LEGITIMIDADE
PRESTAÇÃO DE CONTAS
TUTOR
ÂMBITO DA OBRIGAÇÃO
Sumário


SUMÁRIO (da responsabilidade da Relatora - art. 663.º, n.º 7 do CPC)

I Sobre os elementos do conselho de família, por força dos deveres de vigiar e fiscalizar a atividade do tutor, não recai a obrigação de prestação de contas que recai sobre o tutor, sendo por isso partes ilegítimas na ação especial interposta para o efeito pelos herdeiros da interdita entretanto falecida.
II A obrigação de prestação de contas da tutora, nessa qualidade (e o correspondente direito de as exigir por parte dos herdeiros da interdita), terá de se reportar (e só poderá reportar-se) ao período em que exerceu a respetiva função.
III A alegação da “entrega” da interdita “aos cuidados” da 1ª R. em período anterior e posterior ao exercício da função de tutora não constitui factualidade que baste para daí retirar o exercício da administração dos seus bens e consequentemente o encargo de prestação de contas.
IV É na petição inicial que cabe expor o ato ou facto donde emerge a obrigação de prestação de contas.

Texto Integral


Acordam os Juízes da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

R. C., A. M., M. M., e M. C., instauraram a presente acção especial para prestação de contas contra M. G., C. A. e D. C., pedindo a condenação dos R.R. a prestarem contas aos A.A. relativamente ao período em que iniciaram os cuidados e posteriormente foram nomeados, a primeira tutora e os segundos membros do conselho de família, da interdita I. C., devendo os R.R. serem condenados a pagar aos A.A., enquanto herdeiros da dita I. C., a importância que da quantia de € 86.197,49 se outra não vier a ser aprovada, quantia acrescida de juros legais a contar da citação, até integral e efetivo pagamento. O período a que respeita tal valor situa-se entre 22/7/2012 a 17/2/2020 –reportando o saldo a 18/2/2020.
Para tanto, e no que ao caso interessa, alegaram que, a partir de 22 de julho de 2012, I. C. foi entregue aos cuidados da primeira R., M. G.. E que por sentença de 12/3/2014, transitada em julgado e constante dos autos principiais, a referida I. C. foi declarada interdita, em virtude da anomalia psíquica de que padecia. Fixou-se o início da incapacidade da interdita à nascença. E nomeou-se a aqui 1º R., M. G., como sua tutora. Para o conselho de família, foi nomeado o 2º R., C. A., marido da 1ª R., como protutor e a 3ª R., D. C., filha dos 1º e 2º R.R., como vogal.
Justificam assim a legitimidade de todos os R.R..
Mais dizem que “Por douto despacho proferido a 15 de novembro de 2019, devidamente transitado em julgado, na ação de interdição a que estes autos devem ser apensos, foi nomeada C. V., filha do 1º autor R. C. e sobrinha da I. C., como sua acompanhante em substituição da 1ª ré. 27- Assim como foram nomeados a 2ª autora, A. M. e o 1º autor, R. C., como protutora e vogal, respetivamente, em substituição do 2º e 3º réus. (…) 28- Ora, por motivos que se desconhecem e que, crê-se, não se prenderam com a I. C., a Segurança Social revogou o contrato de família de acolhimento que mantinha com a 1ª ré. 29- No entanto e apesar dessa revogação não retirou a I. C. dos cuidados da 1ª ré.” E mais à frente acrescentam, que após a sua como acompanhante da I. C., C. V. passou a interagir com a Segurança social em tudo o que dissesse respeito à I. C..
E mais dizem que “O tutor é responsável pelo prejuízo que por dolo ou culpa causar ao pupilo. – cfr artigo 1945º, n.º 1, do CC.”; “Pertence ao conselho de família vigiar o modo por que são desempenhadas as funções do tutor. – cfr artigo 1954º do CC.”.

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Os R.R. apresentaram contestação arguindo a exceção de falta de legitimidade dos Réus C. A. e D. C. por não terem obrigação de prestar contas. Impugnaram a obrigação de prestar contas fora do período compreendido entre a nomeação como tutora, em 12 de março de 2104, e a sua substituição, em 11 de novembro de 2019.
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O A. R. C. apresentou resposta às exceções invocadas pelos R.R., acrescentando que: “1- Pertence ao conselho de família vigiar o modo por que são desempenhadas as funções do tutor e exercer as demais atribuições que a lei especialmente lhe confere. 2- Nos termos do artigo 1955º do CC, cabe ao conselho de família vigiar a atividade do tutor ou do curador e dar parecer sempre que considerado conveniente e necessário e possam estar em causa os interesses da pessoa incapacitada (saúde, rendimentos, administração de bens, etc…). 3- Ao Primeiro Vogal cabe-lhe especificadamente a tarefa de fiscalizar com permanência o desempenho da tutela ou da curatela e é chamado de protutor pois substitui o tutor nos seus impedimentos, auxilia-o e representa o incapaz se houver conflito de interesses entre aquele e este. (…). 8- Na verdade, no período de vigência do exercício de funções por parte do conselho de família, este é responsável, pelas despesas feitas pela tutora. 9- Na verdade, compete ao conselho de família fiscalizar a atividade feita pela tutora. 10- E se o não o fez, deveria tê-lo feito. 11- No entanto e no caso dos autos, teremos de distinguir duas situações: o facto da ré M. G. ter sida nomeada tutora e igualmente família de acolhimento da interdita. 12- A ré M. G. teve acesso aos dinheiros da interdita quando pagou a cuidar da mesma e isto antes de ter sida nomeada provisoria e depois definitivamente sua tutora. 13- Acesso que continuou após ter sido substituída do seu cargo de tutora e que só cessou quando a nova tutora conseguiu junto da Caixa … tirar o acesso da ré M. G. na conta bancária da interdita em fevereiro de 2020. 14- Pelo que a ré M. G. é responsável pela apresentação de contas em todo período em que teve sob a sua gestão os dinheiros da interdita. 15- Já os membros do Conselho de família são responsáveis somente pelo período de tempo em que exerceram, provisoria e definitivamente, o seu cargo. (…) 37- É, salvo o devido respeito, por demais evidente que as contas a serem apresentadas, são contas relativas as despesas feitas pela ré tutora e cuidadora mas aprovadas e fiscalizadas pelos membros do Conselho de família em cumprimento das suas funções. 38- Nessa medida qualquer despesa no período de vigência das funções do conselho de família foi ou teria de ser por este fiscalizado. 39- Pelo que e salvo o devido respeito os membros do Conselho de família são responsáveis pelas contas a apresentar a partir do momento em que foram provisoriamente nomeados enquanto tal e até 02/12/2019, data de transito em julgado do despacho que os referidos membros foram substituídos por outros.”.
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Foi determinada a notificação do Ministério Público (M.P.), nos termos e para os efeitos do disposto no artº. 948º, a), do C.P.C..
O M.P. apresentou articulado reiterando a alegação de ilegitimidade dos 2º e 3º R.R. e a obrigatoriedade restringir-se ao período em que a Acompanhante exerceu este cargo, ou seja, desde a sua nomeação até à cessação das suas funções.
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Foi fixado o valor à ação de € 71.976,33.
Foi proferido despacho saneador, tendo-se apreciado a falta de legitimidade dos R.R. C. A. e D. C., concluindo-se pela sua ilegitimidade e pela sua absolvição da instância, bem como se determinou-se que a obrigação de prestar contas por parte da Ré abrangia o período temporal que se iniciou com a sua nomeação e terminou com a sua substituição.
Nesse sentido, da decisão consta o seguinte: “(…) Da falta de legitimidade dos réus C. A. e D. C.
Na contestação apresentada foi suscitada a falta de legitimidade passiva dos réus C. A. e D. C.. Entendem estes que não devem ser partes na acção, pois não têm qualquer obrigação legal de prestar contas, não tendo sido tutores da interdita. A obrigação de prestar contas só existe nos casos expressamente previstos na lei e, no caso da interdição, recai sobre o tutor.
Foi observado o contraditório.

Cumpre apreciar e decidir.

Dispõe o artigo 30º, nº 1, do Código de Processo Civil que o réu é parte legítima quando tem interesse directo em contradizer, sendo que esse interesse se exprime, nos termos do nº 2, do mesmo artigo, pelo prejuízo que dessa procedência advenha.
Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação material controvertida tal como é configurada pelo Autor (nº 3, do artigo 30º, do C.P.C.).
O preceito em causa exige que o interesse seja directo. O interesse directo é a condição da legitimidade das partes. Como nos ensina o Professor Alberto dos Reis “O que importa, em cada caso concreto, é apurar quem deve propor a acção e contra quem deve ser proposta para que o tribunal haja de conhecer do pedido, isto é, para que o tribunal se pronuncie sobre a relação jurídica substancial, objecto da acção. Sendo assim, facilmente se compreende que a questão da legitimidade das partes sob o ponto de vista substancial é, na essência, uma questão de posição do autor e do réu relativamente à relação jurídica material que constitui o tema do litígio.” (Código de Processo Civil Anotado, Volume I, página 76, 3ª Edição – reimpressão, Coimbra Editora).
“Não basta, pois, um interesse indirecto ou reflexo; não basta que a decisão da causa seja susceptível de afectar, por via de repercussão ou por via reflexa, uma relação jurídica de que a pessoa seja titular. Noutros termos, não basta que as partes sejam sujeitos duma relação jurídica conexa com a relação litigiosa; é necessário que sejam os sujeitos da própria relação litigiosa (Código de Processo Civil anotado, volume I, 3ª edição – reimpressão, Professor Alberto dos Reis, página 84).
A legitimidade reconduz-se a uma posição das partes em relação ao objecto do litígio que é a relação jurídica controvertida. Só que o objecto do processo em que se traduz o litígio que o autor trouxe ao conhecimento do tribunal para o resolver e decidir é delineado e delimitado pelo próprio autor, sendo, em princípio dentro desses limites que o tribunal o há-de conhecer e decidir – acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 5 de Março de 1981 (BMJ, 305º-338).
O interesse directo de que deriva a legitimidade segundo o preceito consiste em as partes serem os sujeitos da relação jurídica material submetida à apreciação do tribunal. A legitimidade deve ser, pois, referida à relação jurídica objecto do pleito e determina-se averiguando quais são os fundamentos da acção e qual a posição das partes relativamente a esses fundamentos (acórdão do STJ de 16-07-1981, RLJ, 116º-12, com anotação de Antunes Varela).
“A obrigação de prestação de contas pode resultar de disposição especial da lei (v.g., mandatário, administrador de pessoas colectivas, tutor, curador, gestor de negócios, cabeça-de-casal, marido, depositário judicial, credor anticrético ou pignoratício com o direito de cobrar os rendimentos), do princípio da boa fé ou do negócio jurídico” – acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 5 de Fevereiro de 2019 (processo nº 16126/17.9T8SNT.L1-7, in www.dgsi.pt).
No caso que nos ocupa, os familiares e sucessores da interdita falecida instauraram a presente acção especial para prestação de contas. A referida I. C. foi declarada interdita, tendo sido nomeada como sua tutora a primeira ré e tendo sido nomeados para membros do conselho de família os segundo e terceiros réus. Entendem os Autores que a tutora terá de justificar os gastos feitos durante os anos em que a referida I. C. esteve ao seu cuidado. Invocam os Autores o disposto no artigo 1944º do Código Civil.
Assim, tendo presente o factualismo alegado na petição inicial, é forçoso concluir que a obrigação de prestar contas impende apenas sobre a tutora (primeira ré). Os Autores não invocaram nenhuma razão que nos leve a afirmar a existência da obrigação de prestação de contas por parte dos restantes réus. O simples facto de terem sido nomeados membros do conselho de família não tem como consequência a obrigatoriedade de prestação de contas.
Em face do acima exposto, entende-se que assiste razão aos Réus na questão suscitada.
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Concluindo, no caso em apreço, verifica-se uma situação de ilegitimidade passiva por parte do segundo e do terceiro réus.
A falta de legitimidade constitui uma excepção dilatória, de conhecimento oficioso, e determina a absolvição da instância, sendo, neste caso, insuprível.
Pelo exposto, ao abrigo do preceituado nos artigos 278º, nº 1, alínea d), 576º, nº 2 e 577º, alínea e), do Código de Processo Civil, julgo procedente a invocada excepção dilatória de falta de legitimidade dos Réus C. A. e D. C. e, em consequência, absolvo-os da presente instância.
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Os Autores e a primeira Ré têm legitimidade para o presente processo e mostram-se devidamente patrocinados.
Não há outras nulidades.
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A presente acção especial de prestação de contas tem por objecto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por M. G., na qualidade de tutora.
Os Autores vêem exigir a prestação de contas por parte da referida tutora, porém, na petição inicial, reportam-se a um período temporal mais alargado e que extravasa o período temporal correspondente ao exercício do cargo. Ora, os factos respeitantes aos períodos temporais não compreendidos entre o início e a cessação das funções de tutora extravasam o objecto do processo e o âmbito da obrigação legal de prestação de contas.
Assim sendo, tendo em conta que a aludida Ré foi nomeada tutora da interdita em 12 de Março de 2014 – cfr. decisão proferida no processo principal e se manteve no cargo até ao dia 15 de Novembro de 2019, data em que foi substituída – despacho com a referência 44644953 no processo principal, a obrigação de prestar contas por parte da Ré abrange o período temporal que se inicia com a sua nomeação e termina com a sua substituição.”
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Inconformados, o A. R. C. interpôs recurso apresentando as suas alegações que terminam com as seguintes
-CONCLUSÕES-(que se reproduzem)

“A- O douto despacho saneador recorrido errou ao julgar os 2º réu C. A. e a 3ª ré D. C. partes ilegítimas, bem como errou ao considerar que a obrigação de prestação contas por parte da 1ª ré deva somente incidir no período em que esta exerceu funções de tutora da I. C..
B- Isto porque, como em qualquer outra ação, na petição inicial da ação especial de prestação de contas o autor deve dizer a razão por que pede contas ao réu, ou por outras palavras, a razão por que se julga no direito de exigir a prestação de contas e por que entende que sobre o réu impende a obrigação de as prestar.
C- Nos termos do artigo 573º a 575º do CC, a obrigação de informação (de informação propriamente dita, de prestação de contas e de apresentação de coisas ou documentos) existe sempre que o titular de um direito tenha dúvida fundada acerca da sua existência ou do seu conteúdo e outrem esteja em condições de prestar as informações necessárias, sendo que a ação de prestação de contas tem por fim o de estabelecer o montante das receitas cobradas e das despesas efetuadas, de modo a obter-se a definição de um saldo e a determinar a situação de crédito ou de débito. – cfr acórdão da Relação de Lisboa de 05/02/2019, in www.dgsi.pt.
D- Assim resulta da lei, do negocio jurídico ou do principio geral da boa fé que quem administra bens ou interesses alheios está obrigado a prestar contas da sua administração, ao titular desses bens ou interesse. O sublinhado é nosso.
E- Ora, resulta dos autos principais de interdição e foi alegado em sede de PI que a falecida I. C. foi entregue aos cuidados da 1ª ré M. G. a 22/07/2012.
F- Resulta ainda que apesar da Segurança Social ter revogado o contrato de família de acolhimento que mantinha com a 1ª ré, esse organismo não retirou de imediato a I. C. dos cuidados da 1ª ré.
G- A nova acompanhante da I. C., C. V., só foi autorizada a movimentar a conta bancária da titularidade da I. C. a 17 de Fevereiro de 2020.
H- Assim e salvo o devido respeito por diversa opinião entende-se que erra o douto despacho saneador quando circunscreve a obrigação de prestar contas ao período coincidente com àquele em que a 1ª ré M. G. exerceu as funções de tutora da falecida I. C..
I- Isto porque apesar de ter sida nomeada tutora da I. C. somente a 12/03/2014, a verdade é que a ação de interdição deu entrada muito antes, mais precisamente em 2013.
J- Resulta ainda dessa ação de interdição, que a 1ª ré M. G. foi nomeada tutora da I. C. não por ser familiar direta desta mas por ser a pessoa que cuidava da I. C. anteriormente a interposição da ação de interdição, mais precisamente desde 22/07/2012 ao abrigo de um contrato de família de acolhimento celebrado entre a Segurança Social e a 1ª ré M. G..
K- Foi alegado em sede de PI o facto de apesar de ter revogado o contrato de acolhimento com a 1ª ré M. G., a Segurança Social não retirou de imediato a I. C. dos cuidados da 1ª ré M. G..
L- Foi ainda alegado que C. V., apesar de ter sida nomeada acompanhante da I. C. por despacho proferido a 15 de Novembro de 2019 em substituição da 1ª ré M. G. só teve acesso a conta bancária desta I. C. em 17 de Fevereiro de 2020.
M- Dir-se-á finalmente que o douto despacho confunde a obrigação legal do tutor prestar contas com a obrigação de prestar contas por parte de quem administra dinheiros de terceira pessoa, que é o caso dos autos.
N- Pelo que e salvo o devido respeito por diversa opinião, a obrigação de prestar contas não se pode circunscrever ao período temporal coincidente com o período da tutoria 1ª ré M. G. na medida em que esta 1ª ré M. G. administrou a conta bancária e tinha acesso aos dinheiros da I. C. quase dois anos antes de ter sido nomeada tutora desta, mais precisamente desde 22/07/2012, data em que a I. C. lhe foi entregue ao abrigo de um contrato de família de acolhimento e na medida em que essa administração cessou muito após ter cessado as suas funções de tutora, mais precisamente a 17/02/2020, data em que a nova acompanhante teve acesso a conta bancaria da I. C..
O- Devendo nessa medida o douto despacho saneador seja revogado e substituído por outro que obrigue/condene a prestação de contas a prestar desde 22 de Julho de 2012 até 17 de Fevereiro de 2020.
P- Relativamente a ilegitimidade dos 2º réu, C. A. e da 3ª ré D. C., entende-se igualmente que o douto despacho saneador errou ao julgar àqueles réus partes ilegítimas.
Q- Dispõem os artigos 1954º e 1955º, n.º 1, do CC que pertence ao conselho de família vigiar o modo por que são desempenhadas as funções do tutor sendo que o protutor compete em especifico exercer ação de fiscalização com carácter permanente.
R- Pelo que entende-se que os referidos 2º e 3º réus são partes legítimas destes autos na medida em que decorre da lei que toda e qualquer despesa efetuada pela tutora foi fiscalizada ou deveria ter sido fiscalizada pelo conselho de família e, nessa medida, se alguma despesa foi efetuada é porque o referido conselho de família, no exercício das suas funções, no mínimo não se opôs a ela.
S- Pelo que e salvo o devido respeito por diversa opinião os referidos 2º e 3º réus devem ser considerados partes legítimas no período respeitante ao exercício, respetivamente, dos seus cargos de protutor e de vogal, mais precisamente entre 12 de Março de 2014 e 15 de Novembro de 2019.
T- No entanto, já não se dirá o mesmo quanto ao período temporal em que a 1ª ré M. G. teve à sua disposição dinheiros da I. C. antes e depois de ter sida nomeada tutora da I. C., nomeadamente, no período compreendido entre 22 de Julho de 2012 e 12 de Março de 2014 e após já não ser tutora desta, isto é entre 15 de Novembro de 2019 e 17 de Fevereiro de 2020, na medida em que nesse período estes 2º e 3º réus não exerciam as suas respetivas funções.
U- Assim e em suma entende-se que a 1ª ré M. G. deverá prestar contas pelo período compreendido entre 22 de Julho de 2012 e 17 de Fevereiro de 2020 por ser o período de tempo em que de facto administrou os dinheiros da falecida I. C..
V- Já os 2º e 3º réus só terão solidariamente de prestar contas com a 1ª ré no período coincidente com o exercício das suas funções, respetivamente, de protutor e de vogal do conselho de família, a saber entre 12 de Março de 2014 e 15 de Novembro de 2019.
W- Devendo nessa medida o douto despacho saneador ser revogado e substituído por outro nesse sentido.”
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Foram apresentadas contra-alegações pelos R.R. que terminam com as seguintes
-CONCLUSÕES- (que se reproduzem)

“A. Vem o recurso interposto do Despacho Saneador que julgou partes ilegítimas os Réus C. A. e D. C. e, consequentemente, os absolveu da instância e, bem assim, considerou que o período temporal objeto da presente lide circunscrever-se-á ao período compreendido entre a data em que a Primeira Ré foi nomeada tutora da interdita, em 12.03.2014, até à data da sua substituição, em 15.11.2019.
B. Somos de entender que bem andou o Tribunal Recorrido ao circunscrever o objecto dos autos, como de resto é o objeto da ação especial de prestação de contas, ao período compreendido entre a nomeação da Primeira Ré como Tutora e a sua substituição, isto é, entre 12.03.2014 a 15.11.2019.
C. A obrigação de prestação de contas tem lugar sempre que alguém trate de negócios alheios ou de negócios ao mesmo tempo alheios e próprios e só existe nos casos expressamente consignados na lei;
D. No caso da nomeação de tutor, a obrigação de prestação de contas existe a partir do momento em que aquele é nomeado;
E. Antes desse momento (nomeação) não existe a qualidade de tutor e, portanto, não há qualquer obrigação legal – nessa qualidade – de prestar contas, nem de qualquer uma das situações tipificadas na lei, como tal não poderá lançar-se mão de uma ação especial de prestação de contas, que, repete-se apenas tem lugar desde o momento que a Ré foi nomeada como tutora e até ao termo do referido cargo, não antes nem depois.
F. Quanto à considerada ilegitimidade passiva do Segundo e do Terceiro Réus que foram absolvidos da instância, uma vez mais, bem andou o Tribunal de Primeira Instância, ao enveredar por tal entendimento.
G. Temos por certo que a obrigação de prestar contas decorre diretamente da lei, como também pode derivar do negócio jurídico ou mesmo do princípio geral da boa-fé, sendo que a prestação de contas pressupõe que a pessoa a quem são pedidas as contas tenha exercido gerência ou administração de interesses da pessoa que as pede.
H. Inexiste quanto ao Conselho de Família, contrariamente ao que sucede com o Tutor (noutros casos também quanto a mandatário, administrador de pessoas coletivas, curador, gestor de negócios, cabeça de casal, marido, depositário judicial, credor anticrético ou pignoratício com direito a cobrar rendimentos) a obrigação legal de prestar contas.
I. São, pois, o segundo e terceiro réus partes ilegítimas na presente lide, havendo, pois, também nesta parte, de se confirmar o douto despacho recorrido.
J. Em suma, nenhum provimento merece o Recurso apresentado, que deverá ser julgado integralmente improcedente, mantendo-se a decisão recorrida.”
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O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, em separado e efeito devolutivo, o que confirmado neste Tribunal.
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Após os vistos legais, cumpre decidir.
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II QUESTÕES A DECIDIR.

Decorre da conjugação do disposto nos artºs. 608º, nº. 2, 609º, nº. 1, 635º, nº. 4, e 639º, do Código de Processo Civil (C.P.C.) que são as conclusões das alegações de recurso que estabelecem o thema decidendum do mesmo. Impõe-se ainda ao Tribunal ad quem apreciar as questões de conhecimento oficioso que se resultem dos autos.

Impõe-se por isso no caso concreto e face às elencadas conclusões:
-verificar se os 2º e 3º R.R. são partes legítimas na presente ação;
-verificar se a prestação de contas deve respeitar ao período entre 22/7/2012 e 17/2/2020 ao invés do período entre 12/3/2014 e 15/11/2019 que foi o delimitado na decisão recorrida.
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III MATÉRIA A CONSIDERAR.

A matéria a tomar em consideração para a análise do caso é a que consta do relatório supra e em particular o que se mostra alegado na p.i..

Destaca-se, confirmado por consulta eletrónica dos autos, que:
-a 1ª R. foi nomeada tutora da interdita em 12 de março de 2014 – cfr. decisão proferida no processo principal;
-foi substituída no cargo em 15 de Novembro de 2019 -despacho com a referência 44644953 no processo principal.
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IV O MÉRITO DO RECURSO.

Iniciaremos a apreciação dos fundamentos do recurso com a aferição do pressuposto processual da legitimidade passiva, que terá de se verificar para que o Tribunal possa apreciar o mérito da causa.
De facto, a ilegitimidade ativa ou passiva configura uma exceção dilatória, cuja procedência obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância (artº. 287º, nº. 1, d), artº. 577º, e) e artº. 576º, nº. 2, do C.P.C.), salvo casos, designadamente de preterição de litisconsórcio (pluralidade de partes de um ou de ambos os lados da relação, ao invés da legitimidade singular), em que o vício possa ser sanado através do incidente de intervenção de terceiros –artº. 311º e segs. do C.P.C..

Face ao disposto no artº. 30º do C.P.C., o autor é parte legítima quando tenha interesse direto em demandar e o réu é parte legítima quando tenha interesse direto em contradizer (n.º1), sendo que, para esse efeito, o interesse direto em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da ação e o interesse direto em contradizer pelo prejuízo que dessa procedência advenha (nº. 2).
Para que o pressupostos da legitimidade se verifique é necessário que quem figura no processo como autor e como réu sejam os efetivos detentores do interesse relevante que se encontra em discussão na ação submetida pelo autor à apreciação e à decisão do tribunal, ou seja, exige-se que quem figura como parte na causa, quer do lado ativo (enquanto autor), quer do lado passivo (enquanto réu), tenham uma posição concreta perante a causa que é submetida ao tribunal, e daí que a legitimidade não seja uma qualidade pessoal, mas antes uma qualidade posicional da parte face à ação, ao litígio que aí se discute –Paulo Pimenta, pag, 69 de “Processo Civil Declarativo”.
A verificação deste pressuposto afere-se de acordo com a relação jurídica material controvertida delineada pelo autor na petição inicial, ou seja, face aos factos por ele alegados nesse articulado e com base nos quais configura a relação jurídica material controvertida que submete à apreciação e à decisão do tribunal, não se procurando nesta fase preliminar indagar se os factos são verdadeiros (o que já contenderá com a legitimidade substantiva) –cfr. artº. 30º, nº. 3, do C.P.C..
No caso dos autos do lado ativo a questão não foi colocada; os A.A. apresentam-se como herdeiros da acompanhada/interdita, em litisconsórcio necessário natural –artº. 33º, nºs. 2 e 3, do C.P.C..
Sem nos alongarmos na questão (que seria, caso se verificasse uma ilegitimidade ativa, de conhecimento oficioso), foi já decidido no Ac. do STJ. de 5/11/96 (relator Lopes Pinto, sumariado em www.dgsi.pt) que : III - Falecida a interdita por anomalia psíquica, a legitimidade para requerer a prestação de contas pertence aos seus herdeiros. Veja-se o disposto no artº. 950º, nº. 1, do C.P.C..
Importa por isso delinear a questão do ponto de vista passivo. E do lado dos demandados, os A.A. sustentam que é de facto à 1ª R. que cabe prestar contas, mas no período em que a 1ª R. exerceu as funções de tutora, e os 2º e 3º constituíam o conselho de família-e apenas neste, o que “corrigiram” nas alegações de recurso e em relação à p.i. em que não faziam qualquer distinção-estes (2 e 3º) são também “responsáveis” pela atuação da 1ª R. já que lhes cabia fiscalizar a sua atividade, o que não fizeram.
Ora, e ainda que fosse ultrapassado o facto de não terem limitado na p.i. o pedido a esse período no que concerne aos 2º e 3º R.R. (embora curiosamente no pedido conste, com negrito nosso “…condenar-se os réus a prestarem contas aos autores do período em que eram tutor e membros do conselho de família da interdita I. C., devendo afinal os réus serem condenados a pagar aos autores, enquanto herdeiros da dita I. C. a importância que da quantia de € 86.197,49…”), o facto é que o dever de vigiar e de fiscalizar (artºs. 1954º e 1955º, nº. 1, do C.C.) não encerra a incumbência de prestação de contas, nem pode fundamentar a sua obrigatoriedade, e por isso a demanda dos 2º e 3º R.R.; em momento algum os A.A. alegam (outros) factos que imponham aos 2º e 3º R.R. a obrigação de prestar contas. Não podendo estes ser condenados no saldo que se apurar, para eles não deriva qualquer prejuízo da ação, não tendo interesse em contradizer.
De facto, no caso da prestação de contas, o artº. 941º do C.P.C. encerra o conceito de legitimidade ativa e passiva do ponto de vista processual, sem prescindir das normas de direito substantivo que impõe a obrigação de prestar contas: “A ação de prestação de contas pode ser proposta por quem tenha o direito de exigi-las ou por quem tenha o dever de prestá-las e tem por objeto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se.”. Não se confunde a legitimidade processual com a legitimidade substantiva, consistindo a primeira na alegação da obrigatoriedade de prestação de contas (e não qualquer outro dever), e a segunda em saber se a qualidade em que os R.R. se apresentam lhes confere o dever respetivo, ou seja, se a lei (civil) dá cobertura à pretensão dos A.A..
Em suma, os A.A. não imputam aos 2º e 3º a obrigação de prestar contas que teria de decorrer necessariamente da administração de bens alheios (e que justificaria a condenação no pagamento do saldo), o que é bastante para se concluir pela sua ilegitimidade passiva. Questão diversa é se a obrigação de fiscalizar a atividade do obrigado a prestar contas, e a sua violação, os faz incorrer noutro tipo de responsabilidade –que não está em causa nesta ação.
Improcedem por isso os argumentos apresentados quanto à primeira questão do recurso.
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Mas teremos de melhor desenvolver a matéria para a relacionar agora com o período a que respeita a obrigação, que é só, em consequência do que dissemos, da 1ª R. –à 1ª R. incumbe de facto a administração dos bens da interdita por força da sua função de tutora –conforme Jorge Duarte Pinheiro, “As pessoas com deficiência como sujeitos de direitos e deveres. Incapacidades e suprimento – a visão do Jurista”, pag. 474, E-book CEJ, 2015, refere que, “…o principal efeito da interdição consiste na negação de capacidade geral de exercício do incapaz e na nomeação de um tutor, a quem caberá agir enquanto representante do interdito, tudo numa lógica inspirada no modelo pensado para a incapacidade por menoridade (cfr. artigo 139º Código Civil)”; decorrendo por isso a obrigação de prestar contas do exercício da sua função, finda esta, do disposto no artº. 1944º, nº. 1, do C.C..
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Cabe agora tecer alguns comentários ao correspondente direito à prestação de contas, para que se entre na análise da segunda questão do recurso, que respeita ao período abrangido neste caso concreto.
O direito de prestação de contas, a nosso ver, não se confunde com o direito mais amplo à informação previsto no artº. 573º do C.C.; o dever de prestação de contas pode ser uma das vertentes do dever de informação, mas este não se esgota naquele nem como ele se confunde, muito menos o direito de exigir contas pode ter por fonte a obrigação de informação. A obrigação de informação é uma obrigação de carácter geral donde decorre a obrigação de prestação de contas, mas que não dispensa nem substitui a necessidade de norma de direito substantivo que imponha essa obrigação, ou negócio jurídico que a imponha, ou ainda que decorra do princípio geral da boa fé (cfr. Vaz Serra, “Obrigação de prestação de contas e outras obrigações de informação”, BMJ nº. 79, pags. 149 a 150). Esta é a posição que advogamos.
De facto, não existindo preceito legal genérico que determine quando é que a obrigação se impõe, existe um elenco vasto de casos previstos na lei, resultando sempre de casos de administração de bens alheios, pelo que temos de averiguar a fonte desta administração. E, quanto ao elenco, podem ver-se tais disposições em “Processos Especiais de Divisão de Coisa e Comum e Prestação de Contas” de Luís Filipe Pires de Sousa, 2017, pags. 120 e 121, pelo que nos dispensamos de aqui as mencionar, sendo certo que da p.i. decorre que os A.A. invocam a qualidade de tutora da 1ª R. (excluída já a legitimidade dos 2º e 3º R.R.) como único título de administração de bens, remetendo para o disposto nos artºs. 1936º e 1944º, nº. 1, do C.C.. Voltaremos a este ponto, que desenvolveremos melhor.
Conforme Ac. da Rel do Porto de 7/11/2019 (www.dgsi.pt) “Deste preceito legal resulta que o direito de exigir a prestação de contas está directamente relacionado com a qualidade de administrador em que alguém se encontra investido quanto a bens que não lhe pertencem, ou que não lhe pertencem por inteiro. Essa actividade de administrador de bens alheios é susceptível de gerar receitas, podendo também impor a realização de despesas. Do confronto das receitas e despesas decorrerá ou não o apuramento de um saldo que aquele será condenado a pagar. Este entendimento é pacífico na jurisprudência, como salienta o Ac. RL, de 15.12.94, C.J., Tomo V, pág. 139, citando vários acórdãos, entre eles o do STJ de 14.01.75, publicado no BMJ 243, no qual se afirmou que o que justifica o uso da acção com processo especial de prestação de contas “é a unilateralidade do dever de uma das partes prestar contas à outra, por imperativo da lei ou disposição do contrato, relativamente a bens ou interesses que lhe foram confiados”. O mesmo entendimento tem a doutrina, como se constata dos ensinamentos do Prof. Alberto dos Reis, Processos Especiais, Vol. I, pág. 302 e segs., onde escreve: “Pode formular-se este princípio geral: quem administra bens alheios está obrigado a prestar contas da sua administração ao titular desses bens ou interesses”. E, posteriormente, na R.LJ, ano 82º, pág. 413, escreveu: “a prestação de contas pressupõe que a pessoa a quem são pedidas as contas exerceu gerência ou administração de interesses da pessoa que as pede”.
Esta ação tem por objeto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios (função inicial ou declarativa) e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se (função de prestação de contas) –cfr. Lopes do Rego, “Comentários ao Código de Processo Civil”, Almedina, 1.ª edição, pag. 648.
Também se diz que este processo tem em vista ultrapassar as dificuldades de que padece o titular dos bens administrados em poder calcular o montante do saldo a que terá direito, visto que será quem administrou tais bens que terá a informação do ocorrido em tal gestão.
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Vendo o caso em apreço de uma forma linear, chegamos à mesma conclusão a que chegou o Tribunal recorrido: a obrigação de prestação de contas da tutora, nessa qualidade (e o correspondente direito de as exigir por parte dos herdeiros da interdita), terá de se reportar (e só poderá reportar-se) ao período em que exerceu a respetiva função- no caso de12/3/2014 a 15/11/2019 –cfr. Ac. desta Relação de Guimarães, citado pelo recorrido, de 9/4/2019 (www.dgsi.pt).
A questão não pode, no entanto, ficar por aqui. É que, como vimos, pode haver outras normas (ou negócio jurídico, ou como decorrência do princípio da boa fé) que imponham a obrigação.
E, nesse caso, muito embora a dependência por conexão da prestação de contas por parte do tutor ao processo principal de interdição (artº. 947º do C.P.C., e artº. 948º e segs. do mesmo), poderia colocar-se a hipótese de se “cumular” no mesmo processo outros períodos anteriores ou posteriores ao exercício da função já que a tal não se oporia a forma (idêntica) de processado e assim se respeitariam o espírito e os princípios subjacentes ao atual C.P.C. (de agilização, de economia, de prevalência da substância sobre a forma em ordem à obtenção da verdade material, de gestão processual…).
De facto, no caso da obrigação que se impõe ao cabeça de casal, já abordamos no processo nº. 759/19.1T8PTL.G1 deste mesmo coletivo a dita possibilidade. Aí expusemos o seguinte: “Conforme se destaca no Ac. da Rel. do Porto de 7/11/2019 (www.dgsi.pt) “…a fonte primeira do cargo de cabeça-de-casal é a lei - cfr. artº 2080º do Código Civil (CC) -, pois o inventário judicial é apenas uma das formas que a lei prevê para a efectivação da partilha, que pode ser efectuada extrajudicialmente (cfr. artº 2102º do CC). Por conseguinte, a designação legal operada pelo artº 2080º do CC garante a determinação do cabeça-de-casal desde o momento em que se inicia a administração da herança. Tem sido este o entendimento predominante da doutrina (veja-se, neste sentido, Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, 3ª edição, vol. I, pág. 264 e vol. III, págs. 54/55; Rabindranath Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, vol. II, 2ª edição, pág. 55; e Domingos Silva Carvalho de Sá, Do Inventário, Descrever, Avaliar e Partir, 3ª edição, pág. 47). Fala-se, nestes casos, de “cabeça-de-casal de facto” por contraposição ao “cabeça-de-casal investido”, ou seja, aquele que é nomeado no processo de inventário (Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, Volume, III, pp. 55 a 57). Esta distinção não deriva da diversidade de fontes do cargo num e noutro caso. Com efeito, mesmo quando o cabeça-de-casal é nomeado por decisão judicial, no processo de inventário, a fonte pode ser a lei, se o juiz se limitar a fazer aplicação do disposto no art. 2080º do CC. Já nas hipóteses em que o cabeça-de-casal é designado pelo tribunal nos termos previstos no art. 2083º do CC, a fonte é a decisão judicial.
Em todo o caso, a referida distinção tem relevância justamente na acção para prestação de contas, pois tem sido entendimento da doutrina que a acção para prestação de contas do “cabeça-de-casal de facto” segue a tramitação geral plasmada no artº 941º e seguintes do CPC, enquanto que a acção para prestação de contas do “cabeça-de-casal investido” aplica-se o disposto no artº 947º do CPC, ou seja, está dependente do processo de inventário, no qual foi nomeado, o que significa que corre por apenso a este processo - cfr. artº 206º, nº 2, do CPC. A diferença entre uma e a outra reside apenas na apensação ou não ao processo de inventário e na determinação da competência territorial, pois a demais tramitação coincide. Mas, como se escreve no Ac da RL de 08/11/2007, Proc. nº 7652/2007-2, www.dgsi.pt), «esta regra de dependência da acção de prestação de contas do cabeça-de-casal em relação ao processo de inventário, não contende com a sua tramitação processual, nem, como se referiu, a lei prevê qualquer diferença específica nessa tramitação»”.
Desde já se adiante que entendemos que a partir do momento que existe inventário cremos que a ação de prestação de contas que incumbe ao cabeça de casal deve correr por apenso a este, abarcando os dois sub períodos, deixando de se aplicar a regra da ação autónoma e o disposto no artº. 80º do C.P.C. quanto à competência. Só assim não seria e teria de ser proposta ação autónoma antes se antes de proposto o inventário se entendesse propor a prestação de contas com base na administração de bens por parte do cabeça de casal de facto.”
Veja-se ainda o Ac. da Rel. de Lisboa de 12/11/2015 (relatora Anabela Calafate) e o de 14/11/2019 (relator Luís Correia de Mendonça), ambos em www.dgsi.pt. Veja-se ainda o entendimento diverso que proponha Lopes Cardoso (“Partilhas Judiciais”, Vol. III, pag. 56 da 3ª edição): “Portanto, o cabeça de casal de facto prestará as suas contas pelo processo geral dos arts 1014º e ss, e o cabeça de casal investido judicialmente em inventário pelo processo do art 1019º CPC, sendo competente para as primeiras o tribunal do domicílio do réu (art 85º) e processando-se as segundas por dependência do processo de inventário (art 1019º)”.
A questão que aqui se coloca é se podemos fazer o mesmo raciocínio para o momento anterior ao deferimento do cargo de tutora.
Ora, não nos parece ser defensável tal posição. De facto, e no caso concreto, a única referência que na p.i. é feita a esse período é que a interdita foi em 22/7/2012 entregue aos cuidados da 1ª R.. Esta “entrega aos cuidados” nada diz relativamente à questão da administração de bens, ponto primordial para existir um qualquer encargo de prestação de contas. Fica por isso desde logo destinada ao insucesso qualquer alusão a um direito a exigir prestação de contas no período anterior a 12/3/2014 (e desde 22/7/2012). Os alegados “gastos” feitos pela 1ª R. (“…gastou assim em 2012 € 5.037,24 da conta da I. C.…”) terão por isso, se for o caso, se ser analisados noutro âmbito e sob outra perspetiva.
Igualmente no que diz respeito ao período posterior a 15/11/2019: quando a esse período (e até 18/2/2020) o que vem imputado à 1ª R. na p.i. é a manutenção da interdita aos cuidados da 1ª R., e depois a (possibilidade de) movimentação da conta bancária (factos melhor esclarecidos em sede de exercício do contraditório às exceções), e levantamentos. Ora, se os mesmos são indevidos, também não pode aqui ser analisado já que não está já em causa qualquer tipo de administração de bens alheios, de que a 1ª R. já havia sido judicialmente arredada.
Quaisquer outros atos de que se queiram retirar consequências sobre a 1ª –e o mesmo se diga quanto aos 2º e 3º R.R. –tal só pode ser cogitado em sede de responsabilidade civil (ou eventualmente criminal) verificados que estejam os respetivos pressupostos. Mas não pode ser abrangido numa ação especial de prestação de contas, estando fora do seu âmbito.
Cumpre-nos ainda esclarecer o seguinte, face às alegações de recurso: é na petição que o A. deve dizer a razão por que pede contas ao R., ou seja, a razão por que se julga no direito de exigir a prestação de contas e por que entende que sobre o R. impende a obrigação de prestar contas -Alberto dos Reis, “Processos Especiais”, vol. I, pag. 314- isto no caso a que se reportam os autos (prestação forçada), embora a ação também possa ser proposta por quem tem o dever de prestá-las (prestação espontânea) –cfr. artº. 552º, nº. 1, d), do C.P.C.. Na verdade, esta ação não é diferente das demais, e por isso também na ação especial de prestação contas a causa de pedir consiste no facto concreto que se invoca para obter o efeito pretendido, ou no facto ou acto jurídico de onde emerge o direito invocado e pretendido fazer valer pelo autor (artº. 581º, nº. 4, do C.P.C.). Por isso terá o A. de dizer na p.i. a razão por que pede contas ao R., a razão por que se julga no direito de exigir a prestação de contas e por que entende que sobre o R. impende a obrigação de as prestar. Doutro modo, ou se assim não for, entra-se no campo da ineptidão da p.i. -artº. 186º, nº. 2, a), do C.P.C. (e caso abrangesse todo o pedido).
É da análise da p.i. que concluímos não estar alegada factualidade relativa á administração de bens da interdita no período anterior ou posterior ao considerado na decisão recorrida. A alusão ao contrato de família de acolhimento tido com a Segurança Social nada tem que ver com o objeto deste processo, nem os seus termos estão aqui colocados. Os A.A. tentaram “compor” os factos alegados quando exerceram o direito ao contraditório às exceções invocadas, mas ainda assim, e como se vê da reprodução que fizemos no relatório da alegação apresentada, fizeram-no de forma conclusiva e insuficiente.
Por tudo o exposto, esteve bem o Tribunal recorrido ao limitar o período abrangido nesta ação especial nos termos em que o fez, em conformidade com a causa de pedir e com o objeto do processo em questão que corre por dependência da ação de interdição, devendo por isso ser confirmada a decisão proferida.
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V DISPOSITIVO.

Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso totalmente improcedente e, em consequência, negar provimento à apelação, e confirmar a decisão recorrida.
Custas do recurso pelo recorrente, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário – artº. 527º, nºs. 1 e 2, do C.P.C..
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Guimarães, 3 de março de 2022.

O presente acórdão é assinado electronicamente pelos respectivos

Relatora - Lígia Paula Ferreira Sousa Santos Venade;
1.º Adjunto - Fernando Barroso Cabanelas;
2.ª Adjunta - Eugénia Pedro.