PROCESSO DE INVENTÁRIO
RECLAMAÇÃO DA RELAÇÃO DE BENS
MEIO DE PROVA
CONTRATO PROMESSA DE PARTILHAS
DECLARAÇÃO CONFESSÓRIA DE DÍVIDA
Sumário

– A declaração constante dum contrato promessa de partilha, apresentada num inventário, não pode ser desconsiderada, pois para além dos efeitos negociais, que não se discutem, constitui um ato jurídico, e como tal deve ser atendido e apreciado, no sentido que do mesmo resulta, de uma declaração confessória, relativamente à qual não foi invocado qualquer vício de vontade.

– A relação especificada dos bens comuns constitui uma condição de prosseguimento do processo de divórcio, consubstanciando-se num documento subscrito por ambos os cônjuges, não pode deixar de ser atribuído particular valor probatório, enquanto confissão da existência de uma dívida de um cônjuge ao outro.

Texto Integral

ACORDAM NA 7ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA


I–Relatório:


1.Nos autos de inventário, em que é Requerente, A [ DÉLIA ....] , e Requerido, B [ ANTÓNIO .......], veio a Requerente interpor recurso do despacho que indeferiu a reclamação a reclamação de bens e manteve relacionada a dívida ao cabeça de casal como verba n.º 2, proferido na audiência prévia de 21.09.2021.

2.–Nas suas alegações formulou as seguintes conclusões:

1.- A narração “divida ao requerente marido por benfeitorias em bens comuns feitas com dinheiros próprios” inserta num contrato promessa de partilha não é uma declaração confessória.
2.-As declarações dos cônjuges envolvem factos cujo reconhecimento a lei não permite, pelo que também não pode ser admitida a confissão.
3.-Tal não integra uma declaração de vontade e o seu conteúdo não pode ser considerado como um ato de natureza negocial.
4.-Logo, não tem de aplicar-se o artigo 358.°, do mesmo código, que disciplina a força probatória da declaração confessória.
5.-Um contrato promessa de partilha deixa intocado o estatuto que define o regime de bens do casamento, pois não altera as regras que valem acerca da propriedade dos bens dentro do seu casamento, nem modifica as normas aplicáveis à comunhão, tão-pouco modificando o estatuto de qualquer bem concreto
6.-O regime patrimonial do casamento não permite que a qualificação de bens como próprios resulte de uma mera narração: a integração dos bens numa das massas de bens prevista para os regimes de comunhão (se próprio, se comum) decorre sempre da disciplina legal aplicável.
7.-Por essa razão, não pode ser atribuída natureza “confessória” à parte narrativa do contrato promessa: as declarações dos cônjuges envolvem factos cujo reconhecimento a lei não permite, pelo que não pode ser admitida a confissão nos termos da alínea a) do artigo 354.º do Cod. Civil.
8.-Na jurisprudência tem prevalecido a tese segundo a qual a relação de bens que acompanha o requerimento para a separação por mutuo consentimento não visa determinar a forma de proceder à partilha, não tendo também a natureza de negócio jurídico, cuja validade se possa discutir.
9.-Por isso, como a relação de bens comuns não tem por finalidade a determinação dos bens que necessariamente, devem ser objeto de posterior partilha, o apuramento daqueles deve ter, antes, lugar no subsequente inventário.
10.-O despacho recorrido viola os artigos 352.º, 354.º, al. b), 358.º, do C Civil.
11.-Termos em que deve o despacho recorrido ser revogado e substituido por outro que revogue o   despacho saneador na parte em que mantém relacionada a divida ao cabeça-de-casal como verba n.º 2.

3.–Nas suas contra-alegações o Apelado apresentou as seguintes conclusões:

a)-Importa desde já esclarecer que a verba da relação de bens posta em crise pela recorrente no recurso que agora se responde, é na verdade, a verba n.º 6 do passivo da relação de bens apresentada e não a verba n.º 2 como, por lapso, aquela identificou na sua motivação de recurso.
b)-Respeita aquela verba n.º 6 à dívida que a Recorrente tem para o Recorrido que, depois de relacionada, a mesma impugnou em sede de reclamação à relação de bens, afirmando apenas desconhecer quais foram as benfeitorias feitas em bens comuns do casal cujo pagamento foi feito com dinheiros próprios do Recorrido, no valor de 77.500,00€;
c)-Ora como a Recorrente bem sabe, aquele montante em dívida resultou das obras de reconstrução e ampliação significativa do anexo contíguo ao prédio urbano propriedade de ambos e objeto de partilha nos presentes autos;
d)-Por isto, é por demais evidente que a Recorrente falta à verdade naquela reclamação.
e)-Mas, o que importa mais atentar é o facto que a Requerente e agora recorrente sempre ter reconhecido a existência legal daquela dívida, tal como resultou comprovado nos autos com a junção de dois documentos: 1. Uma certidão do processo de divórcio por mútuo consentimento, onde consta uma acta de conferência do divórcio e um despacho de homologação do mesmo e dos respetivos acordos por parte da Senhora Conservadora do Registo Civil, entre os quais sobressai para o que aqui interessa uma relação de bens subscrita/assinada pela Requerente e pelo Recorrido, onde aquela confessa a existência daquela dívida para com aquele; e 2. Um contrato de promessa de partilha também subscrito e assinado pela Recorrente, onde mais uma vez confessa a existência da mesma dívida e se compromete a liquidá-la;
f)-Ora, em termos muito simples, a questão que aqui se discute, independentemente das considerações que se possa vir a ter sobre cada um dos documentos é se, com aqueles documentos juntos aos autos, o Meritíssimo Juiz  a quo andou mal, ou não, a reconhecer a existência da mesma;
g)-Obviamente o nosso entendimento é que outro entendimento não é possível que não seja o reconhecimento da dívida da recorrente para com o Recorrido.
h)-Isto porque sobre a matéria rege o art.º 1106 do CPC que estipula no seu n.º 4 que caso não haja convergência dos interessados na aprovação ou reconhecimento do passivo, poderá o Meritissimo Juiz ...“apreciar a sua existência e montante quando a questão pode ser resolvida com segurança pelo exame dos documentos apresentados“;
i)-Isto significa que no presente caso e perante os documentos supra referidos, acompanhados da posição da Recorrente que quanto àquela verba apenas refere que só se recorda de umas pequenas obras cujo valor não ascendeu a 2.500,00€ sem nunca impugnar a sua letra ou assinatura naqueles dois documentos, e sem alegar e, muito menos, provar ou indicar qualquer vício da formação da sua vontade, salvo o devido respeito, não poderia o Tribunal a quo deixar de reconhecer aquele passivo;
j)-É que além da assinatura daqueles dois documentos, pelo menos a relação de bens e o seu conteúdo foi pela Recorrente confirmado perante autoridade pública – no caso perante a Conservatório do Registo Civil de Ponta Delgada, o que confere ao documento uma força probatória superior, sendo certo que constando aquela verba da relação de bens ali junta, impende sobre a mesma a presunção da existência daquela verba agora posta em crise;
k)-Por outro lado em momento algum, quer na suposta reclamação, quer ainda aquando da motivação do presente recurso a Recorrente põe em causa que assinou e subscreveu aqueles documentos, que o fez em liberdade e no pleno das suas faculdades mentais, nunca colocando em causa, de forma séria ou minimamente credível a veracidade daqueles documentos e do que dos mesmo consta;
l)-Por isso independentemente das considerações que a Recorrente tece na sua motivação de recurso sobre a natureza formal de cada um daqueles documentos como documentos confessórios, o que não se concede, andou bem o Tribunal em reconhecer a existência daquela verba;
m)-A título meramente de exemplo, vem a Recorrente alegar que a confissão não faz prova contra o confitente se recair sobre factos relativos a direitos indisponíveis mas nunca nos autos alegou, indiciou ou sequer fez prova daquela dívida se referia a uma situação destas;
n)-E não o fez porque sabe que aquela dívida é verdadeira;
o)-Por tudo isto, mais uma vez se afirma que perante a existência daqueles documentos, onde a Recorrente afirma de livre vontade (porque nunca deu notícia dos autos que assim não tinha sido), que é devora daquela quantia certa e quantificada ao Recorrido comprometendo-se a liquidá-la, constando mesmo de uma relação de bens junta com o processo de divórcio e homologada pela Senhora Conservadora do Registo Civil de Ponta Delgada, em cuja ata atesta que as partes (recorrente e recorrido) confirmara, o teor dos documentos e dos acordos, e perante a falta de impugnação séria por parte da Recorrente, o Meritíssimo Juiz a quo cumpriu o dever que sobre ele impendia nos termos do art.º 1106 do CPC, reconhecendo a existência daquela dívida por resulta clara e inequívoda dos documentos juntos e do próprio comportamento da Recorrente que, em momento algum, abalou de forma séria a credibilidade e veracidade dos mesmos;
p)-Acresce que sobre a figura “relação de bens“, importa ainda atentar no seguinte: a obrigação de os cônjuges apresentarem, no âmbito do processo de divórcio por mútuo consentimento uma “relação especificada de bens comuns“, tem o propósito claro de proteger cada um dos cônjuges contra atos de sonegação de bens comuns ou dos respetivos rendimentos por banda do outro;
q)-Protege-os, para que a respetiva relevância se proteje noutros processos, além dos de divórcio, com a consequência de ser sobre o cônjuge que venha a negar a existência, a qualificação ou do valor do bem incluído na relação, que recai o ónus de provar que o bem existe, que não lhe deve ser reconhecida a dita qualificação ou atribuído aquele valor;
r)-A relação especidicada dos bens comuns é no fundo um documento informativo ou “narrativo“, e que consta em duplicado no contrato-promessa de partilha, como refere a Recorrente, que descreve situações, contendo declarações de ciência;
s)-Quanto à questão da autenticidade ou genuidade deste documento, como atrás se afirmou já, a Recorrente nunca invocou que não assinou ou que não emitiu tal declaração, ou que não foi por ela assinada ou não se trata da sua assinatura;
t)-Em rigor, trata-se a relação de bens que acompanha o requerimento de divórcio por mútuo consentimento, um documento também ele assinado por cada um dos cônjuges e apresentado perante uma autoridade pública, o que obsta, em princípio, a que se ataque a declaração como não proveniente daquela signatária, ora Recorrente;
u)-Assim, não tendo impugnado a autenticidade do documento, fica também estabelecida a autenticidade do texto, tendo-se como verdadeiro o contexto do documento;
v)-Deste modo, nos termos do art.º 376 do CC, o documento faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, considerando-se provados os factos compreendidos na declaração na medida em que forem contrários aos interesses do declarante;
w)-De igual modo, nos termos do art.º 358, n.º 2, do CC, “.. a confissão estrajudicial, em documento autêntico ou particular, considera-se provada nos termos aplicáveis a estes documentos, e se for feita à parte contrária ou a quem a representa, tem força probatória plena;
x)-Ora, a prova plena só pode ser contrariada por meio de prova que mostre não ser verdadeiro o facto que dela for objeto, conforme o art.º 347, do CC;
y)-Assim sendo, em momento algum a recorrente alegou, indiciou ou provou a falsidade daqueles documentos e do contéudo dos mesmos:
z)-Não o demonstrando, o Tribunal está obrigado a aceitar as afirmações que se encontram provadas pelo documento apresentado;
aa)-Já quanto à figura do contrato promessa de partilha, ambos os ex-cônjuges, ao assinarem estão a assumir que aqueles bens existem, são comuns ou se existem créditos entre eles e que, como tal, estão sujeito à partilha, à qual se comprometem;
ab)-Não pode também este documento ficar vazio de sentido e inutilidade se não se puder ter em conta no processo de inventário, em que já previamente se projetou a resolução de um conflito, uma vez que também a sua razão de existência é assegurar que não exista a utilização da ascendência de um cônjuge sobre o outro;
ac)-Pelo que, na mesma linha de pensamento relativamente à relação de bens, também aqui, quanto ao contrato de promessa de partilha, competia à Recorrrente provar, e não apenas alegar  inexistência da dívida, quando a mesma assinou e confessou/reconheceu que aquela dívida existia e com aquele valor, fazendo por isso prova plaena, nos termos do art.º 328 e 376, do CC;
ac)-Mais ainda, também não fere o contrato-promessa de qualquer invalidade, uma vez que respeir a regra da metade, em conformidade com o disposto no art.º 1714, do CC, assim como o princípio da imutabilidade do regime de bens a que se refere;
ad)-E bem assim, uma vez que contempla a totalidade das situações jurídicas ativas e passivas que compõem o património comum do casal e contém a indicação do valor integral do conjunto dessas situações e o mesmo, em especial, quanto à verba n.º 6 aqui em destaque, respeita também assim o disposto do art.º 1730, do CC;
ae)-Assim, não só se considera, na mesma perspetiva do Tribunal a quo que o cônjuge confessou a dívida, de forma escrita, como a reconheceu duplamente ao assinar estes documentos, de forma livre e consciente;
af)-Face ao assim exposto, devem ser julgadas improcedentes as alegações de recurso da Recorrente, pelos motivos já elencados.

4.– Cumpre apreciar e decidir.
***

II–Enquadramento facto-jurídico

ADa certidão digital apresentada, mas também da consulta via Citius retém-se, para o conhecimento do recurso interposto, as seguintes ocorrências processuais:
1.-No âmbito de processo de divórcio por mútuo consentimento, em que foram requerentes a Apelante e o Apelado, na Conservatória do Registo Civil de Ponta Delgada, foi apresentada pelos mesmos a “Relação especificada dos Bens Comuns”, datada de 25.10.2016, subscrita e assinada pelos dois, sendo indicada como “Verba n.º 6: Dívida ao requerente marido por benfeitorias em bens comuns feitas com dinheiros próprios, no valor de 77.500,00€”.
2.-Em 26.10.2016, pela Conservadora do Registo Civil, foi decretado o divórcio entre a Apelante e o Apelado, por mútuo consentimento, homologando o acordo quanto ao destino da casa de morada de família.
3.-Em 28.10.2018 a Apelante veio requerer instauração de inventário, junto de Cartório Notarial.
4.-Por despacho notarial de 12.02.2019, foi ordenada a citação do Apelado, enquanto cabeça de casal e designado dia para a prestação de declarações.
5.-Em 6.05.2019 foi apresentada a relação de bens pelo cabeça de casal.
6.-Na relação de bens consta no “Passivo” a Verba n.º 2: “Dívida ao cabeça de casal, por benfeitorias em bens comuns feitas com dinheiros próprios deste, no montante de €77.500,00”.
7.-Em 20.05.2019 a Apelante veio apresentar reclamação contra a relação de bens,  requerendo a exclusão da verba nº2 do passivo, reportada a benfeitorias em bens comuns, referindo que se recorda de o cabeça de casal, sem a sua autorização, ter feito obras num anexo sito no quintal do imóvel relacionado em 1., cujo valor não ascendeu a 2.500,00€, pagas com dinheiro de ambos, através da conta bancária mencionada na mesma reclamação, onde consta nos extratos de conta vários pagamentos feitos a empresas de construção civil, como a MaxMat ou o Canha e Filhos, entre outros, apresentando requerimento probatório.
8.-Solicitada o envio dos autos para o Tribunal competente, por despacho de 18.03.2020, foi ordenada a remessa.
9.-Por despacho de 2.11.2020, considerando que não fora apresentada resposta à reclamação de bens foi designado dia para audiência prévia.
10.-Em 24.11.2020 o Apelado veio arguir a nulidade do despacho que considerou não haver resposta à reclamação, invocando não ter sido notificado da mesma, e alegando que tem todo o interesse em responder, nomeadamente para juntar o “contrato promessa de partilha e pagamento da dívida, onde segundo o mesmo a Apelada confessa ser devedora ao cabeça de casal de 77.500,00€.
11.-O Apelado juntou então um documento designado de “Contrato Promessa de Partilha e Pagamento de Dívida”, datado de 25.10.2016, assinado pela Apelante e pelo Apelado.

12.-  Nesse documento, para além do mais, consta:
- Cláusula 1.ª, Os 1ª e 2.º outorgantes têm, em comum, os seguintes ativo e passivo relacionado no processo de divórcio pendente na Conservatória do Registo Civil de Ponta Delgada:
- Passivo – Verba n.º 6, Dívida ao requerente marido por benfeitorias em bens comuns feitas com dinheiros próprios no valor de 77.500,00€.
- Cláusula 4.ª, O pagamento da indicada dívida ao 2.º outorgante será feita aquando da venda do prédio ou partilha do mesmo.
- Cláusula 10.ª, As partes prescindem do reconhecimento da assinatura, comprometendo-se a não invocar a omissão desta formalidade em juízo.

13.-Na resposta, a Apelante invoca a nulidade do alegado ontrato promessa de partilha, não tendo sido emitida a correspondente declaração negocial, tendo o cabeça de casal do mesmo abdicado e renunciado ao ter aceite desempenhar tais funções no inventário, e assim a partilha feita por via deste.
14.-Por despacho de 11.01.2021, foi declarado nulo o despacho de 2.11.2020 na parte em que assumiu como findos os articulados no incidente de reclamação contra a relação de bens, dando sem efeito a diligência marcada e ordenada a notificação do cabeça de casal para responder à matéria da reclamação.
15.-O Apelado, cabeça de casal veio responder, em 21.01.2021, nomeadamente quanto à exclusão da verba n.º2 do passivo, sabendo a Recorrente que foram obras de reconstrução e ampliação significativa do anexo contíguo ao prédio urbano constante da relação de bens, com duração de vários meses, adicionando-lhe casa de banho e quartos, estando tal dívida documentalmente provada. Mais alegou que sendo o contrato promessa de partilha válido, e vinculativo para as partes, pretendendo o seu cumprimento, tal obsta ao prosseguimento dos autos devendo ser determinado o seu arquivamento. Apresentou requerimento probatório.
16.-A Apelante veio exercer o contraditório quanto aos documentos juntos pelo Apelado (relação de bens na ação de divórcio e contrato promessa de partilha), invocando a nulidade do “contrato promessa) nos termos do art.º 280 do CC, não estão descritos os elementos essenciais de um contrato promessa, sendo insuscetível de execução específica por indeterminação ou indeterminabilidade do seu objeto.
17.-Por despacho de 5.02.2021 foi designado o dia 21.04.2021 para audiência prévia, passando para o dia 21.09.2021, em 30.04.2021, na sequência das contingências conhecidas.

18.–Em sede de audiência prévia, 21.09.2021, foi proferido o despacho sob recurso:
“Compulsados os autos, verifica-se que o cabeça-de-casal B relacionou na RB a fls. 23 e segs. a verba n.º 2, verba esta que respeita a uma dívida da interessada A para com aquele.
Na reclamação à relação de bens apresentada pela interessada A a mesma impugna a existência de tal dívida, referindo desconhecer quais foram as benfeitorias alegadamente feitas em bens comuns do casal (para maior detalhe, vide fls. 29v).
Apreciando, já que nada a isso obsta.
Transcorridos os elementos documentais juntos aos autos, resulta que a interessada A outorgou o contrato-promessa que está junto de fls. 66 a 67, do qual consta relacionada a verba n.º 6, descrita do seguinte modo: «dívida ao requerente marido por benfeitorias em bens comuns feitas com dinheiros próprios», no valor de 77.500,00 €; por outro lado, da própria ata da conferência do processo de divórcio e separação de pessoas e bens por mútuo consentimento n.° 3255/2016 (fls. 86 e segs.), consta, igualmente, como verba do passivo a já indicada verba n.º 6, com a descrição e valor anteriormente dito (cfr. fls. 81).
A força probatória da declaração confessória (esta efectivamente teve lugar e resulta cristalinamente dos documentos anteriormente indicados) é fixada pelo artigo 358.º, n.º 2, do Código Civil: considera-se provada nos termos aplicáveis ao documento de que consta (força probatória formal); e, tendo sido feita à parte contraria, reveste-se de força probatória plena contra o confitente (força probatória material). Daqui decorre, e considerando o comando legal previsto no artigo 359.°, n.ºs 1 e 2, do Código Civil, que o confitente não pode impugnar a confissão produzida, alegando, simplesmente, que o facto confessado não é verdadeiro: para destruir a força probatória da confissão terá de alegar e provar o erro ou outro vício da vontade de que tenha sido vítima.
Ora, retornando à reclamação em apreço, verifica-se que na mesma não é alegado qualquer erro ou outro vício da vontade que abale/afete a validade da declaração confessória vertida no supra elencado documento.
Assim, e sem necessidade de maiores considerandos, julgo improcedente, nesta parte, a reclamação e, em consequência, mantém-se relacionada a dívida ao cabeça-de-casal como verba n.º 2.”

B.–do direito

Como se sabe, o objeto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente, importando em conformidade decidir as questões nelas colocadas, bem como as que forem de conhecimento oficioso, com exceção daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, artigos 635.º, 608.º e 663.º, do CPC, não estando o Tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos ou fundamentos que as partes indiquem para fazer valer o seu ponto de vista, sendo que, quanto ao enquadramento legal, não está sujeito às razões jurídicas invocadas pelas mesmas, pois o julgador é livre na interpretação e aplicação do direito, artigo 5.º, n.º 3, do mesmo diploma legal.

Em conformidade, a saber está, se como pretende a Recorrente, contrariamente ao decidido, os documentos tomados em consideração no despacho sob recurso não atestam a existência da dívida ao cabeça de casal, por benfeitorias, no montante de 77.500,00€, inexistindo uma declaração confessória, porquanto a relação de bens junto ao processo de divórcio por mútuo consentimento e o documento designado como contrato promessa de partilha não revestem de tal qualidade, carecendo da força probatória que lhe foi atribuída.

Apreciando.

Não se questiona que dissolvido o casamento, cada um dos cônjuges recebe, na partilha, os seus bens próprios, mas também a respetiva meação no património comum, o que determina a liquidação do mesmo, com vista a apurar o valor do seu ativo, através do cálculo das compensações e da contabilização das dívidas a terceiros, e entre os cônjuges, antes de se proceder a efetiva partilha.

Na liquidação a operar não pode ser esquecido que no âmbito do normal desenvolvimento da relação matrimonial existe a possibilidade de os cônjuges se tornarem devedores entre si, decorrente de transferências entre patrimónios, quer seja o comum, quer o próprio de cada um dos cônjuges, nascendo um crédito, designado de compensação, n.º1, do art.º 1697, do CC, a favor do cônjuge que pagou a mais que o outro, formando-se uma espécie de conta corrente entre os patrimónios, que apenas se fecha no momento da partilha, pretendendo-se com a compensação corrigir os desequilíbrios existentes, através do reconhecimento de tais créditos, que assim devem ser relacionados, como passivo, a ser compensado pela meação do outro no património comum, para que nenhum dos intervenientes na partilha fique prejudicado.

Em causa nos autos está a verba da relação de bens apresentada pelo cabeça de casal, Recorrido, como a verba n.º 2 do “Passivo”, a saber: “Dívida ao cabeça de casal, por benfeitorias em bens comuns feitas com dinheiros próprios deste, no montante de €77.500,00”.

Tendo em conta o disposto no art.º 1106, n.º 3, do CPC, o Mmo Juiz a quo considerou que existiam nos autos documentos que resolviam com segurança a questão da impugnação da dívida relacionada na relação de bens, considerando que a Recorrente proferira declarações confessórias nos termos dos artigos 358 e 359 do CC, mantendo relacionada a dívida.

É sabido que a confissão, enquanto reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária, art.º 352, do CC, com base na regra da experiência, segundo a qual ninguém mente em contrário ao seu interesse, pode ser judicial[1], a feita em juízo, ou extrajudicial, isto é, a realizada por qualquer meio diferente da confissão judicial, art.º 355, também do CC, e como ato jurídico, a interpretação da declaração confessória deverá ser realizada no achamento do reconhecimento da realidade de um facto que seja desfavorável para o confitente, e em princípio com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, podia deduzir do comportamento do confitente, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele, art.º 236, n.º1, e 295, ambos do CC[2].

Assim, porque notoriamente no caso sob análise está em causa uma confissão extra judicial, diz-nos o art.º 358, n.º2, do CC, que tem força probatória plena, a realizada em documento autêntico ou particular, nos termos aplicáveis a estes documentos, se for feita à parte contrária, ou a quem a representa, podendo contudo ser declarada nula ou anulada, nos termos gerais, quando haja falta de vontade ou vícios da vontade, art.º 359, também do CC.

Por outro lado, quanto aos documentos particulares, nos quais constam as declarações de ciência, na medida em que contém uma informação sobre a realidade, o documento particular assinado, a sua letra e assinatura ou só a sua assinatura quando reconhecidas pela parte contra quem o documento é apresentado, quando não impugnados por tal parte, consideram-se verdadeiras. O documento particular cuja autoria seja reconhecida, não arguida e provada a sua falsidade, faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao respetivo autor, e os factos contidos na declaração consideram-se provados na medida em que se apresentem contrários ao interesse do declarante, artigos 374 e 376, do CC[3].

Reportando-nos aos autos, os documentos em causa respeitam a um escrito designado de contrato promessa de partilha e outro à relação de bens apresentada em sede de processo de divórcio, junto da Conservatória do Registo Civil, ambos subscritos pelas aqui partes e assinados pelas mesmas, cuja falsidade não foi arguida, e assim reconhecida a sua autoria, e no âmbito das quais a Recorrente reconhece ser devedora ao Recorrido, por benfeitorias em bens comuns, feitas com dinheiro próprio, no valor de 77.500,00€, factos manifestamente contrários aos interesses da Recorrente, enquanto declarante.

Para contrariar a decorrente força probatória da declaração confessória realizada em tais documentos, no que concerne ao “contrato promessa de partilha”, invoca a insusceptibilidade do mesmo produzir efeitos, maxime, em termos de execução específica, importando em última análise em nulidade, reportando igualmente a direitos indisponíveis, impossibilitando a parte de livremente dispor de um direito sustentado pelas normas aplicáveis ao  regime de bens do casamento.

Ora, configura-se que a Recorrente lavra num equívoco, porquanto não está em discussão a existência de um contrato promessa de partilha, a respetiva validade e a aludida indisponibilidade decorrente de um regime de bens do casamento, mas tão só a declaração constante de tal escrito, que existindo, não pode ser desconsiderada, pois para além dos efeitos negociais, que não se discutem, constitui um ato jurídico, e como tal deve ser atendido e apreciado, no sentido que do mesmo resulta, de uma declaração confessória, relativamente à qual não foi invocado qualquer vício de vontade.

De igual modo, no que diz respeito ao escrito da relação de bens, assinada por ambas as partes, cuja autoria não foi questionada.
Diga-se que a valoração feita da declaração ali realizada não resulta de nenhum “caso julgado” [4] resultante do processo de divórcio, onde foi apresentada, pois como se vem entendendo[5] a relação especificada dos bens comuns constitui uma condição de prosseguimento do processo de divórcio, maxime em termos de abrangência do património comum, não inviabilizando que qualquer dos cônjuges venha reclamar a partilha de um bem comum omitido, contudo, e no caso como dos autos, consubstanciando-se num documento subscrito por ambos os cônjuges, não pode deixar de ser atribuído particular valor probatório[6], como se verifica na situação sob análise, na qual, aliás, a Recorrente não exclui em absoluto a existência da realização das benfeitorias, não aceitando contudo o valor, bem como o modo de pagamento, que pretende ter resultado de dinheiro de ambos os cônjuges.

Inexistindo quaisquer outras questões que importe conhecer, improcedem na totalidade as conclusões formuladas na apelação.
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III–DECISÃO
Nestes termos, acordam as Juízas deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando o despacho sob recurso.
Custas pela Apelante, sem prejuízo do apoio judiciário concedido.
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Lisboa, 8 de fevereiro  de 2022



Ana Resende- Relatora
Dina Monteiro - 1.ª Adjunta
Isabel Salgado- 2.ª Adjunta



[1]A confissão judicial, se feita pelo mandatário da parte nos articulados, conforme o art.º 38, do CPC, no pressuposto de efetuada na observância das instruções daquela em tal sentido, não deixa de se caracterizar pela irretratabilidade, pese embora seja possível a retratação enquanto a parte contrária não a tiver especificadamente aceitado, n.º1 e 2, do art.º 567, também do CPC.
[2]Cf. Ac. STJ de 10.11.2005, in www.dgsi.pt.
[3]Cf. a título de exemplo, Ac do STJ, de 29.09.2020, in www.dgsi.pt.
[4]Cf. a título de exemplo, Ac. RC, de 15.01.2019, in www.dgsi.pt.
[5]Cf. a título de exemplo, Ac. STJ de 19.05.2016, in www.dgsi.pt.
[6]Cf. Ac. RP de 23.05.2015, in www.dgsi.pt.