ENTREGA JUDICIAL DE MENOR
CONVENÇÃO DE HAIA
REGULAMENTO (CE) 2201/2003
INTERESSE SUPERIOR DA CRIANÇA
DIREITO DE AUDIÇÃO
MENOR
RAPTO INTERNACIONAL DE MENORES
RECURSO DE REVISTA
REVISTA EXCECIONAL
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
Sumário


I. O facto de ser interposto como revista excecional não obsta a que, perante a admissibilidade da revista normal, o recurso seja admitido ao abrigo do regime regra.
II. O Regulamento Bruxelas II bis e a Convenção de Haia de 1980 devem aplicar-se harmónica, conjunta e complementarmente no caso de pedido de regresso de crianças ilicitamente retidas ou ilicitamente deslocadas.
III. O limite de idade estabelecido no art. 4.º da Convenção de Haia de 1980 é aplicável aos pedidos de regresso formulados com base no Regulamento Bruxelas II bis.
IV. O superior interesse da criança encontra-se entre os valores estruturantes tanto da Convenção de Haia de 1980 como do Regulamento Bruxelas II bis.

Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça,



I – Relatório

1. Nos presentes autos de entrega judicial de menores, a Requerente AA não se conformou com a decisão que indeferiu o pedido de não entrega de BB, por, entretanto, este ter completado 16 anos de idade.

2. A Requerente AA interpôs ainda recurso da decisão que determinou à Autoridade Central da DGRSP que indicasse data, modo e operacionalização da entrega dos menores.

Da extinção da obrigação de entrega relativamente ao menor BB

1. O Ministério Público requereu a instauração, com carácter de urgência, de processo para entrega judicial daquelas crianças - BB e CC - (em executoriedade de decisão judicial proferida por Autoridade Judiciária Francesa) contra a Mãe dos menores, AA.

2. A 29 de julho de 2014, o Tribunal de Família de Grande Instância ... decidiu que as responsabilidades parentais de BB e CC eram exercidas em conjunto pelo Pai DD e pela Mãe AA e que a guarda era atribuída ao Pai, que mantém residência em França, com início em setembro de 2014.

3. A 15 de abril de 2016, os menores BB e CC saíram com a Mãe de França e não regressaram na data acordada.

4. A 11 de julho de 2019, o Tribunal Grande Instance de ... determinou que a residência habitual de CC e de BB estava fixada junto do progenitor DD e que, por isso, estas crianças deviam regressar imediatamente para junto dele.

5. A 19 de julho de 2019, a Autoridade Central Francesa solicitou à Autoridade Central Portuguesa (DGRSP) a execução do pedido de regresso daqueles menores ao território francês, ao abrigo do disposto art. 11.º, n.º 8, do Regulamento (CE) 2201/2003 do Conselho, de 27 de novembro de 2003.

6. Recebidos os autos, foi designada data para a audição das crianças.

7. Mostra-se junta aos autos a certidão prevista nos arts. 42.º e 11.º, n.º 8, do Regulamento CE 2201/2003 do Conselho, de 27 de novembro de 2003.

8. Por sentença de 12 de setembro de 2019, o Juízo de Família e Menores ... (J...) decidiu pela verificação da executoriedade em Portugal da sentença proferida a 11 de julho de 2019 pelo Tribunal de Grande Instance de ..., em França, no processo n.º RG 19/3..., em que são partes o Requerente DD e a Requerida AA, e determinou a entrega dos menores BB e CC ao Pai, ao abrigo do disposto nos arts 11.º, n.º 8, e 42.º, do Regulamento (CE) n.º 2201/2003 do Conselho, de 27 de novembro de 2003.

9. Foi interposto recurso desta decisão. E, a 30 de janeiro de 2020, o Tribunal da Relação ... julgou improcedente o recurso, confirmando a decisão recorrida.

10. Foi também interposto recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, que decidiu não admitir o recurso interposto.

11. Em sede de conferência, após reclamação, por acórdão de 21 de janeiro de 2021, o Supremo Tribunal de Justiça, com fundamento em extemporaneidade, não conheceu da reclamação.

12. A título incidental, por requerimento de 3 de dezembro de 2020, o Ministério Público, ao abrigo do disposto no art. 4.º da Convenção de Haia de 1980 relativa aos Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças – aprovada pelo Estado Português através do Decreto do Governo n.º 33/83, de 11 de maio de 1983, solicitou se declarasse que, em virtude de ser já maior de 16 anos de idade, pois nasceu a .../.../2004, BB deixara de estar abrangido por essa Convenção. Requereu também que essa declaração fosse levada em devida linha de conta, designadamente para efeitos de não concretização da entrega do jovem em apreço.

13. O Supremo Tribunal de Justiça indeferiu essa pretensão com base na seguinte fundamentação:

«“a requerente pede a extinção da instância por inutilidade com fundamento no facto de o menor BB ter completado 16 anos, e por esse motivo já não lhe ser aplicável a Convenção de Haia nos termos do seu art. 4º. E justifica a extinção da instância quanto à menor CC “por extensão, por via da não separação dos irmãos”. A convenção invocada pelo recorrente é a Convenção Sobre Aspectos Civis do Rapto Internacional, aprovada em Haia, e aprovada pelo Decreto do Governo nº33/83, DR, 1ª série de 11.05.1983. A situação dos autos não se subsume àquela Convenção, que não foi invocada na decisão recorrida; o que está em causa nos autos é o reconhecimento e execução de uma decisão proferida por um tribunal francês em que o tribunal português é um mero Tribunal de Execução nos termos do Regulamento nº2201/2003 do Conselho, de 27.11.2003. Não existe, assim, fundamento para declarar a extinção da instância, motivo por que se indefere o requerido a fls. 358».

14. A 24 de fevereiro de 2021, o Ministério Público renovou a pretensão em causa junto da Primeira Instância. Todavia, o Juízo de Família e Menores ... afirmou que o requerido pelo Ministério Público já havia sido objecto de decisão do Supremo Tribunal de Justiça, reproduzindo parte dessa decisão e, por conseguinte, julgando improcedente o referido pedido.

Decisão que determinou que a Autoridade Central da DGRSP indicasse datas e modo e operacionalização da entrega dos menores

1. A 18 de fevereiro de 2021 foi prolatada a seguinte decisão:

Comunique à Autoridade Central Direção-Geral de Reinserção Social, sendo ainda para indicar data e modo de operacionalizar a entrega dos menores”.

2. Inconformada com tais decisões, a Recorrente AA interpôs recursos de apelação.

3. O Ministério Público, por seu turno, apresentou contra-alegações.


***


1. A 14 de julho de 2021, o Tribunal da Relação ... decidiu o seguinte:

Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, decide-se julgar procedentes os recursos interpostos, revogando-se, em parte, as decisões recorridas e, consequentemente, determina-se que a decisão de entrega de BB não seja accionada, devendo ser cancelados os procedimentos de operacionalização junto da Autoridade Central Direção-Geral de Reinserção Social relativamente a este menor.

Sem tributação, atento o disposto no artigo 527º do Código de Processo Civil.

Notifique”.

2. Não conformado, DD interpôs recurso de revista com as seguintes Conclusões:

1.ª O Recorrente reside em França, onde nasceram os seus filhos, BB e CC;

2.ª Encontra-se regulada as responsabilidades parentais dos menores, tendo sido fixada a residência dos mesmos junto do pai, ora recorrente;

3.ª Em abril de 2016, os menores vieram a Portugal passar férias com a mãe e nunca mais regressaram a França;

4.ª O Recorrente recorreu ao Tribunal “Grande Instance de ...” para que os seus filhos regressassem para junto dele, tendo conseguido sucesso na demanda;

5.ª Em julho de 2019, a Autoridade Central Francesa solicitou à Autoridade Central Portuguesa a execução do pedido de regresso dos menores ao território Francês, ao abrigo do disposto no n.º 8 do artigo 11º do Regulamento CE 2201/2003 também designado por Regulamento de Bruxelas II bis;

6.ª Foi decidido pelo Juízo de Família e Menores ... – Juiz ..., estar verificada a executoriedade em Portugal da Sentença proferida em França;

7.ª A mãe dos menores tem vindo a recorrer de todas as decisões e despachos proferidos, tudo com o único objetivo de agora vir alegar que a Convenção de Haia de 1980 não se aplica ao menor BB, porquanto este já completou 16 anos.

8.ª O Tribunal da Relação ... veio dar razão à mãe dos menores, decidindo que a entrega do menor BB não deve ser acionada;

9.ª Entende o recorrente que o direito foi mal aplicado e que esta causa deve ser apreciada novamente;

10.ª Isto porque, o regime da deslocação ou retenção ilícitas de crianças está previsto em dois instrumentos legislativos: no Regulamento Bruxelas II bis e na Convenção de Haia de 1980 relativa aos Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças (Convenção de Haia).

11.ª As disposições previstas no Regulamento visam completar a Convenção de Haia (artigo 11.º, n.º 1) e ultrapassar as deficiências que a aplicação desta revelou, nomeadamente, no plano da efetividade das decisões de regresso.

12.ª É no Regulamento (CE) n.º 2201/2003 relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria de responsabilidade parental que se encontra a regulamentação legal de questões relativas à competência internacional nas matérias de responsabilidade parental e à retenção e deslocação ilícitas de crianças.

13.ª Consequentemente, o artigo 60.º, al. e) do Regulamento estabelece que este, nas matérias que disciplina, prevalece sobre a Convenção de Haia de 1980, sendo certo que o sistema previsto no Regulamento implica o recurso àquela Convenção.

14.ª Na Convenção de Haia de 1980, está previsto que a mesma não se aplica a menores que completem 16 anos;

15.ª O mesmo já não acontece no Regulamento de Bruxelas II bis. Este Regulamento aplica-se às crianças, até atingirem a maioridade.

16.ª Como o que está aqui em causa é a execução de uma decisão internacional sobre rapto de crianças, deve ser aplicado o Regulamento de Bruxelas II bis, o qual é o competente para esta matéria;

17.ª Regulamento que se aplica a todos os menores, mesmo aos que já completaram 16 anos

18.ª Aplicando-se também ao menor BB.

19.ª Esta questão deve ser apreciada para uma melhor aplicação do direito.

TERMOS EM QUE, deve concluir-se que o direito aplicado à questão é o Regulamento de Bruxelas II bis e que a decisão de enviar o menor BB deve ser acionada.

Pede Justiça!

3. Por seu turno, o Senhor Procurador Geral Adjunto (Procuradoria-Geral Regional ...) respondeu, formulando as seguintes Conclusões:

1 - 0 recorrente discorda da decisão deste Tribunal que entendeu "julgar procedentes os recursos interpostos, revogando-se, em parte, as decisões recorridas e, consequentemente, determina-se que a decisão de entrega de BB não seja accionada, devendo ser cancelados os procedimentos de operacionalização junto da Autoridade Central Direção-Geral de Reinserção Social relativamente a este menor."

2 - Considerando: "...que a decisão de enviar o menor BB deve seracionada."

3 - Acontece, porém, que o Acórdão julgou procedentes os recursos interpostos e pronunciou-se de forma clara e suficiente sobre os aspectos jurídicos em demanda objectivando uma boa decisão da causa.

4 - Sustentando que: "...valorizando-se assim integralmente os compromissos assumidos pelo Estado português ao subscrever o artigo 4o da Convenção sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças. Neste contexto, por decorrência, a decisão de operacionalização da entrega do menor BB deve ser revogada."

5 - Este Tribunal da Relação, respeitando a legislação aplicável, ponderou, conheceu e decidiu todas as demais questões fulcrais colocadas com relevância para a decisão de mérito, concluindo pela não entrega do menor BB ao progenitor.

Assim, mantendo-se a douta decisão nos seus precisos termos já que não foram violadas quaisquer disposições legais/constitucionais,

FARÃO VOSSAS EXCELÊNCIAS JUSTIÇA”.


II – Questões a decidir

Sem prejuízo do conhecimento oficioso que em determinadas situações se impõe ao Tribunal, sendo o objecto e âmbito do recurso interposto determinados pelas conclusões das alegações (arts 635.°, n.° 4, e 639.°, n.° 1, do CPC), está em causa a questão da aplicação do limite da idade previsto na Convenção de Haia de 1980 relativa aos Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças (doravante Convenção de Haia de 1980) – aprovada pelo Estado Português através do Decreto do Governo n.º 33/83, de 11 de maio de 1983 - ao processo de regresso de crianças previsto no Regulamento (CE) n.º 2201/2003 do Conselho, de 27 de novembro de 2003, relativo à Competência, ao Reconhecimento e à Execução de Decisões em Matéria Matrimonial e em Matéria de Responsabilidade Parental, também conhecido como Regulamento Bruxelas II bis (doravante Regulamento Bruxelas II bis).

III – Fundamentação

A) De Facto

Além daqueles mencionados supra, com relevância para a justa decisão da causa têm interesse os seguintes factos dados como provados:

1. BB nasceu em .../.../2004 e é natural de ..., ..., França.

2. CC nasceu em .../.../2007 e é natural de ..., ..., França.

3. Ambos têm registado como pai DD e como mãe AA.

4. Em 29/07/2014 por decisão do Tribunal de Família de Grande Instância ... foi fixado o exercício das responsabilidades parentais conjunto pelo pai e mãe com guarda e residência com o pai em França, a partir do início de Setembro de 2014.

5. Os menores saíram com a mãe de França em 15/04/2016, com regresso previsto a 01/05/2016, não mais tendo regressado, tendo ficado viver com a mãe.

6. Por decisão de 06/03/2017, já transitada em julgado, proferida nos autos principais, o Tribunal recusou-se a ordenar o regresso dos menores para junto do progenitor.

7. No dia 11/07/2019, conhecendo a referida decisão judicial proferida nestes autos, tendo a requerida sido representada no ato por um Defensor, o Tribunal “Grande Instance de ...” determinou, além do mais, que a residência habitual dos menores fosse fixada junto do progenitor, ordenando o regresso dos menores.

8. No dia 19/07/2019, aquele Tribunal, Autoridade Central Francesa, veio solicitar, à Autoridade Central Portuguesa (DGRSP), a execução do pedido de regresso daqueles menores ao território Francês, ao abrigo do disposto no artigo 11.º n.º 8 do Regulamento CE 2201/2003, tendo remetido a certidão prevista no artigo 42.º do mesmo regulamento.

9. As crianças foram, novamente, ouvidas, tendo manifestado clara oposição a regressarem a casa do pai tendo declarado preferirem ficar com a mãe.

10. Por sentença datada de 12/09/2019, o Juízo de Família e Menores ... (J...) decidiu estar verificada a executoriedade em Portugal da sentença proferida em 11/07/2019, pelo Tribunal de Grande Instance de ..., em França, no processo n.º RG 19/3..., em que são partes o Requerente DD e Requerida AA e é determinada a entrega dos menores BB e CC ao pai, ao abrigo do estatuído nos artigos 11º, nº8 e 42 do regulamento (CE) nº2201/2003, do Conselho, de 27/11/2003.

11. Em 30/01/2020, o Tribunal da Relação ... julgou improcedente o recurso interposto, confirmando a decisão recorrida.

12. Interposto recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, este Colendo Tribunal decidiu não admitir o recurso interposto.

13. Em sede de conferência, após reclamação, por acórdão lavrado em 20/01/2020, o Supremo Tribunal de Justiça não conheceu da reclamação, por ser extemporânea e, a título incidental, relativamente à pretensão de extinção do procedimento relativamente ao menor BB, indeferiu o requerido.

14. A pretensão em causa foi renovada junto da Primeira Instância e o Juízo de Família e Menores ... afirmou que o requerido já tinha sido objecto de decisão do Supremo Tribunal de Justiça, reproduzindo parte dessa decisão, termos que não haveria a determinar a esse propósito”.

B) De Direito

Tipo e objeto de recurso

1. O Tribunal de 1.ª Instância indeferiu o pedido de não entrega do menor BB, determinando, ainda, em despacho autónomo, que a DGRSP indicasse a data, o modo e a operacionalização da entrega dos menores.

2. Inconformada, a progenitora AA interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação ... que revogou as decisões proferidas pelo Tribunal de 1.ª Instância, determinando que não se procedesse à entrega do menor ao seu progenitor DD, residente em França.

3. Por seu turno, DD, não se conformando com a decisão do Tribunal da Relação ..., interpôs recurso de revista excecional do acórdão da Relação ... que revogou a decisão do Tribunal de 1.ª Instância e determinou “que a decisão de entrega de BB não seja accionada, devendo ser cancelados os procedimentos de operacionalização junto da Autoridade Central Direção-Geral de Reinserção Social relativamente a este menor”.

4. Invocou, em síntese, que o limite de idade fixado na Convenção de Haia de 1980 não se aplica ao processo de regresso de crianças instaurado ao abrigo do Regulamento Bruxelas II bis, aplicando-se antes este instrumento comunitário até à maioridade das crianças BB e CC.

5. Assim, no entendimento do Recorrente DD, a menoridade das crianças dos autos importa o cumprimento imediato da decisão que determinou o seu regresso a França.

(In)admissibilidade do recurso

1. Como configura uma providência tutelar cível, o incidente de entrega judicial de criança assume a natureza de processo de jurisdição voluntária (cf. arts. 3.º, al. e), e 12.º, do RGPTC).

2. Nos processos de jurisdição voluntária, a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça está reservada a situações em que se discuta a interpretação e aplicação de critérios normativos de legalidade estrita[1], estando-lhe vedado apreciar decisões tomadas segundo critérios de conveniência ou oportunidade.

3. Com efeito,

na interpretação daquela restrição de recorribilidade, importa ter em linha de conta que, em muitos casos, a impugnação por via recursória não se circunscreve aos juízos de oportunidade ou de conveniência adotados pelas instâncias, mas questiona a própria interpretação e aplicação dos critérios normativos em que se baliza tal decisão. Assim, quando, no âmbito das próprias decisões proferidas em processos de jurisdição voluntária, estejam em causa a interpretação e aplicação de critérios de legalidade estrita, já a sua impugnação terá cabimento em sede de revista, circunscrita ao invocado erro de direito.[2].

4. A única questão suscitada pelo Recorrente DD consiste em saber se se aplica, ou não, ao caso dos autos uma determinada norma – i.e., o art. 4.º - da Convenção de Haia de 1980. Por isso, tratando-se da interpretação e aplicação de critérios normativos de legalidade estrita, admite-se o recurso por aquele interposto.

5. O facto de o Recorrente haver interposto recurso de revista excecional não obsta a que, perante a admissibilidade da revista regra ou normal, o recurso seja admitido ao abrigo do regime regra. É, justamente, o que se verifica in casu.

6. Não existindo quaisquer obstáculos à admissibilidade da do recurso de revista regra, o recurso interposto deverá ser admitido como revista normal, não havendo que remeter os autos à Formação do Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do art. 672.º, n.º 3, do CPC.

Da aplicação, ou não, do limite da idade previsto no art. 4.º da Convenção de Haia de 1980 ao processo de regresso de crianças previsto no Regulamento Bruxelas II bis

1. Como é sobejamente sabido, a aplicação da Convenção de Haia de 1980 revelou, desde cedo, fragilidades no que respeita à sua eficácia e à garantia de regresso célere dos menores, favorecendo, não raras vezes, o progenitor infrator[3]. Neste contexto, surgiu o Regulamento Bruxelas II bis em ordem à unificação das normas de conflito de jurisdição em matéria matrimonial e de regulação do exercício das responsabilidades parentais[4]  e à aceleração do processo de execução de decisões adotadas nessas matérias.

2. O Regulamento Bruxelas II bis apareceu, pois, “com normas pensadas para aperfeiçoar o regime da Convenção de Haia”, tendo “primazia nas relações entre os Estados-membros relativamente à aplicação da Convenção de Haia sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças. Todavia (…) o seu regime [da Convenção] é completado pelo disposto no Regulamento quanto à deslocação ou retenção ilícitas[5].

3. A este propósito, o art. 59.º do Regulamento Bruxelas II bis estabelece que “sem prejuízo do disposto nos artigos 60.º, 63.º, 64.º e no n.º 2 do presente artigo, o presente regulamento substitui, entre os Estados-Membros, as convenções existentes à data da sua entrada em vigor, celebradas entre dois ou mais Estados-Membros e relativas a matérias reguladas pelo presente regulamento.”.

4. Por seu turno, segundo o art. 60.º do mesmo Regulamento, “nas relações entre os Estados-Membros, o presente regulamento prevalece sobre as seguintes convenções, na medida em que estas se refiram a matérias por ele reguladas (…) e) Convenção de Haia, de 25 de Outubro de 1980, sobre os aspetos civis do rapto internacional de crianças.”.

5. Por fim, resulta do art. 62.º do Regulamento em apreço que “2. As convenções mencionadas no artigo 60.º, nomeadamente a Convenção da Haia de 1980, continuam a produzir efeitos entre os Estados-Membros que nelas são partes, na observância do disposto no artigo 60.º”.

6. Das normas mencionadas supra resulta que o Regulamento Bruxelas II bis não visou substituir a Convenção de Haia de 1980 , mas sim complementá-la mediante a adoção de mecanismos tendentes à operacionalização de um regresso rápido das crianças ilicitamente retidas ou ilicitamente deslocadas: v.g., a fixação de um prazo máximo de decisão, sendo manifesta a vontade de garantir o regresso rápido das crianças ao local da sua residência habitual (art. 11.º, n.º 3, do Regulamento).

7. No que respeita à retenção ilícita de criança, reveste-se de particular importância o considerando 17 do Regulamento Bruxelas II bis, de acordo com o qual “em caso de deslocação ou de retenção ilícitas de uma criança, deve ser obtido sem demora o seu regresso; para o efeito, deverá continuar a aplicar-se a Convenção de Haia de 25 de Outubro de 1980, completada pelas disposições do presente regulamento, nomeadamente o artigo 11.º”. Por sua vez, o art. 11.º do mesmo Regulamento remete expressamente para a Convenção de Haia de 1980, consentido até afirmar que “o Regulamento inspira-se na Convenção sobre os aspectos civis do rapto internacional de crianças concluída na Haia em 25 de Outubro de 1980.”[6].

8. Na verdade,

o RBiib prevê normas relativas à matéria, que se destinam a complementar (considerando 17 e art. 11.º, n.º 1), nas relações entre os Estados-Membros da União Europeia, com excepção da Dinamarca, as da CH, cuja execução prática demonstrou sofrerem de aporias decorrentes, a um tempo, da ampla margem dada aos tribunais do Estado da deslocação ou retenção para recusarem a restituição e, a outro, da insuficiência da resposta dada pelos mecanismos previstos aos novos tipos de deslocação e subtacção ilícitas e aos obstáculos colocados ao exercício efectivo do direito de visita do progenitor que não tem a custódia[7].

9. O Regulamento Bruxelas II bis e a Convenção de Haia de 1980 devem, pois, aplicar-se harmónica, conjunta e complementarmente no caso de pedido de regresso de crianças ilicitamente retidas ou ilicitamente deslocadas[8].

10. No caso sub judice, está em causa uma situação de retenção ilícita, uma vez que a mãe de BB e de CC, AA, saiu do país onde residiam assumindo a obrigação de as devolver findo o período de férias, o que não sucedeu.

11. Também em virtude da remissão expressa constante do art. 11.º do Regulamento Bruxelas II bis para a Convenção de Haia de 1980 para os pedidos de regresso de crianças baseados nesta Convenção, não pode dizer-se que se aplica só o primeiro ou apenas a segunda. Aliás, o Regulamento Bruxelas II bis aplica-se juntamente com o art. 13.º da Convenção de Haia de 1980.

12. Note-se que enquanto a Convenção de Haia de 1980 refere expressamente que a sua aplicação cessa quando a criança atingir a idade de 16 anos (art. 4.º), o Regulamento Bruxelas II bis, no caso de pedido de regresso, não fixa qualquer limite de idade para a sua aplicação. Pode, contudo, dizer-se que se trata de uma omissão intencional, de um silêncio significativo, insuscetível de revelar a existência de uma lacuna.

13. Efetivamente,

a lacuna é sempre uma incompletude, uma falta ou uma falha. (…) uma incompletude relativamente a algo que propende para a completude. Diz-se, pois, que uma lacuna é uma “incompletude contrária a um plano”. (…) Existirá uma lacuna quando a lei (dentro dos limites de uma interpretação ainda possível) e o direito consuetudinário não contêm uma regulamentação exigida ou postulada pela ordem jurídica global, - ou melhor: não contêm a resposta a uma questão jurídica.[9].

14. Não tendo o Regulamento Bruxelas II bis a pretensão de disciplinar exaustivamente o procedimento de regresso de criança, pode dizer-se que o limite de idade estabelecido no art. 4.º da Convenção de Haia de 1980 é aplicável aos pedidos de regresso formulados com base nele.

15. É que:

apesar de a Convenção sobre os Direitos da Criança considerar como criança todo o ser humano com menos de 18 anos de idade (art. 1.º) a CH parte do pressuposto de que dificilmente se pode impor a um jovem com mais de 16 anos de idade um lugar de residência contra a sua vontade[10].

16. De facto,

o Regulamento não define o que entende por criança; todavia, a Convenção de Haia de 25 de Outubro de 1980 aplica-se até aos 16 anos de idade (artigo 4.º), sendo defensável que esse mesmo limite deva valer para o Regulamento (CE) n.º 2201/2003, tendo em conta a relação de complementaridade entre ambos os instrumentos. Pelo menos no que respeita ao pedido de regresso a que o processo do art. 11.º do Regulamento respeita, deve ser esse o limite de idade admissível, por se dizer expressamente que se aplica a pedidos de regresso baseados na referida Convenção[11].

17. Trata-se, além do mais, de uma questão de coerência axiológica.

18. Deste modo, após os 16 anos de idade, o regresso dos menores não pode resultar da aplicação do Regulamento Bruxelas II bis nem, naturalmente, da Convenção de Haia de 1980. É claro que no caso de o menor manifestar vontade de regressar para junto do outro progenitor, o tribunal competente decidirá nesse sentido e essa decisão será executada de acordo com as regras gerais de reconhecimento e execução das decisões judiciais estrangeiras[12].

19. O limite da idade de 16 anos surge no âmbito da afirmação da criança como sujeito de direitos e não como mera extensão dos adultos:

uma criança é uma pessoa, que sabe o que quer, com a mesma dignidade e direitos que as pessoas adultas, a quem o Estado, através dos seus Tribunais, não tem o direito de impor um destino contrário à sua vontade[13].

20. É, de resto, neste contexto de alteração do paradigma que, em todos os processos em que se discutam questões com impacto na vida de uma criança, se assume como essencial a sua audição, desde que a sua idade e maturidade o justifiquem.

21. Aliás, o art. 13.º da Convenção de Haia de 1980 prevê expressamente que “a autoridade judicial ou administrativa pode também recusarse a ordenar o regresso da criança se verificar que esta se opõe a ele e que a criança atingiu já uma idade e um grau de maturidade tais que levem a tomar em consideração as suas opiniões sobre o assunto.” A oposição da criança dotada de um certo grau de maturidade legitima, pois, a recusa do Estado requerido de ordenar o seu regresso. Note-se, nesta sede, que o art. 11.º, n.º 2, do Regulamento Bruxelas II bis consagra um dever de audição da criança pelo Tribunal a que o pedido de regresso é dirigido - pois é o seu destino que se vai decidir -, a não ser que se considere tal audição inadequada em virtude da idade ou do grau de maturidade da mesma. Naturalmente que a opinião manifestada pela criança não é vinculativa para o Tribunal, que pode entender, justificadamente, que essa opinião não corresponde ao seu melhor interesse. “Esta norma parte do princípio da capacidade natural da criança para ser ouvida, abandonando a presunção de incapacidade que a doutrina e a jurisprudência nacional costumam defender, cabendo ao julgador, oficiosamente, o dever de averiguar, em cada caso concreto, o grau de maturidade da criança para a audição, não podendo sem mais alegar a incapacidade da criança para justificar a recusa da audição[14].

22. Atendendo à sua idade e maturidade, a vontade da criança é suscetível de assumir, efetivamente, um papel determinante do desfecho dos procedimentos de regresso.

23. A importância da audição da criança tem igualmente sido salientada pelo Tribunal de Justiça da União Europeia: v.g., conforme o acórdão proferido no processo C-491/10 (Aguirre-Zagarra), “o décimo nono considerando do Regulamento n.º 2201/2003 indica que a audição da criança desempenha um papel importante na aplicação deste regulamento e o seu trigésimo terceiro considerando salienta, de maneira mais geral, que o referido regulamento reconhece os direitos fundamentais e os princípios consagrados na Carta dos Direitos Fundamentais, garantindo, em particular, o pleno respeito dos direitos fundamentais da criança enunciados no artigo 24.° desta.”.

24. No caso em apreço, o jovem BB tem já 17 anos de idade – caminhando, assim, a passos largos para a maioridade – e expressou nos autos a sua vontade de permanecer em Portugal (cf. declarações prestadas a 19 de agosto de 2019), junto de sua Mãe AA. Ademais, este jovem encontra-se em Portugal há quase seis anos, tendo aqui construído as suas relações familiares e sociais, i.e., as suas redes de afeto. Atendendo à sua idade, não só a sua vontade deve ser respeitada, como já não se encontram preenchidos os pressupostos de que depende o acionamento da decisão de regresso.

25. Embora se compreenda a posição do progenitor – pois foi ilicitamente e provavelmente de forma gravemente censurável separado de seus filhos -, neste momento a decisão deve ponderar devidamente  a vontade do jovem BB como dotada de particular relevância para o desfecho dos autos. Determinar o seu regresso a um país que já não considera como seu, que não constitui atualmente o centro habitual ou permanente dos seus interesses, seria contrário ao seu superior interesse. Note-se que estão em causa o princípio axiológico máximo em Direito da Família e dos Menores do “superior interesse da criança” estabelecido na Convenção sobre os Direitos da Criança (arts. 3.º, 4.º e 12.º) , o concurso do Estado para a sua plena e efetiva concretização e o direito ao respeito e valorização da vontade manifestada pela criança, com idade e maturidade. Na verdade, a eficácia e a operatividade normativa dos instrumentos jurídicos internacionais não se podem sobrepor cegamente à consideração do superior interesse da criança. De resto, esse interesse encontra-se entre os valores estruturantes tanto da Convenção de Haia de 1980[15] como do Regulamento Bruxelas II bis.

26. Refira-se que não se trata, todavia, de apreciar a decisão do Tribunal da Relação de recusa com fundamento na maior adequação à proteção dos interesses do jovem AA, pois tal encontra-se vedado ao Supremo Tribunal de Justiça.

27. Em virtude da inverificação dos requisitos de que depende o regresso do jovem BB a França ao abrigo do Regulamento Bruxelas II bis, deve confirmar-se a decisão proferida pelo Tribunal da Relação ....

IV - Decisão

Nos termos expostos, acorda-se em julgar improcedente o recurso de revista interposto por DD, confirmando-se o acórdão recorrido.

Sem tributação (art. 4.º, n.º 1, al. i), do RCP).


Lisboa, 15 de fevereiro de 2022


Maria João Vaz Tomé (relatora)

António Magalhães

Jorge Dias

________

[1] Vide, inter alia, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de junho de 2019 (Maria dos Prazeres Beleza), proc. n.º 2215/12.0TMLSB-B.L1.S1 - disponível para consulta in www.dgsi.pt; de 18 de fevereiro de 2020 (Fátima Gomes), proc. n.º 29241/16.7T8LSB-A.L1.S1 - disponível para consulta in https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2020:29241.16.7T8LSB.A.L1.S1/; de 7 de novembro de 2019 (Paula Sá Fernandes), proc. n.º 1971/12.0TBCSC.L2.S1.
[2] Cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de dezembro de 2019  (Maria João Vaz Tomé), proc. n.º 4630/17.3T8FNC-A.L1.S1 – disponível para consulta in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/362333f989df0bd3802584d3005b8621?OpenDocument.
[3] Cf. Anabela Sousa Gonçalves, “Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças: Entre a Convenção de Haia e o Regulamento Bruxelas II BIS”, in Cadernos de Direito Actual, nº 3, (2015), pp. 181 e ss.
[4] Cf. Leonor Valente Monteiro, Da aplicação prática. Do Regulamento (CE) n.º 2201/2003 do Conselho de 27 de novembro e Convenção da Haia de 25 de outubro de 1980 - disponível para consulta in http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/familia/Direito_Internacional_Familia_Tomo_I.pdf.
[5] Cf. Anabela Sousa Gonçalves, “Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças: Entre a Convenção de Haia e o Regulamento Bruxelas II BIS”, in Cadernos de Direito Actual, nº 3, (2015), pp. 181-182, por referência ao Guia prático para a aplicação do novo Regulamento Bruxelas II (Regulamento (CE) n.º 2201/2003 do Conselho, de 27 de novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e de responsabilidade parental - disponível para consulta in https://e-justice.europa.eu.
[6] Cf. Maria Helena Moniz, “O Regulamento (CE) n.º 2201/2003, do Conselho, de 27 de novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental”, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor António Marques dos Santos, Vol. I, Coimbra, Almedina, 2005, p. 327.
[7] Cf. Gonçalo Oliveira Magalhães, “Aspectos da Acção Destinada ao Regresso da Criança Ilicitamente deslocada ou retida, à luz da Convenção da Haia de 25 de Outubro de 1980 e do Regulamento Bruxelas II Bis”, in Revista Julgar n.º 37, Ano 2019, pp. 41-42. Vide, no mesmo sentido, Maria dos Prazeres Beleza, “Jurisprudência sobre rapto internacional de crianças”, in Revista Julgar n.º 24, Ano 2014, pp.78-79.
[8] A este propósito, vide Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 5 de junho de 2012 (Luís Espírito Santo), proc. n.º  773/08.2TBLNH.L1-7 - disponível para consulta in http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/03f460171b0c3f8180257a380048907b?OpenDocument).
[9] Cf. João Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Coimbra, Almedina, 1987, p. 194.
[10] Cf. Gonçalo Oliveira Magalhães, “Aspectos da Acção Destinada ao Regresso da Criança Ilicitamente deslocada ou retida, à luz da Convenção da Haia de 25 de Outubro de 1980 e do Regulamento Bruxelas II Bis”, in Revista Julgar n.º 37, Ano 2019, p. 39.
[11] Cf. Maria dos Prazeres Beleza, “Jurisprudência sobre rapto internacional de crianças”, in Revista Julgar n.º 24, Ano 2014, p. 81.
[12] Cf. Geraldo Rocha Ribeiro, Rapto Internacional: o problema internacional e instrumentos de resolução, p. 155 - disponível para consulta in
http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/familia/Direito_Internacional_Familia_Tomo_I.pdf.
[13] Cf. Leonor Valente Monteiro, Da aplicação prática. Do Regulamento (CE) n.º 2201/2003 do Conselho de 27 de novembro e Convenção da Haia de 25 de outubro de 1980, p. 187 - disponível para consulta in http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/familia/Direito_Internacional_Familia_Tomo_I.pdf.
[14] Cf. Maria Clara Sottomayor, Regulação do Exercício das Responsabilidades Parentais nos Casos de Divórcio, Coimbra, Almedina, 2021, p.186.
[15] Cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de junho de 2021 (Maria Olinda Garcia), proc.
n.º 1677/20.6T8PTM-A.E1.S1.)