RECURSO DE APELAÇÃO
DECAIMENTO
CONDENAÇÃO EM CUSTAS
PRESTAÇÃO DE CONTAS
HERANÇA INDIVISA
PARTILHA DA HERANÇA
COMPROPRIEDADE
HERDEIRO
OCUPAÇÃO DE IMÓVEL
CABEÇA DE CASAL
ADMINISTRADOR
OMISSÃO
COMPORTAMENTO CONCLUDENTE
ATO DE MERA TOLERÂNCIA
AUTORIZAÇÃO
Sumário


I. Na medida em que a Apelante, apesar de ter ficado vencida relativamente a determinados fundamentos recursivos, obteve ganho integral de causa ao ser absolvida do pedido in totum, de acordo com o princípio da causalidade afigura-se justificada a condenação do Recorrente, aí Apelado, na totalidade das custas do recurso.
II. De acordo com a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, não deve admitir-se, numa ação de prestação de contas, a relacionação como receita de um montante, correspondente à retribuição do gozo de um imóvel por parte do obrigado a prestar contas, que não foi por este efetivamente percebido.
III. Se a mera utilização de um bem integrante da herança por parte de um co-herdeiro não acarreta para si, sem mais, automaticamente, o dever de pagamento de uma contraprestação, resta, pois, adotar uma perspetiva casuística que atenda às especificidades do caso concreto e valore adequadamente a atuação das partes ao longo do tempo.
IV. Porquanto a indivisão hereditária se traduz numa situação de comunhão de direitos, deve levar-se em devida linha de conta o disposto no art. 1404.º do CC e, assim, a regra do art. 1406.º do mesmo corpo de normas.
V. Havendo o Recorrente tido conhecimento da ocupação do imóvel pela Recorrida, ao longo de todos os anos, a sua conduta omissiva deve ser interpretada como exteriorizadora de uma vontade permissiva, sucessivamente renovada, da utilização do imóvel por parte daquela.

Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça,



I - Relatório

1. A 14 de julho de 2014, no Tribunal Judicial ...[1], AA intentou ação especial de prestação de contas contra BB, pedindo a citação desta para apresentar as contas da sua administração desde 2001 até 2013, no prazo e sob cominação legal.

2. Para fundamentar a sua pretensão, alegou, em síntese, que correm termos no Tribunal Judicial da Comarca ..., na ... Vara Cível, sob o nº 12410/99...., autos de inventário facultativo por si requeridos para partilha da herança indivisa aberta por óbito de seu avô CC, tendo sido nomeado cabeça de casal nesses autos. A herança a partilhar é constituída unicamente por todos os bens móveis e imóveis que integram a “Quinta...”, sita em ..., .... O Autor e a Ré são herdeiros de CC: a Ré é herdeira testamentária, por efeito de disposição mortis causa elaborada pela Sra. Dona DD, no Cartório Notarial de ..., a 8 de março de 1990. Desde o falecimento da Sra. Dona DD, a 17 de agosto de 1991, a Ré fez da Casa de ... a sua habitação própria e permanente, gozando e fruindo da Casa e Quinta... e de todos os seus pertences e utilidades, recusando-se até ao momento a proceder à entrega de todos os bens imóveis e móveis ao Autor, cabeça de casal da herança, apesar de diversas vezes interpelada para esse efeito.

3. Citada, comprovando ter requerido apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo, a Ré BB contestou alegando que a herança aberta por óbito de CC é composta apenas pelos imóveis rústicos e urbanos que constituem a Quinta... e por alguns móveis atualmente depositados na casa principal da Quinta..., sendo que grande parte dos móveis aí atualmente depositados pertence à Ré, por lhe ter sido deixada pela Sra. Dona DD. Referiu igualmente que vive na Casa de ... de forma habitual e permanente desde há cinquenta e três anos, ocupando dessa casa uma parte inferior a 10% da sua área total, tendo sido nomeada depositária em sede de arrolamento de todos os móveis existentes na Casa de ..., quer dos pertencentes à herança quer dos que lhe pertencem. Nega também ter de prestar contas porque nunca exerceu a administração da herança, nem antes de 2000, nem depois disso, concluindo pela improcedência da ação.

4. A 28 de janeiro de 2015, foi junto aos autos ofício da Segurança Social informando ter sido concedido à Ré BB apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo.

5. Em despacho proferido a 5 de fevereiro de 2015, ordenou-se a notificação do Autor AA para responder nos termos do artigo 942, nº 3, 1ª parte, do CPC.

6. O Autor AA respondeu à contestação da Ré BB, impugnando grande parte dos factos alegados por esta na sua contestação e pugnando pela obrigação desta de prestar contas por ser cabeça de casal de facto da herança aberta por óbito de CC.

7. A 27 de outubro de 2015, determinou-se que doravante os autos seguissem a forma de processo comum.

8. A 20 de novembro de 2015, foi proferido despacho a julgar improcedente a contestação da Ré BB, declarando-se que esta estava obrigada a prestar contas dos bens móveis e imóveis que detém e de que é contitular[2].

9. A 26 de novembro de 2015, sem que a decisão que precede tivesse sido notificada às partes, foi proferido o seguinte despacho:

Declaro nulo e ineficaz o documento digital que antecede. Após isto, conclua de novo imediatamente e sem mais.”

10. A 1 de dezembro de 2015, foi emitido despacho a dispensar a realização de audiência prévia, identificou-se o objeto do litígio, proferiu-se despacho saneador tabelar, especificaram-se os factos provados, enunciaram-se os temas de prova e convidaram-se as partes a, querendo, em dez dias, arrolar ou alterar os requerimentos probatórios.

11. Admitidas as provas oferecidas pelas partes, designou-se dia para realização da audiência final.

12. A 7 de julho de 2016, a Ré BB veio requerer a suspensão da instância nestes autos até que fosse proferida decisão no processo de inventário a que o Autor AA alude na petição inicial, porquanto afirma que a herança aberta por óbito de CC foi partilhada por escritura pública de 5 de agosto de 1932. Esta pretensão mereceu a oposição do Autor, tendo sido proferido, a 2 de setembro de 2016, despacho a indeferir a requerida suspensão da instância[3].

13. Realizou-se uma sessão de audiência final e, a 6 de fevereiro de 2017, foi proferida sentença que julgou a ação procedente, condenando a Ré BB a prestar as contas da sua administração relativamente ao período que medeia entre 2001 e 2013. Esta sentença foi revogada por acórdão do Tribunal da Relação ... de 21 de fevereiro de 2018, que, por seu turno, foi revogado por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de setembro de 2018, que repristinou a decisão do Tribunal de 1.ª Instância.

14. Após suspensão da instância por acordo das partes desde 31 de outubro de 2018, a Ré BB, a 24 de abril de 2019, foi notificada para apresentar as contas, sob a forma de conta corrente, dentro de vinte dias, sob pena de lhe não ser permitido contestar as que o Autor AA viesse a apresentar.

15. A 14 de maio de 2019, a Ré BB apresentou as suas contas, com receitas nulas, despesas nulas e consequente saldo nulo.

16. A 21 de maio de 2019, a Ré BB requereu a suspensão da instância nestes autos com fundamento em causa prejudicial decorrente de no processo n.º 60/17....[4], que corre termos no Juízo Central Cível ..., Comarca ..., ter sido proferida sentença a 15 de maio de 2019 que, além do mais, decidiu: “a) Que a partilha da herança aberta em 28/02/1932 por óbito de CC (Visconde de ...) se realizou através da escritura lavrada em 05/08/1932 no ... Cartório Notarial de ... do notário Dr. EE, exarada no Livro de notas 88 – A, a fls. 1 a 4v e respectivos documentos anexos, apendiculada à presente petição como documento n.º 6, através de certidão, escritura essa que actualmente se encontra depositada no ..., conforme consta do documento junto a fls. 35 e ss.; b) Que o Visconde de ... deixou testamento que consta do documento junto a 21 v. e ss.; c) Que nessa escritura datada de 05/08/1932 outorgaram todos os cinco filhos do Visconde de ..., de seus nomes, FF, GG, HH, II (ou só JJ) e KK; d) Que constitui parte integrante dessa mesma escritura de habilitação e partilha de 05/08/1932 a relação de bens da herança do falecido CC (Visconde de ...), nela referida, que consta de trinta e seis verbas de bens móveis e imóveis elaborada e apresentada pelos próprios outorgantes/herdeiros para instruir essa escritura; e) Que todos os filhos do falecido Visconde de ... deliberaram que todos os bens constantes da referida relação composta por trinta e seis verbas “são adjudicados e ficam pertencendo em comum aos cinco herdeiros FF, GG, D. HH, II e KK, na razão de um quinto para cada um, e nesta conformidade deverão ser feitos os atos de inscrição de transmissão, levantamento e posse”; f) Que os 2º, 3º, 4º, 5º e 6º outorgantes na referida escritura, “havendo por efectuada a partilha dos bens do casal de seu pai e sogro, obrigam-se a tudo manter e cumprir como nesta escritura se contém”; g) Que, em consequência da partilha efectuada pela referida escritura de 05/08/1932 se extinguiu a comunhão hereditária aberta pelo óbito do Visconde de ... em 28/02/1932 e se formou desde então uma comunhão em compropriedade entre todos os cinco filhos do defunto Visconde, que ainda se mantém; h) Condena-se os Réus, AA e mulher LL, a reconhecer os factos e direitos declarados nas alíneas antecedentes.”

17. O Autor AA opôs-se ao requerimento.

18. Por despacho proferido a 29 de maio de 2019, indeferiu-se o requerimento de suspensão da instância, por este ter sido já indeferido por decisão transitada em julgado, e determinou-se o cumprimento do disposto no art. 945.º, nº 1, do CPC.

19. A 1 de julho de 2019, o Autor AA contestou as contas oferecidas pela Ré BB, pedindo a procedência da contestação por si apresentada e a consequente verificação de um saldo a seu favor no montante de € 27.300,00, correspondente ao valor locativo do espaço que a Ré habitou durante treze anos, que pertence à herança de que o Autor é cabeça de casal.

20. A 23 de setembro de 2019, designou-se dia para realização de audiência prévia.

21. Na audiência prévia, frustrou-se a tentativa de conciliação das partes, fixou-se o valor da causa no montante de € 30.001,00, identificou-se o objeto do litígio, proferiu-se saneador tabelar, enunciaram-se os factos que desde então se podiam já considerar provados e bem assim os temas de prova, admitiram-se as provas oferecidas pelas partes e foram estas convidadas a, querendo, pronunciar-se sobre a necessidade de realização de prova pericial sobre os temas de prova 2 a 4. O Autor AA sustentou a desnecessidade de realização de qualquer perícia, pugnando pelo aproveitamento das perícias realizadas no processo nº 568/2001 que correu termos no ... Juízo do Tribunal Judicial da Comarca ....

22. A audiência final realizou-se numa sessão e, a 23 de setembro de 2019, foi proferida sentença[5] que terminou com o seguinte dispositivo:

Pelos fundamentos acima expostos, julgo a acção totalmente procedente e em consequência declaro:

- Que a ré está obrigada a prestar contas e que o autor as prestou no lugar da ré;

- Que as contas prestadas pelo autor são aprovadas e julgadas boas quanto ao saldo inicial de € 27.300 euros a favor do autor, receitas de € 27.300 euros e zero de despesas efectuadas, sendo o saldo devedor da ré, a favor da herança representada pelo autor, como cabeça-de-casal de € 27.300 euros (vinte e sete mil e trezentos euros).”

23. A 20 de outubro de 2020, inconformada, a Ré BB interpôs recurso de apelação.

24. O Autor AA contra-alegou, pugnando pela total improcedência do recurso.

25. Por acórdão de 12 de abril de 2021, o Tribunal da Relação ... decidiu o seguinte:

Pelo exposto, os juízes subscritores deste acórdão, da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação ... acordam em nos termos antes expostos julgar parcialmente procedente o recurso de apelação interposto por BB e, em consequência, em revogar a sentença recorrida proferida em 23 de setembro de 2019, improcedendo a impugnação da verba de receita deduzida por AA contra as contas apresentadas por BB, contas estas que se aprovam e, em consequência, absolve-se BB do pedido dado o saldo das contas aprovadas ser igual a zero.

Custas do recurso e da ação, nesta fase processual, a cargo do autor, sendo aplicável a secção B, da tabela I, anexa ao Regulamento das Custas das Custas Processuais.”

26. Não conformado, o Autor AA interpôs recurso de revista com as seguintes Conclusões:

A. O douto Acórdão recorrido, datado de 12 de Abril de 2021, com a ref. n.° ..., julgou parcialmente procedente o Recurso interposto por BB, pois que a aquela decaiu em diversas questões recursórias.

B. Conclui-se assim que o Recurso que havia sido interposto, para a Veneranda Relação ..., pela Ré, não foi julgado totalmente procedente, por provado, tendo decaído em parte.

C. Por conseguinte, haverá que reformar o douto Acórdão em conformidade, no que às custas respeita, o que aqui expressamente se requer, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo n.° 616/3.° do CPC, substituindo-se o segmento respeitante à condenação em custas que dele consta pelo que se segue: "Custas da Apelação por ambas as partes em função do respetivo decaimento”.

D. Além disso, o douto Acórdão recorrido, datado de 12 de Abril de 2021, com a ref. n.° ..., revogou a sentença recorrida, proferida em 23 de setembro de 2019, do seguinte modo: "improcedendo a impugnação da verba de receita deduzida por AA contra as contas apresentadas por BB, contas estas que se aprovam e, em consequência, absolve-se BB do pedido dado o saldo das contas aprovadas ser igual a zero”.

E. Entendeu assim o Venerando Tribunal da Relação ... que a ação especial de prestação de contas não é a via processual adequada para efeitos de condenação num valor fixado em função do gozo exclusivo de um imóvel integrado numa comunhão hereditária consubstanciado numa economia de despesas.

Salvo o devido respeito, que é muito, não pode o aqui Recorrente concordar com o douto Acórdão recorrido, pelos seguintes motivos e fundamentos:

F. A Ré/Recorrida, tendo sido condenada nos presentes autos a prestar constas da sua administração de facto, exercida entre 2001 a 2013, apresentou, em forma de conta-corrente, um saldo igual a "zero", conforme Requerimento datado de 14 de Maio de 2019, com a ref. n.° ....

G. Tendo posteriormente o Autor/aqui Recorrente contestado/impugnado a referida conta e mencionado um valor efetivo/real que deveria constar da receita da conta-corrente, a favor do património comum hereditário, mas que era totalmente omisso.

H. O Autor/aqui Recorrente tinha assim direito a alegar e provar que a verba de receita foi superior à indicada e/ou articular que existia uma receita não incluída na conta.

I. Para o efeito, na sua Contestação, datada de 01 de Julho de 2019, com a ref. n.° ... (cujo teor e conteúdo, quer dos factos alegados, quer do pedido formulado, por uma questão de economia processual, se dão aqui por total e integralmente reproduzidos para todos os devidos efeitos legais), o Autor/aqui Recorrente juntou prova documental bastante para a verba de receita - ver, a este propósito, contrato de arrendamento (doe. 2) e recibos de renda (doe. 3) juntos aos autos com a aludida Contestação.

J. Por conseguinte, o Autor apresentou o valor de € 27.300,00 corresponde à receita/poupança de despesas por parte da Ré/Recorrida resultante do gozo exclusivo não remunerado de bem imóvel integrado na comunhão hereditária, à razão de € 175,00 por mês (€175,00 x 12 meses = € 2.100,00 de poupança anual; € 2.100,00 x 13 anos = € 27.300,00).

K. Consequentemente, ao abrigo do disposto no artigo n.° 945/4.° do CPC, de acordo com o prudente arbítrio/regras de experiência e de toda a prova produzida em audiência de julgamento, o Tribunal de l.a Instância apurou uma poupança de despesas/saldo a favor do património hereditário/comum, no valor de 27.300,00c

L. Além disso, desde já se realce que os factos dados como provados e que  aqui  se  dão   por  totalmente   reproduzidos,   não  foram impugnados em sede de recurso, pelo que têm plena validade, eficácia e se mantêm incólumes com as legais consequências.

M. Com a presente ação especial de prestação de contas, não pretendia o Autor/aqui Recorrente a responsabilização da Ré pela não distribuição dos rendimentos ou pela má administração de facto levada a cabo por aquela, nem tão pouco uma indemnização por eventuais danos de privação do uso.

Com efeito,

N. Não constitua objeto da presente ação aquilatar do mérito da administração dos bens alheios em referência ou determinar se, com um outro tipo de gestão do património em causa, poderiam ser obtidas receitas que não foram obtidas e condenar a prestadora de contas a pagar um qualquer saldo patrimonial não efetivamente apurado.

O. O que estava em causa era demonstrar e provar que havia uma receita, consubstanciada num valor concreto/líquido pela utilização/ocupação exclusiva da Ré do imóvel pertencente à comunhão hereditária, sem ter pago aquela qualquer contrapartida económica desde 2001 a 2013 e contra a vontade do administrador de direito.

P. E, nesta matéria, a jurisprudência tem entendido que o valor do uso da fração representa uma vantagem económica que deve ser considerada na ação especial de prestação de contas - Vejam-se, a título de mero exemplo, os Acs. do STJ de 25.03.2004 C.J., Ano XII, Tomo I, 2004, página 145 e do TRP de 22.03.2011, proferido no proc. 641-K/2002, acessível em www.dgsi.pt.

Q. Também no douto Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães, Proc. n.° 5372/04.5TBGMR-A.G1, datado de 08/03/2012, Relatora: Helena Melo se defendeu que:  "Tendo um dos cônjuges a posse exclusiva de um imóvel que era comum, deverá o valor locativo desse imóvel ser considerado como receita"

R. Assim sendo, tratando-se de um pedido de prestação de contas, deve-se incluir o uso que se faz do imóvel, que constitui "uma utilidade económica traduzível em valores financeiros" - Ac. do STJ de 02/07/2003 no âmbito do proc. n.° 04A634.

S. Também o douto Ac. da Relação de Guimarães, datado de 12/01/2017, proc. n.° 3146/13.1TBGMR-A.G1 concluiu o seguinte: "Portanto, deve seguir-se a regra geral; ou seja, tratando-se, como se trata, de um bem comum, o A. tem o direito a ser compensado pelo benefício que a Ré dele retirou."

T. A acrescer a tudo isto, diga-se que as contas apresentadas pelo Autor/aqui Recorrente são altamente favoráveis à Ré/Recorrida e pecam por defeito, pois que foram juntos aos autos Relatórios Periciais, tirados por unanimidade, nos quais se concluiu que o valor locativo da área do imóvel alegadamente ocupada pela Ré BB seria no valor de 295,83€/mês.

U. Sendo que o valor de arrendamento mensal da totalidade do imóvel, na posse da Ré, seria no valor de 718,75€/mês. (Ver, para todos os efeitos, os relatórios periciais juntos aos presentes autos, por requerimento enviado "via citius" em 28/10/2019, com a ref. n.° ...).

V. Além disso, a Ré/Recorrida, enquanto administradora de facto isentou-se do pagamento de qualquer renda/mensalidade/rendimento pela ocupação do património comum, contra a vontade expressa do aqui Autor/Recorrente, que só ao fim de uma longa luta judicial de doze (12) anos conseguiu a entrega da Quinta...!

W. Tanto mais que o valor de 175,00c/mês corresponde à renda que a Ré/Recorrida paga, logo que foi obrigada a sair da Quinta..., em Dezembro de 2017 (V. contrato de arrendamento junto aos autos).

A acrescer a tudo isto,

X. Foi proferido despacho-saneador a 2019/11/04, em que foram fixados temas de prova, os quais não foram objeto de qualquer reclamação por parte da Ré.

Y. A Ré/Recorrida não apresentou qualquer prova documental (ou de outro tipo) de suporte à sua conta-corrente com saldo alegadamente "zero".

Z. Deve assim ser julgada procedente a verba de receita deduzida pelo autor contra as contas apresentadas pela Ré e ser a aquela condenada no saldo efetivamente apurado - 27.300,00€, revogando-se em conformidade o douto Acórdão recorrido.

AA. Na medida em que tal valor corresponde ao valor obtido pelo duplo-cálculo e dupla via do contrato de arrendamento celebrado pela Ré e da quota de 3/5 no património do Recorrente, calculada sobre o valor locativo mais baixo do imóvel obtido na perícia efetuada.

Nestes termos, e nos melhores de Direito, como sempre doutamente supridos por V.as. Exas., devem as presentes Alegações de Recurso ser julgadas totalmente procedentes, sendo o Douto Acórdão recorrido reformado quanto à condenação em custas e revogado e substituído por outro que julgue   procedente   a   verba   de   receita Z8 deduzida pelo autor contra as contas apresentadas pela Ré e ser a aquela condenada no saldo efetivamente apurado, na l.a Instância, no valor de 27.300,00€, assim fazendo V.as Ex.as Inteira e Sã JUSTIÇA”.

27. A Ré BB apresentou contra-alegações, formulando as seguintes Conclusões:

1ª – A decisão em matéria de custas constante do douto acórdão recorrido deve manter-se na sua integralidade, por respeitar as regras gerais em matéria de custas do art.º 527º do CPC.

2ª – Condenada a recorrida a prestar contas, esta prestou-as na forma legalmente adequada, apresentando as mesmas saldo zero, já que nem obteve receitas nem efectuou despesas efectivas.

3ª – A verba de € 27 300,00 que o recorrente pretende ver qualificada como receita na prestação de contas não pode como tal ser qualificada;

4ª – Porque não corresponde a receita efectivamente auferida pela recorrida em seu benefício exclusivo e, por isso, não se pode em sede de acção de prestação de contas considerar essa verba como receita a entrar no apuramento final do saldo.

5ª – Em acção de prestação de contas não constitui receita o valor correspondente ao uso do imóvel comum, trate-se de co-herdeiro em comunhão hereditária, trate-se de cônjuge em comunhão patrimonial subsequente ao decretamento do divórcio, trate-se até de consorte em comunhão em compropriedade.

6ª – Atento o princípio da solidariedade previsto no art.º 1406º do Cód. Civil, é lícito a cada um dos comproprietários servir-se e utilizar na totalidade a coisa comum.

7ª – A acção de prestação de contas tem por objecto típico e único o apuramento e aprovação das receitas efectivamente obtidas e das despesas efectivamente realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que vier a apurar-se.

8ª – Tal acção não é o meio processual próprio para quem tem direito à prestação de contas exigir do obrigado à prestação delas a compensação pela utilização exclusiva do imóvel que tenha constituído casa de morada de família, de imóvel que se integre em comunhão hereditária ou em comunhão em compropriedade, nem para apurar da boa ou má administração da coisa comum, do eventual enriquecimento ou locupletamento à custa alheia ou para aquilatar das vantagens ou benefícios gozados pelo utilizador da coisa comum.

NESTES TERMOS, e sempre com o mui douto suprimento de V. Ex.as, deve a presente revista ser negada, com a consequente e integral confirmação do douto acórdão revidendo, assim se fazendo JUSTIÇA”.


II - Questões a decidir

Atendendo às conclusões do recurso, que, segundo os arts. 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, do CPC, delimitam o seu objeto, e não podendo o Supremo Tribunal de Justiça conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser em situações excecionais de conhecimento oficioso, estão em causa as seguintes questões:

- a reforma – ou não - da decisão recorrida quanto a custas;

- a consideração – ou não - como receita da contrapartida devida pelo gozo exclusivo de um imóvel pelo co-herdeiro administrador em ação de prestação de contas instaurada pelo outro co-herdeiro.


III – Fundamentação

A) De Facto

Foram considerados como provados os seguintes factos:

3.2.1.1

Por testamento DD, instituiu herdeira universal a ré BB, tendo a testadora falecido em 17 de agosto de 1991.

3.2.1.2

Corre termos na Comarca ... um processo de inventário n.º 12410/99... (da extinta ... Vara Cível), requerido pelo autor e onde ele é cabeça de casal, tendo por objeto a partilha da herança do avô do autor CC e onde autor e ré são herdeiros e interessados.

3.2.1.3

Dessa herança faz parte a “Quinta...”, sita em ..., .... 3.2.1.4

Desde o falecimento da DD em 17 de agosto de 1991, a requerente dorme, toma as refeições, recebe amigos e correspondência e guarda os seus pertences na Casa de ....

3.2.1.5

Comportando-se como a única dona e recusando a entregar ou facultar o acesso ao autor, como cabeça de casal, dos móveis e imóveis da Quinta.

3.2.1.6

Fechando e trancando as portas e janelas, trocando fechaduras, fechando a cadeado os portões da Quinta e soltando os cães.

3.2.1.7

Impedindo o autor de franquear os portões da Quinta.

3.2.1.8

A ré não cuidou da Quinta ao longo dos anos e não fez obras.

3.2.1.9

Deixou os campos por cultivar e as edificações agrícolas arruinarem-se.

3.2.1.10

Deixou que as portas, janelas, tetos, coberturas, canalizações, louças sanitárias, armações e mobiliário ficassem em ruínas e sem possibilidade de restauro.

3.2.1.11

A herança deixada por óbito de CC é integrada apenas pelos imóveis rústicos e urbanos que constituem a chamada Quinta... e ainda por alguns dos móveis que se encontram atualmente depositados na casa principal da Quinta... e que já foram licitados no inventário.

3.2.1.12

De 2001 a 2013 a ré não percebeu qualquer rendimento proveniente da Casa e Quinta....

3.2.1.13

O valor de ocupação mensal do alojamento da Casa e Quinta... é pelo menos de € 175 euros mensais.

3.2.1.14

Tendo a ré poupado esse valor.

3.2.1.15.

No total de € 27.300 euros.

B) De Direito


Tipo e objeto de recurso

1. Está em causa o recurso de revista interposto pelo Autor AA do acórdão do Tribunal da Relação ... de 21 de abril de 2021, proferido na sequência do recurso de apelação apresentado pela Ré BB que, revogando a sentença do Tribunal de 1.ª Instância, apresenta o seguinte segmento decisório:

Pelo exposto, os juízes subscritores deste acórdão, da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação ... acordam em nos termos antes expostos julgar parcialmente procedente o recurso de apelação interposto por BB e, em consequência, em revogar a sentença recorrida proferida em 23 de setembro de 2019, improcedendo a impugnação da verba de receita deduzida por AA contra as contas apresentadas por BB, contas estas que se aprovam e, em consequência, absolve-se BB do pedido dado o saldo das contas aprovadas ser igual a zero.

2. Com efeito, o Tribunal de 1.ª Instância decidiu:

- Que a ré está obrigada a prestar contas e que o autor as prestou no lugar da ré;- Que as contas prestadas pelo autor são aprovadas e julgadas boas quanto ao saldo inicial de € 27.300 euros a favor do autor, receitas de € 27.300 euros e zero de despesas efectuadas, sendo o saldo devedor da ré, a favor da herança representada pelo autor, como cabeça-de-casal de € 27.300 euros (vinte e sete mil e trezentos euros).

3. Irresignado com a decisão do Tribunal da Relação ..., o Autor AA interpôs o recurso de revista em apreço, pugnando pela reforma do acórdão recorrido quanto a custas e pela sua revogação, com sequente repristinação do decidido pelo Tribunal de Instância.

(In)admissibilidade do recurso

Tendo em conta o valor da causa (fixado em €30.000,01 por sentença de 23 de setembro de 2020) e da sucumbência, a legitimidade do Recorrente AA e o teor do acórdão recorrido, conclui-se pela admissibilidade do presente recurso de revista, nos termos do disposto nos arts. 629.º, n.º 1, 631.º, n.º 1, 671.º, n.º 1, e 674.º, n.º 1, al. a), do CPC.

Reforma – ou não – do acórdão recorrido quanto a custas

1. O Recorrente AA pugna pela reforma da decisão recorrida quanto a custas, invocando que o facto de a aí Apelante BB haver decaído em diversas pretensões recursórias obsta  a que a condenação em custas o onere na totalidade.

2. Em conformidade com o disposto no art. 617.º, n.º 1, do CPC, o Tribunal a quo pronunciou-se sobre a reforma peticionada, julgando-a improcedente.

3. Tendo em conta que a questão foi suscitada em sede de alegações de revista (art. 616.º, n.º 3, do CPC), impõe-se decidir.

4. Segundo a regra geral sobre custas, estabelecida no art. 527.º do CPC,

1 - A decisão que julgue a ação ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da ação, quem do processo tirou proveito. 2 - Entende-se que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for. 3 - No caso de condenação por obrigação solidária, a solidariedade estende-se às custas.”

5. Na verdade, “paga as custas a parte que lhes deu causa, isto é, que pleiteia sem fundamento, que carece de razão no pedido formulado, que, em suma, exerce no processo uma atividade injustificada.” [6].

6. No caso sub judice, tal como referiu o Tribunal da Relação ..., a Apelante BB, apesar de ter ficado vencida relativamente a determinados fundamentos recursivos, obteve ganho integral de causa ao ser absolvida do pedido in totum. O desfecho do recurso interposto foi-lhe, assim, inteiramente favorável.

7. De acordo com o princípio da causalidade afigura-se, por conseguinte, justificada a condenação do Recorrente AA, aí Apelado, na totalidade das custas do recurso, uma vez que não obteve êxito no pedido formulado. A sua pretensão decaiu na totalidade.

8. Por isso, o pedido de reforma formulado por AA deve, pois, improceder.

Consideração – ou não - como receita da contrapartida devida pelo gozo exclusivo de um imóvel pelo co-herdeiro administrador em ação de prestação de contas instaurada pelo outro co-herdeiro

1. A decisão do Tribunal de 1.ª Instância, vinculada pelo caso julgado formado a respeito da obrigação da Recorrida BB de prestar contas, julgou procedente a impugnação do Autor AA das contas apresentadas pela Ré (que ostentam valor nulo no que toca às receitas percebidas). Decidiu, assim, computar na rubrica das receitas a verba de €27.300,00, equivalente à contrapartida do gozo da Casa e Quinta..., bem integrante da herança aberta por óbito do avô do Autor, relativamente à qual ambas as partes ocupam a posição de herdeiros, desempenhando o Recorrente as funções de cabeça-de-casal.

2. Por seu turno, o Tribunal da Relação ... divergiu deste entendimento, ponderando que no processo especial em crise apenas podem ser relacionadas as despesas e receitas efetivamente realizadas ou auferidas pela pessoa obrigada à prestação de contas – o que não sucedeu com a quantia devida pela utilização do referido imóvel. A favor da sua posição, o Tribunal invoca, para além do elemento gramatical das normas dos arts. 941.º, 944.º, n.os 1 e 3, do CPC, a posição perfilhada pela doutrina e pela jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça e dos Tribunais da Relação.

3. A questão em apreço convoca, prima facie, aquela do objeto da ação de prestação de contas: saber se deve ou não admitir-se a relacionação como receita de um montante, correspondente à retribuição do gozo de um imóvel por parte do obrigado a prestar contas, que não foi por este efetivamente percebido.

4. Conforme o art. 940.º do CPC,

a ação de prestação de contas pode ser proposta por quem tenha o direito de exigi-las ou por quem tenha o dever de prestá-las e tem por objeto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se.”

5. Esta questão deveria ser colocada, não na perspetiva do mérito conducente à procedência ou improcedência da ação, mas antes no ponto de vista da existência ou inexistência de vício processual traduzido em erro sobre a forma de processo. Efetivamente, “a questão do erro na forma do processo resolve-se em face do pedido formulado na ação em confronto com o fim a que, segundo a lei, o processo especial de contas se destina.”[7]

6. A conclusão alcançada pelo Tribunal da Relação ... de que a ação de prestação de contas não constitui o meio processual adequado para responsabilizar o administrador pelas vantagens por si retiradas do gozo dos bens administrados (acrescentando mesmo a decisão recorrida que a via processual adequada será a ação declarativa comum) aponta para a impropriedade do esquema processual adotado para acomodar a pretensão concretamente formulada pelo Recorrente AA. Tal remete a discussão para o plano da nulidade processual, e não para aquele das condições de procedência da ação.

7. Por conseguinte, perfilar-se-ia uma nulidade por erro na forma do processo (art. 193.º do CPC) que, não tendo sido oportunamente conhecida ou invocada (arts. 196.º e 200.º, n.º 2, do CPC), se deveria considerar sanada. De qualquer modo, in casu, a declaração desta nulidade não apresentaria efeitos prático-jurídicos distintos daqueles verificados, uma vez que, na sequência da contestação pelo Autor AA das contas apresentadas pela Ré BB, a ação seguiu os termos do processo comum declarativo, em conformidade com o disposto no art. 945.º, n.º 1, do CPC.

8. Refira-se, por outro lado, que a generalidade da doutrina nacional se pronuncia pela vocação da ação de prestação de contas para a discussão do valor ou a inscrição de receitas efetivas, e não meramente virtuais ou hipotéticas[8].  Também a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça acolhe este entendimento[9].

9. Analise-se agora o enquadramento jurídico (não coincidente com o adotado pelas Instâncias) aplicável à pretensão do Recorrente AA, atendendo a que já transitou em julgado o estabelecimento da obrigação da Recorrida de apresentar contas  e a que se afigura pacífico que a obrigação de prestar contas não se confunde com a necessidade de as prestar. I.e., “o resultado da prestação – ainda que a sua expressão possa vir a ser nula – em nada interfere com a obrigação de as prestar que é decidida em momento anterior à efetiva prestação”.[10]

10. A validade da inscrição na rubrica das receitas da verba em apreço encontra-se geneticamente ligada à determinação da existência de uma obrigação, na esfera jurídica da co-herdeira administradora, de pagamento de uma contrapartida pelo gozo exclusivo do imóvel que integra a massa hereditária.

11. Esta questão, que não tem obtido da jurisprudência resposta unânime, tem sido prevalentemente tratada a propósito de ações de prestação de contas entre ex-cônjuges, na sequência da dissolução do casamento por divórcio. No entanto, a argumentação nelas mobilizada é transponível para o caso sub judice.

12. De um lado, uma corrente jurisprudencial defende que se deverá considerar como receita o valor de uso exclusivo de prédio que constitua bem comum do casal por parte de um dos ex-cônjuges[11]. De outro lado, outra posição jurisprudencial sustenta que  “(…) 6ª – Tendo o aqui Autor saído da casa de morada de família e aí permanecendo sua mulher, aqui Ré, não mais sendo reatada a vida em comum, não tem aquele (que nem sequer alega se ter oposto a tal situação) direito a ser compensado por aquela em termos do valor locativo do prédio [12]; “o crédito compensatório pela utilização da casa de morada de família não encontra fundamento na administração do ex-cônjuge utilizador como cabeça-de-casal, mas em função da sua posição de consorte relativamente ao imóvel; nessa medida, a acção de prestação de contas mostra-se processualmente inadequada para a sua apreciação, desde logo por impedir que possa ser exercida uma defesa efectiva por parte daquele, assentando cabimento tal apreciação em acção de processo comum [13], entendendo que, no caso do caso dos autos, existia um acordo tácito quanto à utilização que obstava à invocação do instituto do enriquecimento sem causa; “(…) III - O valor locativo como valor (de mercado) de utilização do imóvel só pode ser considerado como receita para efeitos de prestação de contas, a que alude o n.º 1 do art. 1014.º do CPC, se o administrador auferir de facto esse valor como rendimento do prédio [14]; o estabelecimento de uma compensação pela utilização da casa de morada de família no período subsequente ao divórcio e anterior à partilha do património comum do casal pressupõe a existência de acordo dos cônjuges sobre a sua ocupação, ou de decisão judicial, dotada, neste sentido, de natureza constitutiva[15]; “(…) IX. Inexistindo elementos de facto suscetíveis de permitir concluir no sentido da constituição, na esfera jurídica do ex-cônjuge não utilizador, de um direito à contraprestação pela utilização exclusiva de imóvel comum por parte do outro ex-cônjuge, não devem ser aprovados os montantes relacionados a esse título. X. Na medida em que o uso exclusivo de imóvel comum por um dos ex-cônjuges não gera, necessariamente, um crédito compensatório a favor do outro, impõe-se levar em devida linha de conta as circunstâncias do caso concreto (…).”[16].

13. Se a mera utilização de um bem integrante da herança por parte de um co-herdeiro não acarreta para si, sem mais, automaticamente, o dever de pagamento de uma contraprestação, resta, pois, adotar uma perspetiva casuística que atenda às especificidades do caso concreto e valore adequadamente a atuação das partes ao longo do tempo.

14. É sobejamente sabido que os herdeiros são tão-só titulares de uma quota sobre a totalidade do valor da herança e não sobre os bens certos e determinados que a compõem. O património hereditário pertence na sua unidade a duas ou mais pessoas. A indivisão hereditária traduz-se numa situação de comunhão de direitos que termina com a partilha. Deve,  pois, levar-se em devida linha de conta o disposto no art. 1404.º do CC (aplicação das regras da compropriedade a outras formas de comunhão) e, assim, de acordo com o art. 1406.º do mesmo corpo de normas, “na falta de acordo sobre o uso da coisa comum, a qualquer dos comuneiros é lícito servir-se dela, contanto que não a empregue para fim diferente daquele a que a coisa se destina e não prive os outros consortes do uso a que igualmente têm direito”. De resto, a doutrina tem considerado não existirem obstáculos à aproximação de determinados traços do regime da compropriedade e da comunhão, pois ambas traduzem situações de contitularidade de direitos[17]. Com efeito, a noção de quota enquanto “participação individual de cada sujeito no todo é inerente a todas as situações de comunhão[18].

15. Por força do disposto no art. 1404.º do CC, as regras da compropriedade são, pois, aplicáveis, com as necessárias adaptações, à comunhão ou contitularidade de direitos dos consortes numa herança.

16. Assim, e em conformidade com o disposto nos arts. 1403.º, n.º 2, 1405.º, n.º 1, e 1406.º, n.º 1, do CC, a Recorrida BB, na qualidade de herdeira testamentária, tinha o direito de utilizar a Quinta..., na proporção da respetiva quota, contanto que não a empregasse para fim diferente daquele a que ela se destina e não privasse o Recorrente AA, também ele herdeiro, do uso a que igualmente tinha direito.

17. In casu, a facticidade dada como provada não consente outra conclusão que não a de que, durante mais de 20 anos, a Recorrida BB utilizou o imóvel sem que o Recorrente AA lançasse mão de mecanismos jurídicos (como a ação de petição de herança, prevista no art. 2075.º do CC, ou uma ação declarativa com processo comum) idóneos para operar a restituição do bem à massa hereditária, colocando termo a tal utilização exclusiva, ou para obter o reconhecimento de um crédito da massa hereditária correspondente ao valor do gozo do imóvel.

18. Acresce que, tal como refere a Recorrida BB, da materialidade assente não se retira a existência de qualquer acordo extrajudicial celebrado entre as partes do qual decorra a obrigação da herdeira administradora de pagar à comunhão hereditária uma contrapartida pela utilização de um bem nela integrado. Essa factualidade não permite igualmente concluir que a Recorrida BB tenha, com a sua conduta, frustrado uma oportunidade de negócio suscetível de rendibilizar economicamente a utilização da Quinta....

19. Havendo o Recorrente AA tido conhecimento da ocupação do imóvel pela Recorrida BB, ao longo de todos os anos, a sua conduta omissiva deve ser interpretada como constituindo uma posição de tolerância, de anuência ao gozo do imóvel: como exteriorizadora de uma vontade permissiva, sucessivamente renovada, da utilização da quinta por parte da Recorrida.

20. Este acordo tácito – que avulta com toda a clareza no caso sub judice – obsta ao reconhecimento, na esfera jurídica da Recorrida BB, da obrigação de pagamento de uma contrapartida pela utilização do imóvel correspondente à receita que o Recorrente AA impugna. Impede o Recorrente de discutir, nos presentes autos, a existência de tal obrigação - independentemente do acerto do valor locativo do bem que resultou provado e que, muito diferentemente do que parece pressupor, aqui não se debate nem poderia tão pouco ser objeto de sindicância por parte do Supremo Tribunal de Justiça.

21. Afasta-se igualmente o recurso ao instituto do enriquecimento sem causa como fonte de atribuição de um crédito à herança, uma vez que a situação entretanto criada e contra a qual o Recorrente AA agora reage encontra justificação na sua própria inércia no acionamento dos mecanismos processuais disponíveis[19].

22. Não se constituindo, na esfera jurídica da Recorrida BB, a obrigação de pagamento do valor locativo do imóvel e, por conseguinte, não surgindo o correspondente crédito na titularidade da comunhão hereditária, a impugnação da verba da receita deduzida pelo Autor não pode proceder, devendo a Recorrida ser absolvida do pedido perante o apurado saldo nulo das contas aprovadas.

23. Soçobra, pois, a pretensão recursória em apreço apresentada pelo Autor AA.


IV - Decisão

Nos termos expostos, acorda-se em julgar totalmente improcedente o recurso interposto por AA, confirmando-se – ainda que com fundamentação diferente – o acórdão recorrido.

Custas pelo Autor/Recorrente.


Lisboa, 15 de fevereiro de 2022


Maria João Vaz Tomé (relatora)

António Magalhães

Jorge Dias

_______

[1] A partir de setembro de 2014, por força da reorganização judiciária, os autos passaram a correr termos na Secção Cível do Tribunal Judicial de Amarante, Comarca do Porto Este.
[2] De acordo com esta decisão, “Assim, e perante o exposto, em vista do preceituado no art. 941 n.º 3 do CPC, imediatamente se configura que existe a obrigação de prestar contas nos termos delineados pelo autor, tendo em conta a alegada detenção pela ré de bens móveis e imóveis de que é contitular, falecendo, na totalidade, a pretensão da ré em ficar a salvo da obrigação de prestar contas.
[3] Conforme este despacho, “Requerimento da ré de fls. 299: Como se sabe, em termos breves, o processo especial de prestação de contas previsto nos artigos 941 e seguintes, do CPC, constitui o instrumento legal posto à disposição daquele que tenha o direito de exigir a prestação de contas ou o dever de as prestar, para obter o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administre bens alheios, bem como a eventual condenação no pagamento do saldo, que em conformidade for apurado, funcionalmente desenvolvendo-se, num primeiro momento, em termos declarativos, e num segundo, face ao saldo apurado, de cariz condenatório. Não se evidenciando a existência de qualquer norma legal que preveja a obrigação de prestar contas, mas sim um conjunto de preceitos que casuisticamente tal determinam, pode a mesma derivar de negócio jurídico, ou até decorrendo do princípio geral de boa-fé, reafirmando-se que se encontra, sobretudo, ligada à já mencionada ideia de administração de bens alheios o que não é excluído por se configurar uma compropriedade. No caso sob análise de mera detenção de facto por parte de uma co-herdeira ou mesmo, como agora se alega, de uma co-proprietária ao longo de um largo período temporal, e debruçando-nos tão só sobre a qualidade de comproprietário não detentor agora invocada, pode-se dizer, igualmente, em termos breves, que o caso dos autos se configura como um património indiviso em que cada um dos contitulares pode exigir a divisão. Deste modo, e para o que interessa, diversamente do que parece entender a requerida, existem elementos no processo no sentido de ter sido apreciada a pretendida prestação de contas porque a mera detenção dos bens estes anos todos, como vem alegada pelo requerente, envolve necessariamente uma gestão ou, como alega o autor uma negligência nela, e pode ter envolvido a percepção de réditos cuja entrega e verificação pode ser exigida pelo comproprietário. A acção de prestação de contas coaduna-se, até, com a atitude da ré de que o autor alegou ter tido vítima ao longo dos anos, de não ter qualquer controlo efectivo sobre os respectivos bens e rendimentos dos mesmos Assim, e perante o exposto, em vista do preceituado no art. 942 n.º 3 do CPC, imediatamente se configura que se mantêm os pressupostos da lide, pelo que se indefere tudo quanto vem requerido pela ré no sentido de suspender a instância e inviabilizar o julgamento, tanto mais que o despacho-saneador de fls. 226 já transitou em julgado e que não é a transfiguração de uma co-herdeira numa co-proprietária que pulveriza a alegada possibilidade de exigir a prestação de contas. Custas do incidente pela ré, que se fixam em 2 UCs.
[4] Fazendo fé no relatório da cópia da sentença oferecida pela Ré, são partes nestes autos, como Autora, Ilda de Jesus Domingues Costa Bessa Pinto e, como Réus, Luís Manuel de Melo e Castro Alvellos e Mulher, Maria do Rosário Quintela Vieira de Campos Alvellos.
[5] Notificada às partes mediante expediente eletrónico elaborado a 24 de setembro de 2020.
[6] Cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de setembro de 2020 (Ilídio Sacarrão Martins), proc. n.º 1934/16.6T8VCT.G1.S1 – disponível para consulta in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/593729dc48fbf4c2802586250037eecf?OpenDocument
[7] Cf. Luís Filipe Pires de Sousa, Processos Especiais de Divisão de Coisa Comum e de Prestação de Contas, Coimbra, Almedina, 2021, p. 165.
[8] Cf. João A. Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, volume III, Coimbra, Almedina, 1991, p. 82, nota 3398; António Santos Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil anotado, vol. II, Coimbra, Almedina, 2020, p. 389; Luís Filipe Pires de Sousa, ob. cit., p. 166; Miguel da Câmara Machado, Processos Especiais, vol. I (Coord. Rui Pinto/Ana Alves Leal), Lisboa, AFDL Editora, 2020, p. 231.
[9] Cf. Acórdão dos Supremo Tribunal de Justiça de 3 de abril de 2003 (Moreira Alves), proc. n.º 03A073 – disponível para consulta in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/d078f41f2134623380256d2700572f13?OpenDocument;  de 10 de setembro de 2015 (Tavares de Paiva), proc. n.º 233/14.2TBAMT.P1.S1, que correu termos precisamente entre as mesmas partes e se reportou à prestação de contas pela Recorrida no período que intercede entre 1991 e 2000, segundo o qual “1-A prestação de contas implica pela sua natureza e também em conformidade com o objecto definido no art. 1014 do CPC discriminar despesas e receitas efectivamente realizadas, não cabendo no âmbito deste processo de prestação de contas, indagar da responsabilidade do administrador por eventual má gestão a ponto de terem de ser consideradas receitas que não foram conseguidas pela falta de diligência do obrigado à prestação de contas (…)”; de 16 de fevereiro de 2016 (Sebastião Póvoas), proc. n.º 17099/98.0TVLSB.L1.S1, segundo o qual “esta lide não tem por escopo verificar um eventual incumprimento de contrato por uma das partes mas, tão somente, a apurar o montante das receitas e despesas que efectivamente foram cobradas ou efectuadas. Daí que não tendo a despesa/pagamento sido efectivamente realizada, e tratando-se, se fosse caso, de despesa futura eventual não há que reflecti-la no cotejo de entradas e saídas na conta-corrente, irrelevando para efeito de apuramento de saldo. Só se, e noutra sede, fosse declarada a obrigação da dívida peticionada e a mesma tivesse sido satisfeita, é que relevaria, como receita, mas em ulterior prestação de contas (…). – disponível para consulta in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/-/3847995E953B44CE80257F5B00599BAF
[10] Cf. Luís Filipe Pires de Sousa, Processos Especiais de Divisão de Coisa Comum e de Prestação de Contas, Coimbra, Almedina, 2021, p.169.
[11] Cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de março de 2004 (Azevedo Ramos), proc. n.º 04A364, segundo o qual “(…) II - O cônjuge administrador não pode beneficiar do lucro que lhe proporciona a utilização exclusiva dos prédios comuns, em prejuízo do outro ex-cônjuge. III - O valor do uso desses prédios representa uma vantagem económica, que não pode deixar de ser considerado na prestação de contas, sob pena de injusto locupletamento à custa alheia e de um intolerável enriquecimento sem causa do cônjuge que os utiliza exclusivamente, em seu benefício” -  disponível para consulta in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/88ad96cb54d0980480256e830030741f?OpenDocument; 05-05-2011; de 5 de maio de 2011 (Fernando Bento), proc. n.º 555/05.3TMSTB-D-E1.S1.
[12] Cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de novembro de 2008 (Moreira Camilo), proc. n.º 08A2620 - disponível em
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/0041e3ccf7b20ee680257507003e8f11?OpenDocument.
[13] Cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça Processo de 12 de julho de 2017 (Graça Amaral), proc. n.º 255/10.2TMCBR-B.C1.S2.
[14] Cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de de 22 de janeiro de 2013 (Tavares de Paiva), proc. n.º 5372/04.5TBGMR-A.G1.S1.
[15] Cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de outubro de 2016 (Lopes do Rego), proc. n.º 135/12.7TBPBL-C.C1.S1 – disponível para consulta in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/d8e041601ce658fd8025804b0055ffed?OpenDocument.
[16] Cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de novembro de 2021 (Maria João Vaz Tomé), proc. n.º 1120/09.1TMLSB-C.L2.S1 - disponível para consulta in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/f59a1738eeea335b802587a00060ba62?OpenDocument.
[17] Cf. Elsa Vaz de Sequeira, Da contitularidade de direitos no Direito Civil – Contributo para a sua análise morfológica, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2015, pp. 401-406.
[18] Cf. Elsa Vaz de Sequeira, Da contitularidade de direitos no Direito Civil – Contributo para a sua análise morfológica, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2015, p. 403.
[19] Cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-01-2013 (Abrantes Geraldes), proc. n.º 2324/07.7TBVCD.P1.S1 - disponível para consulta in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/b5c217a7d89f2a7880257b0c003b8480?OpenDocument.