passagem de peões, à inversão do sentido de marcha em auto-estradas ou em estradas fora de povoações, à marcha atrás em autoestradas ou em estradas fora de povoações, ao limite de velocidade ou à obrigatoriedade de circular na faixa de rodagem da direita; e criar deste modo perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
 
3-Se o perigo referido no n.º 1 for criado por negligência, o agente é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias.
 
13.–Por seu turno, estipulam os artºs 14 e 15 do C. Penal:
Artº 14º - Dolo
1- Age com dolo quem, representando um facto que preenche um tipo de crime, actuar com intenção de o realizar.
2- Age ainda com dolo quem representar a realização de um facto que preenche um tipo de crime como consequência necessária da sua conduta.
3- Quando a realização de um facto que preenche um tipo de crime for representada como consequência possível da conduta, há dolo se o agente actuar conformando-se com aquela realização.
Artº 15º - Negligência
Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz:
a)-Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas actuar sem se conformar com essa realização; ou
b)-Não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto.
 
14.–No caso, entende o recorrente – o que se mostra corroborado pelas normas referidas no texto acusatório, designadamente a referência ao nº 3 do artº 291 do C. Penal – que ao arguido vinha juridicamente imputada a prática do crime de condução perigosa, entendendo-se que a conduta por si praticada (mudança de direcção) foi de natureza dolosa, deliberada, querida, sendo que o perigo pela mesma criado seria a título negligente.
 
15.–Sucede, todavia que, lida e relida a acusação, não se vislumbra a referência factual a tal dolo concernente à conduta.
De facto, na acusação, a título de imputação subjectiva genérica (i.e., a única aí constante e aparentemente dirigida a ambos os crimes que eram imputados ao arguido), afirma-se:
14.–O arguido bem sabia que era obrigado a seguir em frente, pelo que efectuar a mudança de direcção à esquerda descrita, não observou as precauções exigidas pela mais elementar prudência e cuidado que era capaz de adoptar e que devia ter adoptado para impedir a verificação de um resultado que, de igual forma, podia e devia prever, mas que não previu, causando as lesões e as consequências permanentes supra descritas em AM PC_____.
15.–O arguido agiu, livre e conscientemente.
16.–Mais sabia o arguido que a sua conduta era proibida e punida por lei penal e contra-ordenacional.
 
16.–Em parte alguma se mostra factualmente imputado ao arguido, no texto acusatório, a prática de uma acção deliberada, volitiva, querida, intencional. A palavra “deliberadamente” ou qualquer outra similar, não surge no texto da acusação. 
É por isso com enorme estranheza que se constata que na sentença, seja dado como não provado que “o arguido agiu deliberadamente” e, mais estranho ainda, que o recorrente pretenda que essa factualidade passe para o campo dos factos provados…
 
17.–O objecto do processo fixa-se com a acusação (ou, existindo, com a pronúncia). Ficam então delimitados os poderes de cognição do Tribunal, assim se consubstanciando os princípios da identidade, da unidade e da indivisibilidade do objecto do processo penal.
 
18.–Isso significa que a actividade do tribunal, quer no que respeita à investigação quer à prova da verificação factual, não pode sair fora dos limites traçados pela acusação, tendo de se confinar à mesma, sob pena de nulidade (excepto nos casos especificamente ressalvados pela lei processual, em que se pode proceder a uma alteração dos factos – arts. 303.º, 309.º, 358.º e 359.º); por isso se diz que o objecto do processo tem de se manter o mesmo – eadem res –, desde a acusação até ao trânsito em julgado.
 
19.–No caso, não houve recurso a nenhum destes mecanismos de alteração factual, nem o aditamento se mostraria sequer legalmente admissível, atenta a jurisprudência fixada pelo Ac. do STJ n.º 1/2015 in DR, I Série de 27-01-2015: A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal.
 
20.–O excesso de pronúncia consubstancia-se no conhecimento de uma questão ou de matéria factual, que se mostre vedada à apreciação do tribunal, por não ter sido suscitada e/ou não ser de conhecimento oficioso. Assim, para que se verifique a nulidade da sentença por excesso de pronúncia, é necessário que o Tribunal tenha proferido decisão não abrangida pelo objecto do processo, consoante resulta da acusação.
No caso vertente, foi o que sucedeu, já que o tribunal “a quo” deu como não provada factualidade não constante da acusação.
Assim sendo, a sentença mostra-se nula neste segmento, cabendo a este tribunal proceder ao seu suprimento oficiosamente (nos termos do artº 379 nº2 do C.P. Penal), eliminando do rol de factos não provados a sua alínea a) (o arguido agiu deliberadamente).
 
21.–Prosseguindo.
Uma vez que na acusação, em termos factuais, inexistem elementos que permitam, a provarem-se, concluir ter o arguido tido uma conduta dolosa, a verdade é que daí decorre que não pode este tribunal proceder à reapreciação de um facto omisso ab initio, nem se mostra sequer equacionável o preenchimento do nº3 do artº 291 do C. Penal.
Assim, resta saber se a matéria de facto constante na acusação, ainda que integralmente dada como assente – e, no caso, apenas se mostra não provada a consciência da ilicitude (Sabia o arguido que a sua conduta era proibida e punida por lei penal) – seria susceptível de integrar o preenchimento do tipo consignado no nº4 do artº 291 do C. Penal (conduta e perigos causados por negligência).
 
22.–E a resposta é simples - os factos constantes na acusação são insuficientes para tal fim.
Porquê? Porque em parte alguma da acusação se afirma que o arguido deveria ter previsto que a sua conduta era susceptível de colocar em perigo a circulação e de pôr em causa a vida e a integridade física dos utentes da estrada, como efectivamente colocou. O que aí se diz é que o arguido não actuou de modo a impedir a verificação de um resultado que podia e devia prever, daí resultando lesões para a vítima.
 
23.–Constata-se assim que este segmento de facto (colocar em perigo a circulação e pôr em causa a integridade física dos utentes da estrada, isto é, de outras pessoas que não a vítima do crime de ofensas negligentes), não consta na acusação. Nada aí é referido quanto a outros utentes da estrada que não a vítima do crime arquivado e, em relação a este, não se fala em perigo, mas antes em concretização de um dano físico.
 
24.–Mas, dir-se-á, se houve dano, o mesmo terá sido forçosamente precedido de perigo; i.e., para haver resultado, é imperativo que o perigo tenha evoluído, escalado, para dano, para resultado, que se tenha corporizado. 
Só que, neste caso concreto, dada a desistência da queixa e o arquivamento dos autos, na parte que toca à conduta do arguido em relação à vítima assistente, não pode esse segmento factual servir de base à condenação pela prática de outro ilícito, sob pena de violação dos princípios da identidade, da unidade e da indivisibilidade do objecto do processo penal. Arquivado que se mostra o processado, onde se averiguava se uma factualidade concreta imputada ao arguido constituía ilícito penal por um crime de resultado, não pode agora pretender fazer-se uso da mesma para lhe assacar a responsabilidade pela prática de um ilícito diverso. Essa factualidade deixou de poder servir de base para a prossecução da acção punitiva do Estado; isto é, se o eventual perigo para a vítima se mostrava consumido pelo resultado da conduta, não pode agora individualizar-se o mesmo para, extinto o procedimento criminal quanto ao primeiro, servir de fundamento para condenação pelo segundo.
 
25.–De igual modo, não pode este tribunal (ou o tribunal “a quo”) proceder ao aditamento da matéria que o recorrente propugna, uma vez que a mesma se refere a elementos essenciais do tipo de crime, omissos na acusação formulada. E não o pode fazer por duas razões:
- por um lado, pelo que se mostra decorrente do AUJ supra transcrito;
- por outro lado, porque o texto cuja inclusão é pedida não contém praticamente nenhuma descrição factual, tendo antes natureza conclusiva ou jurídica (na via em que seguia o assistente, seguiam outros condutores, sendo que o arguido colocou em perigo (concreto) os bens jurídicos tutelados pela norma, relativamente também a eles.).
 
26.–Mas, ainda que assim se não entendesse, dir-se-ia que, atenta a consumpção que ocorreria (como supra se explicou) caso não tivesse havido lugar a arquivamento do processo relativamente ao crime de ofensas corporais negligentes e inexistindo referência a qualquer outra pessoa ou bem, para além do assistente, que a conduta do arguido teria posto em perigo concreto, daí decorreria que, por virtude da forma como a própria acusação foi formulada, nunca se mostraria possível a condenação do arguido pela prática do crime autónomo de condução perigosa (mesmo que não tivesse havido desistência de queixa).
Na verdade, falta na acusação a factualidade atinente à colocação em perigo de outros utentes que não o assistente que, a provar-se, permitiria a eventual integração do crime de condução perigosa. E assim sendo, mesmo que os autos tivessem prosseguido para julgamento e este se realizasse relativamente a ambos os crimes imputados na acusação ao arguido, a verdade é que o crime de condução perigosa nunca se mostraria numa relação de concurso efectivo com o crime de ofensas negligentes.
 
27.–Assim, a questão de apreciação probatória proposta neste recurso, nunca seria de passível provimento, desde logo porque (como aliás o próprio recorrente admite implicitamente, ao pedir o aditamento de factos à matéria de facto provada) na acusação formulada, a mesma carecia de enunciação factual que permitisse o preenchimento, autonomamente, do crime de condução perigosa.  
28.–Atento o que se deixa dito, resta concluir que o recurso interposto pelo Mº Pº se mostra desprovido de bases que o sustentem e, embora por fundamentos diversos dos constantes na decisão proferida pelo tribunal “a quo”, mantém-se a absolvição do arguido, no que concerne à prática de um crime de condução perigosa.
  
IV–DECISÃO.
Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso interposto pelo Mº Pº, mantendo-se a decisão alvo de recurso, embora por fundamentos diversos.
Nos termos do artº 379 nº2 do C.P. Penal), elimina-se do rol de factos não provados a sua alínea a) (o arguido agiu deliberadamente).
Sem tributação.
 
Lisboa, 9 de Fevereiro de 2022
  
Margarida Ramos de Almeida(relatora)                                  
Maria da Graça Santos Silva