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INVENTÁRIO PARA SEPARAÇÃO DE MEAÇÕES
DIREITOS DE CRÉDITO DO CABEÇA DE CASAL
INDEMNIZAÇÃO POR CESSAÇÃO DE CONTRATO DE TRABALHO
Sumário
SUMÁRIO (da responsabilidade da Relatora - art. 663.º, n.º 7 do CPC)
1. No inventário para partilha por divórcio, entre cônjuges que foram casados sobre o regime da comunhão geral de bens: a decisão da reclamação à relação de bens que tenha ordenado a eliminação de verbas de direitos de crédito do cabeça de casal sobre o património comum, por ter entendido que os valores investidos no património comum eram bens comuns, ao abrigo do regime de comunhão geral bens, não deve prejudicar a discussão oportuna da relevância dos factos num regime da comunhão de adquiridos para achar os limites do art.1790º do C. Civil. 2. As compensações por cessação de contrato de trabalho, por extinção do posto de trabalho ou por cessação de contrato no âmbito da insolvência da entidade empregadora, achadas com referência à remuneração do trabalhador antes da cessação e ao tempo de antiguidade na empresa, e que apoiam necessariamente a sua subsistência e a economia do casal, nos termos do art.1724º/a) do C. Civil, ex vi do art.1734º do C. Civil, não integram a previsão do art.1733º/1-d)-1ª parte do C. Civil.
Texto Integral
As Juízes da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães acordam no seguinte:
ACÓRDÃO
I. Relatório:
Nos presentes autos para partilha de bens de casamento celebrado sob o regime da comunhão geral de bens e dissolvido por divórcio, instaurado em Cartório Notarial e remetido para o Tribunal, que corre entre A. C. e L. M. e em que este desempenha as funções de cabeça-de-casal: 1. O cabeça de casal apresentou a relação de bens a 17.11.2017, na qual relacionou, para além dos bens móveis e dos bens imóveis, os seguintes “direitos de crédito”:
«A) DIREITOS DE CRÉDITO
Verba n.º 1
Crédito do cabeça-de-casal por amortização total do empréstimo habitação no Banco … relativo ao imóvel descrito na Verba n.º 41, liquidado com dinheiros próprios do Cabeça de Casal, provenientes do quinhão hereditário que lhe foi atribuído da herança do seu pai, liquidação da quantia de ……………………… €143.173,55
Verba n.º 2
Crédito do cabeça-de-casal correspondente a depósito bancário na conta do ex casal do valor ainda recebido herança proveniente do seu pai ………………… €40.000,00
Verba nº3
Bem próprio do Cabeça de casal, proveniente da venda de imóvel adquirido em solteiro e vendido em 31/10/2002 tendo o produto da venda sido aplicado na construção da casa .…..……………….…………………………………………€72.325,70».
2. A requente apresentou reclamação à relação de bens a 23.04.2018, na qual, na parte que interessa ao presente recurso de apelação: 2.1. Reclamou contra as verbas relacionadas de direitos de crédito, referidas em I- 1 supra, nos seguintes termos:
a) Em relação às verbas em geral entendeu que, a estarem relacionadas, deveriam estar indicadas no Passivo:
«79. As verbas identificadas na alínea “a) Direitos de Crédito” (apesar de a Requerente não concordar com as mesmas) deveriam estar relacionadas como passivo, e não como activo, dado que são alegadas dívidas do património comum.».
b) Em relação à verba nº1 entendeu que não pode ter valor superior ao valor de € 47 222,22:
«80. A Requerente admite que parte do empréstimo da habitação verba 41 do activo tenha sido amortizada com dinheiro proveniente do quinhão hereditário do cabeça-de-casal.
81. Todavia o valor indicado não faz sentido, até porque o valor recebido pelo cabeça-de casal de quinhão só ascendeu à quantia de € 47.222,22 conforme se pode constatar pela escritura de Doação e Partilha em Vida outorgada em 06/11/2008 no Cartório Notarial da Dra. M. A. (Doc. 21).
82. Refira-se, para que conste, que o documento de partilha ora junto é um documento autêntico (art. 363º/2 do Código Civil), pelo que tem força probatória plena (art. 371º do Código Civil), não podendo ser colocado em causa com eventual prova testemunhal, a qual é inadmissível para provar convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documentos autênticos, ou qualquer acordo simulatório e negócio dissimulado quando invocado pelos simuladores (art. 393º/2 e 394º/1 e 2, ambos do Código Civil).».
c) Em relação à verba nº2 entendeu que não existe e que deveria ser eliminada:
«83. A verba número 2 da alínea “a) Direitos de Crédito” deve ser eliminada, pois não existe.».
d) Em relação à verba nº3 declarou aceitá-la no valor de € 52 325,70:
«84. Aceita-se parcialmente a verba número 3 da alínea “a) Direitos de Crédito”, mas não no valor mencionado pelo cabeça-de-casal.
85. Com efeito, aquando da compra, ainda em solteiro, do apartamento mencionado na verba n.º 3 da alínea “a) Direitos de Crédito”, o cabeça-de-casal recebeu do irmão R. M., a quantia de € 20.000,00, que aplicou na compra do aludido apartamento,
86. Entretanto o referido valor de empréstimo foi devolvido ao irmão, aos poucos, já após casamento, e com o produto do trabalho dos cônjuges ou seja, com dinheiro comum do casal.
87. Assim, a Requerente aceita a verba em causa, mas apenas no valor de € 52.325,70. 88. Dado o prazo curto para apresentar a presente reclamação, não foi possível à Requerente obter os comprovativos de pagamentos ao irmão do cabeça-de-casal, pelo que protesta juntá-los assim que os obtenha.». 2.2. Pediu o aditamento ao passivo de créditos seus sobre o património comum, por compensações de cessação do contrato de trabalho (no valor de € 35 538,00, por extinção do posto de trabalho na sociedade Garagem Y; e no valor de € 2 400,00, no âmbito da insolvência da sociedade X):
«Indemnizações laborais da Requerente:
89. Durante o tempo que durou o casamento a Requerente recebeu duas indemnizações laborais, como compensação pela cessação dos seus contratos de trabalho, cujos valores foram depositados na conta comum do casal, e utilizados em proveito comum da família.
90. A primeira das quais em 9 de Julho de 2004 na sequência da extinção do seu posto de trabalho na sociedade Garagem Y, SA.
91. O valor recebido foi de € 42.179,06, sendo € 35.538,00 de compensação pela cessação do contrato de trabalho, e o remanescente correspondente a outros créditos, como salários e proporcionais (Doc. 22).
92. O valor em causa foi creditado na conta conjunta do Banco … (à data Banco …) em 13/07/2004 (Doc. 23).
93. A segunda indemnização foi recebida do Fundo de Garantia Salarial da Segurança Social no âmbito da insolvência da sociedade X – Comércio e Reparação de Veículos, Lda (Doc. 23).
94. O valor recebido neste caso foi de € 4.387,24, o qual foi creditado na conta conjunta do casal em 23/09/2014 (Doc. 24).
95. No referido montante, para além de outros créditos laborais, encontra-se incluída uma compensação pela cessação do contrato de trabalho no montante de € 2.400,00 (VD doc. 23)
96. Ora, os montantes recebidos a título de compensação pela cessação do contrato de trabalho, num e noutro caso, são bens próprios da Requerente, por terem uma característica intrinsecamente indemnizatória, sendo por isso incomunicáveis à luz do disposto no art. 1723º n.º 1 alínea d) do Código Civil.
97. Neste sentido vejam-se os seguintes acórdãos: Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 02/10/2007, número de processo 5871/2007-7 (Doc. 25), e Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 10/11/2015, número de processo 2281/11.5TBFIG-B.C1 (Doc. 26).
98. Em suma, deverá o cabeça-de-casal relacionar no passivo um crédito da Requerente sobre o património comum no valor de € 35.538,00 referente à extinção do posto de trabalho na sociedade Garagem Y, e outro de € 2.400,00 referente à insolvência da sociedade X.». 3. O cabeça de casal respondeu à reclamação a 30.09.2020, resposta na qual: 3.1. Em relação à reclamação sobre o relacionamento dos direitos de crédito, defendeu:
«56º
O Cabeça de casal aceita relacionar as verbas sob “direitos de crédito” como passivo a favor do cabeça-de-casal. Importa esclarecer que:
57º
Ambos os empréstimos à habitação foram liquidados com dinheiro proveniente do quinhão hereditário do cabeça de casal, tendo o valor amortizado ascendido a € 143.473,55 (cento e quarenta e três mil, quatrocentos e setenta e três euros e cinquenta e cinco cêntimos).
58º
Valor esse liquidado através de débitos do Banco …, em 13/11/2008, na conta do casal - Conforme tudo melhor se alcança do Extrato Integrado, documento que adiante se junta e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os devidos e legais efeitos sob Doc. n.º 22.
→ Crédito Habitação (CH Proc. …..):
o € 29.048,47 – amortização total;
o € 145,24 – comissão;
o € 5,81 – imposto;
o € 69,22 – juros;
→ Crédito Habitação (CH Proc. …….):
o € 113.580,18 – amortização total;
o € 567,90 – comissão;
o € 22,72 – imposto;
o € 34,01 – juros;
59º
Embora conste da escritura de doação e partilha em vida, quantia inferior, o valor efetivamente recebido do quinhão hereditário do cabeça-de-casal foi de € 225.000,00, conforme é de pleno conhecimento da interessada. – Conforme tudo melhor se alcança do declaração assinada por ambos os membros do casal, em 06/11/2008, documento que adiante se junta e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os devidos e legais efeitos sob Doc. n.º 23.
60º
Tendo esse valor sido pago da seguinte forma, pelo irmão do cabeça de casal:
- Em 06/11/2008, € 157.500,00 (cento e cinquenta e sete mil e quinhentos euros), por transferência bancária; - Conforme tudo melhor se alcança do talão de transferência, onde se descrevem os valores deduzidos ao pagamento do quinhão hereditário, documento que adiante se junta e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os devidos e legais efeitos sob Doc. n.º 24 e vide gratea doc. 22.
- Em 28/12/2002, € 15.000,00 (quinze mil euros), conforme cheque referente a um primeiro empréstimo para as obras da moradia, tendo o valor sido deduzido ao pagamento do valor total do quinhão hereditário; - Conforme tudo melhor se alcança do Cheque no valor de € 15.000,00. documento que adiante se junta e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os devidos e legais efeitos sob Doc. n.º 25.
- Em 15/04/2003, € 12.500,00 (doze mil e quinhentos euros), conforme talão de depósito referente a um segundo empréstimo para as obras da moradia. Igualmente, este valor foi deduzido ao pagamento do valor total do quinhão hereditário; - Conforme tudo melhor se alcança do talão de depósito, no valor de € 12.500,00 documento que adiante se junta e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os devidos e legais efeitos sob Doc. n.º 26.
- Em 26/12/2008, € 40.000,00 (quarenta mil euros), conforme talão de depósito do Banco …, com cheque ….. do Banco …, agência de Ponte de Lima, documento que adiante se junta e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os devidos e legais efeitos sob Doc. n.º 27.
61º
Pelo que não assiste razão à interessada nas alegações vertidas nos artigos 83º a 88º da reclamação apresentada.». 3.2. Em relação ao pedido de aditamento de passivo:
«a) Das alegadas indemnizações laborais da Requerente
62º
Vem a interessada alegar que os valores recebidos a título de indemnizações laborais devem ser relacionados no passivo enquanto crédito da Requerente sobre o património comum.
63º
Contudo, o valor foi recebido pela interessada há mais de 15 anos, tendo sido diluído gradualmente ao longo dos anos, tornando-se um valor irrisório anual, não sendo possível apurar se o mesmo foi utilizado em proveito comum do casal ou para uso pessoal da interessada, motivo pelo qual não podem os mesmos ser imputados ao património comum do casal.». 4. A requerente impugnou documentos juntos pelo cabeça de casal e pronunciou-se sobre um aditamento de despesas. 5. Foi proferido despacho, no qual: 5.1. Consta, na parte que interessa às questões objeto dos recursos de I- 6 e 7 infra: 5.1.1. A seguinte fundamentação geral:
«Cumpre decidir.
Decorre do disposto no art. 1732º do CCivil que “se o regime de bens adoptado pelos cônjuges for o da comunhão geral de bens, o património comum é constituído por todos os bens presentes e futuros dos cônjuges, que não sejam exceptuados por lei”.
(…)
Em caso de divórcio, o casamento dissolve-se, fazendo cessar as relações pessoais e patrimoniais entre os cônjuges, o que implica que, sendo o casamento celebrado sob um qualquer regime de comunhão de bens (comunhão geral ou comunhão de adquiridos), se torna necessário proceder à partilha dos bens comuns do casal.
E, os efeitos do divórcio quanto a estas relações retrotraem-se à data da propositura da acção de divórcio (art. 1788º, 1688.º e 1789º, n.º 1, todos do Código Civil).
O princípio enunciado no nº 1 do art. 1789º do CCivil é o de que os efeitos do divórcio se produzem a partir do trânsito em julgado da sentença, excepção feita às relações patrimoniais entre os cônjuges que, neste aspecto, os efeitos do divórcio se retroagem à data da propositura da acção.
Quer isto dizer que, determinando o divórcio a dissolução do casamento e tudo se passando a partir do trânsito em julgado da sentença que o decretou como se tivesse ocorrido a morte de um dos cônjuges (art. 1788º do CCivil) todavia, no que ao seu relacionamento jurídico-patrimonial diz respeito, esta circunstância tem relevância já a partir do momento em que entra em juízo a intentada acção de divórcio.
A restrição àquela regra geral tem como objectivo (é a “ratio” da lei) evitar que um dos cônjuges seja prejudicado pelos actos de insensatez, de progralidade ou de pura vingança, que o outro venha a praticar, desde a proposição da acção, sobre valores do património comum (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela in “Código Civil Anotado”, IV, pág. 561), ou seja, o princípio de retroactividade consagrado no nº. 1 do art. 1789º do CCivil visa defender cada um dos cônjuges contra delapidações e abusos que o outro possa cometer na pendência da acção (cfr. Prof. Pereira Coelho in “Reforma do Código Civil”, pág. 48).
Por outro lado e como é consabido, o processo de inventário não se destina apenas à partilha de bens, mas à liquidação definitiva das responsabilidades dos cônjuges para com terceiros e das responsabilidades entre os próprios cônjuges.
Pelo que, a composição do património comum é aquela que existia na data da proposição da acção e não em momento anterior e, só os bens (todos) existentes nesse momento devem ser objecto de partilha. In casu, os ex-cônjuges celebraram o seu casamento segundo o regime da comunhão geral de bens e os efeitos do divórcio retroagem ao dia 15.07.2015.».
5.1.2. A seguinte fundamentação no que se refere à reclamação sobre os direitos de crédito do cabeça de casal referidos em I-1 supra:
«Quanto aos alegados pagamentos efectuados com dinheiro proveniente do quinhão hereditário por óbito do pai verificamos que a escritura de doação e partilha em vida celebrada 06.11.2008 não se enquadra nas alíneas a) e b) do nº 1 do art. 1733º do CCivil pelo que consideramos que os pagamentos, a terem ocorrido, foram com dinheiro que constitui bem comum de ambos os cônjuges pelo que o cabeça de casal não tem qualquer crédito a tal respeito.
O mesmo se diga quanto ao produto da venda de um móvel que pertencia ao cabeça de casal antes do casamento pois o mesmo, conforme exposto, também constitui um bem comum e como tal nada é devido ao cabeça de casal a tal respeito.». 5.1.3. A seguinte fundamentação relativamente ao pedido da reclamante de aditamento de duas verbas ao Passivo relacionado na relação de bens:
«No que respeita às indemnizações laborais (€ 42.179,06 relativa à compensação pela cessação do contrato de trabalho na sequência da extinção do seu posto de trabalho e € 4.387,24 relativa à indemnização recebida do Fundo da Garantia Salarial da Segurança Social na sequência da insolvência da entidade patronal) há que apurar se as mesmas se enquadram no art. 1733º, nº 1, al. d) do CCivil que consagra, entre os bens incomunicáveis (portanto, excluídos da comunhão) “as indemnizações devidas por factos verificados contra a pessoa de cada um dos cônjuges ou contra os seus bens próprios”.
Sabemos que não é pacífico que as indemnizações decorrentes da cessação da relação laboral se integrem na mencionada al. d) do art. 1733º do CCivil.
As indemnizações ali previstas visam compensar danos decorrentes de lesões sofridas pela pessoa na respectiva integridade física/psicológica, ou no respectivo património, ao passo que na indemnização por cessação da relação laboral está em causa a compensação do trabalhador pela ruptura da relação laboral e pela instabilidade que, em regra, e durante algum tempo acontecerá na vida quotidiana do trabalhador que poderá ficar, em consequência de tal cessação, sem meios de sustento próprios e, eventualmente, da sua família.
Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, in “Curso de Direito da Família, Volume I, 5.ª Edição, Imprensa da Universidade de Coimbra, pág. 631-632, consideram que as indemnizações recebidas em virtude da cessação do contrato de trabalho têm a qualidade de bem comum.
Dizem aqueles autores que “as somas recebidas vêm substituir os salários “cessantes” que teriam a qualidade de bens comuns; as indemnizações deviam entrar para o património comum”.
Por conseguinte, na esteira do Acórdão da Relação de Évora de 14.01.2021, disponível in www.dgsi.pt, consideramos que tais indemnizações visaram compensar a requerente da ruptura da relação laboral e da perda de salários subsequentes aquela ruptura com os quais contribuiria para a vida familiar, pelo que concluímos que as mesmas integram o património comum dos cônjuges e como tal não devem ser relacionadas.». 5.2. Foi decidida a reclamação, na seguinte versão integral (com sublinhado bold nosso):
«Por tudo o exposto, julgo parcialmente procedente a reclamação apresentada e, em consequência, decido:
a) relacionar as quantias de € 27.723,29 e € 2.841,69;
b) relacionar os certificados de aforro e as quantias depositadas nas contas bancárias à data da propositura da acção de divórcio (15.07.2015);
c) relacionar os seguintes bens:
- descritos nos pontos 52, 53 e 54 da reclamação e o frigorífico de cor branca;
- atoalhados;
- toalha de mesa branca bordada e doze guardanapos;
- carpete do quarto de casal;
- secretária do escritório;
- descritos no ponto 61 da reclamação;
- máquina de cortar relva;
- espreguiçadeiras;
- estendais de jardim;
- pinheiro de Natal;
- peças do presépio;
- cortinados, romanetes e rolos;
- candeeiro de tecto (mencionado no ponto 61 da reclamação);
- frigorífico AEG encastrado; d) eliminar da relação de bens as verbas relacionadas como direitos de crédito e a verba relacionada como passivo;
e) considerar, no que respeita aos créditos decorrentes de IMI, IUC e decorrentes da manutenção da habitação, desde que documentalmente comprovados, a final, no momento da partilha, com vista a ser deduzida à meação da requerente devendo, para o efeito, o cabeça discriminar tais créditos, com indicação dos respectivos montantes e respectivo suporte documental;
f) indeferir, quanto aos dois cadeirões e às máquinas de secar e lavar, por incluídos nas verbas nº 24, 34 e 35 da relação de bens;
g) relegar para a conferência de interessados as questões suscitadas quanto ao valor dos bens relacionados.
Custas do incidente na proporção dos respectivos decaimentos que se fixa em 1/3 para a requerente e 2/3 para o cabeça de casal.». 6. O cabeça de casal recorreu deste despacho referido em I-5 supra, recurso no qual apresentou as seguintes conclusões:
«A) O Apelante, salvo o devido respeito e melhor opinião em contrário, discorda do douto despacho recorrido que julga parcialmente procedente a reclamação apresentada à reclamação de bens e, em especial, na parte em que decide “d)eliminardarelaçãodebensasverbasrelacionadascomodireitosdecrédito”, nomeadamente as verbas de direitos de crédito n.º 1, 2 e 3 relacionados pelo cabeça de casal; B) Fundamenta o tribunal recorrido a sua decisão, emsuma, que aqueles valores representam valores que integram o património comum do casal e que por isso não tem o cabeça de casal qualquer direito de crédito a tal respeito; C) Nos termos do artigo 1734º do Código Civil “são aplicáveis à comunhão geral de bens, com as necessárias adaptações, as disposições relativas à comunhão de adquiridos”, por isso, pertencem também à categoria dos bens excluídos por lei da comunhão, os bens constantes da alínea c) do artigo 1723º do C. Civil; D) Ademais, impõe artigo 1790º do Código Civil que se determine o valor que caberia a cada um dos cônjuges no regime da comunhão de adquiridos, o qual constituirá o valor que caberá a cada um dos cônjuges receber na partilha, após o que se procederá ao preenchimento dos quinhões; E) Não questionamos a comunicabilidade de todos os bens relacionados, porém, face ao regime estatuído pela norma supracitada do artigo 1790º do CC, a origem dos bens relacionados releva para efeitos da determinação do valor da quota-parte que caberá a cada um dos cônjuges na partilha; F) Ora, caso o casamento entre o cabeça de casal e a interessada tivesse sido celebrado segundo o regime da comunhão de adquiridos, o produto da venda do bem imóvel propriedade do cabeça de casal à data do casamento (relacionadosobverban.º3dosdireitosdecréditodarelaçãodebens), bem como os valores recebidos por herança de seu pai (relacionadossobverban.º1e2dosdireitosdecrédito da relação debens), seriam considerados bens próprios deste, nos termos do artigo 1722º, n.º 1, alínea a) e b) do Código Civil; G) Assim, apresentando a relação de bens como se de um regime de comunhão de adquiridos se tratasse, esses valores seriam considerados bens próprios do cabeça-de-casal, pelo que este teria direito a um crédito de compensação, tudo no montante global de € 255.499,25 (duzentos e cinquenta e cinco mil, quatrocentos e noventa e nove euros e vinte e cinco cêntimos); H) Ora, embora o Mm.º Juiz aquo pudesse não relacionar aqueles montantes sob direitos de crédito, dado o regime de bens, sempre terá de os considerar na composição dos quinhões e subtrair aqueles montantes ao quinhão da interessada; I) Uma vez que, caso não sejam tais montantes considerados, estaríamos a permitir que a interessada recebesse mais nesta partilha por divórcio do que o que receberia caso tivesse celebrado casamento no regime de comunhão de adquiridos, em plena violação da disposição do artigo 1790º do Código Civil! J) Assim, o Mm.º Juiz aquo deveria ter decidido da seguinte forma: “eliminar darelação de bens as verbas relacionadas como direitos de crédito sem prejuízode serem consideradas a final, no momento da partilha, com vista a serdeduzidas à meação da interessada”. K) Sem prescindir, caso assim não se entenda, ao pronunciar-se pela eliminação dos direitos de crédito reclamados na relação de bens, salvo o devido e merecido respeito, sempre deveria o Mmo. Juiz aquo, remeter a discussão dos mesmos para os meios comuns, o que subsidiariamente se requer.
TERMOSEMQUEECOMODOUTOSUPRIMENTODEV.EXAS.VENERANDOSJUIZESDESEMBARGADORES,DEVESERDADOINTEIROPROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO E, EMCONSEQUÊNCIA, REVOGADA A ALÍNEAD) DO DOUTODESPACHORECORRIDOESUBSTITUIDAPOROUTRAQUESECOADUNECOMAPRETENSÃOAQUIEXPOSTA,PORSERINTEIRAEMERECIDAJUSTIÇA!».
7. A requerente: 7.1. Respondeu ao recurso do cabeça de casal, no qual apresentou as seguintes conclusões:
«1. No entender da Recorrida, nada há a censurar à douta decisão em crise, na parte questionada pelo Recorrente, que está muito bem fundamentada quer de facto, quer de direito, pelo que muito bem decidiu o Tribunal “a quo”.
2. A provar-se que por efeito da partilha em causa existiram valores que deram entrada no património comum do casal, nada consta na escritura de doação e partilha que exclua a comunicabilidade dos referidos valores, nos termos do disposto no artigo 1733º a) e b) do Código Civil.
3. Caso fosse da vontade, quer do doador / autor da herança, quer do donatário / herdeiro, que os alegados valores em causa não fossem de imputar ao património comum do casal, certamente que tal menção constaria do próprio título.
4. O próprio Recorrente não coloca em causa a comunicabilidade dos bens considerados como comuns, e admite, a final, que os alegados direitos de crédito não deverão ser relacionados, o que vai de encontro ao decidido pelo tribunal “a quo”.
5. Acresce que, toda a construção jurídica do Recorrente parte do princípio que existe, de facto, um crédito de €255.499,25, o qual se dividiria entre o alegado quinhão hereditário e o alegado crédito da venda do apartamento.
6. Mas analisada a pretensão do Recorrente, constata-se que o mesmo pretende, desde já, que seja alterada a decisão, e proferida outra que considere assentes as verbas relacionadas como direitos de crédito, com vista à dedução na meação da interessada.
7. A ser considerada a possibilidade de serem tidos em conta na partilha tais direitos de crédito, o que manifestamente não se concede, mas apenas se equaciona em mero exercício de raciocínio, sempre tal facto dependeria de prova, que ainda não foi produzida na sua plenitude, uma vez que a Recorrida colocou frontalmente em causa esses valores.
8. Note-se que o valor do quinhão do Recorrente, que consta na referida escritura,ascende somente à quantia de € 47.222,22, ou seja, muito diferente do valor que o Recorrente alega ter recebido de herança.
9. O documento de partilha em causa é um documento autêntico (art. 363º/2 do Código Civil), pelo que tem força probatória plena (art. 371º do Código Civil), não podendo ser colocado em causa com eventual prova testemunhal, a qual é inadmissível para provar convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documentos autênticos, ou qualquer acordo simulatório e negócio dissimulado quando invocado pelos simuladores (art. 393º/2 e 394º/1 e 2, ambos do Código Civil).
10. Sendo também certo que os restantes supostos créditos foram colocados, na sua quase totalidade, em causa pela Recorrida.
11. Em conclusão, nenhuma razão tem o Recorrente, pelo que o recurso por si interposto nunca poderá proceder nos termos pretendidos, devendo, por esse facto, ser julgado improcedente.». 7.2. Interpôs recurso subordinado, no qual apresentou as seguintes conclusões:
«1. Entende a Recorrente que a douta decisão em crise padece de erros de aplicação de direito.
2. A Recorrente não concorda com a decisão, na parte em que a mesma entende que as indemnizações laborais não devem ser consideradas seus bens próprios, e como tal, incomunicáveis à luz do artigo 1733º/1 alínea d) do Código Civil.
3. No entender da Recorrente as indemnizações laborais, cujo crédito reclamou, recebidas das empresas Garagem Y, SA e X, Lda, respectivamente no valor de € 35.538,00 e de € 2.400,00, deveriam ser consideradas bens próprios da Recorrente, incomunicáveis à luz da citada disposição legal.
4. Os referidos créditos laborais tiveram origem em processos de insolvência das suas entidades patronais, no âmbito dos quais a Recorrente, contra a sua vontade, viu cessados os seus contratos de trabalho.
5. E na sequência dessa cessão unilateral dos seus contratos de trabalho, a Recorrente recebeu os valores em questão, entre os quais se encontra uma indemnização específica pela extinção dos seus postos de trabalho.
6. Entende a Recorrente que a indemnização pela extinção dos seus postos de trabalho tem carácter eminentemente pessoal, o que justifica a natureza incomunicável do direito a essas prestações, à luz do artigo 1733º n.º 1 alínea d) do Código Civil.
7. No mesmo sentido veja-se o decidido no douto acórdão da Relação de Coimbra de 10/11/2015 (relator Fonte Ramos, disponível em www.dgsi.pt através do número de processo 2281/11.5TBFIG-B.C1), cujas partes relevantes para o presente caso se transcrevem.
8. “Aextinçãodocontratodetrabalhoéadesignaçãoquecorresponde,nassuas diversasmodalidades,àperdadoempregocontraavontadedotrabalhador.”
9. “Aperdadoempregoimplicaparaotrabalhadoraperdadasuaprincipalou exclusivafontederendimentosetransportaconsigoconsequênciasdenatureza psíquica,familiaresocialqueapolíticadeassistênciamaterialnodesemprego dificilmentecompensa.”
10. “Otraumaprovocadopelaperdadoempregoafectaprofundamenteaprópria personalidadedotrabalhador,implicando,comfrequência,perturbaçõesfisiológicas epsíquicas:sente-sehumilhado,inútil,atingidonoseubrioprofissional,vítimade umamedidainjusta,objectodapiedadepúblicaouparticular.Altera-seoseu quotidiano,otempoeoritmodasuavida,ressente-se,oumodifica-se,ocírculoda suaconvivialidade.”
11. “Daíaprevisãolegaldeumefeitocompensatórioligadoàperdadoemprego, especialmente,quandotenhalugarcontraavontadedotrabalhador(cf., designadamente,osart.ºs344º,n.ºs2e3;345º,n.º4;346º,n.º5;366º;372º;379ºe 391º,doCódigodoTrabalho)”
12. “Sabendo-sequeéaafectaçãoestritamenteindividualdosbensquejustificaa incomunicabilidadeprevistanoart.º1733º,doCC,eperantesituaçõesdeperdado empregoporfactonãoimputávelaotrabalhador(v.g.,emcasodedespedimento semjustacausaoudeencerramentodaempresa),ovalorcorrespondenteà compensaçãoouàindemnizaçãoporantiguidade(nestecaso,emopçãopela reintegraçãonopostodetrabalho/art.º391º,doCódigodoTrabalho)destina-sea ressarcirasconsequênciasinerentesàpercadodireitoaotrabalho,queédeíndole pessoal(intuitupersonae)”
13. Refira-se que o cabeça-de-casal, ora Recorrido, não coloca em causa a natureza jurídica das referidas indemnizações, aceitando, pelo menos tacitamente, que se trata de um bem próprio da ora Recorrente.
14. Em conclusão, a Recorrente entende que a douta sentença, na parte em que decidiu sobre as indemnizações laborais recebidas pela recorrente, violou o artigo 1733º n.º1 alínea d), do Código Civil, interpretando-o erradamente.
15. No entender da Recorrente, a decisão do Tribunal “a quo” deveria ter considerado tais créditos como bens próprios da Recorrente, ordenando que constasse a favor da mesma, no passivo, um direito de crédito sobre o património comum no montante dos referidos créditos.
(…)
TERMOS EM QUE
Sempre com o mui douto suprimento de V. Exas., deve improceder o recurso interposto pelo cabeça-de-casal, mantendo-se a decisão recorrida nessa parte,
Devendo proceder o recurso subordinado de apelação, revogando-se a douta decisão, de acordo com os fundamentos supra, proferindo-se acórdão que considere bens próprios da Recorrente os seus créditos laborais, na parte relativa à indemnização pela extinção do posto de trabalho,
Como é de inteira
JUSTIÇA». 8. Não foi apresentada resposta ao recurso subordinado. 9. Foi proferido despacho de 9.5.2021, que decidiu:
«Atenta a posição da reclamante quanto aos lençóis de linho e quanto aos bens descritos nos pontos 62 a 64, 67, 68, 72 e 73 da reclamação não se procederá à inquirição de testemunhas, considerando-se encerrado o incidente a tal respeito.
Notifique.
*
Por legais, tempestivos e interpostos por quem para tal tem legitimidade, admito os presentes recursos, os quais são de apelação, a subir imediatamente, em separado (arts. 644º, nº 2, al. h), 645º, nº 2 ex vi do art. 1123º, nº 1 e 2 al. b) do CPCivil) e com efeito suspensivo (art. 1123º, nº 3 do CPCivil) uma vez que considero que as questões a serem apreciadas podem afectar a utilidade prática das diligências que devam ser realizadas na conferência de interessados.
Notifique.
*
Notifique os recorrentes para os efeitos do disposto no art. 646º do CPCivil.». 10. Recebido o recurso de apelação nesta Relação de Guimarães, nos termos do art.1123º/2-b), 3 e 4 do C. P. Civil, colheram-se os vistos.
II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações do recurso delimitam o seu objeto, sem prejuízo da apreciação das questões de conhecimento oficioso não decididas por decisão transitada em julgado e da livre qualificação jurídica dos factos pelo Tribunal, conforme decorre das disposições conjugadas dos artigos 608º/ 2, ex vi do art. 663º/2, 635º/4, 639º/1 e 2, 641º/2- b) e 5º/ 3 do Código de Processo Civil (doravante C. P. Civil).
Definem-se como questões a decidir:
a) Em relação ao recurso principal: se é admissível o pedido do recurso em relação à ordem de eliminação dos direitos de crédito do cabeça de casal; em caso afirmativo, se pode ser ressalvada na decisão a consideração dos direitos de crédito nas operações de partilha reclamados para serem deduzidos na meação da interessada ou, subsidiariamente, a remessa para os meios comuns.
b) Em relação ao recurso subordinado: se as indemnizações por cessação dos contratos de trabalho, depositadas em conta do casal, revestem a natureza de bens próprios, pelos quais o património comum deva compensar a reclamante/recorrente.
III. Fundamentação:
1. Factos provados:
1.1. L. M. celebrou casamento católico com A. C., a 4 de maio de 1991, com convenção antenupcial de comunhão geral de bens, mediante escritura pública de 7 de março de 1991 (certidão de 23.05.2017 e declarações de cabeça de casal de 12.09.2017). 1.2. L. M. e A. C. foram declarados divorciados por sentença de 8.11.2016, transitada em julgado a 12.12.2016 (certidão de 23.05.2017). 1.3. No presente processo de inventário por partilha por divórcio ocorreram os atos processuais relatados em I supra.
2. Apreciação do objeto dos recursos:
2.1. Pedidos do recurso independente: 2.1.1.Enquadramento da decisão e do recurso:
O Tribunal a quo, conforme se verifica pelo relatado em I e julgado provado em III-1, proferiu decisão sobre a reclamação apresentada à relação de bens, na qual determinou a eliminação da referida relação de três verbas relacionadas pelo cabeça de casal como direitos de crédito seus sobre o património comum, por entender: que os valores provenientes da partilha da herança do pai do cabeça de casal e de venda de uma casa de solteiro sua (indicados pelo cabeça de casal como investidos no património comum e geradores de direitos de crédito sobre o mesmo), eram bens comuns; que, por essa razão, o cabeça de casal não teria direitos de crédito a tal respeito.
O cabeça de casal recorrente deste recurso independente (conclusões A) a K) supra), apesar de declarar não concordar com esta decisão e entender estarem excluídos da comunhão também os bens previstos no art.1723º/c), ex vi do art.1734º do C. Civil (conclusões A) a C) supra):
a) Declarou não questionar a comunicabilidade de todos os bens relacionados e não poder o Mm Juiz relacionar os valores como direitos de crédito face ao regime de bens do casamento (conclusões E) e H) supra).
b) Defendeu que, todavia, face à imposição do art.1790º do C. Civil e para apurar o que caberia a cada um dos cônjuges no regime comunhão de adquiridos (para se determinar a meação de cada um, em relação à qual se farão os preenchimentos): releva a origem dos bens relacionados para a determinação da quota-parte de cada ex-cônjuge na partilha, uma vez que os valores recebidos por herança e o produto da venda de bens próprios são bens próprios de acordo com o regime de comunhão de adquiridos, nos termos do art.1722º/1-a) e b) do C. Civil; não podem estes valores deixar de ser subtraídos à meação da interessada, sob pena de esta receber na partilha um valor superior ao que receberia se tivesse sido casada em comunhão de adquiridos, em violação do art.1790º do C. Civil (conclusões D) a I) supra).
c) Pediu: a título principal, que se determinasse, depois da ordem de eliminação das verbas dos direitos de crédito, se mencionasse «sem prejuízo de serem consideradas a final, no momento da partilha, com vista a ser deduzidas à meação da interessada»; a título subsidiário, que quando se pronunciasse sobre a eliminação dos direitos de crédito reclamados na relação de bens, se remetesse a discussão dos mesmos para os meios comuns.
Perante este quadro, impõe-se apreciar se podem ser conhecidos os pedidos deste recurso e em que termos, no contexto da concreta decisão proferida (na fase inicial da relação de bens e reclamação de bens) e dos concretos termos em que a mesma foi objeto de recurso (sem que o recorrente pedisse a revogação da ordem de eliminação dos direitos de crédito da relação de bens, apesar de pedir que os mesmos pudessem ser atendidos numa fase posterior, no âmbito da partilha para dedução à meação da interessada ou, subsidiariamente, em discussão nos meios comuns).
2.1.2.Enquadramentos jurídicos:
2.1.2.1. Da fase processual da decisão proferida:
A. Por um lado, verifica-se que a decisão foi proferida numa fase da reclamação à relação de bens, na qual: o cabeça de casal relacionou as verbas na relação de bens; a reclamante pediu apenas a requalificação das verbas de direitos de crédito do cabeça de casal como verbas do passivo do património comum do casal e declarou aceitar duas delas e em valores inferiores àqueles com que foram relacionadas; o Tribunal a quo, ponderando apenas o regime de bens do casamento das partes (como comunhão geral de bens), considerou inexistirem direitos de crédito do cabeça de casal sobre o património comum do casal por os valores alegados como geradores dos direitos de crédito (quer o valor da herança, investido no pagamento do empréstimo para a compra da verba nº41 e depositado em conta do casal, quer o valor da venda de imóvel adquirido pelo cabeça de casal enquanto solteiro e investido na construção da casa do casal) serem bens comuns e não serem bens próprios.
Ora, esta fase de reclamação contra a relação de bens distingue-se da fase posterior da forma e determinação dos termos de realização da partilha referida em B infra, mesmo com a sucessão de regimes jurídicos a que este processo de inventário está sujeito, face à data da sua instauração no Cartório Notarial e à posterior fase de remessa para o Tribunal ao abrigo do novo regime entretanto aprovado.
Na fase da reclamação à relação de bens pretende-se a definição dos bens comuns que serão objeto de partilha, fase esta concomitante com a da relacionação de dívidas comuns, cujo procedimento de aprovação e verificação sofreu alteração na pendência deste processo.
Na fase de relacionamento e reclamação à relação de bens deste processo de inventário: na altura da apresentação da relação de bens em 2017 e da reclamação à mesma de 2018, o processo esteve sujeito ao Regime Jurídico do Processo de Inventário (RJPI), aprovado pela Lei nº53/2013, de 5 de março; na altura da apresentação da resposta do cabeça de casal à reclamação de bens em 2020 e da prolação da decisão pelo tribunal (para quem o processo de inventário notarial foi enviado nos termos dos arts.12º a 13º da Lei nº117/2020, de 13.09.), encontrava-se em vigor o novo regime do processo de inventário aprovado por este diploma e regulado no Código de Processo Civil nos arts.1082º ss, nos termos art.11º/1 da referida Lei nº117/2020, de 13.09.
De acordo com o RJPI, nas normas aplicáveis ao inventário por divórcio, nos termos do art.79º/3 do mesmo diploma:
a) O cabeça de casal, na relação de bens, deveria relacionar os bens integrativos do património comum do casal, compostos pelos bens mobiliários (integrados pelos direitos de crédito do património comum sobre terceiros ou um dos cônjuges, títulos de crédito, dinheiro, moedas estrangeiras, objetos de ouro, prata a pedras preciosas; outras coisas móveis) e pelos bens imóveis, acompanhados da indicação do respetivo valor (arts.25º/1, 3 e 26º do RJPI).
O outro ex-cônjuge, no contraditório a esta relação de bens, poderia: reclamar contra o ativo da relação de bens (art.32º do RJPI) e impugnar o valor dos mesmos bens (art. 33º do RJPI), reclamação sobre a qual o cabeça de casal teria direito de resposta e dever de relacionação de bens em falta relativamente aos quais confessasse a falta (art.35º do RGPI).
A decisão sobre a reclamação de bens, em caso de insuficiências de provas, poderia gerar: uma abstenção de decisão e a remessa dos interessados para os meios comuns (art.36º/1 do RJPI); ou uma apreciação sumária das provas, com prolação de decisão provisória e ressalva do direito às ações competentes (art.36º/3 do RJPI).
b) O cabeça de casal deveria também relacionar, em separado, e na altura de apresentação da relação de bens, as dívidas do património comum do casal (art.25º/2 e 6 do RJPI).
A apreciação destas dívidas do património comum do casal, por sua vez, realizar-se-ia apenas na e a partir da conferência preparatória, destinada à deliberação sobre a aprovação do passivo (art.48º/3 do RJPI), fase na qual se previa: que a aprovação dos interessados gerava o reconhecimento e o dever de pagamento das dívidas (arts.38º e 41º do RJPI); que a falta de aprovação dos interessados gerava o processo seguinte de verificação ou falta de verificação e de determinação das suas consequências quanto ao pagamento (arts.39º, 40º, 44º do RJPI).
No novo regime do processo de inventário, em vigor desde 1 de janeiro de 2020 (ainda que sem poder prejudicar atos processuais praticados ao abrigo do pretérito regime), e que alterou substancial e parcialmente o regime anterior nesta fase processual (arts.1098ºss, 1104º ss, 1106º, 1110º ss, ex vi dos arts. 1082º/d) e 1133º do C. P. Civil): o reclamante, aquando da reclamação à relação de bens, passou também a ter o ónus de impugnar os direitos de crédito e as dívidas do património comum do casal que tenham sido relacionadas; o tribunal passou a ter que iniciar o processo de verificação do passivo ainda na fase dos articulados e concluí-lo antes da conferência de interessados, destinada à aprovação da forma de pagamento do passivo. B. Por outro lado, e em consequência do referido em A., a decisão não foi proferida numa fase de determinação dos termos de realização da partilha, nomeadamente após haver sido suscitado por algum dos interessados os termos de operância do art.1790º do C. Civil, que determina que «Em caso de divórcio, nenhum dos cônjuges pode na partilha receber mais do que receberia se o casamento tivesse sido celebrado segundo o regime da comunhão de adquiridos.».
Esta fase da forma à partilha e de determinação dos termos da sua realização corresponde a uma etapa posterior à fixação dos bens comuns e ao relacionamento ou definição das dívidas comuns, fase esta com variações de tramitação entre o revogado RJPI (arts.47º ss e 57º ss do revogado RJPI) e o do atual Código de Processo Civil aprovado pela Lei nº117/2019, de 13 de setembro (arts.1110º ss do C. P. Civil).
2.1.2.2.Da aplicabilidade do art.1790º do C. Civil defendida no recurso:
De acordo com o dispostono art.1790º do C. Civil, na versão introduzida pela Lei nº61/2008, de 31.10., «Em caso de divórcio, nenhum dos cônjuges pode na partilha receber mais do que receberia se o casamento tivesse sido celebrado sob o regime da comunhão de adquiridos».
No regime de comunhão de adquiridos (arts.1721º a 1731º do C. Civil), a que que se refere o art.1790º do C. Civil, estão previstos casos em que os bens se classificam como próprios dos cônjuges (arts.1722º/1, 1723º, 1726º/1, 1728º do C. Civil) e de situações geradoras de compensação entre patrimónios próprios e comuns (arts.1722º/2, 1726º/2 e 1728º/1 do C. Civil).
Os termos de aplicação imperativa desta norma do art.1790º do C. Civil, nos casos em que o casamento foi celebrado sob o regime da comunhão geral de bens, e face às fases referidas em III-2.1.2.1.- A e B, foi alvo de controvérsias jurídicas. A. Para Augusto Lopes Cardoso, este regime provoca uma alteração da titularidade de bens (de comunhão geral de bens em comunhão de adquiridos) (1), com consequência na apresentação da relação de bens (na qual os bens deverão ser relacionados de acordo com o regime da comunhão de adquiridos). B. Para a maioria da doutrina e da jurisprudência: este regime não altera o regime de bens do casamento, devendo no inventário por divórcio ser elaborada a relação de bens de acordo com o regime de bens do casamento, nomeadamente da comunhão geral de bens ou de comunhão atípica mais intensa do que a da comunhão de adquiridos; a estatuição imperativa na partilha por divórcio- de proibição de receção pelos ex- cônjuges de valores que sejam superiores àqueles que receberiam se fossem casados de acordo com o regime da comunhão de adquiridos- funciona como limite de valor da meação e apenas na fase da partilha (ainda que este processo incidental não esteja processualmente regulado, nem tenha uma tramitação proposta pelos defensores desta posição).
Neste sentido, Rute Teixeira Pedro, refere, em anotação ao art.1790º do C. Civil, aplicável à operação de partilha subsequente à dissolução do casamento por divórcio:
«7. Entende-se (…) que o limite imposto por esta norma opera em termos de valor. É, portanto, um limite quantitativo, impedindo que a meação de cada um dos cônjuges seja mais valiosa do que a que lhes caberia à luz do regime da comunhão de adquiridos.
Segundo entendimento praticamente unânime na doutrina portuguesa, a aplicação da presente norma não pressupõe, então, qualquer alteração ao regime de bens do casamento. Consequentemente, em caso de partilha através de inventário, a relação de bens deverá ser apresentada de acordo com as regras que compõem o regime de bens aplicável ao casamento, funcionando o art.1790.º como limite a aplicar à operação de partilha. Não há, por isso, uma mudança da qualificação dos bens (…). Não se impõe sequer que cada um dos cônjuges seja encabeçado na titularidade de bens que lhe caberiam à luz do regime de comunhão de adquiridos (…).
8. A definição do limite quantitativo aplicável, nos termos referidos, à partilha, pressuporá uma operação de reconstrução póstuma de uma série de deslocações patrimoniais ocorridas no intervalo temporal por que a relação matrimonial durou. Na verdade, atendendo à complexidade da operação de partilha que pressupõe vários atos anteriores ao ato de partilha em sentido estrito, importa, para a quantificação do limite a aplicar, apurar o valor do património líquido a partilhar, à luz do regime de comunhão de adquiridos. Assim, não é só o ativo que deverá ser avaliado de acordo com esse regime, mas também o passivo do património comum, seja em relação a terceiros, seja em relação aos próprios cônjuges. O apuramento da existência e do montante de dívidas e compensações pode ser diferente, consoante se aplique à relação matrimonial o regime que, na sua constância vigorou, ou aquele que agora a lei impõe como padrão limitador, em termos quantitativos, das meações.» (2).
Esta mesma autora, entre os casos passíveis de integrar este processo de reconstrução póstuma (e da insuficiência de mecanismos de direito matrimonial para corrigir os resultados patrimoniais reconstruídos), refere-se, nomeadamente ao «reemprego dos valores resultantes da alienação de um bem que integrava o património comum (à luz das regras da comunhão geral), mas que provinha de uma aquisição, a título sucessório, por um dos cônjuges (e sem que se opere o disposto na alínea a) do n.º1 do art.1733.º)- portanto, bem próprio do cônjuge sucessível, ex vi alínea b) do n.º1 do art.1722.º, no regime da comunhão de adquiridos. O bem adquirido- apesar de comum à luz do regime vigente do casamento- poderá ser tratado como próprio, no âmbito das operações de partilha para efeitos de determinação das meações do património comum a partilhar, demonstrando o encadeamento de actos que antecedem e se ligam causalmente à aquisição do bem em questão. Basta que se faça relevar o mecanismo da sub-rogação real, nos termos do art.1723.º» (3).
Também se encontra jurisprudência no assinalado sentido, nomeadamente: o Ac. STJ de 07.06.2018, proferido no processo nº2159/10.0TBOAZ-A.P1.S1, que sumariou «II – Vigorando no casamento o regime de comunhão geral de bens, os bens recebidos por um dos cônjuges por sucessão depois do casamento fazem parte do património comum. III – No inventário instaurado para partilha dos bens em caso de divórcio todos os bens comuns deverão constar do mapa de partilha. IV – A adjudicação dos bens será feita conforme as licitações ou outras indicações da lei e acautelando-se, se for caso disso e através do mecanismo das tornas, o objetivo garantido pelo art. 1790º, na redação dada pela Lei nº 61/2008, de 31.10.» (4); o Ac. STJ de 26.03.2019, proferido no processo 199/10.8TMLSB-C.L1.S1, que, após diferenciar a fase da relação de bens, a realizar de acordo com o regime convencionado para o casamento, da fase posterior da partilha, a operar o art.1790º do C. Civil («Estamos ainda na fase processual do relacionamento dos bens. Para já, importa definir os bens que devem ser relacionados. Na fase processual em que nos encontramos, importa determinar quais os bens a relacionar e, para tanto, é determinante o regime de bens em vigor no casamento. O que cada um dos cônjuges pode receber é determinado posteriormente. (…) A partilha surge num momento posterior e é nela, como se depreende da própria epígrafe, que tem aplicação o aludido art.º 1790.º.»), sumariou «I - O art. 1790.º do CC, na redacção da Lei n.º 61/2008, de 31-10, é aplicável a todos os casamentos celebrados segundo o regime da comunhão geral de bens, mesmo aos celebrados em data anterior à sua entrada em vigor (01-12-2008), desde que, neste caso, subsistam nessa data. II - O mesmo artigo não altera o regime de bens a que se encontra sujeito o casamento celebrado, pelo que a partilha continua a fazer-se tratando como bens comuns aqueles que o são de acordo com esse regime. III - Tendo vigorado o regime da comunhão geral de bens no casamento, no inventário subsequente ao divórcio devem ser relacionados todos os bens comuns para, na fase da partilha, poder ser considerado o teor do citado art. 1790.º. IV - Este artigo não se preocupa com a determinação do acervo dos bens a partilhar, mas com o resultado a que se chega finda a partilha.» (5); o Ac. STJ de 15.12.2020, proferido no processo nº26542/16.8T8LSB.L1.S1, que sumariou «III - A norma do art. 1790.º do CC não contraria o princípio da imutabilidade do regime de bens consagrado no art. 1714.º» (6).
2.1.2.3. Dos limites de apreciação dos recursos:
Um recurso, pela sua própria natureza de reapreciação de uma decisão recorrida, é limitado pela decisão e, em regra, não pode conhecer questões novas que na mesma não tenham sido apreciadas.
Neste sentido, Abrantes Geraldes refere:
«A natureza do recurso, como meio de impugnação de decisões judiciais, determina outra importante limitação do seu objeto decorrente do facto de, em termos gerais, apenas poder incidir sobre questões novas que tenham sido anteriormente apreciadas, não podendo confrontar-se o tribunal ad quem com questões novas.
Na verdade, os recursos constituem mecanismos destinados a reapreciar decisões proferidas, e não a analisar questões novas, salvo quando, nos termos já referidos, estas sejam de conhecimento oficioso e, além disso, o processo contenha os elementos imprescindíveis. (…)
A assunção desta regra encontra na jurisprudência numerosos exemplos:
a) As questões novas não podem ser apreciadas no recurso, quer em homenagem ao princípio da preclusão, quer por desvirtuarem a finalidade dos recursos, pois estes destinam-se a reapreciar questões, e não a decidir questões novas, por tal apreciação equivaler um ou mais órgãos de jurisdição;
b) Os recursos destinam-se à apreciação de questões já antes levantadas e decididas no processo, e não a provocar decisões sobre questões que não foram antes submetidas a contraditório e decididas pelo tribunal recorrido, a menos que se trate de questões de conhecimento oficioso.» (7)
Também, por sua vez, entre a Jurisprudência, unânime no mesmo sentido: o Ac. STJ de 07-07-2016, proferido no processo nº156/12.0TTCSC.L1.S1, relatado por Gonçalves Rocha, sumariou a sua posição referindo: «I. Não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objecto de apreciação da decisão recorrida, pois os recursos são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação.» (8).
2.1.3. Apreciação do recurso em análise:
Importa apreciar a recorribilidade do despacho (do seu dispositivo interpretado pelos seus fundamentos): face às posições e pedidos do recurso, sintetizadas em III- 2.1.1. e ao enquadramento jurídico de 2.1.2. supra.
Por um lado, não tendo sido pedida a revogação da ordem de eliminação dos direitos de crédito na relação de bens, este segmento decisório não está sujeito a recurso e a decisão desta Relação.
Por outro lado, todavia, tendo sido pedido o aditamento de um segmento decisório a esta decisão, com base na aplicação do art.1790º do C. Civil (tendo sido pedido, a título principal, que se determinasse, que esta eliminação das verbas dos direitos de crédito ocorreria «sem prejuízo de serem consideradas a final, no momento da partilha, com vista a ser deduzidas à meação da interessada»; a título subsidiário, que quando se pronunciasse sobre a eliminação dos direitos de crédito reclamados na relação de bens, se remetesse a discussão dos mesmos para os meios comuns), verifica-se que foi pedida uma restrição dos efeitos da ordem de eliminação dos direitos de crédito, com a uma pretensão de consideração concreta dos mesmos na partilha.
Esta pretensão do recurso de consideração concreta dos valores reclamados como direitos de crédito a serem considerados a final e deduzidos na meação do ex-cônjuge: não pode ser apreciada nesta fase de recurso, por se tratar de uma questão nova, que não foi ainda discutida no processo e não foi decidida pelo Tribunal de 1ª instância, para que possa ser reapreciada, nos termos referidos em III-2.1.2.3. supra.
Todavia, a pretensão prévia da recorrente da ressalva dos efeitos da ordem de eliminação “direitos de crédito” à relação de bens, já pode ser apreciada neste recurso.
De facto, poder-se-ia considerar que a circunscrição dos efeitos da decisão estava acautelada automaticamente pelo alcance possível do caso julgado de uma decisão da reclamação à relação de bens, que não discutiu a aplicação do art.1790º do C. Civil e não poderia prejudicar a sua discussão futura na fase da partilha. No entanto, interpretando a decisão de eliminação dos “direitos de crédito” da relação de bens comuns, de acordo com a fundamentação do Tribunal a quo, categórica e sem distinção das fases do inventário, admite-se que a decisão pode gerar dúvidas sobre o alcance do decidido pelo referido Tribunal a quo (se o Tribunal a quo quis circunscrever a decisão à relação de bens comuns ou se quis encerrar qualquer discussão sobre as consequências de investimentos que o cabeça de casal tenha feito no património comum de valores recebidos por herança e pela venda de bem adquirido antes do casamento).
Ora, conforme decorre do referido em III- 2.1.2.1. e 2.1.2.2. supra, a decisão proferida pelo Tribunal a quo apenas pode respeitar à relação de bens comuns (a elaborar de acordo com o regime da comunhão geral de bens, nos termos defendidos pelas posições de III-2.1.2.2.-B supra) e não pode prejudicar a discussão que os interessados suscitem sobre a aplicação dos limites prescritos no art.1790º do C. Civil na fase da partilha (nomeadamente face a valores de herança e de produto de venda de bem de solteiro do cabeça de casal, que se venha a apurar que foram investidos no património comum, valores esses, aliás, parcialmente reconhecidos pela reclamante na sua reclamação).
Assim, admite-se a apreciação do recurso nesta medida e para proceder a esta ressalva clarificadora.
2.2. Pedido do recurso subordinado: 2.2.1. Enquadramento da decisão e do recurso:
A decisão recorrida, apesar de não mencionar expressamente no dispositivo o indeferimento do pedido de aditamento de verbas ao passivo respeitante a indemnizações pela cessação de contrato de trabalho pedidas pela reclamante, indeferiu o referido aditamento na fundamentação prévia, por entender que as indemnizações por cessação de contrato trabalho eram bens próprios e não poderiam gerar direitos de crédito da reclamante sobre o património comum, nos termos transcritos em I-5.1.3. supra.
No presente recurso, a recorrente pretendeu que se revogasse esta decisão e que se aditassem os créditos reclamados como verbas do passivo do património comum do casal, por entender que as indemnizações pela cessação dos seus contratos de trabalho deveriam ser consideradas bens próprios (alegadas como pagas em 2004 e em 2014, na pendência do casamento), e, nessa medida, aditados ao passivo da relação de bens, face à falta de contestação da natureza das indemnizações pelo cabeça de casal, à previsão da norma do art.1733º/1-d) do C. Civil, à jurisprudência do AC. RC de 10.11.2015, proferida no processo nº2281/11.5TBFIG-B.C1.
2.2.2. Enquadramento jurídico do regime de bens: A. No regime da comunhão geral de bens (declarado na decisão recorrida como vigente e não contestado pelos cônjuges):
a) O património comum dos cônjuges é constituído por todos os bens presentes e futuros dos cônjuges, que não sejam exceptuados por lei (art.1732º do C. Civil).
b) São comuns, conforme consta expressamente da subsecção II do regime da comunhão de adquiridos, aplicável ao regime da comunhão geral de bens ex vi do art. 1734º do C. Civil: o produto do trabalho dos cônjuges e os bens adquiridos por estes na constância do casamento e que não sejam exceptuados por lei (art.1724º do C. Civil); os bens móveis, quando haja dúvida sobre a sua comunicabilidade e em relação aos quais não seja ilidida a presunção de comunicabilidade (art.1725º do C. Civil).
c) São excluídos expressamente da comunicabilidade, na subsecção III do Regime da Comunhão Geral de Bens, nomeadamente, «c) O usufruto, o uso ou habitação, e demais direitos estritamente pessoais; d) As indemnizações devidas por factos verificados contra a pessoa de cada um dos cônjuges ou contra os seus bens próprios; e) Os seguros vencidos em favor da pessoa de cada um dos cônjuges ou para cobertura de riscos sofridos pelos bens próprios» (art.1733º/1-c) e d) do C. Civil).
B. A propósito destas previsões normativas referidas em A- c) e b) supra: B1. Pires de Lima e Antunes Varela, referem:
__Em relação à al. c) do nº1 do art.1733º do C. Civil:
«(…) devem ainda considerar-se incomunicáveis todos os direitos de crédito constituídos intuitu personae, a favor de um dos cônjuges (direito a viagens gratuitas, na qualidade de antigo empregado da companhia; direito a descontos em função da idade ou da profissão; etc). É a situações de tal tipo ou de natureza semelhante (direitos de autor, por exemplo) que a lei pretende referir-se com a expressão «demais direitos estritamente pessoais». No mesmo grupo podem ser ainda catalogados os direitos que a própria lei, fora da enumeração concretizada no art.1733.º, considera incomunicáveis.».
__ Em relação às als. d) e e) do nº1 do art.1733º do C. Civil:
«É ainda o carácter emininentemente pessoal das indemnizações devidas por factos verificados contra a pessoa de cada um dos cônjuges (quer se trate de ressarcir danos patrimoniais, quer não patrimoniais), bem como dos seguros vencidos em favor da pessoa de cada um deles, que justifica a natureza incomunicável do direito a essas prestações, prescrita nas alíneas d) e e).
(…)
No caso das pensões de aposentação, das rendas vitalícias (cfr. arts.1238.º e segs.) e direitos de natureza semelhante, haverá que distinguir entre o direito à pensão ou à renda, que é pessoal e incomunicável, e as prestações recebidas ao abrigo do direito, que são comuns. Neste sentido, vide, por todos, Pereira Coelho, ob. cit., I, 1ª ed. Pág.287, nota 1» (9).
B2. Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira consideram:
__ Em relação à al. d) do nº1 do art.1733º do C. Civil:
«Não podia deixar de ser considerado incomunicável o direito à reparação, que entra no património do lesado no momento do dano. O carácter pessoal deste direito, sobretudo no caso de dano não patrimonial, suscita mesmo a questão de saber de ele é hereditável pelos herdeiros do titular.
Depois de exercido o direito à indemnização, as somas recebidas pela reparação dos danos tomam o lugar dos bens lesados pelos factos praticados contra a pessoa ou os bens próprios de um dos cônjuges, de tal modo que podemos falar de uma nítida sub-rogação.
Não é pacífico que mereçam este regime as indemnizações que pretendam reparar uma incapacidade de ganho ou se meçam por uma perda de salários. Será o caso das indemnizações recebidas por acidentes de trabalho, doenças profissionais, reforma antecipada, despedimento, etc. Nestes casos, as somas recebidas vêm substituir os salários ”cessantes”, que teriam a qualidade de bens comuns; as indemnizações deviam entrar para o património comum.» (10).
__E, após, em relação aos bens comuns do art.1724º do C. Civil, ex vi do art.1734º do C. Civil:
«Devem considerar-se parte integrante do património comum os bens adquiridos em substituição dos salários, como as pensões de reforma, os complementos de reforma resultantes de aforros de salários, por exemplo através de planos-poupança reforma, e as indemnizações, por qualquer causa, que tenham na sua base uma intenção de compensar a diminuição de capacidade de ganho.» (11). B3.Rute Teixeira Pedro refere:
«A íntima conexão com a pessoa do cônjuge e o respeito pela sua individualidade- que o casamento não elimina- dita a insuscetibilidade de qualificar como comuns as indemnizações devidas por factos verificados contra a pessoa de cada um dos cônjuges ou contra os seus bens próprios (al.d)). No que concerne às indemnizações devidas em consequência da lesão da pessoa e aos valores pagos pelo seguro por causa dessas lesões, na medida em que os efeitos lesivos atinjam, negativamente, a respetiva capacidade de trabalho, e o quantum indemnizatório ou do seguro vise a sua reparação, tendo por referência uma perda de salários, emerge a questão de saber se não deverão merecer o mesmo tratamento que o produto do trabalho dos cônjuges (artº1724.º-a)). Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira põem em destaque o seu caráter substitutivo do salário e defendem a natureza comum desses bens (cit., pp.632 e 639). Jorge Duarte Pinheiro defende o entendimento inverso (cit.p 414).» (12). C. Neste quadro legislativo e doutrinário, a jurisprudência encontrada tem-se pronunciado maioritariamente pela natureza comum da indemnização pela cessação da relação laboral, pelo menos quanto ao período de tempo de trabalho ocorrido durante a comunhão conjugal: o Ac. RL de 25.10.2011, proferido no processo nº2119/10.0TMLSB-A.L1-7, sumariou «II - A indemnização por despedimento, porque destinada a substituir os “salários cessantes”, ingressará no património comum, desde que efectivamente adquirida na constância do matrimónio. III -Não será bem comum, se adquirida já após a separação de facto dos cônjuges e se o divórcio vier a ser decretado com fundamento na separação de facto, fazendo retroagir os respectivos efeitos patrimoniais à data da separação.» (13); o Ac. RE de 14.01.2021, proferido no processo nº980/20.0T8FAR-A.E1, relatado por Cristina Dá Mesquita considerou a natureza comum da indemnização, sem equacionar os períodos da antiguidade, sumariando «A indemnização por cessação da relação laboral deve considerar-se bem que integra o património comum dos cônjuges, nos termos do disposto no artigo 1724.º, alínea a), do Código Civil, na medida em que tem em vista compensar o trabalhador da rutura da relação laboral e da perda de salários subsequente àquela rutura com os quais o primeiro contribuía para os encargos da vida familiar.» (14); o Ac. da RE de 28.01.2021, proferido no processo nº1200/19.5T8STR.E1, relatado por Mário Silva, sumariou «Tendo o autor trabalhado numa empresa entre 1970 e 2004 e casado em 1997, sob o regime de comunhão de adquiridos, a quantia recebida pelo A. durante a vigência do casamento e acordada como “indemnização por antiguidade” por revogação do seu contrato de trabalho, assume a sua qualidade de bem próprio, nos termos da al. c) do nº 1 do artigo 1722º, do Código Civil, relativamente à fração da “indemnização” que é proporcional ao tempo correspondente ao período em que a relação laboral decorreu antes de o autor ter casado e comum na parte restante.» (15); o Ac. RP de 12.07.2021, proferido no processo nº2750/20.1T8GDM.P1, sumariou «II - Sendo certo que o pagamento da indemnização de antiguidade é desencadeado pela rotura contratual, é a constituição do vínculo laboral e o seu desenvolvimento que justificam e moldam essa compensação indemnizatória; III – No regime de bens de comunhão de adquiridos, será comum aquilo que exprime a colaboração de ambos os cônjuges no esforço patrimonial do casamento e têm de ser excluídos da massa comum os bens que resultam do esforço, trabalho ou diligência de, apenas, um deles, ou seja, aqueles para cuja obtenção o outro cônjuge não deu qualquer contributo relevante; IV - Nesse enquadramento, será de considerar bem próprio a indemnização de antiguidade recebida por um dos cônjuges na parte proporcional ao tempo em que a relação laboral decorreu fora do período da comunhão conjugal; será comum na parte restante.» (16)
O Ac. da RC de 10.11.2015, proferido no processo nº2281/11.5TBFIG-B.C1, citado no recurso, assume uma posição minoritária, considerando e sumariando «1. É a afectação estritamente individual dos bens que justifica a incomunicabilidade prevista no art.º 1733º, do CC. 2. Perante situações de perda do emprego por facto não imputável ao trabalhador (v. g., em caso de encerramento da empresa), o valor correspondente à compensação por antiguidade destina-se a ressarcir as consequências inerentes à perca do direito ao trabalho, que é de índole pessoal (intuitu personae). 3. Trata-se, pois, de um bem pessoal (próprio) do cônjuge, que, em princípio/regra - sem prejuízo do posicionamento dos cônjuges ou ex-cônjuges e porventura de outros aspectos relacionados com a relação conjugal - deverá ser excluído da comunhão conjugal.4. Decisivo para as relações patrimoniais entre os cônjuges é o momento do facto que dá causa/origem a determinado fluxo patrimonial (a repercutir no património comum do casal), e não propriamente a data da concretização ou execução desse mesmo fluxo, ainda que verificado após a propositura da acção de divórcio (art.º 1789º, n.º 1, do CC).») (17). Em todo o caso, no Ac. RL de 02.10.2007, proferido no processo nº5871/2007-7, para o qual aquele remete, apesar de diferenciar a indemnização pela antiguidade em opção de reintegração, ao sumariar, «I- Deve ser incluída na relação de bens a apresentar em inventário para partilha dos bens do casal a verba designada indemnização que integra a reposição das prestações pecuniárias devidas ao trabalhador por ter sido considerado nulo o despedimento II- Estamos face a produto do respectivo trabalho (artigo 1724.º/alínea a) do Código Civil), ou seja, de bem integrado na comunhão e não diante de uma indemnização por antiguidade em opção da reintegração no posto de trabalho cuja natureza é de índole pessoal», havia considerado mais restritamente que «Poderá, porventura, afirmar-se que já o valor correspondente à indemnização por antiguidade em opção pela reintegração no posto de trabalho apresenta natureza distinta, dirigida a ressarcir a perca do direito ao trabalho que é de índole pessoal. Note-se que dos autos, nem o agravante, nem a recorrida, distinguiram os valores em referência, o que por si, desconsidera em termos factuais o tratamento diferenciado da questão. Contudo, ainda que assim se disserte e por hipótese académica, é preciso salientar que, uma coisa é considerar-se o direito à indemnização por antiguidade de índole intuitu personae , e por consequência, um bem pessoal do cônjuge , outra diversa, é a natureza das prestações ou valores que ao abrigo desse direito ele recebeu, que pelas razões sobreditas, reconduzem-se a um bem móvel comum [10]. Neste desiderato, resta concluirmos, que a verba nº3 indicada pela cabeça de casal na relação de bens constitui, na verdade, bem comum a partilhar, tendo em conta a data da fixação do valor em causa e a data relevante para a partilha; de resto, o agravante não logrou ilidir a presunção, de que a respectiva integração no património ocorreu em momento ulterior à dissolução do casal, pelo que, na dúvida, sempre será de considerar bem comum.» (18).
2.2.3. Situação em análise:
Os valores objeto dos pedidos da reclamante/recorrente basearam-se na alegação que se trataram de pagamentos de indemnizações por cessação do contrato de trabalho por extinção do posto de trabalho (2004) e no âmbito da insolvência da entidade patronal (2014).
Apesar dos termos de arbitramento destas indemnizações não terem sido alegados, pode-se atender como referência que: de acordo com o regime laboral vigente em 2004, a cessação do contrato de trabalho por extinção do posto de trabalho conferia ao trabalhador um direito de compensação, nos termos do art.401º, ex vi do art.404º do Código de Trabalho aprovado pela Lei nº99/2003, de 27.08- «1 - O trabalhador (…) tem direito a uma compensação correspondente a um mês de retribuição base e diuturnidades por cada ano completo de antiguidade. 2 - No caso de fracção de ano, o valor de referência previsto no número anterior é calculado proporcionalmente. 3 - A compensação a que se refere o n.º 1 não pode ser inferior a três meses de retribuição base e diuturnidades. 4 - Presume-se que o trabalhador aceita o despedimento quando recebe a compensação prevista neste artigo.»; de acordo com o regime laboral vigente em 2014, «A declaração judicial de insolvência do empregador não faz cessar o contrato de trabalho» (art.347º/1 do C. Trabalho aprovado pela Lei nº nº7/2009, de 12.02.) mas o contrato de trabalho de um trabalhador pode vir a cessar, quer antes do encerramento definitivo do estabelecimento, por declaração do administrador em relação ao trabalhador «cuja colaboração não seja indispensável ao funcionamento da empresa»(art.347º/2 do C. Trabalho de 2009), caso em que este tem direito à compensação do art.366º do C. Trabalho, ex vi do art.347º/5 do C. Trabalho de 2009 («1 – (…), o trabalhador tem direito a compensação correspondente a 12 dias de retribuição base e diuturnidades por cada ano completo de antiguidade.2 - A compensação prevista no número anterior é determinada do seguinte modo: a) O valor da retribuição base mensal e diuturnidades do trabalhador a considerar para efeitos de cálculo da compensação não pode ser superior a 20 vezes a retribuição mínima mensal garantida; b) O montante global da compensação não pode ser superior a 12 vezes a retribuição base mensal e diuturnidades do trabalhador ou, quando seja aplicável o limite previsto na alínea anterior, a 240 vezes a retribuição mínima mensal garantida; c) O valor diário de retribuição base e diuturnidades é o resultante da divisão por 30 da retribuição base mensal e diuturnidades; d) Em caso de fração de ano, o montante da compensação é calculado proporcionalmente.»), quer com o encerramento definitivo da empresa, caso em que corre o procedimento dos arts.360º ss do C. Trabalho, ex vi do art.347º/3 do C. Trabalho.
Estas compensações indemnizatórias, que não se baseiam em ato ilícito da entidade patronal, nem se podem considerar que se dirijam contra a própria pessoa do trabalhador, pretendem compensar o trabalhador da extinção do contrato de trabalho, com referência à sua remuneração antes da cessação e ao tempo de antiguidade na empresa, apoiando necessariamente a sua subsistência.
Qual a natureza jurídica destas indemnizações, quando o trabalhador é casado num regime de comunhão geral de bens, face ao regime enunciado em III- 2.2.2. e às posições que têm sido assumidas em relação ao mesmo?
De acordo com a letra da lei do art.1733º/1-d) do C. Civil, com a sua inserção sistemática (nomeadamente no contexto das previsões do art.1733º/1-c) e e) do C. Civil) e com a conjugação com o regime aplicável ao produto do trabalho e aos bens mobiliários (arts.1724º e 1725º do C. Civil, ex vi do art.1734º do C. Civil), considera-se: que a letra da lei aponta para a exclusão da comunhão das indemnizações que reparem factos praticados estritamente contra a pessoa do lesado e os seus direitos de personalidade (ou contra os seus bens próprios, já excluídos da comunhão, nomeadamente nos termos do art.1733º/1-a) e b) do C. Civil); que, tal como referiram Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira e jurisprudência citada, deve separar-se o direito pessoal de ser indemnizado do proveito económico obtido com a reparação indemnizatória e achada com referência ao valores da remuneração do trabalhador; que o valor dos salários e o valor da compensação achada com referência aos mesmos encontra-se afetada à economia do casal e à subsistência da família por ambos fundada, nos termos do art.1724º/a) do C. Civil, ex vi do art.1734º do C. Civil.
Assim, neste quadro, sem que a reclamante/recorrente tenha alegado factos que permitam enquadrar que as indemnizações auferidas se destinaram a compensar atos praticados contra a sua própria pessoa, não há elementos que permitam, em reversão da decisão recorrida, considerar as indemnizações invocadas como bens próprios e admitir que os seus valores sejam relacionados e reconhecidos como passivo do património comum do casal.
IV. Decisão:
Pelo exposto, as Juízes Desembargadoras da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães acordam: 1. Julgar o recurso independente parcialmente procedente, determinando o aditamento à al. e) da decisão recorrida de 09.02.2021 do seguinte segmento: «sem prejuízo da discussão, nos termos e para os efeitos da aplicação do art.1790º do C. Civil, da relevância e prova de valores que tenham sido recebidos pelo cabeça de casal por herança e por produto de venda de bem de solteiro e tenham contribuído para aquisição ou investimento em património do extinto casal». 2. Julgar improcedente o recurso subordinado.
*
Custas do recurso independente, na proporção de ½ para cada uma das partes (art.527º/1 do C. P. Civil).
Custas do recurso subordinado pela recorrente mulher (art.527º/1 do C. P. Civil).
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Guimarães, 03.03.2022
O presente acórdão é assinado electronicamente pelas respectivas