I. Regra geral, dos acórdãos proferidos pela Relação em matéria de incidentes não cabe recurso de revista.
II. Os recursos cuja admissibilidade assenta nos fundamentos específicos do nº 2 do art.º 629º do CPC têm o seu âmbito limitado à apreciação das questões atinentes àqueles fundamentos.
III. Transitada uma decisão judicial ela fica a ter força obrigatória (artigos 619º, nº 1, e 620º, nº 1, do CPC), constituindo caso julgado “nos precisos termos e limites em que julga” (art.º 621º, 1ª parte, do CPC), ou seja, por referência à situação fáctica apurada correspondente ao momento do encerramento da discussão da causa (art.º 611º, nº 1, do CPC), estando sujeita à cláusula ‘rebus sic stantibus’.
IV. A decisão que aprecia a prestação de caução em substituição do arresto decretado, conforme o disposto no art.º 368º, nº 3, do CPC, não forma caso julgado relativamente à posterior admissibilidade de reforço ou redução do seu montante em função de circunstâncias supervenientes.
ENTRE
Requerente / Apelada / Recorrente
COLT RESOURCES Inc.
(sociedade de direito canadiano)
[por desconsideração da personalidade colectiva de COLTINVESTCO – SGPS, SA e Q.S.P.A. – Sociedade Vitícola, Unipessoal Ldª]
Requerida / Apelante / Recorrida
I – Relatório
A Requerente intentou, em 14JUL2017, procedimento cautelar de arresto contra a Requerida invocando justo receio de perda da garantia patrimonial relativamente a crédito adveniente da resolução do contrato de consultadoria que com ela havia celebrado, no montante de 711.778,31.
Sem audição da requerida foi, por sentença de 21JUL2017, foi decretado o
«ARRESTO dos seguintes bens e direitos que integram o património da Q.S.P.A.-SOCIEDADE VITÍCOLA, UNIPESSOAL LDA, pertencente à Requerida COLT RESOURCES INC, por via da COLTINVESTCO– SGPS, SA:
I - Todos os imóveis pertencentes à Q.S.P.A. - Sociedade Vitícola, Unipessoal, Lda, à Requerida ou a qualquer das sociedades suas participadas.
II - O estabelecimento agroindustrial e comercial da Quinta..., em ..., ..., área desta comarca ..., com todos os seus pertences.
III - Os saldos de todas as contas bancárias tituladas em nome da Q.S.P.A.- Sociedade Vitícola, Unipessoal Lda, da Requerida ou de qualquer das sociedades suas participadas.
IV - A quota de capital da Q.S.P.A. - Sociedade Vitícola, Unipessoal, Lda, matriculada sob o nº 503630683, titulada em nome da COLTINVESTCO – SGPS, SA, matriculada sob o nº 509976050.
V - As 5.000 ações de que a Requerida é titular na COLTINVESTCO – SGPS, SA.».
A 09FEV2018, veio Q.S.P.A. – Sociedade Vitícola, Unipessoal Ldª, invocando o disposto no art.º 368º, nº 3, do CPC, prestar caução através do depósito da quantia de 747.367,23 €.
Tal caução foi reforçada pelo depósito adicional da quantia de 52.652,77 € e, por requerimento de 23FEV2018, vieram as partes informar que acordaram na substituição do arresto por caução no valor de 800.000 €, já depositados, nada tendo a opor ao levantamento do arresto.
Em 26FEV2018 foi proferida sentença com o seguinte teor:
«Ao abrigo do disposto nos arts. 907º, a contrario, 911º, 915º e 368º, n.º 3, do CPC, julgo validamente prestada a caução.
Custas do incidente pela requerente.
Em 14DEZ2018 a requerida deduziu oposição ao arresto decretado.
Em 15ABR2019 foi intentada a acção principal (a qual se encontra pendente).
Na sequência da apreciação da oposição deduzida, por sentença de 29MAI2019, decidiu-se:
«Pelo exposto, nos termos do artigo 372º, n.º 3, do Código de Processo Civil, determino a redução do arresto decretado para a quantia de € 298.000,00 (duzentos e noventa e oito mil euros), com as legais consequências.»
Tal sentença foi confirmada por acórdão de 18DEZ2019 do Tribunal da Relação ..., tendo o Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 17NOV2020, rejeitado o correspondente o recurso de revista.
Em 29DEZ2020, Q.S.P.A. – Sociedade Vitícola, Unipessoal Ldª veio requerer a devolução da caução prestada na parte excedente a 298.000 €.
E em 20JAN2021 a aqui Requerente intentou procedimento cautelar comum pedindo, além do mais, o indeferimento do pedido de devolução parcial da caução mantendo-se o depósito de 800.000 €; o qual foi liminarmente indeferido por despacho de 22JAN2021, que foi confirmado por acórdão de 23MAR2021.
Por despacho de 23ABR2021 foi indeferida a requerida devolução da caução, por se entender que tendo o montante da caução sido determinado por acordo das partes é inadmissível qualquer redução da caução até se mostrar integralmente cumprida ou extinta a obrigação garantida e de que se encontra esgotado o poder jurisdicional.
Inconformada, apelou a Q.S.P.A. – Sociedade Vitícola, Unipessoal Ldª, tendo a Relação, considerando que dada a inerente provisoriedade da providência cautelar era admissível a adaptação do montante da caução em função da definição do crédito garantido, revogado aquela decisão e determinado «a continuação do incidente com vista a decidir o pedido de redução da caução», determinando «em que medida deve ser reduzida a caução».
Agora irresignada vem a Requerente interpor recurso de revista, nos termos do art.º 671º, nº 1, do CPC, concluindo, em síntese, pela nulidade do acórdão por contradição entre a decisão e os fundamentos, violação do direito europeu, inconstitucionalidade do acórdão por violação do princípio do processo equitativo, ofensa do caso julgado e esgotamento do poder jurisdicional, bem como pela inadmissibilidade de redução da caução cujo montante foi fixado por acordo das partes e violação das regras de interpretação da declaração negocial.
Houve contra-alegação onde se defende a inadmissibilidade da revista e, subsidiariamente, se propugna pela manutenção do decidido.
II – Da admissibilidade e objecto do recurso
A situação tributária mostra-se regularizada.
O requerimento de interposição do recurso mostra-se tempestivo (artigos 638º e 139º do CPC) e foi apresentado por quem tem legitimidade para o efeito (art.º 631º do CPC) e se encontra devidamente patrocinado (art.º 40º do CPC).
Tal requerimento está devidamente instruído com alegação e conclusões (art.º 639º do CPC).
O acórdão recorrido foi proferido no âmbito de um apenso de prestação de caução e aprecia decisão relativa à admissibilidade de redução da caução prestada. Trata-se, consequentemente e em função do disposto no art.º 915º do CPC, de um incidente.
Regra geral, dos acórdãos proferidos pela Relação em matéria de incidentes não cabe recurso de revista. Desde logo porquanto não respeitam ao mérito da causa (acertamento da situação jurídica decorrente da relação material controvertida) nem dão lugar à absolvição da instância, não cabendo na previsão do nº 1 do art.º 671º do CPC; por outro lado, tratando-se (na maioria dos casos, e no caso em particular) de acórdãos que apreciam decisões interlocutórias (que não põem fim à causa) que não recaem unicamente sobre a relação processual (e.g. as respeitantes a pressupostos processuais, admissão e produção de prova, estabilidade, desenvolvimento e extinção da instância), estão excluídos da previsão do nº 2 do mesmo artigo; por fim, não se tratando de questão decidida ex novo pela Relação, estão excluídos da previsão do art.º 673º do CPC.
Aplica-se-lhes, no entanto o disposto no nº 2 do art.º 629º do CPC, segundo o qual é sempre admissível recurso com fundamento na ofensa de caso julgado (al. a) do referido normativo).
Nas suas conclusões 118 a 132 a Recorrente invoca esse fundamento específico de recurso – ofensa de caso julgado.
Como é jurisprudência estabilizada deste Supremo Tribunal, os recursos cuja admissibilidade assenta nos fundamentos específicos do nº 2 do art.º 629º do CPC têm o seu âmbito limitado à apreciação das questões atinentes àqueles fundamentos.
Pelo exposto o recurso de revista é admissível quanto à invocada ofensa de caso julgado, mas não já quanto às demais questões invocadas.
Mostra-se, em função do disposto nos artigos 675º e 676º do CPC, correctamente fixado o seu modo de subida (nos próprios autos) e o seu efeito (meramente devolutivo).
Destarte, o recurso merece conhecimento.
Vejamos se merece provimento.
De outra via, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.e., a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo.
Por outro lado, ainda, o recurso não é uma reapreciação ‘ex novo’ do litígio (uma “segunda opinião” sobre o litígio), mas uma ponderação sobre a correcção da decisão que dirimiu esse litígio (se padece de vícios procedimentais, se procedeu a ilegal fixação dos factos, se fez incorrecta determinação ou aplicação do direito). Daí que não baste ao recorrente afirmar o seu descontentamento com a decisão recorrida e pedir a reapreciação do litígio (limitando-se a repetir o que já alegara nas instâncias), mas se lhe imponha o ónus de alegar, de indicar as razões por que entende que a decisão recorrida deve ser revertida ou modificada, de especificar as falhas ou incorrecções de que em seu entender ela padece.
Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.
Assim, em face do que se acaba de expor e das conclusões apresentadas, a questão a resolver este Tribunal é se o acórdão recorrido ofende o caso julgado.
III – Os factos
A factualidade relevante é a constante do relatório deste acórdão, para o qual se remete.
IV – O direito
Segundo a Recorrente o acórdão recorrido ao admitir a possibilidade de redução do montante da caução ofenderia o caso julgado formado pela sentença proferida em 26FEV2018 que julgou validamente prestada a caução, uma vez que com o trânsito em julgado da mesma se terá estabilizado o montante da caução até ao acertamento definitivo do crédito por si invocado na acção principal.
Transitada uma decisão judicial ela fica a ter força obrigatória (artigos 619º, nº 1, e 620º, nº 1, do CPC), constituindo caso julgado “nos precisos termos e limites em que julga” (art.º 621º, 1ª parte, do CPC), ou seja, por referência à situação fáctica apurada correspondente ao momento do encerramento da discussão da causa (art.º 611º, nº 1, do CPC), estando sujeita à cláusula ‘rebus sic stantibus’ (cf. LEBRE DE FREITAS, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 2001, pgs. 679-680; M. TEIXEIRA DE SOUSA, Estudos sobre o Novo Processo Civil, 2ª ed., 1997, pg. 583, ss.; artigos 619º, nº 2, 621º, 2ª parte e 282º do CPC).
A decisão proferida em 26FEV2018 tinha por objecto, conforme nela expressamente referido, a apreciação da requerida prestação de caução em substituição do arresto decretado, conforme o disposto no art.º 368º, nº 3, do CPC. O que nela se apreciou e decidiu é que, aceitando as partes a propriedade (depósito) e o montante (800.000 €) da caução oferecida, ela se mostrava, naquelas circunstâncias, idónea para substituir a providência decretada (arresto), efectivando-se essa substituição. Não perpassou por essa apreciação, nem nela está implícita, qualquer consideração relativamente aos efeitos decorrentes do evoluir da providência cautelar e da acção de que a mesma seria dependente (no momento em que foi proferida tal decisão não havia ainda sido deduzida oposição ao arresto nem sequer intentada a acção principal). Designadamente nela não se perspectiva qualquer apreciação relativamente às consequências de a caução prestada, face a circunstâncias posteriores, se vir a mostrar insuficiente ou excessiva.
Foram esses os precisos termos e limites da decisão em causa pelo que o ‘caso julgado’ que ela formou não é ofendido pela consideração, no acórdão recorrido, da admissibilidade da redução do seu montante em função do resultado da oposição deduzida.
V – Decisão
Termos em que se decide:
- não conhecer do recurso relativamente a todos os fundamentos que não a ofensa de caso julgado;
- conhecendo do recurso quanto a esse fundamento, negar a revista.
Custas da apelação e da revista pela Recorrente, fixando-se a taxa de justiça global devida pelos dois recursos, atenta a complexidade da causa (grau 2 em 5), a prolixidade das peças processuais (grau 3 em 5), a conduta processual das partes (grau 2 em 5) e a capacidade tributária evidenciada (grau 4 em 5), em 7.500,00 € (sete mil e quinhentos euros), dispensando-se o demais remanescente.
Lisboa, 10FEV2022
Rijo Ferreira (Relator)
Cura Mariano
Fernando Baptista