CRIME DE DESOBEDIÊNCIA
ELEMENTOS ESSENCIAIS DO CRIME
AVISO PRÉVIO
LIBERDADE DE MANIFESTAÇÃO
Sumário

I – O confronto constitucional entre o direito de reunião e de manifestação e o DL 406/74, que regulamenta estes direitos, não causa qualquer impedimento à implementação de limitações por via legal aos mesmos, nomeadamente no que diz respeito à exigência de aviso prévio para manifestações organizadas.
A exigência formal pela lei ordinária de comunicação prévia não pode servir para impedir ou dificultar o exercício da liberdade fundamental de reunião e de manifestação. Esta exigência formal tem apenas em vista a criação de condições para que a liberdade se exerça em ordem e segurança e sem impedir ou pôr em causa o exercício de direitos e liberdades de terceiros.
II - O n.º 3, do artigo 15.º, por referência ao corpo do D/L cuja letra da lei é clara, não se apresenta vago aplicando-se a apenas alguns dos artigos que são claros e explícitos na sua tipologia quanto àquilo que deve e não deve ser feito pelos promotores, não violando o princípio da previsibilidade das normas penais, decorrência do princípio da legalidade (nullun crimen, nullum poena sine lege).
Contudo, é manifestamente desproporcional condenar alguém com desobediência qualificada por não ter efetuado o aviso prévio com antecedência de dois dias úteis em situação de manifestação que não viole o disposto no art.1º do cit. D/L.
III - Propendemos para a excessividade da aplicação da cominação do crime de desobediência grave para regras que não tendo a ver com a substância regem procedimentos de natureza administrativa.
Tratar-se-ia de uma pena desnecessária e desproporcional, constituindo uma violação do princípio da proibição do excesso, nos termos do art. 18º, n.º 2 da CRP.
IV - Elemento essencial do crime de desobediência, como aliás consta da redação do tipo legal (art.º 304º e 348.º do CP), é o facto de ter havido uma “ordem ou mandado legítimo, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente”.
Da acusação não constam os elementos essenciais do crime de desobediência que são; - a existência de uma ordem legítima por parte de autoridade competente para o efeito; e - a não obediência a essa ordem.
A desobediência qualificada é desobediência a uma ordem ou mandado (art.º 348.º do CP), e não a uma norma jurídica.
A acusação não refere, claramente, se foi dada aos arguidos, designadamente ao arguido AA, uma qualquer ordem, qual o seu conteúdo e se a mesma foi ou não cumprida.

Texto Integral

Processo n º 399/19.5PJPRT.P1
Relator: Paulo Emanuel Teixeira Abreu Costa
Adjunto: Nuno Pires Salpico

Acórdão, julgado em conferência,
na 1ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto:
I - Relatório.
Ministério Público não se conformando com o despacho de não pronúncia proferido no Tribunal Judicial da Comarca ...- Juízo de Instrução Criminal ...-J..., que nos autos à margem referenciados decidiu não pronunciar nos seguintes termos:
Assim, pelo exposto, uma vez que esta fase da instrução é ainda meramente indiciária, de comprovação judicial de indícios, e por efectivamente esses indícios se afigurarem insuficientes, nos termos do art.º 308.º, n.º 1, 1.ª parte, do C. Pr. Penal, NÃO SE PRONUNCIAM os arguidos AA, BB e CC, com os sinais dos autos, pelos factos descritos na acusação pública de fls. 123/127.”, pelo crime que o M.P. quer ver imputado e, em consequência, ordenou o oportuno arquivamento dos autos, veio recorrer nos termos que ora aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os legais efeitos, concluindo pela forma seguinte (partes relevantes): (transcrição)
“EM CONCLUSÕES:
I - Nos presentes autos, o MMº Juiz não Pronunciou os arguidos AA, BB e CC, por considerar que a conduta subjetiva que lhes é imputada na acusação pública não é suscetível de integrar a pratica do crime de desobediência imputado aos arguidos.
II - O M.P. não concorda com esta decisão (no que respeita ao arguido AA), porquanto, na acusação pública é imputado ao referido arguido todos os factos suscetíveis de integrarem a prática do referido ilícito.
III - A) Pois é dito na referida acusação que o arguido no dia 25/03/2019, às 16h e 47m comunicou à ... que ma ocorrer uma concentração de estudantes da faculdade 1… e 2… da Universidade ... no dia 26/03/2019, entre as 15h e as 17h, em frente da …, sita na praça ... no …, e que nesse mesmo dia, pelas 18h e 17m a ... informou o referido arguido que a sua comunicação não cumpria o estipulado no art° 2° do DL-406174, na sequência do qual, o referido arguido informou a ... que mesmo assim que a concentração iria ocorrer, como ocorreu, pese embora, no dia e hora da concentração a PSP tivesse comunicado ao referido arguido que teria que dispersar a concentração, sob pena de praticar um crime de desobediência, ordem que efetivamente o arguido não cumpriu.
III -B) E estando a conduta subjetiva implícita aos factos objetivos alegados na acusação pública, tal conduta não pode deixar de ser, a intenção do arguido desobedecer, o que igualmente é alegado na acusação pública, embora de forma pouco clara, reconhecemos;
IV - E por via disso, ter praticado o arguido AA um crime de desobediência p.p. pelas disposições conjugadas dos art°s 348° nº 1, al -a) e nº2 do CP e 2° nº l, 3° nº1, 4° e 15° nº3, estes do DL-406/74.
V - E assim, cumprindo a acusação pública, quanto ao arguido AA todos os requisitos do art° 283° do CPP;
VI - E não tendo o MMº Juiz posto em causa a prova carreada em inquérito que levou à referida Acusação;
VII - Não pode o MMº Juiz deixar de Pronunciar o referido arguido pelo crime que lhe é imputado;
VIII - E ao não fazer, violou o MMº Juiz os art°s 348° n'ºl al -a) e nº2 do CP e nº2 nº1, 3° nº1, 4° e 15° nº3, estes do DL-406/74 e o art° 308° nº l do CPP.”
O arguido respondeu concluindo pela improcedência do recurso argumentando, no seguintes termos:
“CONCLUSÕES:
1) A decisão recorrida não merece qualquer censura.
2) A norma prevista no artigo 15º., nº. 3 do D.L. nº 406/74, de 29.08, tornou- se supervenientemente inconstitucional, por ser demasiado vaga e abrangente, em violação do princípio da previsibilidade das normas penais, corolário do princípio da legalidade, e por violação do referido principio da proibição do excesso, nos termos do artigo 18º, n.º2 da CRP.
3) O aviso prévio, previsto no artº. 2 do D.L. nº 406/74, de 29.08, apenas é constitucionalmente admissível quando a reunião possa colocar em causa algum direito fundamental ou outro bem colectivo constitucionalmente tutelado.
4) A concentração ocorreu num local pedonal, amplo, sem que pudesse constituir um sério obstáculo ao trânsito e à circulação pedonal ou um risco sério à manutenção da ordem, atento o número esperado de participantes, local e hora, e as formas de expressão escolhidas, sem recurso a meios que provocassem significativa poluição sonora ou instalação de quaisquer estruturas temporárias no local.
5) Atentas as circunstâncias em que ocorreu a concentração, considera-se que os seus promotores não estariam obrigados, em qualquer caso, a proceder à sua comunicação ou aviso prévio, pelo que a acusação sempre estaria destinada a naufragar.
6) Em todo o caso, o fim da norma foi efectivamente preenchido (artº. 2 do D.L. nº 406/74, de 29.08), pois a comunicação prévia, ainda que com atraso, permitiu às forças de segurança adoptar oportunamente a atitude preventiva adequada, de forma a assegurar a protecção dos manifestantes, bem como a defesa da ordem pública, a qual, repete-se, nunca esteve em perigo.
7) Pelo que nunca ocorreria ilicitude, pois o fim da norma foi efectivamente preenchido.
8) Não decorre da acusação que tenha sido emitida qualquer ordem que visasse a não realização da concentração ou a sua interrupção, o que também não se justificaria, pois não ocorreram actos contrários à lei ou à moral, ou perturbadores de forma grave da ordem e da tranquilidade públicas, do livre exercício dos direitos das pessoas, ou que, enfim, ofendam a honra e a consideração devidas aos órgãos de Soberania e às Forças Armadas.
9) Ou seja, ainda que tal ordem tivesse sido emitida, o que não sucedeu, sempre seria uma ordem ilegal, pois o aviso prévio não constitui requisito de licitude da realização da manifestação, nem a sua falta, pressuposto habilitante automático da respectiva interrupção.
10) Não tendo sido ordenada a não realização ou interrupção da concentração, sendo certo que tal ordem nunca podia ter sido emitida, não ocorre crime de desobediência qualificada.
11) Sem prescindir, caso fosse obrigatória a comunicação prévia da concentração, sempre o arguido teria agido sem consciência da ilicitude do facto, nos termos do artº. 17º do Código Penal.
12) Deve ser excluída a ilicitude, nos termos do artº. 31º., al. b) do Código Penal, face ao atraso de um dia na comunicação da concentração, quando o arguido exercia o direito fundamental à reunião e manifestação, o qual não carece de autorização, sendo certo que a manifestação não constituía um risco à segurança e ordem pública.
13) Não ocorre erro de julgamento.”
Neste tribunal de recurso o Digno Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer pronunciando-se no sentido da improcedência do recurso.
Cumprido o preceituado no artigo 417º número 2 do Código Processo Penal nada veio a ser acrescentado de relevante no processo.
Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais foram os autos submetidos a conferência.
Nada obsta ao conhecimento do mérito.
II. Objeto do recurso e sua apreciação.
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pela recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar ( Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, nomeadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do CPP.
Questões:
Inconstitucionalidade da norma do artº 15º, n º 3 do D/L n º 406/74 de 29.08.
Preenchimento dos elementos do tipo do crime de desobediência.
Do enquadramento dos factos.
1. Nos presentes autos, em 05.02.2021, foi deduzida acusação pelo Ministério Público contra os arguidos AA, BB e CC imputando-lhes a prática de um crime de desobediência qualificada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 348.º, n.º 1, al. a) e n.º 2 do Código Penal e 2.º, nº 1, 3.º, n.º 1, 4.º e 15.º, n.º 3, todos do D.L. n.º 406/74, de 29.08;
2. Em 27.04.2021, o arguido AA requereu a abertura da instrução, instrução que foi admitida por despacho de 10.05.2021;
3. Por decisão instrutória de 15.10.2021, foi, designadamente, decidido;
“- (…) o M. Público entende que comete o crime de desobediência todo aquele que não proceda à comunicação escrita, com a antecedência mínima de dois dias úteis, do propósito de realizar reuniões, comícios, manifestações ou desfiles em lugares públicos ou abertos ao público, conforme prescreve o art.º 2.º, n.º 1 do DL 406/74, de 29.AGO.
Contudo, não resulta desse diploma legal que a inobservância dessa comunicação ou do prazo ali estatuído constitua tal crime.
Diversa seria a situação se o M. Público verberasse aos arguidos o não acatamento da ordem que lhes foi dirigida pelos agentes policiais presentes durante a concentração no sentido da sua dispersão, por se tratar de manifestação ilegal (Parecer 40/1989, de 07.DEZ.89, do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República: “4ª - A falta do aviso prévio a que alude o artigo 2º do Decreto-Lei nº 406/74 torna a reunião ilegal, sendo, por isso, legítima a intervenção policial; 7ª - Compete às autoridades policiais que superintendem na área onde decorre a reunião ilegal emitir a ordem de dispersão e, se necessário, fazer cumprir essa ordem pelos respectivos agentes; 8ª - Para que se possa verificar o crime previsto e punido no artigo 292º do Código Penal, a autoridade competente para dar a ordem de dispersão, deverá fazer a advertência de que a desobediência à sua ordem é criminosa de forma a ser compreendida pelos participantes dessa reunião.”).
Não é, contudo, o que se acha vertido na acusação em apreço, pelo que seria inexorável o seu naufrágio em sede de audiência de julgamento, por carecer de base legal a imputação do crime de desobediência aos arguidos por causa de não terem cumprido o prazo mínimo de dois dias úteis vertido no referido art.º 2.º, n.º 1 do DL 406/74, de 29.AGO.
*
Assim, pelo exposto, uma vez que esta fase da instrução é ainda meramente indiciária, de comprovação judicial de indícios, e por efectivamente esses indícios se afigurarem insuficientes, nos termos do art.º 308.º, n.º 1, 1.ª parte, do C. Pr. Penal, NÃO SE PRONUNCIAM os arguidos AA, BB e CC, com os sinais dos autos, pelos factos descritos na acusação pública de fls. 123/127.”
4.O auto de notícia datado de 27.03.19 dá conta dos seguintes factos:” Policia de Segurança Auto de Notícia
Outros Dados

Manifestação

Modus Operandi: Suspeitos actuaram em grupo? Não

Foi accionada a inspecção judiciária? Não

Informações complementares

De serviço de Supervisor Operacional à ..., responsável pelo dispositivo policial naquele local, com a missão de garantir a segurança e a tranquilidade pública.

Esta concentração foi organizada pelos alunos das Faculdade 1... e da Faculdade 2..., na Praça ..., em frente à ....

A mesma teve inicio pelas 15h00 com cerca de trinta participantes, que reivindicavam #Não ás propinas# e ostentavam cartazes com os dizeres #sem investimento no superior como terá ele valor#, # mais Investimento no superior e na ciência tendo esta terminado pelas 16h08, com o mesmo número de participantes. Foi um dos organizadores (AA) por mim elucidados de que relativamente à concentração que iriam realizar, se o fizessem incorriam em desobediência ao estipulado no art 2º Dec. Lei nº 406/74 de 24 de Agosto, ou seja a realização de manifestação/concentração/desfiles deve ser comunicada com a antecedência mínima de dois dias úteis, ficando este ciente e disse que a mesma se iria realizar.

Mais informo que a mesma realizou se na Praça…, em frente à ..., sem alterações de ordem pública nem causando restrições à circulação do trânsito em geral

Junto envio pedido de autorização à Câmara Municipal ... e a resposta enviados pelos mesmos.

Para os eleitos tidos por convenientes lavrou-se o presente documento. Auto de Noticia que foi integralmente lido e revisto e vai devidamente assinado pelo autuante.”

5. Procedimento administrativo que antecedeu a manifestação.
Teor dos e mail trocados.

a) Exmo, Presidente da Câmara Municipal ...

25 de Março de 2019

Nos termos artigo 45.9 da Constituição da República Portuguesa referente ao exercício do direi fundamental de reunião e manifestação, cujo exercício não está sujeito a qualquer autorização dos artigos 2. e 3. do Decreto-Lei n. 406/74, de 29 de Agosto, os estudantes das faculdades Faculdade 1... e da Faculdade 2... vêm, muito respeitosamente, cumprir o aviso prévio determinado no diploma citado, referente ao exercício direito fundamental de reunião e manifestação, o que faz nos seguintes termos:

- Nos termos do artigo 39 do Decreto-Lei n.º 406/74, de 29 de Agosto, informa-se que a concentração decorrerá no dia 26, do mês de Março, do ano 2019, entre as 15h e a 17 horas, na cidade do Por com o objecto de sensibilizar a opinião pública e as entidades governativas para a situação política social dos estudantes, e o local da concentração será o seguinte:

Em frente à … da ... na praça ....

Solicita-se a emissão do respectivo recibo comprovativo da recepção do presente aviso prévio, m termos do n.º 3 do artigo 2º do Decreto-Lei n.° 406/74. Vai o presente aviso assinado nos termos do n.º 2 do artigo 2º do Decreto-Lei n.º 406/74, pe estudantes:

CC, Rua ..., DD; CC: ...

AA, Rua ..., ...

BB, Rua ..., ...

b) Assunto:

Importância: Alta

Comunicação de realização de comício/ manifestação/ desfile em lugar público

Exmos. Senhores,

Encarrega-me o Exmo. Comandante..., Sr. EE, de acusar a receção da comunicação de realização de uma concentração, no dia 26 de março de 2019, entre as 15h00 e as 7h00, na Praça ..., em frente à ..., organizada pelos Faculdade 1... e da Faculdade 2....

No obstante, informa-se que a mesma não cumpre o estipulado no Art. 2.º do D.L. n. 406/74 de 29 de Agosto, ou seja, a realização de manifestações/concentrações/desfiles deve ser comunicada com a antecedência mínima de dois dias úteis.

Com os melhores cumprimentos.

FF
...

c) De: AA [mailto AA@gmail.com] Enviada: 26 de março de 2019 12:52

Para: ... <...> Assunto: Re: Comunicação de realização de comicio/ manifestação/ desfile em lugar público

Muito boa tarde.

Compreendemos perfeitamente a necessidade do aviso prévio da realização deste tipo de ações por uma questão de ordem pública e para que se possa salvaguardar o normal funcionamento da cidade e minimizar as perturbações na vida dos seus cidadãos. Por termos este entendimento e por possuirmos o maior respeito pelas forças de segurança enviamos o mail a alertar para a concentração. De assinalar no entanto que esta irá ocorrer num local pedonal que não afectará o trânsito nem a rotina das pessoas que habitam e frequentam aquela zona da cidade e que a manifestação e o protesto podem ser espontáneos, não deixando de ser por isso um direito de quem o promove e de ser um importante exercício de cidadania e democracia. Com os maiores cumprimentos.

d) A Seg, 25 de mar de 2019, 18:17, ... <...> escrevem

Exmos. Senhores,

Encarrega-me o Exmo. Comandante.... Sr. EE, de acusar a receção da comunicação de realização de uma concentração, no dia 26 de março de 2019, entre as 15h00 e as 17h00, na Praça ..., em frente à ..., organizada pelos Faculdade 1... e da Faculdade 2....

Não obstante, informa-se que a mesma não cumpre o estipulado no Art.° 2.° do D.L. n.° 406/74 de 29 de Agosto, ou seja, a realização de manifestações/concentrações/desfiles. deve ser comunicada com a antecedência mínima de dois dias úteis.

Com os melhores cumprimentos.

FF
...

Conhecendo.

O Ministério Público, junto da 1.ª instância, entende;
“- não concorda com esta decisão (no que respeita e apenas ao arguido AA), porquanto, na acusação pública é imputada ao referido arguido todos os factos suscetíveis de integrarem a prática do referido crime.”, nomeadamente quanto à sua conduta subjetiva.
Passemos agora à análise dos factos indiciários constantes da pronúncia e seu enquadramento legal.

Uma primeira observação para referir que este tribunal superior atentou em toda a documentação junta aos autos.

Estabelece o art. 308.°, n.° 1 do Código Processo Penal que “Se, até ao encerramento da instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de urna pena ou de urna medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia”. Segundo o art. 283.°, n.° 2, para onde remete o art. 308.°, n.° 2, “Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar urna possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, urna pena ou medida de segurança”. Correlacionado com estes preceitos e por se tratar da fase de instrução, está o disposto no art. 286.°, n.° 1, segundo o qual “A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”.
De acordo com o princípio “in dubio pro reo” sempre que se esteja, no decurso da apreciação e avaliação da prova perante uma dúvida irremovível e razoável, quanto à verificação de certos factos que geram a sua incerteza, deve o Tribunal favorecer o arguido. Aliás, o Tribunal Constitucional já teve a oportunidade de realçar a relevância deste princípio e da inadmissibilidade da sua exclusão na valoração da prova que está subjacente ao despacho de pronúncia, ao “julgar inconstitucionais os artigos 286°, n°1, 298°, e 308°, n° 1, do Código de Processo Penal, por violação do artigo 32 n° 2, da Constituição, interpretados no sentido de que a valoração da prova indiciária que subjaz ao despacho de pronúncia se bastar com a formulação de uni juízo segundo o qual não deve haver pronúncia se da submissão do arguido a julgamento resultar um acto manifestamente inútil.” [Ac. 439/02]. O mesmo tem sido assinalado pela demais jurisprudência, segundo a qual “O juízo de prognose que determinará a sujeição do arguido a julgamento é equivalente tanto na fase de inquérito, como na fase de instrução, e exige uma possibilidade de condenação em julgamento que respeite o princípio in dubio pro reo.” [Ac. R. Porto de 2011/Nov./23].
Em suma, podemos dizer que “Os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, do Estado de Direito democrático e da presunção da inocência impõem que a expressão indícios suficientes (308°/JCPP,) seja interpretada no sentido de exigir uma probabilidade particularmente qualificada de futura condenação, fruto de uma avaliação dos indícios tão exigente quanto a contida na sentença final” (Ac. R. Porto de 2010/Jan./20).

Isto significa que no culminar da fase de instrução, como se refere no Ac. desta Relação de 2006/Jan./04, o juízo de pronúncia deve, em regra, passar por três fases. Em primeiro lugar, por um juízo de indiciação da prática de um crime, mediante a indagação de todos os elementos probatórios produzidos, quer na fase de inquérito, quer na de instrução, que conduzam ou não à verificação de uma conduta criminalmente tipificada. Por sua vez e caso se opere essa adequação, proceder-se-á em segundo lugar, a um juízo probatório de imputabilidade desse crime ao arguido, de modo que os meios de prova legalmente admissíveis e que foram até então produzidos, ao conjugarem-se entre si, conduzam à imputação desse(s) facto(s) criminoso(s) ao arguido. Por último efetuar-se-á um juízo de prognose condenatório, mediante o qual se conclua que predomina uma razoável possibilidade do arguido vir a ser condenado por esses factos e vestígios probatórios, estabelecendo-se sempre um juízo indiciador semelhante ao juízo condenatório a efetuar em julgamento.

Quanto à constitucionalidade da norma do art.º 15º., nº. 3 do D.L. nº 406/74, de 29.08 com referência à obrigatoriedade do pré-aviso.

Previamente importa referir que o D.L. nº 406/74, de 29/08, com as alterações introduzidas pela Lei Orgânica nº 1/2011, de 30 de novembro, dispõe:
Art.º 1.º:
1 — A todos os cidadãos é garantido o livre exercício do direito de se reunirem pacificamente em lugares públicos, abertos ao público e particulares, independentemente de autorizações, para fins não contrários à lei, à moral, aos direitos das pessoas singulares ou colectivas e à ordem e à tranquilidade públicas.
2 — Sem prejuízo do direito à crítica, serão interditas as reuniões que pelo seu objecto ofendam a honra e a consideração devidas aos órgãos de soberania e às Forças Armadas.
Art.º 2.º:
1 — As pessoas ou entidades que pretendam realizar reuniões, comícios, manifestações ou desfiles em lugares públicos ou abertos ao público avisam por escrito e com a antecedência mínima de dois dias úteis o presidente da câmara municipal territorialmente competente.
2 — O aviso deverá ser assinado por três dos promotores devidamente identificados pelo nome, profissão e morada ou, tratando-se de associações, pelas respectivas direcções.
3 — A entidade que receber o aviso passará recibo comprovativo da sua recepção.
Artigo 3º:
1 — O aviso a que alude o artigo anterior deverá ainda conter a indicação da hora, do local e do objecto da reunião e, quando se trate de manifestações ou desfiles, a indicação do trajecto a seguir.
2— As autoridades competentes só poderão impedir as reuniões cujo objecto ou fim contrarie o disposto no artigo 1.º, entendendo-se que não são levantadas quaisquer objecções, nos termos dos artigos 1.º, 6.º, 9.º e 13.º, se estas não forem entregues por escrito nas moradas indicadas pelos promotores no prazo de vinte e quatro horas.
Artigo 13º:
As autoridades referidas no n.º 1 do artigo 2.º, solicitando quando necessário ou conveniente o parecer das autoridades militares ou outras entidades, poderão, por razões de segurança, impedir que se realizem reuniões, comícios, manifestações ou desfiles em lugares públicos situados a menos de 100 m das sedes dos órgãos de soberania, das instalações e acampamentos militares ou de forças militarizadas, dos estabelecimentos prisionais, das sedes de representações diplomáticas ou consulares e das sedes de partidos políticos.
Artigo 15º:
1- As autoridades que impeçam ou tentem impedir, fora do condicionalismo legal, o livre exercício do direito de reunião incorrerão na pena do artigo 291.º do Código Penal e ficarão sujeitas a procedimento disciplinar.
2 — Os contramanifestantes que interfiram nas reuniões, comícios, manifestações ou desfiles e impedindo ou tentando impedir o livre exercício do direito de reunião incorrerão nas sanções do artigo 329.º do Código Penal. Comissão Nacional de Eleições
3 — Aqueles que realizarem reuniões, comícios, manifestações ou desfiles contrariamente ao disposto neste diploma incorrerão no crime da desobediência qualificada.
Donde se segue que os promotores são os autores do impulso inicial, dos preparativos e da organização de uma reunião ou manifestação. São eles que desencadeiam a formação do grupo. Na sua qualidade de dirigentes, determinam o decurso dos trabalhos, decidem a atribuição da palavra, a suspensão, a conclusão e a reabertura da reunião. São os detentores da chamada polícia interna da reunião ou manifestação. Também são os promotores que, em nome próprio, emitem convites, apelam publicamente à reunião ou manifestação, preparam os cenários e os locais, planeiam os meios de transporte e preparam a organização da reunião ou manifestação.
No caso concreto não temos dúvidas, pelos indícios colhidos, que os arguidos identificados nos autos desempenharam essa função.
Posto isto.
A liberdade de reunião e de manifestação é garantida pela Constituição sem necessidade de autorização prévia e sem poder ser submetida a autorização prévia. É uma liberdade fundamental do cidadão o poder reunir-se e manifestar-se livremente, sem necessidade de autorização prévia. Esta liberdade fundamental pode, contudo, ser sujeita a restrições previstas na lei, como forma de conciliar o seu exercício com o exercício de outras liberdades e direitos fundamentais.
O facto de a Constituição garantir a liberdade de reunião e de manifestação sem referir qualquer obrigação de aviso, pode suscitar a questão da constitucionalidade desta exigência da lei ordinária.
O dever de aviso prévio às autoridades limita a liberdade de reunião e de manifestação de uma forma que a doutrina e a jurisprudência dominantes consideram não significativa. A obrigatoriedade de aviso prévio às autoridades competentes tem em vista permitir que as autoridades possam adotar atempadamente as necessárias medidas de prevenção, nomeada mente através da imposição de condições à realização dos eventos que lhes são comunicados, da adoção das medidas necessárias à defesa das posições jurídicas opostas de terceiros e, em geral, da prevenção de perigos para a ordem e segurança públicas (desde logo, através da garantia de uma realização pacífica). Quando haja organização prévia, promotores e tempo suficiente é obrigatório para os promotores efetuar o aviso prévio. Quem faz a avaliação dos riscos e da perturbação que a reunião ou manifestação vai causar é a autoridade e não os promotores. Outro entendimento seria insustentável e redutor, pois iria claramente contra a vontade expressa do legislador e não teria em consideração os fins em vista com o estabelecimento do dever de aviso prévio, "fazendo de quem se manifesta juiz do perigo para a ordem e segurança públicas e para os direitos e interesses legalmente protegidos de terceiros).
Trata-se de assegurar uma concordância prática entre direitos e liberdades fundamentais, já como refere o SR.PGA no seu parecer que aqui se transcreve, por acertado Como salienta Vieira de Andrade “(…) os direitos fundamentais, mesmo os direitos liberdades e garantias, não são absolutos nem ilimitados. Não o são na sua dimensão subjetiva, porque os preceitos constitucionais não remetem para o arbítrio do titular a determinação do âmbito e o grau de satisfação do respetivo interesse, e também porque é inevitável e sistémica a conflitualidade dos direitos de cada um com os direitos dos outros. E, podemos dizê-lo, nunca se sustentou que o fossem, já que mesmo na época liberal-individualista se entendia que os direitos fundamentais (cada um dos direitos e os direitos de cada um) tinham como limite a necessidade de assegurar aos outros o gozo dos mesmos direitos.
Não o são também enquanto valores constitucionais, visto que a constituição não se limita a reconhecer o valor da liberdade: liga os direitos a uma ideia de responsabilidade social e integra-os no conjunto dos valores comunitários.
Assim, além dos limites “internos” do subsistema jusfundamental, que resultam das situações de conflito entre os diferentes valores que representam as diversas facetas da dignidade humana, os direitos fundamentais têm também limites “externos”, pois hão de conciliar as suas naturais exigências com as imposições próprias da vida em sociedade; a ordem pública, a ética ou moral social, a autoridade do Estado, a segurança nacional, entre outros”. 1ANDRADE, José Carlos Vieira de, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Almedina, 2012, 5.ª ed., p. 263 e 264.

Relativamente ao direito de reunião e de manifestação, previsto no art.º 45.º da Constituição, Gomes Canotilho/Vital Moreira referem que “a ilegitimidade constitucional da sujeição de reuniões e manifestações a autorização prévia não proíbe de plano a exigência da comunicação prévia por parte dos seus promotores, a qual aliás se justificará quando a reunião ou manifestação vá decorrer em espaço público (via, praça, etc.), a fim de permitir às autoridades públicas fazer o que delas dependa para que a reunião (ou manifestação) decorra sem incidentes (v.g. regularizar o trânsito, prevenir contramanifestações, garantir a segurança da reunião ou da manifestação). (…)
A comunicação prévia pode ser um instrumento para assegurar a dimensão prestacional ou o dever do estatal de proteção positiva deste direito. 2CONOTILHO, J. J. Gomes, MOREIRA, Vital, Constituição da República Portuguesa, Anotada, 4.ª ed., Coimbra Editora, 2007, art.º 45.º, VI, p. 639 e 640.

O dever de avisar as autoridades competentes recai sobre os promotores, que o deverão fazer com a antecedência mínima de dois dias úteis em relação à data prevista para a realização da reunião ou manifestação. Mas, o dever de avisar' não é aplicável às reuniões ou manifestações espontâneas, que não podem ser proibidas ou dissolvidas apenas pelo facto de não terem sido previamente avisadas. Daí que o art. 15º, n º 3 do D/L n º 406/74 de 29.8 que pune com desobediência qualificada aqueles que realizem reuniões, comícios, manifestações ou desfiles contrariamente ao disposto no referido diploma sob pena de se violar a Constituição da República Portuguesa seja inconstitucional em face do disposto no art. 45º da CRP e art. 11º da CEDH, quando interpretado no sentido de punir como crime as manifestações espontâneas, ver a este respeito Paulo Albuquerque, 2010 b:614 e ainda anot ao art. 304º do C.P., nota 13. P. 1047, in Comentário do Código Penal de Paulo Pinto de Albuquerque, 3ª ed.
Donde, o art. 15º, n º 3 só se aplicará aos promotores e às manifestações organizadas.
No acaso em pareço estamos igualmente perante uma manifestação organizada e não espontânea como se pode extrair da analise da troca dos e mails supra evidenciados.

Para os demais participantes e em circunstâncias restritas, pode aplicar-se o disposto no art. 304º do C.P. que tem apenas a ver com ordem de dispersão da reunião ou manifestação. Isto é a manifestação espontânea só pode ser impedida com ordem de dispersão e, para ser legítima, só se constatar in locu que a mesma é contrária à lei, ordem moral, perturbe grave e efetivamente a ordem e tranquilidades públicas ou o livre exercício dos direitos das demais pessoas ou ofendam a honra e a consideração devidas aos órgãos de soberania e às forças armadas sem prejuízo do direito de critica-art. 5º, n º 1 conjugado como o art. 1º, n º 2 do D/L n º 406/74 e art. 45º do CRP.

Aos agentes policiais compete, fundamentalmente, prevenir a prática de ilícitos e perseguir os ilícitos cometidos durante a reunião ou manifestação. As forças policiais prosseguem as suas funções nos limites da legislação policial e processual-penal, competindo, nomeadamente, às forças policiais velar pelo exercício pacífico da liberdade de reunião e de manifestação de todos os participantes (promotores, dirigentes e participantes em sentido estrito).

Concluindo
A exigência de aviso prévio não afeta o núcleo essencial do direito de reunião e de manifestação.
A falta de aviso prévio só gerará a ilicitude da reunião ou manifestação se no caso concreto houver promotores e condições materiais e de tempo para o aviso prévio.
Noutro caso, a reunião ou manifestação é lícita e não pode ser dissolvida com esse fundamento.
Ora, no caso concreto os promotores, incluindo-se aqui o recorrido, sabiam e conheciam que era preciso o aviso prévio para a manifestação. Foram advertidos da sua necessidade e mesmo assim cientes de tal necessidade e que o aviso que fizeram não reunia as condições legais, dois dias úteis de antecedência, decidiram, mesmo assim, realizar a manifestação que tinha a ver as propinas.
Nas circunstâncias descritas, os promotores tinham condições materiais e tempo, para cumprirem com aquele prazo, nomeadamente noutro dia, não tendo apresentado qualquer justificação para o não fazer.
Não pode, pois, o recorrente alegar desconhecer a ilicitude do seu comportamento.
Ele sabia que para organizar uma manifestação tinha que fazer o aviso prévio a fim de que a autoridade administrativa competente averiguasse da existência de condições para o respeito da ordem e tranquilidades públicas. Advertido do incumprimento do prazo, o recorrido mesmo assim decidiu organizar e realizar a manifestação em causa.

Perante estas circunstâncias não temos dúvidas que o recorrente e demais promotores ao não cumprirem com o aviso prévio não cumpriram com a lei, pelo que nos termos do D/L poderão ter incorrido na prática de um crime de desobediência qualificada tal como o estipula o art. 15º, n º 3 do D/L n º 406/74 já citado.
Tanto mais, como assevera o Sr. PGA “(…) – A interdição, para o seu normal funcionamento, de manifestações a menos de 100 metros das sedes dos órgãos do Estado, das regiões autónomas ou das autarquias locais, das instituições militares e de representações diplomáticas (…)”Miranda, Jorge, Medeiros, Rui, Constituição Portuguesa Anotada,volI, UCE, 2ª ed., 2017, art. 45º, xvi, p.688.
Importa referir, embora não seja expressamente referido na acusação, que o local onde ocorreu a concentração de estudantes, “em frente à ..., sita na praça ..., no Faculdade 1...”, fica situada, a menos de 100 metros do quartel da G.N.R. (Guarda Nacional Republicana).
E, sendo, os oficiais, sargentos e praças dos quadros permanentes da Guarda Nacional Republicana, em qualquer situação, militares, como decorre do art.º 4.º do Código de Justiça Militar, aprovado pela Lei n.º 100/2003, de 15 de novembro, a localização do evento, a menos de 100 metros do quartel da GNR, sempre determinaria a obrigatoriedade de comunicação, atempada, da aludida “concentração de estudantes”, como resulta do art.º 13.º º do D.L. n.º 406/74, de 29.08.

Contudo, uma coisa é o não acatamento da lei no sentido de ser fazer com a devida antecedência o aviso de uma manifestação organizada pelos seus promotores e outra é a efetivação da manifestação, que pode ou não manter-se consoante ponha ou não em causa o disposto no art. 5º do D/L citado.

De facto, em ordem a respeitar-se o art. 45º da CRP, não pode haver dissolução da manifestação, ainda que o promotor não tenha feito o aviso prévio enquanto a reunião ou manifestação não espontâneas puderem ser consideradas pacíficas e não perturbarem relevantemente a ordem e segurança públicas.

No Estado de direito democrático as forças policiais não podem dissolver uma reunião ou manifestação apenas para 'disciplinar" os promotores, isto é, a dissolução de uma reunião ou manifestação não deve ser um meio de punição ou de imposição do dever de avisar as autoridades competentes. No Estado de direito, só a perigosidade direta para a ordem e segurança públicas poderá ser fundamento de dissolução de reunião ou manifestação em lugar público ou aberto ao público.
No entanto, do facto de não ter havido aviso prévio, ou de este ter ocorrido tardiamente, poderá resultar uma perigosidade direta para a ordem e segurança públicas, por exemplo se a autoridade competente não tiver tempo suficiente para adotar as medidas necessárias de prevenção ou minimização do perigo, daí que se possa entender que a cominação com desobediência qualificada estabelecida no citado D/L n º 406/74 seja ainda mais premente do que nos casos em que com aviso prévio, a autoridade fundadamente, no cumprimento estrito do art. 5º do citado D/L, não autorize a realização da manifestação.
Neste último caso, se depois de avaliada a situação, a autoridade administrativa em decisão fundamentada entende que a manifestação desrespeita a ordem e tranquilidade públicas, pelas características e teor que lhes foram transmitidas pelos então promotores da mesma, estes ficam imediatamente sujeitos ao disposto no art. 348º, n º 2 do C.P se a realizarem, independentemente de ser dada a ordem de dispersão.
No caso dessa ordem de dispersão surgir sustentada na decisão de não autorização, aplicar-se o disposto no art. 304º, n º 2 do C.P por ser norma especial e estar em situação de concurso aparente, prevalecendo.

Todavia, nos casos em que não ocorreu aviso prévio, havendo condições para tal e em que não tenha sido feita a pré-avaliação da manifestação, desconhecendo-se se a mesma viola o disposto no citado art. 5º, inexistindo decisão de “autorização”, nestes casos poderia equacionar-se a existência da prática de um crime de desobediência qualificada do art. 15º do cit. D/L dos promotores com punição prevista no art. 348º, n º 2 do C.P.

De todo o modo, a autoridade policial ou outra entidade administrativa competentes não poderão inviabilizar, desmobilizando, mesmo assim, a manifestação se esta respeitar a ordem e tranquilidade públicas. Caso não exista a constatação dessa perturbação, não pode ser dada ordem de dispersão e ser impedida a manifestação sob pena de se violar a Constituição da Republica Portuguesa no seu art. 45º.
Apenas responderão os promotores pelo crime de desobediência qualificada do art. 348º, nº 2 do C.P.
Todavia, se in locu a autoridade policial constatar que tal manifestação é contrária à lei, ordem moral, perturbe grave e efetivamente a ordem e tranquilidades públicas ou o livre exercício dos direitos das demais pessoas ou ofenda a honra e a consideração devidas aos órgãos de soberania e às forças armadas sem prejuízo do direito de critica-art. 5º, n º 1 conjugado como o art. 1º, n º 2 do D/L n º 406/74 e na sequência emitir ordem de dispersão junto dos promotores, por força do regime especial previsto no art. 304º, nº2 do C.P será este o regime a aplicar.
Para os demais manifestantes aplicar-se-á o disposto no art. 304º, n º 1 do C.P.
Importará referir a curiosidade de o art. 304º, n º 2 do C.P. (desobediência a ordem de dispersão de reunião pública) cominar com a mesma pena, prisão até 02 anos ou pena de multa até 240 dias, que dispõe o art.348º, n º 2 do C.P (desobediência).
Donde resulta a nosso ver, que atendendo aos bens jurídicos em causa no art. 304º do C.P., paz pública e acessoriamente a autonomia intencional do Estado, este constitui uma forma especial do crime previsto no art. 348º do C.P.

A reunião ou manifestação não previamente comunicada às autoridades só viola a lei se no caso concreto houver condições práticas e tempo suficiente para essa comunicação prévia.
Já tivemos ocasião de dizer que existiam essas condições.

No caso concreto, não houve aviso prévio. Ou melhor, houve aviso, mas não foi cumprido a antecedência dos dois dias úteis 48 horas. E havia tempo para isso na medida em que foi organizada e não espontânea. Houve de facto um comportamento ilegal da parte dos promotores, porque não cumpriram com o disposto no D/L citado. E este sanciona-o claramente como crime de desobediência qualificada que só pode ser o do art. 348º, n º 2 do C.P.
O citado D/L é claro no seu art. 15º, n º 3.

Como resulta do auto de notícia, a normalidade dos acontecimentos no exercício de uma liberdade fundamental comprovou-se também pelo facto de não ter havido perturbação da ordem e segurança públicas justificativas de ordem de dispersão.
As autoridades policiais não só não deram ordem de dispersão como, pelo contrário, registaram o comportamento cívico adequado dos presentes.

O processo judicial subjacente ao caso em apreço assentou apenas no incumprimento de um alegado dever dos arguidos comunicarem previamente, e com a devida antecedência, às autoridades a realização da manifestação, na sua qualidade de promotores.
A exigência formal pela lei ordinária de comunicação prévia não pode servir para impedir ou dificultar o exercício da liberdade fundamental de reunião e de manifestação. Esta exigência formal tem apenas em vista a criação de condições para que a liberdade se exerça em ordem e segurança e sem impedir ou pôr em causa o exercício de direitos e liberdades de terceiros.
A exigência formal de comunicação prévia justifica-se quando haja condições para a sua realização, mas não pode ter um efeito prático equivalente a uma autorização prévia.
A Constituição garante a liberdade de reunião e manifestação sem autorização prévia e sem comunicação prévia. A autorização prévia é completamente proibida; a comunicação prévia pode ser admitida, quando se verifiquem determinados pressupostos previstos na lei.
A manifestação espontânea ou organizada sem aviso prévio só pode ser dispersa se impedir ou dificultar substancialmente o exercício de outros direitos ou liberdades com eventual risco grave para bens jurídicos fundamentais (por exemplo o acesso a um hospital).
No caso em apreço a manifestação desenrolou -se ordeiramente e sem pôr em causa direitos e liberdades de terceiros. Não houve ordem de dispersão e tudo decorreu dentro da normalidade. A propósito ver Revista do Ministério Público nº 139, Critica de jurisprudência, pág. 257, liberdade de reunião e de manifestação comentário ao acórdão do TRG, proc. nº 2264/06.7TAGMR.G1 de 11.11.2009

O juiz a quo fundamenta a sua decisão no facto de não ter havido uma ordem ou mandado-
Efetivamente o art. 348º do C.P consuma-se com a prática do ato cuja omissão foi ordenada ou omissão do ato cuja prática foi ordenada.
Sendo elementos constitutivos do tipo: a ordem ou mandado; a legalidade substancial e formal da ordem ou do mandado; competência da autoridade ou funcionário para a sua emissão; regularidade da sua transmissão ao destinatário; existência de uma disposição legal que comine a punição da desobediência simples ou qualificada ou; na ausência de tal disposição legal, a cominação, expressa pelo emitente da prática de crime de desobediência simples, em caso de não acatamento da ordem ou mandado, Ver A. RG de 06.02.17, proc. n º 37/14.2GAVRM.G1.
No caso dos autos a autoridade policial refere no seu auto de notícia que o organizador AA, ora recorrente, foi elucidado de que “relativamente à concentração que iriam realizar, se o fizessem incorriam em desobediência ao estipulado no art. 2º do D/L n º 406/74 de 24 de agosto ou seja a realização de manifestação/concentração/desfiles deve ser comunicada com a antecedência mínima de dois dias úteis, ficando este ciente e disse que a mesma se iria realizar.
Mais informo que a mesma realizou se na Praça ..., em frente à ..., sem alterações de ordem pública nem causando restrições à circulação do trânsito em geral.”
Mostra-se assim presente uma advertência da prática do crime de desobediência caso se realizasse a manifestação, sendo certo que neste caso não seria necessária a cominação uma vez que tal desobediência está expressamente prevista na lei.
De todo o modo quer do procedimento administrativo quer da intervenção policial resulta que as autoridades demonstraram claramente aos promotores que não estava a ser respeitado o prazo exigido, ou seja, o cumprimento da formalidade legal do aviso prévio de dois dias úteis.

Será constitucional a previsão do art. 15º, n º 3 do D/L n º 406/74?

Segundo Jorge Miranda “o prévio é mero condicionalismo ou requisito procedimental, cuja falta não envolva a ilicitude do comportamento dos manifestantes; e nem sequer corresponde a crime de desobediência qualificada, apesar do DL assim qualificar qualquer atuação contra o que dispõe (art.º 15º, n.º 3), pois a desobediência qualificada é desobediência a uma ordem ou mandado (art.º 348.º do CP), e não a uma norma jurídica (…)” MIRANDA, Jorge, MEDEIROS, Rui, Constituição Portuguesa Anotada, vol. I, UCE, 2ª ed., 2017, art.º 45.º, XVI, p. 688.

Sabemos que não tinha que haver ordem de dispersão, porquanto, esta sim, seria ilegal, uma vez que a manifestação era pacífica e sem perturbação da ordem, mas havia determinação policial de que se se fizesse a manifestação a mesma era ilegal. E também não podiam proibir a manifestação por não ter havido pré-aviso. Restava à autoridade policial apenas a constatação da sua realização e advertência que foi feita. Certo é que não houve uma ordem ou mandado expresso de não realização da manifestação nem tal consta da acusação.

Nos termos do art.º 18º nº 2, da Constituição, a restrição dos direitos, liberdades e garantias carecem de autorização constitucional expressa. Existem, no entanto, variadíssimos preceitos constitucionais, como é o caso do art. 45º, que estipula “1. Os cidadãos têm o direito de se reunir, pacificamente e sem armas, mesmo em lugares abertos ao público, sem necessidade de qualquer autorização. 2. A todos os cidadãos é reconhecido o direito de manifestação.”
Contudo, o art. 270º-3 da CRP (Restrições ao exercício de direitos) da Constituição, introduzido com a revisão constitucional de 1982, tornou de forma expressa a admissibilidade de restrições ao exercício do direito de manifestação. Este artigo contém uma particularização ao regime das restrições nos direitos, liberdades e garantias.

Deste modo, o confronto constitucional entre o direito de reunião e de manifestação e o DL 406/74, que regulamenta estes direitos, não causa qualquer impedimento à implementação de limitações por via legal aos mesmos.

Todavia, na ausência de aviso prévio e tendo havido condições para se ter feito, viola-se a lei, mas proceder à interrupção automática de uma manifestação por falta de aviso prévio equivale obrigatoriamente a uma pena desnecessária e desproporcional sobre todos os participantes, sendo que este ato constitui uma violação do princípio da proibição do excesso, nos termos do art. 18., n.º 2 da CRP.
Deve a falta de aviso prévio ser sancionada com desobediência qualificada?
Vejamos o conteúdo do Decreto-Lei n.º 406/74 de 29 de Agosto.
“A fim de dar cumprimento ao disposto no Programa do Movimento das Forças Armadas, B, n.º 5, alínea b);
Usando da faculdade conferida pelo n.º 1, 3.º, do artigo 16.º da Lei Constitucional n.º 3/74, de 14 de Maio, o Governo Provisório decreta e eu promulgo, para valer como lei, o seguinte:
Artigo 1.º - 1. A todos os cidadãos é garantido o livre exercício do direito de se reunirem pacificamente em lugares públicos, abertos ao público e particulares, independentemente de autorizações, para fins não contrários à lei, à moral, aos direitos das pessoas singulares ou colectivas e à ordem e à tranquilidade públicas.
2. Sem prejuízo do direito à crítica, serão interditas as reuniões que pelo seu objecto ofendam a honra e a consideração devidas aos órgãos de soberania e às Forças Armadas.
Art. 2.º - 1. As pessoas ou entidades que pretendam realizar reuniões, comícios, manifestações ou desfiles em lugares públicos ou abertos ao público deverão avisar por escrito e com a antecedência mínima de dois dias úteis o governador civil do distrito ou o presidente da câmara municipal, conforme o local da aglomeração se situe ou não na capital do distrito.
2. O aviso deverá ser assinado por três dos promotores devidamente identificados pelo nome, profissão e morada ou, tratando-se de associações, pelas respectivas direcções.
3. A entidade que receber o aviso passará recibo comprovativo da sua recepção.
Art. 3.º - 1. O aviso a que alude o artigo anterior deverá ainda conter a indicação da hora, do local e do objecto da reunião e, quando se trate de manifestações ou desfiles, a indicação do trajecto a seguir.
2. As autoridades competentes só poderão impedir as reuniões cujo objecto ou fim contrarie o disposto no artigo 1.º, entendendo-se que não são levantadas quaisquer objecções, nos termos dos artigos 1.º, 6.º, 9.º e 13.º, se estas não forem entregues por escrito nas moradas indicadas pelos promotores no prazo de vinte e quatro horas.
Art. 4.º Os cortejos e desfiles só poderão ter lugar aos domingos e feriados, aos sábados, depois das 12 horas, e nos restantes dias, depois das 19 horas e 30 minutos.
Art. 5.º - 1. As autoridades só poderão interromper a realização de reuniões, comícios, manifestações ou desfiles realizados em lugares públicos ou abertos ao público quando forem afastados da sua finalidade pela prática de actos contrários à lei ou à moral ou que perturbem grave e efectivamente a ordem e a tranquilidade públicas, o livre exercício dos direitos das pessoas ou infrinjam o disposto no n.º 2 do artigo 1.º
2. Em tal caso, deverão as autoridades competentes lavrar auto em que descreverão «os fundamentos» da ordem de interrupção, entregando cópia desse auto aos promotores.
Art. 6.º - 1. As autoridades poderão, se tal for indispensável ao bom ordenamento do trânsito de pessoas e de veículos nas vias públicas, alterar os trajectos programados ou determinar que os desfiles ou cortejos se façam só por uma das metades das faixas de rodagem.
2. A ordem de alteração dos trajectos será dada por escrito aos promotores.
Art. 7.º As autoridades deverão tomar as necessárias providências para que as reuniões, comícios, manifestações ou desfiles em lugares públicos decorram sem a interferência de contramanifestações que possam perturbar o livre exercício dos direitos dos participantes, podendo, para tanto, ordenar a comparência de representantes ou agentes seus nos locais respectivos.
Art. 8.º - 1. As pessoas que forem surpreendidas armadas em reuniões, comícios, manifestações ou desfiles em lugares públicos ou abertos ao público incorrerão nas penalidades do crime de desobediência, independentemente de outras sanções que caibam ao caso.
2. Os promotores deverão pedir as armas aos portadores delas e entregá-las às autoridades.
Art. 9.º As autoridades referidas no artigo 2.º deverão reservar para a realização de reuniões ou comícios determinados lugares públicos devidamente identificados e delimitados.
Art. 10.º - 1. Nenhum agente de autoridade poderá estar presente nas reuniões realizadas em recinto fechado, a não ser mediante solicitação dos promotores.
2. Os promotores de reuniões ou comícios públicos em lugares fechados, quando não solicitem a presença de agentes de autoridade, ficarão responsáveis, nos termos legais comuns, pela manutenção da ordem dentro do respectivo recinto.
Art. 11.º As reuniões de outros ajuntamentos objectos deste diploma não poderão prolongar-se para além das 0,30 horas, salvo se realizadas em recinto fechado, em salas de espectáculos, em edifícios sem moradores ou, em caso de terem moradores, se forem estes os promotores ou tiverem dado o seu assentimento por escrito.
Art. 12.º Não é permitida a realização de reuniões, comícios ou manifestações com ocupação abusiva de edifícios públicos ou particulares.
Art. 13.º As autoridades referidas no n.º 1 do artigo 2.º, solicitando quando necessário ou conveniente o parecer das autoridades militares ou outras entidades, poderão, por razões de segurança, impedir que se realizem reuniões, comícios, manifestações ou desfiles em lugares públicos situados a menos de 100 m das sedes dos órgãos de soberania, das instalações e acampamentos militares ou de forças militarizadas, dos estabelecimentos prisionais, das sedes de representações diplomáticas ou consulares e das sedes de partidos políticos.
Art. 14.º - 1. Das decisões das autoridades tomadas com violação do disposto neste diploma cabe recurso para os tribunais ordinários, a interpor no prazo de quinze dias, a contar da data da decisão impugnada.
2. O recurso só poderá ser interposto pelos promotores.
Art. 15.º - 1. As autoridades que impeçam ou tentem impedir, fora do condicionalismo legal, o livre exercício do direito de reunião incorrerão na pena do artigo 291.º do Código Penal e ficarão sujeitas a procedimento disciplinar.
2. Os contramanifestantes que interfiram nas reuniões, comícios, manifestações ou desfiles e impedindo ou tentando impedir o livre exercício do direito de reunião incorrerão nas sanções do artigo 329.º do Código Penal.
3. Aqueles que realizarem reuniões, comícios, manifestações ou desfiles contrariamente ao disposto neste diploma incorrerão no crime da desobediência qualificada.
Art. 16.º - 1. Este diploma não é aplicável às reuniões religiosas realizadas em recinto fechado.
2. Os artigos 2.º, 3.º e 13.º deste diploma não são aplicáveis às reuniões privadas, quando realizadas em local fechado mediante convites individuais.
Visto e aprovado em Conselho de Ministros. - Vasco dos Santos Gonçalves - Manuel da Costa Brás - Francisco Salgado Zenha.
Visto e aprovado em Conselho de Estado.
Promulgado em 27 de Agosto de 1974.

Da análise ao diploma que regula o exercício do direito de manifestação, Decreto-Lei 406/74 de 29 de agosto, verificamos que o n.º 3, do artigo 15.º, estabelece "Aqueles que realizarem reuniões, comícios, manifestações ou desfiles contrariamente ao disposto neste diploma incorrerão no crime da desobediência qualificada", por referência ao corpo do D/L a letra da lei é clara, entendendo nós que não se apresenta vaga e sendo que de todo o D/L, que tem apenas 16 artigos e destes alguns deles têm cominações penais próprias, o art. 15º aplicar-se-á a apenas alguns dos artigos que são claros e explícitos na sua tipologia quanto àquilo que deve e não deve ser feito pelos promotores, pelo que não se viola o principio da previsibilidade das normas penais, decorrência do principio da legalidade (nullun crimen, nullum poena sine lege), segundo o qual, só pode haver crime e pena se existir uma norma precisa, escrita, prévia e certa de carácter geral e abstrato, conforme o n.º 3 do artigo 18.º da CRP.
Pode colocar-se a questão da violação do princípio da proibição do excesso, nos termos do n.º 2, do artigo 18º da CRP no que diz respeito à questão à penalização da ausência do aviso prévio.
O princípio da proporcionalidade ocupa um lugar central no nosso ordenamento jurídico-constitucional, no que diz respeito ao controlo dos atos do poder público, nomeadamente na avaliação da conformidade constitucional das restrições de direitos fundamentais. De acordo com o n.o 2 do artigo 18.o da Constituição, tais restrições devem «limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos e interesses constitucionalmente protegidos». É à luz deste preceito que terá lugar a aplicação dos três subprincípios em que se desdobra o princípio da proporcionalidade: idoneidade (ou adequação), necessidade (ou indispensabilidade) e justa medida (ou proporcionalidade em sentido estrito).
O princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso ainda é convocável por uma outra via, independentemente da restrição de um direito fundamental.
O princípio da proporcionalidade pode ser aplicável ao caso, enquanto princípio geral de direito conformador dos atos do poder público, decorrente do princípio do Estado de Direito consagrado no artigo 2.º da Constituição.
Com efeito, como foi afirmado pelo Tribunal Constitucional no Acórdão nº 187/2001, do Plenário, ponto 15, se, no que respeita «às restrições a direitos, liberdades e garantias, a exigência de proporcionalidade resulta do artigo 18º, nº 2, da Constituição da República», para além desse âmbito «o princípio da proporcionalidade, enquanto princípio geral de limitação do poder público, pode ancorar-se no princípio geral do Estado de Direito». Efetivamente, «impõem-se, na realidade, limites resultantes da avaliação da relação entre os fins e as medidas públicas, devendo o Estado-legislador e o Estado- administrador adequar a sua projetada ação aos fins pretendidos, e não configurar as medidas que tomam como desnecessária ou excessivamente restritivas». A afirmação do princípio da proporcionalidade como princípio fundamental geral da ordem constitucional da República Portuguesa, decorrente do princípio do Estado de direito democrático consagrado no artigo 2º da Constituição, limitando o poder público na sua liberdade de atuação mesmo fora do âmbito do artigo 18º, nº 2, tem vindo a ser reafirmado pela jurisprudência do Tribunal Constitucional (cfr., por exemplo, os Acórdãos nº 205/2000, da 2.a Secção, ponto 8º, n º491/2002, do Plenário, ponto c), nº 73/2009, da 3.a Secção, ponto 7).
Como referido no Acórdão nº 651/2009, do Plenário, ponto 5: «o princípio [da proporcionalidade ou da proibição do excesso] decorre antes do mais das próprias exigências do Estado de direito a que se refere o artigo 2º da Constituição, por ser consequência dos valores de segurança nele inscritos.
Tendo assim a proibição do excesso uma sede material que se revela bem mais vasta do que aquela que é coberta pelas suas referências textuais explícitas, natural é que ela possa ser invocada como parâmetro constitucional em outras situações, que não apenas as referentes, nomeadamente, às leis restritivas de direitos, liberdades e garantias. É que o princípio vale, não apenas como limite constitucional das ações do legislador, mas como limite das atuações de todos os poderes públicos; e, quanto à função legislativa, não vinculará apenas aquela que se cifrar em instituição de restrições aos direitos, liberdades e garantias. Como os direitos fundamentais desempenham, no nosso ordenamento jurídico, também uma importante função valorativa ou objetiva, por certo que o princípio poderá ser invocado como instrumento de ponderação sempre que estiverem em causa valores jusfundamentais que entre si, objetivamente, conflituem. Ponto é, no entanto, que se tenha demonstrado previamente que, ainda nessas situações, o legislador, não agindo no âmbito da sua liberdade de conformação política, se encontrava constitucionalmente vinculado a decidir de um certo modo, e não de outro, o conflito entre os bens ou valores em colisão.»
No Acórdão nº 387/2012, do Plenário, ponto 9.1., reconhece-se que é certo que «as decisões que o Estado (lato sensu) toma têm de ter uma certa finalidade ou uma certa razão de ser, não podendo ser ilimitadas nem arbitrárias e que esta finalidade deve ser algo de detetável e compreensível para os seus destinatários. O princípio da proibição de excesso postula que entre o conteúdo da decisão do poder público e o fim por ela prosseguido haja sempre um equilíbrio, uma ponderação e uma justa medida e encontra sede no artigo 2º da Constituição. O Estado de direito não pode deixar de ser um Estado proporcional».
É a esta luz, de um Estado enformado pela ideia de Direito de onde decorre a proibição do excesso, da atuação arbitrária ou injusta do Estado, da adoção de soluções de desnecessárias ou excessivamente onerosas ou restritivas, que a questão de constitucionalidade se pode então colocar.
Nesse contexto, a questão que poderia subsistir seria saber se a cominação com crime de desobediência qualificada por não ter sido cumprido o prazo de pré-aviso previsto no art. 2º, n º 1 do D/L n º 406/74, não violará a proibição do excesso sendo, por isso, inconstitucional. Ver Acórdão TC n º 260/2020 de 13.05.20.
Resta, assim, analisar se a norma referida respeita todas as dimensões do princípio da proporcionalidade, designadamente os subprincípios da adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.
E de facto, propendemos para a excessividade da aplicação da cominação do crime de desobediência grave para regras que não tendo a ver com a substância regem procedimentos de natureza administrativa.
Não colhe qualquer desproporção aplicar o crime de desobediência qualificada a entidades que realizem manifestações em lugares públicos com fins contrários à lei, moral, aos direitos das pessoas singulares e coletivas e à ordem e tranquilidades públicas ou que ofendam a honra e consideração dos órgãos de soberania e Forças armadas-art.º 1º, n º 1 e 2 ou que não recolham armas e as não entreguem às autoridades, art. 8º, n º 2, se realizem para além dos horários, art. 11º, com ocupação abusiva de edifícios públicos ou particulares, art. 12º, ou se realizem próximo de sedes de órgãos de soberania, instalações militares, estabelecimentos prisionais, embaixadas e instalações consulares e sedes de partidos políticos, art. 13º, todo do D/L n º 406/74.
Todavia, é manifestamente desproporcional condenar alguém com desobediência qualificada por não ter efetuado o aviso prévio com antecedência de dois dias úteis ainda para mais em situação de manifestação que não viole o disposto no art.1º do cit. D/L. Tratar-se-ia de uma pena desnecessária e desproporcional, constituindo uma violação do princípio da proibição do excesso, nos termos do art. 18º, n.º 2 da CRP.
Nestes casos apesar da ilegalidade, por força do princípio constitucional da desproporção, o comportamento não pode ser sancionado nos termos prescritos, ficando em branco, dado que o disposto no art. 15º, n º 3 do D/L não se deve aplicar às regras procedimentais de carácter adjetivo, mas sim às questões de natureza substantiva ali previstas, embora não fosse despiciendo que o legislador ordinário clarificasse melhor a questão no âmbito penal ou contraordenacional.
Faz-se, pois, uma interpretação restritiva do art. 15º, n º 3 do D/L.
Ainda e sem prejuízo, o art. 348º, n º 2 do C.P.-punição em casos de desobediência qualificada- pressupõe sempre uma ordem ou mandado legítimos de autoridade competente. Uma prévia ordem ou mandado, impondo uma determinada conduta (dever de ação ou de omissão) em termos concretamente definidos, previstos nos seus nº 1.
A ordem e o mandado devem ser emanados de autoridade ou funcionário competente. (…) no caso previsto no n.º 1, al. b), como no caso da al. a), é condição sine qua non do crime a previsão legal do poder da autoridade pública ou do funcionário para dar uma ordem ou emitir um mandado, residindo a diferença entre uma e outra alínea apenas na circunstância de essa mesma lei prever ou não prever a consequência jurídico criminal para o destinatário da ordem que não obedeça”. ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de, Comentário do Código Penal, 3.ª ed., 2015, UCE, art.º 348.º, nota 9, p. 1105.
Na jurisprudência salienta-se o Ac. TRP de 26-02-2014, CJ, 2014, T1, pág.220, no qual se entendeu;
Cometeram um crime de desobediência os responsáveis pelas ações dos membros do piquete de greve, que assim se identificaram perante a GNR; e que, intimados por esta a abandonarem a linha de circulação do comboio e permitirem o início da marcha deste, já a isso autorizado, sob pena de não o fazendo, incorrerem na prática deste crime, permaneceram nas linhas férreas em que se encontravam, impedindo, desse modo, a circulação ferroviária.
Elemento essencial do crime de desobediência, como aliás consta da redação do tipo legal (art.º 304º e 348.º do CP), é o facto de ter havido uma “ordem ou mandado legítimo, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente”.
Não só tal elemento típico não consta da acusação, como bem se refere no despacho recorrido, como a desobediência não pode ser diretamente à norma- a desobediência qualificada é desobediência a uma ordem ou mandado (art.º 348.º do CP), e não a uma norma jurídica.
De facto, a acusação não refere qual a ordem que foi dada pelos agentes da PSP, presentes no local, e que não foi cumprida.
A acusação apenas refere que “os agentes da PSP que se dirigiram ao local terem informado o arguido AA de que incorriam na prática de um crime de desobediência qualificada”.
E, depois, que “este afirmou que a concentração iria realizar-se, o que veio a acontecer, tendo a concentração terminado cerca das 16h08m”.
Porém, da acusação não constam os elementos essenciais do crime de desobediência que são; - a existência de uma ordem legítima por parte de autoridade competente para o efeito; e - a não obediência a essa ordem.
A acusação não refere, claramente, se foi dada aos arguidos, designadamente ao arguido AA, uma qualquer ordem, qual o seu conteúdo e se a mesma foi ou não cumprida.

Em suma, em face da matéria de facto indiciariamente provada e pelas razões aduzidas pelo tribunal a quo a que acrescem as nossas é manifestamente insuficiente permitir a conclusão que o arguido praticou o crime desobediência qualificada de que vinha acusado.
A decisão a quo espelha uma interpretação correta e adequada dos elementos de prova recolhidos nos autos, e que permitiram ao Tribunal a quo concluir, fundamentada e legalmente, pela insuficiência de indícios.

Decidiu, assim, o Mm.º Juiz de instrução a quo, em obediência aos factos indiciados e ao Direito aplicável, pelo que o recurso apresentado pelo M.P. será julgado integralmente improcedente.

Decisão.
Acordam em conferência na Primeira Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em julgar totalmente improcedente o recurso interposto pelo M.P. mantendo a decisão instrutória de não pronúncia.
Sem custas por não serem devidas pelo M.P.
Notifique.

Sumário:
(Da exclusiva responsabilidade do relator)
O confronto constitucional entre o direito de reunião e de manifestação e o DL 406/74, que regulamenta estes direitos, não causa qualquer impedimento à implementação de limitações por via legal aos mesmos, nomeadamente no que diz respeito à exigência de aviso prévio para manifestações organizadas.
A exigência formal pela lei ordinária de comunicação prévia não pode servir para impedir ou dificultar o exercício da liberdade fundamental de reunião e de manifestação. Esta exigência formal tem apenas em vista a criação de condições para que a liberdade se exerça em ordem e segurança e sem impedir ou pôr em causa o exercício de direitos e liberdades de terceiros.

O n.º 3, do artigo 15.º, por referência ao corpo do D/L cuja letra da lei é clara, não se apresenta vago aplicando-se a apenas alguns dos artigos que são claros e explícitos na sua tipologia quanto àquilo que deve e não deve ser feito pelos promotores, não violando o princípio da previsibilidade das normas penais, decorrência do princípio da legalidade (nullun crimen, nullum poena sine lege).

Contudo, é manifestamente desproporcional condenar alguém com desobediência qualificada por não ter efetuado o aviso prévio com antecedência de dois dias úteis em situação de manifestação que não viole o disposto no art.1º do cit. D/L.
Propendemos para a excessividade da aplicação da cominação do crime de desobediência grave para regras que não tendo a ver com a substância regem procedimentos de natureza administrativa.
Tratar-se-ia de uma pena desnecessária e desproporcional, constituindo uma violação do princípio da proibição do excesso, nos termos do art. 18º, n.º 2 da CRP.
Elemento essencial do crime de desobediência, como aliás consta da redação do tipo legal (art.º 304º e 348.º do CP), é o facto de ter havido uma “ordem ou mandado legítimo, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente”.
Da acusação não constam os elementos essenciais do crime de desobediência que são; - a existência de uma ordem legítima por parte de autoridade competente para o efeito; e - a não obediência a essa ordem.
A desobediência qualificada é desobediência a uma ordem ou mandado (art.º 348.º do CP), e não a uma norma jurídica.
A acusação não refere, claramente, se foi dada aos arguidos, designadamente ao arguido AA, uma qualquer ordem, qual o seu conteúdo e se a mesma foi ou não cumprida.

Porto, 19 de fevereiro de 2022.
(Elaborado e revisto pelo 1º signatário)
Paulo Costa
Nuno Pires Salpico