COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
RELAÇÕES DE DIREITO PRIVADO
Sumário

I - A competência em razão da matéria fixa-se em função dos termos em que o autor propõe a acção, atendendo ao direito a que o mesmo se arroga e pretende ver judicialmente protegido; deste modo, a questão da competência em razão da matéria deverá ser decidida em conformidade com o pedido formulado na petição inicial e a respectiva causa de pedir invocada.
II – No caso dos autos, atendendo ao pedido e causa de pedir enunciados pelas requerentes do procedimento cautelar, estamos no domínio de relações de direito privado: as requerentes, pessoas singulares, alicerçando-se em direitos privados que entendem possuir – fundados na propriedade de imóveis, atentas as relações de vizinhança, e na sua própria personalidade – pedem que cesse a emissão dos ruídos, fumos, calores, emitidos do estabelecimento da requerida, sociedade comercial.
III – Trata-se de procedimento cautelar para o qual é competente o Juízo Cível em que foi intentado.

Texto Integral

Acordam na Secção Cível (2ª Secção) do Tribunal da Relação de Lisboa:
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I - Ana … e Maria… intentaram procedimento cautelar comum contra «Padrão Evolução, Lda.».
Em resumo, alegaram as requerentes:
As requerentes são proprietárias, respectivamente, das fracções “A” e “E” do prédio sito na Rua…, em Lisboa.
A requerida explora um estabelecimento comercial destinado a restauração onde procede à confecção de vários produtos, cozinhados e refeições com produção própria de pão e pastelaria, sendo que aquele estabelecimento confina, a tardoz, com o pátio da fracção “A” da Rua ….
 Na sequência de divergências sobre a exaustão de fumos, odores e vapores produzidos na actividade desenvolvida pela requerida, o condomínio do prédio sito na Rua…, promoveu notificação judicial avulsa da requerida, intimando-a a, em 15 dias, fazer cessar o uso do saguão partilhado para qualquer fim, nomeadamente para exaustão de calor e fumos, instalação e manutenção de tubos com essa função, encerrar a abertura gradeada e reconstruir e pintar na cor original a parede onde esteve indevidamente colocado o tubo de exaustão.
Apresentada uma queixa junto da Câmara Municipal de Lisboa ocorreu intervenção desta e em 21-7-2020 foi fechada a grelha com saída para o saguão.
Porém, naquela mesma ocasião, a requerida instalou outra grelha, ao lado da saída que tinha sido fechada, sendo que a tubagem proveniente da cozinha conduz agora a essa grelha – o que limita o direito de propriedade, bem como a qualidade de vida, saúde e bem-estar das requerentes.
A requerida não cumpre as imposições legais atinentes à situação e com as alterações implementadas procede à libertação de intenso ruído e permanente exaustão de fumos, calores e odores que produz na sua actividade e que faz sair directamente para o saguão e prédio vizinho.
Acresce que na mesma ocasião a requerida incrementou, na parte frontal do edifício virada para a Rua …, nº 6, a extracção de calor que aí fazia.
As alterações que a requerida introduziu têm provocado prejuízos ao nível do descanso e repouso dos moradores da Rua …, n.º 8. As requerentes, na parte frontal do edifício, não conseguem abrir as janelas atento o cheiro insuportável que se faz sentir. Por forma a evitar que o fumo, vapores, calores e cheiros entrem nas suas habitações veem-se forçadas a ter fechadas as janelas que cada fracção tem a tardoz, o que prejudica a sua ventilação.
A 1ª requerente, não consegue utilizar o pátio da sua fracção, nem consegue arrendá-la como pretendia fazer.
Os moradores da Rua …, n.º 8, em Lisboa apresentaram queixa à Câmara Municipal de Lisboa, que determinou a apresentação de um projecto que visasse a reposição da legalidade, sob pena de se considerar definitivo o incumprimento e obrigada a requerida a repor o local em conformidade. A requerida impugnou o acto administrativo, correndo o processo no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa.
Existe um prejuízo substancial para o uso do prédio das requerentes que interfere no seu direito de propriedade, direitos de personalidade e de natureza pessoal relacionados com a qualidade de vida, bem-estar e qualidade ambiental.
Pediram as requerentes que seja:
- Ordenada a cessação da emissão de ruídos, fumos, vapores, calores, cheiros ou outros resíduos provenientes da combustão realizada pela requerida, libertados por tubagem, grelha, saída ou meio equivalente a tardoz e por intermédio de uma grelha na parte frontal do edifício virado para a Rua…, n.º 6.
- Fixada uma sanção pecuniária compulsória em montante não inferior a € 500,00 por cada dia em que a Requerida viole a providência decretada.
Requereram, ainda, a inversão do contencioso.
O Tribunal de 1ª instância proferiu despacho indeferindo liminarmente o procedimento cautelar, por não se verificar o requisito do “periculum in mora” e não serem admissíveis as providências requeridas, nos termos em que o foram.
Nesta Relação foi proferido acórdão que julgando procedente a apelação revogou a decisão recorrida, determinando o prosseguimento do procedimento cautelar.
Na sequência, a requerida deduziu oposição. No seu articulado invocou, nomeadamente, a incompetência do Tribunal. Disse, para o efeito, que segundo afirmam as requerentes o alegado acto lesivo por parte da requerida violou normas do RGEU e da Portaria 1532/20008, de 29-12, consubstanciando-se, quanto muito, num acto que deve ser avaliado de acordo com as regras de licenciamento camarário, estando-se na presença de questões jurídico-administrativas.
Concluiu a requerida estar-se perante um caso de incompetência material do tribunal para conhecer do pedido formulado, por se tratar de matéria da jurisdição administrativa.
As requerentes responderam.
Foi proferida decisão que julgou o Tribunal incompetente para conhecer do procedimento cautelar e absolveu a requerida da instância.
Desta decisão apelaram as requerentes, concluindo nos seguintes termos a respectiva alegação de recurso:
1 – O presente procedimento cautelar teve início em 26.09.2020, contando no seu histórico, desde o seu inicio, com o indeferimento liminar do procedimento cautelar e a revogação da decisão então proferida, sem que, curiosa e inexplicavelmente, um ano e três meses depois, se veja discutida e decidida a questão que legitimou o recurso a este procedimento urgente.
2 – O tribunal a quo, socorrendo-se apenas de parte da retratação histórica e desconsiderando totalmente a causa de pedir, considerou, na nossa perspetiva de forma errónea, que a competência para o presente procedimento cautelar pertence ao foro administrativo e não judicial.
3 – As Requerentes entendem que os factos que invocaram não recaem no âmbito administrativo, não têm a ver com normas administrativas e, em particular, urbanísticas, nem têm como parte uma qualquer entidade pública.
4 - É verdade que se entende existir violação de normas de direito público, que aqui também se identificaram, e que se deu nota da existência de um processo a correr termos nos tribunais administrativos: impugnação de ato administrativo (curiosamente o ato administrativo impugnado dizia respeito à grelha que foi fechada pela Requerida no mesmo dia em que abriu a grelha dos autos).
5 - O tribunal a quo apenas escolhe, para sustentar a sua posição, excertos do requerimento inicial em que são abordadas normas de direito público ou conflitos com entidades públicas, alguns deles transitados para os tribunais administrativos.
6 - Segundo parece (porque, na realidade, e pese embora todo o tempo de espera pela certidão do tribunal administrativo, nada se vem a saber neste processo) ali estarão a ser discutidas questões de natureza intrinsecamente administrativas, com exceção daquelas de natureza ambiental, que estão subtraídas à sua jurisdição, umas e outras distintas do que se discute nesta providência.
7 – Entendem as Requerentes que a libertação de um intenso ruído e permanente exaustão de fumos, calores e odores que a Recorrida produz na sua atividade prejudica o descanso e repouso das Recorrentes, a ventilação das frações, o direito a arrendar, usufruir do espaço exterior e estender roupa, ou seja, interfere no direito de propriedade, direitos de personalidade e de natureza pessoal relacionados com a qualidade de vida, bem estar e qualidade ambiental – direitos estes protegidos pela legislação civil, máxime pelo código civil português.
8 – Assim é que as Requerentes, entre outros, alegaram os seguintes factos:
a) No artigo 43.º do requerimento inicial:
As Requerentes, têm os seguintes prejuízos, a tardoz:
- A Requerente Ana…, proprietária da fração A, correspondente à Cave:
Não consegue abrir janelas e porta pela emanação permanente de cheiros, odores e vapores, com um ruído permanente, o que a impede de arejar a casa;
Não consegue utilizar o pátio que pertence à sua fração, ali colocando mesas e cadeiras, pois é impossível permanecer naquele pátio.
- A Requerente Maria…, proprietária da fração E, correspondente ao 3.º andar:
Não pode abrir janelas em nenhuma hora e altura do dia, não podendo, assim, arejar a sua casa.
Não pode estender roupa no exterior, nomeadamente no estendal ali existente pois a roupa fica com cheiros.
b) Nos artigos 44.º e 45.º:
A Requerente Ana …, embora tenha a fração A do prédio da Rua…, n.º 8 disponível para arrendamento, não consegue celebrar contrato de arrendamento. De acordo com os interessados que se deslocaram à fração A, a razão de ser do desinteresse posterior em arrendar prende-se com o ruído e os fumos, odores e cheiros que são produzidos para o pátio da fração.
c) Nos artigos 48.º e 49.º:
A Requerente Maria…, mesmo com as janelas fechadas, não conseguia dormir à noite, tal é o ruído produzido pelo sistema de extração colocado pela Requerida em finais de Julho de 2020. A Requerente Maria… teve que proceder à substituição e instalação de novas janelas nos quartos virados para o saguão para, com a diminuição do ruído, conseguir ter algum descanso em período noturno.
d) No artigo 50.º:
Na parte frontal do edifício, as Requerentes não conseguem agora abrir as suas janelas atento o cheiro verdadeiramente insuportável que se faz sentir.
As Requerentes estão obrigadas a ter fechadas as 3 janelas que cada fração tem virada a tardoz,
- no caso da Cave são apenas 2 vãos envidraçados: janela e porta - por forma a evitar que o
fumo, vapores, calores e cheiros entrem nas suas habitações.
e) No artigo 51.º:
Prejudicando a ventilação das habitações e assim potenciando o aparecimento de bolores e humidades nefastos, problemas na saúde humana, nomeadamente respiratórios, patologias e alterações térmicas na fração, entre muitos outros.
f) No artigo 52.º:
As emissões provenientes das tubagens diretamente viradas para os moradores do prédio da Rua …, n.º 8 afectam irremediavelmente o bem estar, a qualidade de vida e o conforto destes, bem como de todos que para aí se desloquem ou circulem.
g) No artigo 53.ª:
A abertura de saídas e a emissão, por estas aberturas, de cheiros, fumos, calores e vapores, limita e afeta, não só o direito de propriedade dos moradores do prédio da Rua …n.º 8
– porque não podem utilizar, na sua totalidade, os espaços de que são proprietários (a fração da Cave está ainda impedida de utilizar o seu pátio), a habitabilidade dos espaços de que são proprietários, bem como a possibilidade de abrir janelas e estender roupa
9 – Em abono da tese das Requerentes, faz-se referência ao artigo 1346.º do CC e transcreve-se o sumário do Ac. do STJ de 05.04.2018.
10 – A jurisprudência quanto a estas matérias é abundante, sendo inúmeras as decisões do STJ, cujos sumários se reproduziram na presente peça processual.
11 – Em suma, na esteira dos factos que constam do requerimento inicial das Requerentes (mas que não foram considerados pelo tribunal a quo), suportados pela doutrina e variada jurisprudência sobre esta matéria, entendem as Recorrentes que a matéria dos autos não é da competência dos tribunais administrativos mas sim dos tribunais judiciais,
10 – Tendo, também por isso, sido feita uma incorreta interpretação e aplicação do artigo 4.º do E.T.A.F. e artigo 64.º do C.P.C.
A requerida contra alegou nos termos de fls. 206 e seguintes, sustentando a manutenção do despacho recorrido.
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II – São as conclusões da alegação de recurso, no seu confronto com a decisão recorrida, que determinam o âmbito da apelação, salvo quanto a questões de conhecimento oficioso que possam ser decididas com base nos elementos constantes do processo. Assim, atento o teor das conclusões apresentadas temos como questão essencial que se nos coloca a da competência material do Tribunal em que a presente acção foi proposta
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III – A factualidade a ter em consideração é a que decorre do relatado em I).
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IV – 1 - O Tribunal de 1ª instância fundamentou a sua decisão, em resumo, no seguinte: a avaliação inerente à situação invocada pelas requerentes recai no âmbito administrativo, suscitando-se questões de cumprimento, ou não, de normas urbanísticas, tendo sido solicitada a intervenção da Câmara Municipal de Lisboa, a qual interveio, na sequência do que corre termos acção no Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa; a relação jurídica em debate tem conteúdo urbanístico; o Tribunal competente para conhecer das questões relativas à decisão administrativa, nomeadamente em termos de tutela cautelar é o Tribunal Administrativo.
É jurisprudência corrente que a competência em razão da matéria se fixa em função dos termos em que o autor propõe a acção, atendendo ao direito a que o mesmo se arroga e pretende ver judicialmente protegido; deste modo, a questão da competência em razão da matéria deverá ser decidida em conformidade com o pedido formulado na petição inicial e a respectiva causa de pedir invocada.
Mas não só. A competência do tribunal, como ensina Manuel de Andrade ([1]), afere-se pelo "quid disputatum" - "quid decidendum", em antítese com o que será mais tarde o "quid decisum" - sendo isto o que tradicionalmente se costuma exprimir dizendo que a competência se determina pelo pedido do autor, além de que aquilo que está certo para os elementos objectivos da acção, está certo ainda para a pessoa dos litigantes. Acrescenta que a competência do Tribunal não depende da legitimidade das partes nem da procedência da acção, sendo ponto a dirimir de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do autor - compreendidos aí os respectivos fundamentos - não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão.
Na definição da competência em razão da matéria a lei atende à matéria da causa, ou seja, ao seu objecto, encarado sob um ponto de vista qualitativo – o da natureza da relação substancial pleiteada.
Expendeu, a propósito, o STJ no seu acórdão de 6-5-2010 ([2]): «Por redundar num pressuposto processual, a competência em razão da matéria do tribunal afere-se pela natureza da relação jurídica apresentada pelo autor no seu articulado inicial, independentemente do mérito ou demérito da pretensão deduzida. Ou seja, é tendo em conta a forma como o autor configura a acção, na sua dupla vertente do pedido e da causa de pedir, e tendo ainda em atenção as demais circunstâncias disponíveis pelo tribunal que relevem sobre a exacta configuração da causa, que nos devemos guiar na tarefa da determinação do tribunal competente para dela conhecer».
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IV – 2 - A Constituição da República, nos seus arts. 211 e 212, instituiu duas ordens jurisdicionais distintas, a jurisdição comum e a jurisdição administrativa. Determinando-se no nº 1 do art. 211 que «os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais», dispõe o nº 3 do art. 212 da Constituição que «compete aos Tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas ou fiscais».
Em consonância, dispõe o art. 64 do CPC que são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam especialmente atribuídas a outra ordem jurisdicional, referindo o nº 1 do art. 40 da LOSJ que os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.
Relevantes para a delimitação no que concerne à jurisdição comum/ jurisdição administrativa são os preceitos constantes do nº 1 do art. 1 do ETAF e do art. 4 do mesmo diploma.
Dispondo o nº 1 do art. 1 do ETAF: «Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, nos termos compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º deste Estatuto».
E constando do art. 4 do mesmo diploma:
«1 - Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a:
a) Tutela de direitos fundamentais e outros direitos e interesses legalmente protegidos, no âmbito de relações jurídicas administrativas e fiscais;
b) Fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos emanados por órgãos da Administração Pública, ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal;
c) Fiscalização da legalidade de atos administrativos praticados por quaisquer órgãos do Estado ou das Regiões Autónomas não integrados na Administração Pública;
d) Fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos praticados por quaisquer entidades, independentemente da sua natureza, no exercício de poderes públicos;
e) Validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes;
f) Responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício das funções política, legislativa e jurisdicional, sem prejuízo do disposto na alínea a) do n.º 4 do presente artigo;
g) Responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes, trabalhadores e demais servidores públicos, incluindo ações de regresso;
h) Responsabilidade civil extracontratual dos demais sujeitos aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público;
i) Condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que as legitime;
j) Relações jurídicas entre pessoas coletivas de direito público ou entre órgãos públicos, reguladas por disposições de direito administrativo ou fiscal;
k) Prevenção, cessação e reparação de violações a valores e bens constitucionalmente protegidos, em matéria de saúde pública, habitação, educação, ambiente, ordenamento do território, urbanismo, qualidade de vida, património cultural e bens do Estado, quando cometidas por entidades públicas;
l) Impugnações judiciais de decisões da Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo e do ilícito de mera ordenação social por violação de normas tributárias;
m) Contencioso eleitoral relativo a órgãos de pessoas coletivas de direito público para que não seja competente outro tribunal;
n) Execução da satisfação de obrigações ou respeito por limitações decorrentes de atos administrativos que não possam ser impostos coercivamente pela Administração;
o) Relações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores.
2 - Pertence à jurisdição administrativa e fiscal a competência para dirimir os litígios nos quais devam ser conjuntamente demandadas entidades públicas e particulares entre si ligados por vínculos jurídicos de solidariedade, designadamente por terem concorrido em conjunto para a produção dos mesmos danos ou por terem celebrado entre si contrato de seguro de responsabilidade.
3 - Está nomeadamente excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto a impugnação de:
a) Atos praticados no exercício da função política e legislativa;
b) Decisões jurisdicionais proferidas por tribunais não integrados na jurisdição administrativa e fiscal;
c) Atos relativos ao inquérito e instrução criminais, ao exercício da ação penal e à execução das respetivas decisões.
4 - Estão igualmente excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal:
a) A apreciação das ações de responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição, assim como das correspondentes ações de regresso;
b) A apreciação de litígios decorrentes de contratos de trabalho, ainda que uma das partes seja uma pessoa coletiva de direito público, com exceção dos litígios emergentes do vínculo de emprego público;
c) A apreciação de atos materialmente administrativos praticados pelo Conselho Superior da Magistratura e seu Presidente;
d) A fiscalização de atos materialmente administrativos praticados pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça;
e) A apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva».
A pretensão deduzida pelas requerentes, no âmbito do presente procedimento cautelar, é a de que seja : «Ordenada a cessação da emissão de ruídos, fumos, vapores, calores, cheiros ou outros resíduos provenientes da combustão realizada pela Requerida, libertados por tubagem, grelha, saída ou meio equivalente a tardoz e por intermédio de uma grelha na parte frontal do edifício virado para a Rua …, n.º 6,…»
Fazem assentar aquela sua pretensão, designadamente, nas seguintes circunstâncias: serem proprietárias de fracções autónomas de um determinado edifício, na vizinhança do estabelecimento comercial da requerida; serem emitidos, deste estabelecimento, ruído, fumos, calores e odores para o saguão e prédio vizinho, onde se situam as fracções das requerentes; bem como serem libertados calor intenso e cheiros de produtos de pastelaria sobre o passeio público (da Rua…); as requerentes não poderem abrir janelas, arejar a casa, a 1ª requerente não conseguir utilizar o pátio pertencente à sua fracção, nem celebrar contrato de arrendamento da mesma fracção e a 2ª requerente não poder estender roupa no exterior; serem afectados os  direitos das requerentes ao descanso e repouso.
Referem as requerentes, no seu articulado, que pelos moradores do edifício onde se situam as suas fracções foi apresentada queixa à Câmara Municipal de Lisboa, que esta procedeu às suas determinações junto da requerida e que o acto administrativo foi impugnado pela requerida em processo que corre termos no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa. Bem como mencionam a violação de regras do RGEU, do dl 220/2008, de 12-11, e da Portaria 1532/2008, de 29-12; todavia, dão destaque fundamental ao art. 1346 do CC, que transcrevem.
Como vimos, a competência em razão da matéria do tribunal em que a acção/procedimento cautelar foi proposta(o) aferir-se-á em face dos pedidos formulados pelos AA./requerentes, tendo em conta a causa de pedir que invocaram.
Ora, atendendo ao pedido e causa de pedir enunciados, afigura-se-nos estarmos no domínio de relações de direito privado. As requerentes, pessoas singulares, alicerçando-se em direitos privados que entendem possuir – fundados na propriedade de imóveis, atentas as relações de vizinhança, e na sua própria personalidade – pedem que cesse (mais exactamente, em termos de procedimento cautelar que seja “suspensa”) a emissão dos ruídos, fumos, calores, emitidos do estabelecimento da requerida, sociedade comercial.
A relação substancial pleiteada é de natureza privada, não nos parecendo que a pretensão das requerentes se enquadre nas previsões do nº 1 do art. 1 e do art. 4 do ETAF - tratando-se antes atendendo ao pedido e causa de pedir enunciados, afigura-se-nos estarmos no domínio de relações de direito privado. As requerentes, pessoas singulares, alicerçando-se em direitos privados que entendem possuir – fundados na propriedade de imóveis, atentas as relações de vizinhança, e na sua própria personalidade – pedem que cesse (mais exactamente, em termos de procedimento cautelar que seja “suspensa”) a emissão dos ruídos, fumos, calores, emitidos do estabelecimento da requerida, sociedade comercial.
Refira-se, consoante foi enunciado no acórdão do STJ de 6-12-2016 ([3]): «Não é defeso ao demandante, que pretende ver apreciada determinada questão da competência dos tribunais comuns, invocar fundamentos que se relacionam com a competência de outros tribunais».
Pelo que o recurso interposto deverá proceder.
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V - Face ao exposto, acordam os Juízes desta relação em julgar procedente a apelação, revogando a decisão recorrida e julgando competente para a tramitação do presente procedimento cautelar o Tribunal em que a mesmo foi deduzido.
Custas pelo apelado.
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Lisboa, 10 de Março de 2022
Maria José Mouro
Sousa Pinto
Vaz Gomes
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[1] "Noções Elementares de Processo Civil", Coimbra Editora, 1979, pags. 91 e 94-95.
[2] Ao qual se pode aceder em www.dgsi.pt. Proc. 3777/08.1TBMTS.P1.S1.
[3] Ao qual se pode aceder em www.dgsi.pt, proc. 886/15.4T8SXL.L1.S1.