INJÚRIA
Sumário

O acto de chamar alguém "assassino", reportando-se à morte de um animal, não integra o elemento objectivo do crime de injúria.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

1. Relatório
B.........., assistente nos autos, recorreu para esta Relação do despacho de “não pronúncia” proferido no processo ..../03..TAVNG, formulando as seguintes conclusões:

- “O despacho recorrido julgou incorrectamente as expressões proferidas pelos arguidos, dirigidas à ofendida - designadamente, afirmando aos berros, em voz alta e perante terceiros terem envenenado os seus cães chamando-lhes assassinos;

- É que tais expressões, objectivamente consideradas, são ofensivas da honra e consideração de qualquer pessoa;

- Assim não decidindo, o despacho recorrido violou, ademais, o disposto no art. 181º do Cód. Penal.”

O M.P. na 1ª instância respondeu à motivação, defendendo a revogação do despacho de não pronúncia, por entender que a expressão “assassina”, proferida pela arguida, “encerra um sentido profundamente ofensivo e infamante, sendo, nessa medida, perfeitamente adequada a comprometer a honra e consideração da assistente visada com aquela expressão e, aliás de qualquer cidadão”.

Nesta Relação, o Ex.º Procurador-geral Adjunto foi de parecer que o recurso não merece provimento. No essencial, entendeu que a expressão “assassinos”, proferida pelos arguidos, não foi dirigida à assistente “mas, quando muito, àqueles que tendo penetrado no quintal dos arguidos, deram aos cães comida que estes ingeriram e que os levou à morte”.

Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido à conferência.

2. Fundamentação
2.1. Matéria de facto
Com interesse para o julgamento do presente recurso, consideramos provados os seguintes factos e ocorrência processuais:

a) O despacho de “não pronúncia” entendeu que não havia indícios suficientes para a pronúncia dos arguidos, pelo seguinte: “Na acusação particular alega-se que no dia 8 de Janeiro de 2003, cerca das 18,15 horas, a arguida foi a casa dos ofendidos e aos berros em voz alta e perante terceiros “difamou-os e insultou-os de terem envenenado os seus cães, chamando-lhes assassinos”, alegando-se ainda que “o arguido C.......... proferiu os mesmos insultos, chamando ainda de malandro ao ofendido D..........”.

b) Perante tais imputações, disse o despacho recorrido: “Mesmo que esses factos tenham ou não ocorrido, na forma relatada pelos assistentes, é necessário proceder-se à sua análise no contexto em que indiciariamente terão ocorrido”;

c) E, depois de ter exposto o contexto em que tais expressões teriam sido proferidas, concluiu que “o facto de os aqui arguidos terem imputado aos assistentes o envenenamento dos cães ter-se-á devido a um erro na avaliação desses indícios, erro que não indicia qualquer dolo específico ou genérico de injúria e é mesmo da maior relevância para afastar o dolo. Nos termos do art. 16º, n.º 1 e n.º 2 do C.Penal, o erro sobre um estado de coisas que, a existir, excluiria a ilicitude do facto ou a culpa do agente, exclui o dolo e a punibilidade do facto – art. 13º do C.Penal”

2.2. Matéria de direito
O despacho recorrido, não pronunciando os arguidos pelos factos constantes da acusação particular (que o MP acompanhou), entendeu fundamentalmente que, mesmo admitindo que as expressões foram proferidas, nas circunstâncias descritas, não havia indícios de dolo.

Por seu turno, a recorrente entende que a expressão “assassina” é susceptível de lesar a sua honra e a consideração.

As questões objecto do recurso são assim as de saber: i) se a expressão “assassina” é lesiva da honra e consideração da assistente e ii) se existe ou não o invocado erro, susceptível de afastar a ilicitude ou a culpa.

A decisão recorrida começou por analisar a segunda questão, dado que a sua procedência implicava desde logo a “não pronúncia”. Seguiremos o mesmo método, isto é, apreciaremos em primeiro lugar esta questão.

Nos termos do art. 16º, 2 do Cód. Penal, exclui-se o dolo quando o agente tenha agido em “erro sobre um estado de coisas que, a existir, excluiria a ilicitude do facto, ou a culpa do agente”.

Assim, tal erro existe quando o agente está convencido que se verificam os factos ou pressupostos de uma causa de justificação da ilicitude, ou de exclusão da culpa. Para a eficácia deste erro, ou seja, para afastar o dolo, é necessário que exista (e aí sem erro) uma causa de justificação ou de exclusão prevista na lei e que o agente represente uma situação de facto aí subsumível.

No presente caso, a causa de justificação prefigurável era a prevista no art. 180º, 2 do Cód. Penal. Diz-nos este artigo que não é punível a imputação de factos, ou formulação de juízos ofensivos da honra ou consideração quando: “a) a imputação for feita para realizar interesses legítimos; e b) a gente provar a verdade da mesma imputação ou tiver fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira”.

Os arguidos chamaram “assassinos” aos ofendidos, por julgarem que estes tinham morto os seus cães.
Esta situação de facto não configura um erro sobre a verificação dos pressupostos de facto da causa de justificação da ilicitude prevista no art. 180º, 2 do Código Penal.
Pode colocar-se, sim, a questão de saber se tal situação de facto preenche os pressupostos do art. 180º, 2 do C.Penal. Na verdade, para que se verifique a “não punibilidade da conduta” aí referida, não é necessário que os factos imputados ao ofendido sejam verdadeiros, bastando que o agente tenha motivo sério para os reputar verdadeiros. Se o agente não tiver motivo sério para reputar verdadeiros os factos, esse seu erro afasta a aplicação do art. 180º, 2 do C.Penal.

O regime do art. 16º, 2 do C.Penal não tem assim aplicação na presente situação de facto e, por isso, a fundamentação jurídica do despacho recorrido, excluindo o dolo, não é minimamente consistente.

Por outro lado, os arguidos não tinham quaisquer razões válidas para considerar que a assistente e marido eram os autores do crime de dano praticado sobre os seus cães. Não havia qualquer condenação dos assistentes por tal crime e, por isso, os arguidos não tinham razões sérias para reputar os factos como verdadeiros. Deste modo, também o regime do art. 180º, 2 do C. Penal não afasta a punibilidade do facto.

Porém, o problema não se esgota aqui.

É necessário saber se a expressão em causa é, ou não, ofensiva da honra e consideração devida àqueles a quem foi dirigida. Questão que a decisão recorrida não enfrentou (por ter ficado prejudicada), mas que se impõe apreciar agora.

A questão é assim a de saber se a expressão “assassina”, no contexto e com o significado que lhe foi atribuído, na ocasião em que foi proferida, lesa a honra e consideração da assistente.

A expressão “assassino”, na língua portuguesa, significa “aquele que mata traiçoeiramente”; “aquele que mata alguém” – cfr. Grande Enciclopédia Portuguesa Brasileira, Vol. 3, pág. 523. É uma expressão que se reporta à morte de uma pessoa (“alguém”) e pretende sugerir uma carga mais negativa que o mero homicídio.
Chamar a alguém “assassino”, com o referido sentido, é claramente ofensivo da sua honra e consideração, pois é considerá-lo autor do mais reprovável de todos os crimes.

Só que, no caso dos autos, estava em causa a expressão “assassino” reportada a animais (cães). E não podemos considerar que a carga pejorativa associada à palavra “assassino” tenha, neste contexto, o mesmo peso. Tem, obviamente, um peso significativamente menor.
Bem vistas as coisas, chamar assassino de cães, em termos de ofensa da honra, é o mesmo que a imputar a prática de um crime de dano. E, a nosso ver, não é diferente dizer de alguém que “matou um cão” ou que, por esse motivo, é um “assassino”, num contexto em que não há a menor dúvida sobre o sentido da expressão.

Julgamos que a expressão usada não é socialmente recomendável, foge claramente às regras sociais da boa vizinhança e da boa educação, mas não tem a virtualidade de lesar a honra e dignidade da assistente e, nessa medida, de ser considerada crime.
Entendemos em suma que, no contexto e com o significado com que foram proferidas as expressões em causa, as mesmas não são criminalmente puníveis.

3. Decisão
Face ao exposto, os juízes da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto acordam em negar provimento ao recurso.
Custas pela recorrente, fixando a taxa de justiça em 4 UC.
Porto, 11 de Janeiro de 2006
Élia Costa de Mendonça São Pedro
António Augusto de Carvalho
António Guerra Banha