CONTRATO DE MÚTUO
NULIDADE DO CONTRATO
FALTA DE ENTREGA
OBJETO NEGOCIAL
SIMULAÇÃO DE CONTRATO
LEGITIMIDADE
HERDEIRO
ÓNUS DA PROVA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PRINCÍPIO DA INDIVISIBILIDADE DA CONFISSÃO
PRESUNÇÕES JUDICIAIS
ERRO NA APRECIAÇÃO DAS PROVAS
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
PODERES DA RELAÇÃO
DOCUMENTO PARTICULAR
Sumário

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça, Segunda Secção Cível.

I – RELATÓRIO

Externato O Lar da Criança instaurou acção declarativa comum contra AA, BB e CC.

Pede que os RR sejam condenados a reconhecer a existência do crédito da autora sobre a herança deixada por DD, no valor total de €135.762,63 e a ver satisfeito esse crédito pelos bens da herança.

Alegou, em síntese:

- DD era mãe dos réus,

- foi sempre gerente da autora desde a sua constituição,

- e até 2006 procedia com regularidade a levantamentos e/ou utilização de quantias existentes no caixa da sociedade para seu uso pessoal;

- as quantias assim retiradas eram substituídas por “vales de caixa”;

- quando decidiu assumir formalmente a dívida, que já era muito elevada, foram para esse efeito formalizados dois empréstimos em reuniões da assembleia geral da autora, um no valor de 112.000 € em 08/11/2004 e outro no valor de 40.000 € em 16/11/2006,

- tendo aquela declarado ter recebido da autora esses valores conforme recibos que se juntam como doc. 10 e 11;

- apenas foi paga parte da dívida à autora, continuando credora da quantia de 135.762,63 € que deverá ser paga pela herança.


*

Apenas contestaram o 1º réu e a 2ª ré, separadamente, pugnando pela improcedência da acção e invocando, em resumo:

- a sociedade não emprestou/não entregou qualquer quantia à sua mãe,

- sendo falsas as declarações constantes desses documentos 10 e 11;

- todo esse expediente foi um meio de regularização contabilística de saídas não justificadas de dinheiro do caixa da sociedade.


*


Realizada a audiência final, foi proferida sentença que julgou a acção improcedente,

absolvendo os réus do pedido.


*

Inconformada, apelou a autora, vindo a Relação a proferir Acórdão, no qual decidiu julgar procedente a apelação, “revogando-se a sentença recorrida e condenando os apelados a reconhecerem o crédito da apelante sobre a herança no valor de 135.762,63 € e a ser satisfeito pelos bens da herança.”.

Inconformados, recorreram de revista o Réu AA e a Ré BB, apresentando as pertinentes alegações e conclusões.

Em acórdão, este Supremo Tribunal proferiu a seguinte

“Decisão:

Face ao exposto, determina-se (ut artº 682º, nº 3, fine, do CC) que os autos baixem ao tribunal recorrido a fim de aí serem sanadas as apontadas contradições na decisão sobre a matéria de facto (as quais, a manter-se, inviabilizam a decisão jurídica deste pleito), anulando-se, consequentemente, o acórdão recorrido, por contradição, devendo a Relação proferir nova decisão em que, além de sanar as contradições, (re)aprecie também a matéria de direito.”


**

Os autos baixaram à Relação, tendo esta, em Ac. de 08.07.2021, procedido à reanálise da factualidade provada e não provada, tendo, a final, procedido ao realinhamento definitivo dos factos provados e dos não provados.

Notificados deste acórdão proferido em 08/07/2021, interpuseram recurso de revista os RR AA e BB, tendo apresentado, alegações que rematam com as seguintes

CONCLUSÕES


I. DO RÉU AA

A. O presente processo é a decorrência do processo de Inventário por óbito da Senhora DD, uma vez que, no âmbito daquele processo, estando claro entre as Partes o facto denão terem sido realizados quaisquer fluxos financeiros da  Autora a favor da falecida DD em virtudedas deliberações de mútuo das Assembleias Geral de 8 de Novembro de 2004 (ata n.º 20) e de 2 de Novembro de 2006 (ata n.º 26), o 1º e 2ª Réus nunca aceitaram que por detrás das referidas deliberações de 2004 e 2006 tenha ocorrido uma qualquer passagem de dinheiro da Autora para a referida falecida;

B.    E foi esta discórdia, no seio do processo de Inventário, que deu lugar à presente ação intentadapela Autora com a “protecção” da própria 3ª Ré;

C.   NULIDADES: Seja como for, o novo Acórdão continua a enfermar de várias nulidades. Vejamos:

D.    1ª Nulidade–Excesso de Pronúncia: a Relação no seu anterior Acórdão, por um lado, deu força probatória plena aos recibos que fazem expressa menção às deliberações de concessão de empréstimo, afirmando que “Face ao exposto, as declarações contidas nos recibos são confissões de dívida que fazem prova plena”, dando assim, aparentemente, como provado que o empréstimo foi realizado em favor da de cujus de acordo com as deliberações e recibos de quitação; por outro lado, refere expressamente que as deliberações deconcessão deempréstimo – a que se reportam os“recibos dequitação” –não espelham a realidade, acabando por eliminar “a alínea a) do ponto «IV - Factos não provados» da sentença recorrida”;

E. Era esta a grande contradição do anterior Acórdão da Relação;

F.      Por essa mesma razão, o Supremo Tribunal de Justiça referiu que o enfoque da resolução das contradições era relativamente ao facto a) (e não no facto b) que estava mais que assente como não provado). Veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça: “Há, assim, que clarificar se, afinal, a D. DD recebeu, ou não, dinheiro da A., quanto e em que circunstâncias, com enfoque para os empréstimos a que se alude na al. a)dos factos dados na sentença como não provados masquea Relação veio a eliminar dos factos não provados (embora sem dizer se estava provado), depois de afirmar o seu contrário (sublinhado e negrito nosso);

G. É que quanto ao facto b) dos factos não provados do anterior Acórdão, o Tribunal a quo foi categórico ao referir que “quanto à alínea b), inexiste confissão, pelo que se decide manter como não provada essa factualidade”, o que acompanhou com a convicção de que tudo era fictício8, pois “evidencia-se a falta de fiabilidade da contabilidade da apelante e que o ROC fez conjecturas para encontrar explicação para as saídas de valores do caixa da sociedade com base no quelhe foi transmitido”.

H.   Verificou-se que o Tribunal da Relação ..., com o seu novo Acórdão, não sanou a contradição com enfoque no facto a). Antes alterou a matéria de facto que não carecia de clarificação – e cuja fundamentação não era contraditória – e que estava assente, ou seja, transitou o facto b) – que não se provou e estava claro que não se podia provar – para elenco dos factos provados (agora facto 11.) ao abrigo de uma errada argumentação jurídica sobre a prova;

I.    Estamos, portanto, perante o excesso de pronúncia, de acordo com a alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, que provoca a nulidade do Acórdão;

J.    2ª Nulidade – Oposição entre fundamentos e entre fundamentos e decisão: refere o Tribunal a quo, entre outras coisas, que “que é incontroverso que não foram entregues à sócia gerente as quantias de 112.000 e 40.000 em 10/11/2004 e 30/11/2006”;

K.   No entanto, o mesmo Tribunal também refere que “cada recibo” é uma confissão de dívida do recebimento do dinheiro por empréstimo” e que fazem prova plena (…) das suas declarações de que recebeu aquelas quantias por empréstimo da sociedade”;

L.    Primeira contradição: se assim é, então o mesmo Tribunal a quo não pode afirmar que “que é incontroverso que não foram entregues à sócia gerente as quantias de 112.000 e 40.000 em 10/11/2004 e 30/11/2006”, pois os “recibos” reportam-se precisamente às deliberações realizadas naquelas datas;

M. Segunda contradição:  Se o Tribunal a quo conhece o conteúdo – as declarações neles contidos– dos recibos em causa e até declara e fundamenta que os ditos recibos são quitação porreferência aos empréstimos mencionados nas actas”, então o mesmo Tribunal teria que da rcomo provado o facto a) dos factos não provados, mas este foi dado como não provado…;

N.    Estamos, portanto, perante várias contradições que, de acordo com a alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, provocam a nulidade do Acórdão;

O.    3ª Nulidade–Oposição entre fundamentos:  seo Tribunal a quo refere o constante na conclusão K. então o Tribunal da Relação ... não podia dar como provado – com referência à declaração daqueles “recibos” – o facto 11. dos factos provados – pois não é isto que resulta daputativa confissão contidanos “recibos”;

P.    Estamos, portanto, perante uma contradição que, deacordo com a alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, provoca a nulidadedo Acórdão;

Q.   4º Nulidade – Oposição dos fundamentos com a própria decisão: mesmo não existindo uma fundamentação de direito no novo Acórdão, aparentemente o Tribunal da Relação ... terá baseado a sua decisão de condenar os Réus a reconhecerem o crédito da apelante sobre a herança no valor de 135.762,63 € por forçado facto 11. Dos factos dados como provados (anterior facto b));

R.    No entanto, o facto 11. refere expressamente as retiradas de dinheiro, não repostas, “que ascenderam a 152.000 €”;

S.    Não se compreende, portanto, a razão pela qual o Tribunal da Relação ... condenou no reconhecimento de uma dívida de 135.762,63 € quando dá como provado que foram retirados – e não repostos – €152.000,00 (nem mais nem menos um euro);

T.    Estamos, portanto, perante uma contradição que, de acordo com a alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, provoca a nulidade do Acórdão;

U.    5ª Nulidade – Ausência de fundamentação de facto: do trecho do novo Acórdão presente na pgs. 13 e seguintes deste Recurso o Tribunal da Relação ... “dá a entender” que ocorreu uma aceitação da confissão por parte do Réu AA: mas não refere nunca de onde resulta a referida aceitação da invocada confissão judicial da Autora, que, efetivamente, nunca ocorreu;

V. Não resulta do Acórdão a própria existência de uma aceitação de confissão, o que determina que o mesmo carece de fundamentação, porque não foi indicado o “facto processual” subjacente a tal putativa aceitação da confissão;

W.   Estamos, portanto, perante uma ausência de fundamentação de facto que, de acordo com a alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, provoca a nulidade do Acórdão;

X.    6ª Nulidade– Ausência dos fundamentos de direito: Do novo Acórdão, que revogou o anterior, não se encontra a fundamentação de direito que sustente a decisão. A fundamentação de direito, neste caso, é apenas relativa à fundamentação que o Tribunal a quo apresentou para justificar dar como provado o facto 11. (anterior facto b));

Y. Estamos, portanto, perante uma inexistência de fundamento de direito que fundamente a decisão o que, de acordo com a alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, provoca a nulidade do Acórdão;

Z.   Não obstante as várias nulidades, entende-se que a matéria de facto dada como assente ou não assente, por parte do Tribunal a quo, não inviabiliza a decisão jurídica do pleito (artigo 682.º do CPC) a fixar pelo Tribunal ad quem, pelo que se requer que o presente Recurso seja de imediato julgado sem nova baixa dos autos ao Tribunal da Relação de  Lisboa;

AA.    DA IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE DIREITO: O facto 11. dos factos provados(anterior facto b) dos não provados) terá que ser julgado como não provado: Refere o n.º 3 do artigo 674.º do CPC que “o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ouquefixe a força de determinado meio de prova”: É o que acontece no presente caso –existem várias ofensas de disposições expressas na lei quanto à valoração da prova;

BB.     Quanto à prova legal ou vinculada, como é a prova por confissão, refere o Supremo Tribunal de Justiça, no seu Acórdão no processo n.º 09S623, datado de30-09-2009, refere: “(…) pelo que a fiscalização probatória do STJ está limitada à prova legal ou vinculada, isto é, aos meios de prova que tenham força probatória plena”;

CC.    Não há dúvida, portanto, que o Supremo Tribunal de Justiça pode julgar este recurso de revista (quanto à matéria relativa ao direito probatório aplicado);

DD. Em primeiro lugar, cabe referir que o Tribunal da Relação ... deu como provado o seguinte: “11 - Ao longo dos anos em que DD geriu a autora, foi retirando para uso pessoal quantias do caixa da sociedade que ascenderam a 152.000 e não repôs, e a forma que os sócios encontraram para fazer a regularização contabilística dessas saídas de dinheiro foi formalizar sob a veste de empréstimos essas saídas de dinheiro, exarando em actas as deliberações referidas nos pontos 7 e 8, tendo sido também com esse propósito que foram emitidos e assinados os recibos referidos em 9 e 10”;

EE.     Salvo melhor opinião, não estamos perante um verdadeiro facto, mas sim na presença de uma conclusão – isto é um “facto conclusivo”;

FF.     Segundo o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido ao abrigo do processo n.º 13/16.0GTCTB.C1, devem considerar-se não escritos os factos que “integrarem matéria de direito que constitua o thema decidendum”;

GG.    Com este “facto” o Tribunal da Relação, sem mais, pretende decidir e fundamentar a decisão – encerrou toda a decisão – thema decidendum – naquele “facto”11.!;

HH.    O Tribunal a quo extravasou os seus poderes, visto que apenas tem poderes para alterar a matéria de facto, e já não para formular juízos conclusivos que encerram o próprio thema decidendum, assim violando o artigo 662.°do CPC, devendo, portanto, ser mantida a resposta dada pelo Tribunal de 1ª Instância ao facto 11., a que corresponde manter o facto b) no elenco dos factos  não provados, devendo como tal, ser revogada a decisão do Tribunal da Relação ...;

II.    Em segundo lugar: a Autora não logrou provar nada: por um lado é assente que a falecida DD não recebeu quaisquer montantes a título de empréstimo em virtude das deliberações realizadas em 2004 e 2006 (e conforme atestariam os “recibos de quitação”) e, por outro lado, não se provou um qualquer levantamento de dinheiro do caixa da sociedade por parte da mesma;

JJ.    Quanto aos alegados levantamentos do caixa da sociedade por parte da falecida DD, o Tribunal a quo no seu novo Acórdão continua a referir, nomeadamente, que: i) “nenhum “vale de caixa” foi junto aos autos e nem a apelante deu justificação para não o fazer”; ii) “na petição inicial não são discriminadas as quantias que alegadamente foram sendo retiradas ao longo dos anos até 2006”; iii) a testemunha EE “não esclareceu que destino lhes foi dado nem qual era o saldo do caixa quando conversou com a sócia gerente sobre a necessidade de regularizar a situação contabilisticamente”; iv) “deste «relatório» evidencia-se a falta de fiabilidade da contabilidade da apelante e que o ROC fez conjecturas para encontrar explicação para as saídas de valores do caixa da sociedade com base no que lhe foi transmitido”;

KK.    Mas esta realidade – e estas afirmações do próprio Tribunal a quo –, acompanhada pela consideração do Tribunal ad quem deque o “facto b)” (agora facto provado 11.) “não tinha cabimento”, pois não passavam de “meras conjecturas”, não coibiu o próprio Tribunal a quo devir agora, através de uma errada aplicação regras de direito probatório, quase por magia, repristinar o facto b) que estava mais do que assente, dando-lhe agora novo sentido e transitando-o para o elenco dos factos provados (agora facto 11.);

LL.      O direito probatório foi mal aplicado e, como tal, não poderia ter sido dado como provado o facto b) (agora 11.) dos factos não provados – o facto 11. é apenas uma construção jurídica e não um facto que resulte da livre apreciação da prova e da convicção dos Senhores Desembargadores;

MM.   O Tribunal a quo aplicou erradamente várias normas de direito substantivo – é o caso das normas constantes dos citados artigos 347.º, 351.º, 352.º, 354.º, 355.º, 358.º, 360.º, 374.º, 376.º, 393.º, 394.º, 412.º, 414.º, 458.º e 787.º todos do Código Civil;

NN.    É que o Tribunal da Relação pretendeu colmatar o facto de a declaração da Senhora DD propalar uma inverdade com uma outra alegação (a que o Tribunal chama de confissão) – agora já não da Senhora DD, mas sim da própria Autora da acção (!) – que refere que afinal a “confissão” da Senhora DD não corresponde à realidade e que afinal a autora da declaração não queria dizer aquilo, mas outra coisa –assim se desonerando a Autora deter de provar o que quer que seja!;

OO.   O Tribunal da Relação ... funda, assim, a sua decisão em duas “confissões”: a constante nos “recibos dequitação” e uma outra alegada confissão judicial;

PP. Embora o Tribunal da Relação ... “misture” estes dois fundamentos enquanto tenta justificar a sua decisão – em detrimento de uma maior clareza que se poderia alcançar – responderemos em separado:

QQ. Da Confissão de Dívida vertida nos Recibos de Quitação: Consta da fundamentação do Tribunal a quo, entre outras coisas, o seguinte: “Por isso, cada recibo não é um negócio jurídico unilateral de reconhecimento de dívida, mas sim, confissão de dívida resultante do recebimento do dinheiro por empréstimo conforme deliberado pelos sócios;

RR. Dispõe o artigo 1142.º do CC que Mútuo é o contrato pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade;

SS. Escreve o Senhor Juiz Conselheiro Fernando Baptista de Oliveira9: “o mútuo é um contrato real quod constitutionem, significando isto que, para a sua perfeição, não basta o acordo das vontades, sendo necessário um ato posterior a este: a entrega da coisa mutuada”;

TT.    Ora, como se vê, um contrato de mútuo só tem existência na ordem jurídica se se verificar a entrega da coisa mutuada;

UU.   No presente caso, como já se viu e ficou provado, é incontroverso que das deliberações de conceção de mútuo da Autora em favor da falecida Senhora DD não se verificou qualquer entrega da coisa mutuada;

VV. Os putativos mútuos são assim nulos por falta de objecto, nos termos do artigo 280.º do Código Civil, porque a coisa não foi mutuada;

WW. Ora, se assim é, ou seja, se inexiste o mútuo que é a causa de pedir da Autora, então os pretensos e respectivos “recibos de quitação” de nada valem, pois, as declarações neles vertidos não são verdadeiras;

XX. Os mútuos deliberados são também nulos por simulados, e também por isso a suposta “confissão de dívida” da Senhora DD de nada vale (de acordo com o artigo 240.º do Código Civil);

YY. Como bem se refere o Acórdão a quo é incontroverso que não foram entregues à sócia gerente as quantias de 112.000 € e 40.000 € em 10/11/2004 e 30/11/2006” (sublinhado e negrito nosso);

ZZ. Portanto, os “recibos de quitação” – que o Tribunal da Relação afirma tratar-se de confissão de dívida resultante do recebimento do dinheiro por empréstimo conforme deliberado pelos sócios – onde a sua autora afirma ter recebido determinadas quantias contêm declarações simuladas (não são verdadeiras, não correspondem à realidade…);

AAA. Ora, de acordo com a alínea c) do artigo 354.º do Código Civil a confissão não faz prova contra o confitente se o facto confessado for impossível ou notoriamente inexistente;

BBB.   O que poderá ter mais força, para estes efeitos, do que um facto que não existiu, quando é o próprio Tribunal da Relação que o afirma?! ;

CCC.   Portanto, dúvidas não restam que os “recibos” não podem fazer prova de factos que inexistiram, pelo que se impugna a decisão do Tribunal da Relação ... que considera os “recibos” válidas confissões de dívida;

DDD.  Pelo que nada, absolutamente nada, se pode concluir em termos fácticos dos putativos recibos de quitação;

EEE. No entanto, ao arrepio desta realidade e lógica jurídica o Tribunal da Relação ..., “ mais um passo em falso” e pondera: “Cumpre então ponderar qual a força probatória das confissões de dívida contidas nesses recibos face à alegação de que são confissões de dívida anterior e que as actas e os recibos se destinaram a permitir fazer a regularização contabilística das saídas de dinheiro que originaram essa dívida da sócia gerente”.

FFF. Jamais poderia o Tribunal da Relação ... avançar para esta “ponderação”, pois como é evidente, e resulta do atrás exposto, inexiste confissões de factos inexistentes: por isso a alegação da Autora de que se tratava de uma regularização nunca se poderia suportar – em termos de prova – numa confissão que não tem qualquer valor jurídico – muito menos valor de prova plena!

GGG. Pois assim determina o artº 354º do Código Civil; uma errada premissa), o Tribunal a quo chega mesmo à seguinte conclusão: Concluímos que as deliberações e os recibos têm por causa a necessidade de regularizar contabilisticamente asdívidas de BB para com a sociedade e por si assumidas em virtude de ter retirado dinheiro do caixa da sociedade ao longo dos anos para utilização pessoal;

III.     Não pode proceder o argumento do Tribunal da Relação ... de que os putativos recibos de quitação assinados pela mesma e que se reportam precisamente às mesmas deliberações que não operaram qualquer alteração à ordem jurídica, são confissões de dívida que oferecem prova plena quanto à existência de uma outra realidade! – realidade substancialmente diferente…;

JJJ.   Este entendimento do Tribunal a quo não colhe porque: O documento particular cuja autoria seja reconhecida nos termos dos artigos antecedentes faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento (n.º 1 do artigo 376.º do Código Civil) e os factos compreendidos na declaração consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante, sendo a declaração indivisível (n.º 2 do artigo 376.º do Código Civil);

KKK. Ou seja: só se consideram provados os factos prejudiciais que estejam compreendidos na declaração atribuída ao autor;

LLL. Está, assim, também por esta via, irremediavelmente prejudicado o valor probatório dos putativos recibos;

 MMM. Veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo n.º 08A3665 , datado de 09-12-2008: “A força probatória do documento particular circunscreve-se no âmbito das declarações (de ciência ou de vontade) que nela constam como feitas pelo respectivo subscritor”;

NNN. A Autora despreza o conteúdo das deliberações e dos “recibos de quitação”, na medida em que a licerça a sua pretensão nos alegados e não demonstrados “sucessivos empréstimos” deque desconhecemos o valor ou quaisquer outras circunstâncias;

OOO. Nestas situações, como bem nota Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo n.º 6933/04.8YYLSB-C.L1.S1, datado de 12-01-2012: à Autora incumbia-lhe “fazer prova da autoria e genuinidade de tais documentos e de que na base deles esteve a efectiva entrega ao mutuário das quantias pecuniárias neles mencionadas

PPP.    Caberia então à Autora provar o facto 11. (anterior facto b) não provado) dado como não provado – o quenão foi feito!;

QQQ. A verdade é que a própria Autora não conseguiu sequer provar apenas um único levantamento do caixa da sociedade e, como ficou patente, a contabilidade da sociedade nunca reflectiu qualquer dívida (antes de 2006) que pudesse existir na conta corrente da falecida sócia Senhora DD, nem tampouco os “vales de caixa” quea Autora afirma terem existido foram levados ao processo;

RRR. A este propósito veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, processo n.º 4/13.3TBCVL-B.C1 , datado de 24-04-2018: (...) E entender-se o contrário, o que seja, que não se provando o empréstimo a declaração de dívida bastaria (à mesma) para reconhecer o crédito do demandante contra o demandado, significaria aceitar que numa acção esse mesmo demandante poderia apenas alegar a existência de uma dívida do demandado sem alegar os factos de onde ela resultava, sem indicar e provar os factos constitutivos do seu direito [art. 552 nº 1 al.d) do CPCivil]”;

SSS.   Pelo que, ao entender o Tribunal a quo que os “recibos de quitação” assinados pela Senhora DD fazem prova plena de uma qualquer outra realidade que não tem a mínima correspondência com a letra da putativa “declaração confessória”, implica um grave e ilegal erro de interpretação dos artigos 354.º e 376.º do Código Civil;

TTT. Sem prescindir, ainda que assim não se considere, o que jamais se poderia aceitar, e se entendaque, face aos argumentos até aqui expostos, os “recibos de quitação” são ainda assim declarações válidas e verdadeiras produzindo prova plena de uma qualquer outra realidade alternativa invocada e que não esteja compreendida na letra do próprio documento – o que nunca seria possível face à lei probatória vigente – sempre se dirá o seguinte:

UUU. De acordo com o artigo 242.º do Código Civil a nulidade da simulação pode também ser invocada pelos herdeiros legitimários que pretendam agir em vida do autor da sucessão contra os negócios por ele simuladamente feitos com o intuito de os prejudicar;

VVV. De acordo com a jurisprudência do Supremo Tribunal, processo n.º 2964/05.9TBSTS.P1.S1, datado de 04-05-2010: Isto significa que, mesmo após a abertura da herança, têm, obviamente, os herdeiros legitimários, legitimidade para invocar a nulidade de negócios simulados que se traduzam em prejuízo da respectiva legítima, ainda que não com esse intuito” (…) Mas não é de excluir, embora seja corrente colocar os herdeiros na mesma posição do simulador poderem eles ser tratados como terceiros, enquanto visam satisfazer interesses específicos da sua posição de herdeiros”;

WWW.   Ora, como decorre das observações de Carvalho Fernandes, os 1.º e 2.ª Réus, deverão ser considerados terceiros em relação à simulação perpetrada com as supostas “confissões de dívida”;

XXX. Mas, sobretudo, o facto de os 1.º e 2.ª Réus serem considerados terceiros em relação ao pacto simulatório referente às putativas “confissões dedívida”, significa também que as mesmas “confissões de dívida” não podem ser invocadas como provas plenas pelo Tribunal a quo, uma vez que a prova plena só pode ser invocada pelo declaratário contra o declarante;

YYY. Assim sendo, já não se aplicam ao presente caso o n.º 2 do artigo 358.º nem o n.º 1 e 2 do artigo 376.º ambos do Código Civil, não existindo, portanto, prova plena face à invocação de uma putativa “confissão de dívida”;

ZZZ. Pelos referidos motivos, o ónus da prova dos levantamentos do caixa passa a ser da Autora– que não provou nada;

AAAA.   Da“Confissão Judicial” da Autora: Refere o Tribunal a quo: “Como já referimos, da alegação da apelante na petição inicial e neste recurso resulta a sua confissão de que na realidade naquelas datas nenhuma quantia foi emprestada à sócia gerente. Por isso dissemos que é incontroverso que não foram entregues à sócia gerente as quantias de 112.000 € e 40.000 € em 10/11/2004 e 30/11/2006.

Porém, simultaneamente alegou a apelante que a sócia gerente era devedora dessas quantias por ter retirado dinheiro do caixa da sociedade para fins pessoais e que a finalidade das deliberações foi permitir que se procedesse à regularização contabilística dessas saídas de dinheiro. Estabelece o art. 360º do CC:

«Se a declaração confessória, judicial ou extrajudicial, for acompanhada da narração de outros factos ou circunstâncias tendentes a infirmar a eficácia do facto confessado ou a modificar ou extinguir os seus efeitos, a parte que dela quiser aproveitar-se como prova plena tem de aceitar também como verdadeiros os outros factos ou circunstâncias, salvo se provar a sua inexactidão».

Decorre desta norma que para os apelados poderem aproveitar-se da confissão judicial da apelante de que naquelas datas não entregou dinheiro a DD como prova plena de que esta não era devedor dessas quantias teriam de aceitar como verdadeiro que as deliberações foram tomadas e os recibos foram feitos e assinados nas referidas circunstâncias, salvo estando provada a inexactidão dessas circunstâncias”;

BBBB.    Entende o Tribunal que a  Autora fez uma “confissão judicial complexa” (artigo 360.º do Código Civil) e que os 1.º e 2.ª Réus terão aceitado o facto que lhe é favorável (desfavorável à Autora) e, em virtude dessa aceitação e por se tratar de uma “confissão complexa”, terão também os mesmos Réus aceitado os factos que, na confissão, são favoráveis à Autora – ou seja “que as deliberações e os recibos têm por causa a necessidade de regularizar contabilisticamente as dívidas de DD para com a sociedade”;

CCCC. No entanto, o Tribunal a quo não identificou, no âmbito do processo, uma qualquer demonstração de aceitação pelos 1.º e 2.ª Réus da confissão da Autora, sendo certo que, efetivamente, os referidos Réus nunca aceitaram tal confissão “desfavorável” – o que desde já justifica a nulidade do Acórdão;

DDDD.   Nem tampouco essa realidade processual está vertida na decisão do Tribunal da 1ª instância, que nada diz sobre a aceitação da referida alegada confissão que, como ficou dito, nunca ocorreu;

EEE. A A propósito veja-se o que refere o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo n.º 472/15.9T8VRL.G1.S1, datado de 16-06-2018, sobre a forma como se deve proceder à aceitação da confissão da contraparte: “a contraparte tem que fazer menção concreta, individualizada, do facto que aceita, não bastando, para esse efeito, aceitação genérica (…) A aceitação tem deser expressa, tem queser feita conhecer no processo, pois que somente o que é expresso é que pode possuir especificação

FFFF. Ou seja: para haver aceitação de uma confissão tem de haver uma declaração, expressa e inequívoca, da vontade de se aproveitar de determinado facto confessado – o que não aconteceu no presente processo: não só não houve declaração de aceitação, como nenhum dos Réus tirou proveito de tal alegação da Autora; GGGG.      Para além do mais, mesmo que existisse uma qualquer confissão, a realidade é que s referidos Réus já haviam demonstrado e provado – por si esem auxílio da Autora – que inexistiram quantias mutuadas em resultado das deliberações de2004 e 2006, pelo que o Réu não tirou absolutamente nenhum proveito processual de tal putativa confissão (veja o teor e os documentos juntos com a Contestação);

HHHH. Aliás, o facto que se deu a conhecer com a putativa confissão já era do conhecimento do Réu AA antes mesmo da propositura da presente acção – foi precisamente por não se ter achado na contabilidade da Autora a traditio da coisa mutuada que os ora herdeiros nunca reconheceram, em sede de inventário, a putativa dívida e, foi, aliás, por essa mesma razão que a Autora intentou a presente acção, pedindo que os Réus (herdeiros) reconheçam a putativa dívida!;

IIII. Pelo que é por demais evidente que não se pode falar de confissão e, por maioria de razão, muito menos deuma aceitação da confissão da Autora;

JJJJ. Não havendo inversão do ónus da prova, caberia sim à Autora proceder à prova do facto 11. (erradamente dado como provado) –não o fez (nem sequer indícios de prova apresentou);

KKKK.    Ainda que se entenda que existiu confissão – e a respectiva aceitação –, o que não se concede de forma alguma, sempre se dirá o seguinte:

LLLL. O princípio da indivisibilidade da confissão, vertido no artigo 360.º do Código Civil, aplica-se aos casos em que um confessor confessa um facto desfavorável, mas que na mesma confissão faz acompanhar outros factos ou circunstâncias que lhe são favoráveis;

MMMM. Ora, o artigo em análise refere apenas que a parte que dela (confissão) quiser aproveitar-se como prova plena tem de aceitar também como verdadeiros os outros factos ou circunstâncias, salvo se provar a sua inexactidão;

NNNN. Os 1.º e 2.ª Réus sempre impugnaram a factualidade que acompanhava a putativa confissão, pois nunca aceitaram a existência de levantamentos do caixa da sociedade e ainda mais que esses inexistentes levantamentos eram empréstimos da sociedade à falecida Senhora DD;

OOOO. Por isso, o Réu não só produziu prova no sentido da inexactidão dos factos que acompanham a confissão, como logrou provar que esses factos não se verificaram;

PPPP. Mas a própria inexactidão foi demonstrada pelo Tribunal a quo quando refere, entre outras coisas, que: i) “nenhum “vale de caixa” foi junto aos autos”(…) “deste «relatório» evidencia-se a falta de fiabilidade da contabilidade da apelante e que o OC fez conjecturas para encontrar explicação para as saídas de valores do caixa da sociedade com base no que lhe foi transmitido” (ver melhor ponto JJ. da Conclusão);

QQQQ.   Sendo estas as tais circunstâncias que acompanhavam o facto “confessado”, por ter resultado substancialmente como não provado o facto da Senhora DD ter levantado quaisquer quantias do caixa da sociedade, também não se verifica a prova plena, pelo que o Tribunal a quo violou o artigo 360.º do Código Civil ao descorar precisamente o facto do 1º e 2ª Réus terem provado a inexactidão da putativa “confissão aceite” – isso caso se entenda que existiu uma qualquer aceitação de confissão, que como vimos não existiu;

RRRR.   Diga-se, em abono da verdade, que foi o próprio Tribunal a quo que considerou provada a inexatidão das circunstâncias que acompanhavam a “confissão”…;

SSSS. Por isso, mesmo que existisse prova plena – que não existe – esta foi abalada pela demonstração da inexactidão;

TTTT. Resumindo no essencial: de acordo com a lei os “recibos de quitação” não têm qualquer valor probatório (não se trata de confissões de dívida); por isso de nada vale a alegação de outra realidade alternativa se essa mesma realidade alternativa não foi provada – cai por terra a pretensão da Autora e Ré CC.

Nestes termos, deverá ser o presente recurso de revista julgado totalmente procedente, por provado, devendo, como tal, ser o Acórdão de Relação ... revogado e substituído por outro que julgue a ação totalmente improcedente, por não provado o direito alegado pela Autora, fazendo-se a necessária

JUSTIÇA!!


II. DA RÉ BB


A. DA NULIDADE POR FALTA DA APRECIAÇÃO DE DIREITO ---

A. Considerámos que o acórdão de 08/07/2021 manteve a al. “E) O Direito” do acórdão de 19/11/2020.

B. Por mera cautela, caso assim se não entenda, deve considerar-se arguida a nulidade decorrente da falta da apreciação de direito que ao caso cabe, prevista no art. 615.º, n.º 1, al. b), do CPC.

--- DOS VÍCIOS ATINENTES À NOVA FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO ---

C. Em cumprimento do acórdão do STJ, a Relação ..., por acórdão de 08/07/2021, reformulou a fundamentação de facto da sua decisão, nos seguintes termos:

i) quanto à matéria da al. b) dos factos dados como não provados na sentença da 1.ª instância (supra transcrita no n.º 6), que o acórdão de 20/11/2020 considerara dever manter como não provado, passou a considerar como provado o seguinte:
11 - Ao longo dos anos em que DD geriu a autora, foi retirando para uso pessoal quantias do caixa da sociedade que ascenderam a 152.000 € e não repôs, e a forma que os sócios encontraram para fazer a regularização contabilística dessas saídas de dinheiro foi formalizar sob a veste de empréstimos essas saídas de dinheiro, exarando em actas as deliberações referidas nos pontos 7 e 8, tendo sido também com esse propósito que foram emitidos e assinados os recibos referidos em 9 e 10.

ii) quanto à matéria da al. a) dos factos dados como não provados na sentença da 1.ª instância (supra transcrita no n.º 6), que o acórdão de 20/11/2020 decidira eliminar, passou a considerar como não provado o seguinte:

- que a autora tivesse entregado a DD em 10 de Novembro de 2004 a quantia de 112.000 €, sem prejuízo do que consta no ponto 11;

- que a autora tivesse entregado a DD em 30 de Novembro de 2006 a quantia de 40.000 €, sem prejuízo do que consta no ponto 11.

D. Ressalvado o devido respeito, a nova fundamentação de facto não tem sentido lógico – sem ofensa, até poderíamos dizer que não tem pés nem cabeça –, estando eivada dos seguintes vícios:

 nulidade, por ocorrer ambiguidade ou obscuridade que tornam a decisão sobre a matéria de facto ininteligível e contraditória com a decisão, o que se evoca para os efeitos do art. 615.º, n.º 1, al. c), do CPC;

 insuficiência da fundamentação de facto em termos particularmente gravosos, por não permitirem a compreensão global da matéria de facto em apreciação, o que gera a nulidade prevista no art. 615.º, n.º 1, al. b), do CPC;

 abusiva utilização de presunções judiciais, por manifesta ilogicidade das conclusões estabelecidas, bem como errónea avaliação das regras do ónus da prova e de inversão do ónus da prova previstas nos arts. 342.º e 344.º, ambos do CC.

E. Relativamente aos factos não provados - que a autora tivesse entregado a DD em 10 de Novembro de2004 a quantia de 112.000 €, sem prejuízo do que consta no ponto 11; e - que a autora tivesse entregado a DD em 30 de Novembro de 2006 a quantia de 40.000 €, sem prejuízo do que consta no ponto 11 –, é ininteligível a razão pela qual a Relação não considerou como provado que a autora não entregou a DD as quantias em causa nas datas em referência, alegadamente em cumprimento de empréstimos deliberados em 08/11/2004 e em 16/11/2006.

F. É que é incontroverso nos autos que a A. não entregou à sócia gerente nas datas em referência e nos demais termos constantes dos recibos subscritos as quantias em causa. E isso está expressamente assumido no acórdão recorrido, quer na primitiva versão, quer no aresto de 08/07/2021:

G. Deste modo, colmatando as deficiências de fundamentação que, neste segmento, geram a nulidade arguida, onde o Tribunal considera como não provado que a Autora entregou em 10/11/2004 e em 30/11/2006 à sócia gerente as quantias em causa, deve passar a considerar-se provado que, nessas datas, a A. não entregou à sócia gerente as quantias em apreço, nos termos constantes dos recibos subscritos.

H. Porém, o mais surpreendente é que a Relação ..., que mantivera como não provado que a falecida BB tivesse procedido a levantamentos de montantes existentes na caixa da sociedade para uso pessoal no montante de € 152.000,00, tenha passado a considerar como provado que assim aconteceu. Ou seja, que tenha dado agora como provado o facto que elenca sob o n.º 11, supra transcrito no n.º 9.

I. Dos incisos supra transcritos no corpo das alegações, é manifesto que a Relação considerou que não foi feita prova de que as quantias em causa foram retiradas da caixa nos termos e no montante em apreço (€ 152.000,00). É, aliás, o próprio acórdão da Relação a reportar a falta de fiabilidade da contabilidade da Autora e a reconhecer que o ROC fez meras conjecturas para encontrar explicação para as saídas de valor do caixa da sociedade.

J. Então, como é que se dá o “passo de mágica” para dar como assente o probatório em apreço?

K. Como igualmente resulta dos incisos supra transcritos no corpo das alegações, o acórdão recorrido dá como provado o facto elencado sob o n.º 11 porque, tendo supostamente ocorrido saídas de caixa não documentadas, essa seria a conclusão a estabelecer pela circunstância de não ser impossível que o montante de € 152.000,00 tivesse sido retirado pela sócia gerente para uso pessoal!!

L. Sem necessidade de outras considerações, é evidente que a presunção estabelecida a partir de tais factos não permite dar como provado aquilo que consta do facto provado sob o n.º 11.

M. A presunção assim estabelecida ofende a lógica mais elementar e consubstancia uma violação das regras do ónus da prova e da inversão do ónus da prova consagradas nos arts.342.ºe344.º,ambos do CC, já que, nos termos dessas regras, caberia à Autora fazer a prova de que efectivamente a sócia gerente retirara, no período em referência, a quantia de € 152.000,00 da caixa para seu uso pessoal, não podendo tal factualidade ser estabelecida a partir de uma presunção ostensivamente insubsistente e ilógica.

N. Acresce que o acórdão recorrido não pode convocar em reforço da sua tese o teor dos recibos subscritos por BB, já que é incontroverso que tais recibos não espelham a realidade do que ocorreu.

O.Finalmente,nãotemsentidoainvocaçãodoart.414.ºdoCPC.Primeiro,porque não se está perante qualquer dúvida que deva ser resolvida contra a parte a quem se aproveita, mas sim perante uma situação em que não foi feita prova minimamente suficiente do que se pretende dar como estabelecido. Segundo, porque, a existir dúvida, ela teria que ser resolvida contra a Autora que é a parte a quem aproveita o pretenso facto em pauta.

P. Pelo exposto, deve ser dado como não provado o facto elencado sob o n.º 11, supra transcrito no n.º 9.

--- DO DIREITO ---

Q. O acórdão recorrido reconhece que é incontroverso que os factos a que se reportam as actas e os recibos de Novembro de 2004 e de Novembro de 2006 – empréstimos e subsequentes entregas em dinheiro – não ocorreram, como a Autora confessa.

R. Todavia, ao abrigo de uma singular interpretação efectuada ao regime do art. 360.º do CC, o acórdão conclui que os RR. não se podem aproveitar dessa declaração confessória, razão pela qual são condenados a pagar as quantias que DD Melo declarou ter recebido em 10/11/2004 e em 30/11/2006, mas que o Tribunal sabe que é incontroverso que não recebeu, nos termos que os recibos atestam.

S. Em primeiro lugar, o artigo 360.º do CC não é aplicável ao caso dos autos, porque a conclusão de que é incontroverso que BB não recebeu as quantias tituladas pelos recibos em apreço não resulta só da declaração confessória da Autora, mas também da avaliação da restante prova efectuada pelo Tribunal, designadamente as ilações que retirou acerca da inexistência (sem justificação) de vales de caixa, do teor das actas, das declarações do TOC da empresa e do relatório do ROC, tudo como consta dos excertos do acórdão supra transcritos, devidamente sublinhados na parte mais relevante.

T. Em segundo lugar, porque, mesmo que só tivéssemos a declaração confessória da Autora – e não é verdade que assim seja –, a indivisibilidade da confissão não existiria no caso dos autos, uma vez que foi a própria Autora que se propôs fazer a prova da verdadeira origem da suposta dívida de BB, o que não logrou fazer.

U. Em terceiro lugar, porque, mesmo desconsiderando a declaração confessória da Autora,a verdade é que nunca se poderia condenar os RR. com base no argumento de que as declarações contidas nos recibos subscritos por BB são, por si, confissões de dívida que fariam prova plena, porque, nos termos do art. 354.º, c), do CC, tais confissões nunca poderiam fazer prova contra a confitente, uma vez que os factos confessados são notoriamente inexistentes, como a própria Relação reconhece.

V. Em quarto lugar, e em termos incontornáveis, porque, reconhecido como está, pelo Tribunal da Relação, que os contratos de mútuo reportados pelas actas de 10/11/2004 e de 30/11/2006 são nulos, os quais só seriam válidos se tivessem sido celebrados por escritura pública – nulidade que a Relação declarou oficiosamente –, nunca se poderia seguir a conclusão de que caberia aos RR. a obrigação de restituir tudo o que tivesse sido prestado, em decorrência do regime do art. 289.º, n.º 1, do CC, uma vez que não está feita a prova de que as quantias mencionadas nos recibos foram alguma vez recebidas por BB.

W. É que tais recibos não valem como confissão do recebimento das quantias em apreço, não havendo prova válida de que tais quantias tenham sido efectivamente recebidas nos termos descritos, como resulta do art. 364.º, do CC.

X. Aplicando tal regime ao caso dos autos, é evidente que a suposta confissão constante dos recibos – a qual se reporta a supostos contratos de mútuo que teriam sido celebrados em assembleias gerais – não pode servir para prova de que as quantias mutuadas foram recebidas, uma vez que essa confissão teria de constar de documento com força probatória igual ou superior ao da escritura pública exigida para aquela declaração negocial, o que, como é sabido, não se verifica.

Y. Finalmente, no contexto dos autos – em que é incontroverso que: i) os empréstimos não tiveram lugar e que as quantias não foram pagas a BB nos termos constantes dos recibos em apreço; ii) a Autora não logrou provar que, ao longo dos anos, a falecida BB tivesse procedido a levantamentos ou utilizações, para uso pessoal, de montantes existentes, no valor de € 152.000,00, na caixa da sociedade; iii) nenhum vale de caixa foi junto aos autos, nem a Autora deu justificação para não o fazer, não tendo sido discriminadas as quantias que alegadamente teriam sido retiradas da caixa –, viola os ditames da boa-fé que a Autora se venha prevalecer de uns recibos que ela bem sabe que não reportam factualidade verdadeira para ver satisfeito um crédito que ela sabe não existir, pelo que esse exercício sempre consubstanciaria uma situação de abuso de direito, nos termos do art. 334.º, do CC, razão pela qual o pedido sempre deveria improceder com esse fundamento.

Z. Pelo exposto, o acórdão recorrido aplicou erroneamente à situação dos autos os artigos 360.º, 289.º e 342.º do CC, não aplicando ainda, como devia, o regime dos artigos 354.º, al. c), 364.º e 334.º do CC, nos termos supra expostos, razão pela qual deve ser revogado, repristinando-se a sentença da 1.ª instância que absolveu os RR..

Termos em que o recurso merece provimento, revogando-se o acórdão da Relação e repristinando-se a sentença de absolvição da 1.ª instância, com as legais consequências.


**

Em acórdão de 02.12.2021, lavrado em conferência, a Relação apreciou das arguidas nulidades do acórdão de 08.07.2021, considerando não verificada qualquer delas, tendo, porém, ali conhecido novamente de direito em sede de enquadramento jurídico dos factos julgados provados, consignando-se que tal aditamento ao ac. de 08.07.2021 (essa apreciação de direito) passaria a fazer parte integrante do mesmo acórdão.

Assim, nesse acórdão em conferência proferiu-se, a final, a seguinte
“Decisão

Pelo exposto, julga-se procedente a apelação, revogando-se a sentença recorrida e condenando os apelados a reconhecerem o crédito da apelante sobre a herança no valor de 135.762,63 € e a ser satisfeito pelos bens da herança.”.


**

Notificados deste Acórdão (em conferência) de 02.12.2021, que complementou o ac. de 08.07.2021 (este que, por sua vez, alterou o acórdão de 19.11.2020 - Acórdão este que o Supremo anulara para que a Relação sanasse as aí apontadas contradições na matéria de facto), e mais uma vez inconformados, interpuseram recurso de revista os RR AA e BB: o primeiro “vem responder ao complemento (parte Direito) do Acórdão datado de 08.07.2021 e apresentar o seu complemento às alegações recursivas apresentadas em 26.09.2021 (plasmadas supra); a segunda interpõe recurso de revista do Acórdão da Relação de 2020 (o tal que este Supremo Tribunal anulara), devidamente completado pelos acórdãos de 08.07.2021 e de 02.12.2021.

Daqui que, como se verá, em boa parte haja uma certa sobreposição - essencialmente no que tange a matéria de Direito - , do conteúdo das duas alegações produzidas por cada um dos recorrentes.

Rematam tais alegações com as seguintes

CONCLUSÕES

A. DA RÉ BB

--- DOS VÍCIOS ATINENTES À NOVA FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO --- constante do Acórdão de 08/07/2021

A) Em cumprimento do acórdão do STJ, a Relação ..., por acórdão de 08/07/2021, reformulou a fundamentação de facto da sua decisão, nos seguintes termos:

i) quanto à matéria da al. b) dos factos dados como não provados na sentença da 1.ª instância (supra transcrita no n.º 7), que o acórdão de 20/11/2020 considerara dever manter como não provada, passou a considerar como provado o seguinte:
11 - Ao longo dos anos em que DD geriu a autora, foi retirando para uso pessoal quantias do caixa da sociedade que ascenderam a 152.000 e não repôs, e a forma que os sócios encontraram para fazer a regularização contabilística dessas saídas de dinheiro foi formalizar sob a veste de empréstimos essas saídas de dinheiro, exarando em actas as deliberações referidas nos pontos 7 e 8, tendo sido também com esse propósito que foram emitidos e assinados os recibos referidos em 9 e 10.

ii) quanto à matéria da al. a) dos factos dados como não provados na sentença da 1.ª instância (supra transcrita no n.º 7), que o acórdão de 20/11/2020 decidira eliminar, passou a considerar como não provado o seguinte:

- que a autora tivesse entregado a DD em 10 de Novembro de 2004 a quantia de 112.000 €, sem prejuízo do que consta no ponto 11;

- que a autora tivesse entregado a DD em 30 de Novembro de 2006 a quantia de 40.000 €, sem prejuízo do que consta no ponto 11.

B) Ressalvado o devido respeito, a nova fundamentação de facto não tem sentido lógico – sem ofensa, até poderíamos dizer que não tem pés nem cabeça –, estando eivada dos seguintes vícios:

nulidade, por ocorrer ambiguidade ou obscuridade que tornam a decisão sobre a matéria de facto ininteligível e contraditória com a decisão, o que se evoca para os efeitos do art. 615.º, n.º 1, al. c), do CPC;

insuficiência da fundamentação de facto em termos particularmente gravosos, por não permitirem a compreensão global da matéria de facto em apreciação, o que gera a nulidade prevista no art. 615.º, n.º 1, al. b), do CPC;

abusiva utilização de presunções judiciais, por manifesta ilogicidade das conclusões estabelecidas, bem como errónea avaliação das regras do ónus da prova e de inversão do ónus da prova previstas nos arts. 342.º e 344.º, ambos do CC.

C) Relativamente aos factos não provados - que a autora tivesse entregado a DD em 10 de Novembro de2004 a quantia de 112.000 €, sem prejuízo do que consta no ponto 11; e - que a autora tivesse entregado a DD em 30 de Novembro de 2006 a quantia de 40.000 €, sem prejuízo do que consta no ponto 11 –, é ininteligível a razão pela qual a Relação não considerou como provado que a autora não entregou a DD as quantias em causa nas datas em referência, alegadamente em cumprimento de empréstimos deliberados em 08/11/2004 e em 16/11/2006.

D) É que é incontroverso nos autos que a A. não entregou à sócia gerente nas datas em referência e nos demais termos constantes dos recibos subscritos as quantias em causa. E isso está expressamente assumido no acórdão recorrido, quer na primitiva versão, quer no aresto de 08/07/2021.

E) Deste modo, colmatando as deficiências de fundamentação que, neste segmento, geram a nulidade arguida, onde o Tribunal considera como não provado que a Autora entregou em 10/11/2004 e em 30/11/2006 à sócia gerente as quantias em causa, deve passar a considerar-se provado que, nessas datas, a A. não entregou à sócia gerente as quantias em apreço, nos termos constantes dos recibos subscritos.

F) Porém, o mais surpreendente é que a Relação ..., que mantivera como não provado que a falecida BB tivesse procedido a levantamentos de montantes existentes na caixa da sociedade para uso pessoal no montante de € 152.000,00, tenha passado a considerar como provado que assim aconteceu. Ou seja, que tenha dado agora como provado o facto que elenca sob o n.º 11, supra transcrito no n.º 9.

G) Dos incisos supra transcritos no corpo das alegações, é manifesto que a Relação considerou que não foi feita prova de que as quantias em causa foram retiradas da caixa nos termos e no montante em apreço (€ 152.000,00). É, aliás, o próprio acórdão da Relação a reportar a falta de fiabilidade da contabilidade da Autora e a reconhecer que o ROC fez meras conjecturas para encontrar explicação para as saídas de valor do caixa da sociedade.

H) Então, como é que se dá o “passo de mágica” para dar como assente o probatório em apreço?

I) Como igualmente resulta dos incisos supra transcritos no corpo das alegações, o acórdão recorrido dá como provado o facto elencado sob o n.º 11 porque, tendo supostamente ocorrido saídas de caixa não documentadas, essa seria a conclusão a estabelecer pela circunstância de não ser impossível que o montante de € 152.000,00 tivesse sido retirado pela sócia gerente para uso pessoal!!

J) Sem necessidade de outras considerações, é evidente que a presunção estabelecida a partir de tais factos não permite dar como provado aquilo que consta do facto provado sob o n.º 11.

K) A presunção assim estabelecida ofende a lógica mais elementar e consubstancia uma violação das regras do ónus da prova e da inversão do ónus da prova consagradas nos arts. 342.º e344.º, ambos do CC, já que, nos termos dessas regras, caberia à Autora fazer a prova de que efectivamente a sócia gerente retirara, no período em referência, a quantia de € 152.000,00 da caixa para seu uso pessoal, não podendo tal factualidade ser estabelecida a partir de uma presunção ostensivamente insubsistente e ilógica.

L) Acresce que o acórdão recorrido não pode convocar em reforço da sua tese o teor dos recibos subscritos por BB, já que é incontroverso que tais recibos não espelham a realidade do que ocorreu.

M) Finalmente, não tem sentido ainvocação do art. 414.º do CPC. Primeiro, porque não se está perante qualquer dúvida que deva ser resolvida contra a parte a quem se aproveita, mas sim perante uma situação em que não foi feita prova minimamente suficiente do que se pretende dar como estabelecido. Segundo, porque, a existir dúvida, ela teria que ser resolvida contra a Autora que é a parte a quem aproveita o pretenso facto em pauta.

N) Pelo exposto, deve ser dado como não provado o facto elencado sob o n.º 11, supra transcrito no n.º 9.

--- DO DIREITO ---

O) A al. E) do primitivo Acórdão, tal como dele constava, construía a solução jurídica do caso com base nos recibos assinados pela mãe dos apelados, que seriam confissões de que teria recebido as quantias em pauta a título de empréstimo.

P) Todavia, não é isso que consta da nova al. E), que estrutura a solução jurídica do pleito com base no facto n.º 11 aditado ao probatório – segundo o qual BB ter retirado, para uso pessoal, certas quantias do caixa da sociedade, que não teria reposto –, a partir do qual deduza existência de um mútuo (nulo por falta de forma), o que teria como consequência a obrigação de restituição daquilo que havia sido prestado, nos termos do art. 289.º, n.º 1 do CC.

Q) Só que esta solução jurídica cai pela base se deixar de se considerar provada – como seguramente se deixará de considerar – a factualidade descrita, ou seja, a de que essas quantias corresponderiam ao somatório de montantes retirados do caixa da sociedade por BB para seu uso pessoal.

R) É que, como já se referiu, não foi feita qualquer prova dos valores, nem das datas, nem das demais circunstâncias em que tais verbas teriam sido retiradas do caixa da sociedade, nem sequer por quem.

S) Deste modo, não estando demonstrado que BB retirou do caixa da sociedade verbas para seu uso pessoal, não há que condenar os apelados a reconhecer qualquer crédito da Recorrida sobre a herança.

T) Por outro lado, está esclarecido que, em 10/11/2004 e 30/11/2006, não foram efectuados quaisquer empréstimos a BB, razão pela qual os recibos subscritos nessas datas não podem servir para comprovar uma realidade que está assente que não ocorreu.

U) Assim, cabendo à Apelante demonstrar o fundamento de facto para a sua pretensão – nos termos do art. 342.º, n.º 1 do CC –, o que não logrou fazer, inexiste fundamento de facto que justifique a condenação no pedido formulado, como decorre das regras do ónus da prova, que a Relação ... erroneamente desconsiderou.

V) De qualquer forma, mesmo que assim não fosse – mesmo que se considerasse assente a factualidade do n.º 11 do probatório – só estaria assente que BB teria retirado do caixa, para seu uso pessoal, montantes que totalizaram € 152.000,00, o que é insuficiente para se concluir que existiu um contrato de mútuo, que é o contrato pelo qual uma das partes empresta dinheiro à outra, ficando essa parte obrigada a restituir outro tanto no mesmo género e quantidade.

W) É que, nesse caso, pura e simplesmente se desconhecem as circunstâncias e condições em que essas verbas teriam sido retiradas do caixa razão pela qual não se aplicariam as convocadas regras dos arts. 286.º e 289.º do CC.

X) Neste contexto, restaria a hipótese de um enriquecimento sem causa, que é o instituto que se aplica àquelas situações em que alguém, sem causa justificativa, enriquece à custa de outrem (cfr. art 473.º do CC). Mas tal pretensão nunca foi formulada pelos Autores – nunca tendo os apelados tido oportunidade de se pronunciar sobre ela –, sendo certo que o direito à restituição por via desse enriquecimento sempre estaria prescrito, nos termos do art. 482.º do CC, o que também se invoca para os devidos efeitos.

Y) Pelo exposto, o Acórdão recorrido aplicou erroneamente as regras legais que convocou, particularmente os arts. 342.º, n.os 1 e 2, 286.º, e 289.º, n.º 1, todos do Código Civil.

Termos em que o recurso merece provimento, revogando-se o acórdão da Relação e repristinando-se a sentença de absolvição da 1.ª instância, com as legais consequências.


B. DO RÉU AA

UUUU.    (7ª Nulidade) O Acórdão deu como não provado que a autora tivesse entregado quaisquer quantias a DD, em 2004 e 2006, tal como pretendiam relatar as respectivas deliberações e recibos, referindo, aliás, que tal realidade era incontroversa;

VVVV.      No entanto, mais uma vez contraditoriamente, refere o Tribunal da Relação ... (“E) Do Direito”) que: “Ora, à data da deliberação de 08/11/2004 o contrato de mútuo de valor superior a 20.000 era válido se fosse celebrado por escritura pública (cfr art. 1143º na redacção do DL 343/98 de 06/11) e à data da deliberação de 16/11/2006 o contrato de mútuo de valor superior a 25.000 era válido se fosse celebrado por escritura pública (cfr art. 1143º na redacção do DL 116/.2008, de 04/07). A inobservância da forma legal importa a nulidade do contrato de mútuo, que é de conhecimento oficioso (cfr art. 219º, 220º e 286º do CC), tendo como consequência a obrigação de restituição de tudo o que tiver sido prestado (cfr art. 289º 1 do CC). Assim, não estando provado que foi restituída à apelante a quantia de 135.762,63 €, tem de proceder a pretensão da apelante, quer pela não prova de causa(s) justificativa(s) das retiradas de dinheiro do caixa da sociedade, quer por nulidade dos mútuos” (sublinhado e negrito nossos);

WWWW.    Ora, salvo o devido respeito, que é muito, esta passagem do Acórdão é contraditória relativamente à anterior afirmação de que os mútuos deliberados em 08/11/2004 e 16/11/2006 são inexistentes (não foram provados), por não se ter verificada a traditio da quantia mutuada;

XXXX.     Sucede que os putativos mútuos não são apenas nulos por serem inválidos em razão de não terem sido celebrados por escritura pública: os putativos mútuos são nulos sobretudo por falta de objeto, nos termos do artigo 280.º do Código Civil e, como tal, são mesmo inexistentes, como bem referiu na sua decisão o Tribunal da 1º Instância;

YYYY. Assim, não há sustentação factual nem jurídica para se mencionar a restituição de tudo o que tiver sido prestado, em razão da nulidade provocada pela falta de forma (escritura pública) – quando é o próprio Tribunal que refere que os mútuos em resultado das referidas deliberações inexistiram por não ter sido efectuada qualquer entrega de dinheiro;

ZZZZ. Repare-se: O Tribunal a quo, na sua decisão, condena mesmo o Réu a restituir valores em virtude da nulidade dos mútuos por falta de forma – como se tivesse efectivamente existido uma entrega de dinheiro;

AAAAA. Estamos, portanto, perante uma clara nulidade do Acórdão de acordo com a alínea c) do n.º do artigo 615.º do CPC (aqui aplicável), o que provoca a nulidade do Acórdão;

BBBBB.     (Do Direito) Refere o Tribunal a quo que o facto 11. foi dado como provado, mas, como já vimos, aquele “facto” foi dado como provado com recurso à aplicação de normas de direito probatório que foram violadas – é o caso das normas constantes dos citados artigos 347.º, 351.º, 352.º, 354.º, 355.º, 358.º, 360.º, 374.º, 376.º, 393.º, 394.º, 412.º, 414.º, 458.º e 787.º todos do Código Civil;

CCCCC.  De resto, e como também já vimos neste recurso, não estamos perante um verdadeiro facto, mas sim na presença de uma conclusão – isto é um “facto conclusivo” e, por isso, deve considerar-se não escrito, pois “integra matéria de direito que constitui o thema decidendum” (com aquele “facto”, manifestamente conclusivo, o Tribunal a quo tudo decide);

DDDDD.   Pelo que, por essa razão, não cumpriu a Autora a regra plasmada no artigo 342.º do CC;

EEEEE.    Invertendo o Tribunal a quo o princípio do ónus da prova, refere-se na decisão que “Não resulta da matéria de facto que as retiradas de dinheiro consubstanciaram doações (figura jurídica disciplinada nos art. 940º a 979º do CC) ou satisfação de créditos da mãe dos apelados sobre a sociedade. Portanto, não se mostram justificadas as retiradas de dinheiro do caixa da sociedade pela mãe dos apelados. Ora, aos apelados cabia alegar e provar factualidade que permitisse concluir que as retiradas de dinheiro do caixa da sociedade tiveram causa(s) que implicava(m) não ser devida a sua restituição à apelante (cfr 2 do art. 342º do CC)”;

FFFFF.     É verdade que as retiradas de dinheiro não foram justificadas, pois seria impossível justificar retiradas se nem sequer as retiradas de dinheiro ficaram provadas;

GGGGG.  Refere, portanto, o Tribunal a quo que cabia ao Réu AA alegar e provar a factualidade que permitisse concluir que as retiradas de dinheiro do caixa da sociedade tiveram causa(s) que implicava(m) não ser devida a sua restituição à apelante – não é verdade que assim seja;

HHHHH.   É que, em bom rigor, os mútuos não se provam por existir uma entrega de dinheiro a alguém: a entrega de dinheiro não basta, pois uma entrega de dinheiro pode ter inúmeros “significados”. É que o mútuo é uma entrega de dinheiro que importa a posterior restituição (cf. CC);

IIIII.   Portanto, se quisesse a Autora cumprir a regrado ónus da prova teria não só de provar a existência de efectivos levantamentos (nem sequer provou), mas também provar que tais levantamentos importariam também a sua restituição (portanto provar a natureza dos levantamentos, um empréstimo(?), pagamento de despesas próprias(?), distribuição não declarada de resultados(?), liberalidades(?));

JJJJJ.   De resto, é certo que os putativos levantamentos/empréstimos nunca constaram da contabilidade da sociedade – apenas constam da contabilidade as forjadas deliberações de concessão de empréstimo (e só a partir daí, dos documentos forjados saírem a lume, passou a constar da contabilidade um saldo…);

KKKKK.  Veja-se a este propósito o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, no âmbito do Processo n.º 552/15.0T8FLG.P1 (supra citado) sobre os elementos constitutivos do mútuo: entrega da coisa + obrigação de restituição;

LLLLL.   Ora, ao referir o Tribunal quo que “aos apelados cabia alegar e provar factualidade que permitisse concluir que as retiradas de dinheiro do caixa da sociedade tiveram causa(s) que implicava(m) não ser devida a sua restituição à apelante (cfr 2 do art. 342º do CC)”, quando nem sequer os levantamentos foram provados pela Autora, é estar a inverter a lógica dos ónus da prova;

MMMMM. E não basta alegar a tese da “regularização contabilística”: ainda que da prova contabilística tivesse resultado a existência de saídas de dinheiro do caixa da sociedade – ainda que esse “facto” estivesse vertido na contabilidade da Autora, que nunca esteve até 2004/2006 (data das inexistentes deliberações) – à Autora caberia sempre a prova de que as alegadas saídas de dinheiro tinham sido realizadas pela Senhora DD a título de empréstimo.

Nestes termos, deverá ser o presente recurso de revista julgado totalmente procedente, por provado, devendo, como tal, ser o Acórdão de Relação ... revogado e substituído por outro que julgue a ação totalmente improcedente, por não provado o direito alegado pela Autora, fazendo-se a necessária

JUSTIÇA!!


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Contra-alegou o EXTERNATO O LAR DA CRIANÇA, LDA., Autora/Recorrida, respondendo às suscitadas nulidades e bem assim no que tange à matéria de direito, concluindo pela improcedência dos recursos de revista apresentados com a consequente manutenção do acórdão da Relação.

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Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

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II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

Considerando que o objecto do recurso (o “thema decidendum”) é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações[1], sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, atento o estatuído nas disposições conjugadas dos artigos 663º nº 2, 608º nº 2, 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPC), as questões a decidir são:


A. REVISTA(s) INTERPOSTA(s) PELO RÉU AA

- Nulidades do (novo) acórdão (de 08.07.2021), por: 1. Excesso de pronúncia; 2. Oposição/contradição entre os próprios fundamentos do acórdão e entre os fundamentos e a decisão; 3. ausência de fundamentação factual que suporte a decisão; 4. Ausência dos fundamentos de direito.

- Impugnação da decisão da matéria de facto: se o ponto 11 dos factos considerados provados (anterior facto b)) deve ser julgado como não provado, por ocorrência de violação das regras de direito probatório.

3.ª – Se não houve aceitação pelos réus do facto que na confissão da Autora lhe é (à Autora) favorável e desfavorável aos Réus (“que as deliberações a que os recibos respeitam destinaram-se a regularizar contabilisticamente as dívidas daquela para com a sociedade”).

4ª – Se não cabia ao réu a prova do facto 11 (que no anterior ac. da Relação constituía a al. b) dos factos não provados - que assim igualmente constava da sentença).

5ª – Se não tem aqui aplicação o princípio da indivisibilidade da confissão, por não se poder verificar qualquer “prova plena” de um facto que foi dado como não provado, e, sendo assim, se foi violado o artº 360º do CC.

6ª- Se os deliberados mútuos são nulos por falta de objecto e se, como tal, de nada valem os pretensos recibos de quitação (a confissão de dívida ali plasmada).

7ª – Se os deliberados mútuos são simulados e, também por isso, a “confissão de dívida” constante dos “recibos” assinados pela DD nada prova.  

8ª – Se os 1º e 2º RR são terceiros em relação a tal simulação das “confissões de dívida” e, sendo-o, se tais “confissões de dívida” não podem ser invocadas como prova plena contra eles.

9ª- Se os recibos de quitação passados pela DD não podem provar ou reportar-se a uma realidade diferente de que neles é relatada – ou seja, se a força probatória de tais documentos (recibos) tem de se circunscrever no âmbito das declarações que neles constam como feitos pelo respectivo subscritor, tendo o tribunal recorrido, feito errada interpretação e aplicação do artº 376º do CC.

10ª – Se, caso os “recibos de quitação” assinados pela DD se reportem a empréstimos diferentes dos mencionados nas “actas” neles aludidas, incumbe ao credor (à Autora) provar que na base deles esteve a efectiva entrega àquela mutuária de tais quantias pecuniárias.

11ª – Se, atento o referido nas anteriores questões, não se aplicam ao presente caso o n.º 2 do artigo 358.º e o n.º 1 e 2 do artigo 376.º, ambos do Código Civil.


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B. REVISTA INTERPOSTA PELA RÉ BB

1ª - Dos Vícios atinentes à nova fundamentação de facto (constante do ac. de 08.07.2021):

nulidade, por ocorrer ambiguidade ou obscuridade que tornam a decisão sobre a matéria de facto ininteligível e contraditória com a decisão (art. 615.º, n.º 1, al. c), do CPC);

insuficiência da fundamentação de facto, por não permitirem a compreensão global da matéria de facto em apreciação (art. 615.º, n.º 1, al. b), do CPC);

abusiva utilização de presunções judiciais, por manifesta ilogicidade das conclusões estabelecidas, bem como errónea avaliação das regras do ónus da prova e de inversão do ónus da prova previstas nos arts. 342.º e 344.º, ambos do CC - a impor que o ponto 11 dos factos considerados provados (anterior facto b)) deva ser julgado como não provado.

2ª.    Se não tem aplicação ao caso dos autos do regime do artigo 360.º do Código Civil;

3ª. Inexistência da indivisibilidade da confissão;

4ª.    Inexistência de confissão de dívida por parte da DD, por aplicação do regime do artigo 354.º, alínea c), do Código Civil;

5ª.   Nulidade dos mútuos reportados pelas actas de 10.11.2004 e de 30.11.2006, não podendo o tribunal a quo ter concluído que os Recorridos teriam de devolver à Recorrida, ao abrigo do disposto no artigo 289.º, n.º 1, do Código Civil, qualquer quantia.

6ª.   Se os recibos assinados pela BB não valem como confissão de dívida.

- Se não tem sentido a invocação do artº 414º do C.P.C.

- Da inexistência de contrato de mútuo, com a consequente inaplicabilidade das regras dos artsº 286º e 289º do CC.

- Da inaplicabilidade do instituto do enriquecimento sem causa.

10ª. Se a Autora, ao vir prevalecer-se dos recibos assinados pela BB, actua em abuso de direito.


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III – FUNDAMENTAÇÃO

III. 1. MATÉRIA DE FACTO PROVADA E NÃO PROVADA

Após a prolação do 2º Ac. da Relação (de 08.07.2021 - na sequência da decisão do STJ que determinou a baixa dos autos à Relação para sanar as contradições ali apontadas), a Relação fixou assim a factualidade provada e não provada:

A. Factualidade provada

1. No dia ... de Outubro de 2011, faleceu, na freguesia ..., concelho de ..., DD, no estado de viúva, natural da freguesia ..., concelho de ..., com última residência habitual na Rua..., ..., ..., ..., ....

2. A falecida foi casada, no regime da separação de bens, com FF, pré-falecido.

3. Os RR. são filhos de DD e de FF.

4. A falecida deixou testamento nos termos que constam do documento junto de fls. 12v a 14, testamento esse do qual consta:

“(…) Nomeia testamenteiro o Senhor GG, (…) para os fins previstos na alínea b) do artigo 2326º do Código Civil e ainda para os demais especificamente referidos (…)

Nomeia igualmente testamenteira, mas para os fins previstos na alínea a) e c) do artigo 2326º do C. Civil, que ao primeiro não competirão, a sua filha CC, sem retribuição (…)”.

5. Por Procedimento Simplificado de Habilitação de Herdeiros lavrado em 15 de Dezembro de 2011, na Conservatória do Registo Civil ..., foram habilitados como herdeiros de DD os RR., que aceitaram a herança da mesma.

6. A Autora tem como objecto a exploração de um colégio com externato.

7. Consta da Ata Número Vinte da sociedade Autora:

“Aos oito dias do mês de Novembro de dois mil e quatro, pelas nove horas, reuniu a Assembleia Geral, em sessão extraordinária, da sociedade comercial por quotas Externato O Lar da Criança, Lda, (…) com a seguinte ordem de trabalhos:

Empréstimo à sócia DD Estiveram presentes nesta sessão os sócios DD com uma quota de nove mil e trezentos euros, FF, com uma quota de quinhentos euros e CC com uma quota de duzentos euros, representando assim a totalidade do capital social.

Depois de discutido e deliberado o assunto constante da ordem de trabalhos, foi deliberado por unanimidade a sociedade conceder um empréstimo no valor de cento e doze mil euros à sócia DD.

Mais foi deliberado que este empréstimo não vence quaisquer juros. Foi ainda deliberado por unanimidade que o reembolso deste empréstimo será efetuado, se for possível, quando houver distribuição de resultados (…)”

8. Consta da Ata Número Vinte e seis da sociedade A.:

“Aos dezasseis dias do mês de Novembro de dois mil e seis, pelas nove horas, reuniu a Assembleia Geral, em sessão extraordinária, da sociedade comercial por quotas Externato O Lar da Criança, Lda, (…) com a seguinte ordem de trabalhos:

Empréstimo à sócia DD Estiveram presentes nesta sessão os sócios CC, com duas quotas, uma de valor nominal de € 17.000,00 (dezassete mil euros) e outra de € 200,00 (duzentos euros) e DD com uma quota de € 9.300,00 (nove mil e trezentos euros), representando noventa e oito por cento do capital social.

Depois de discutido e analisado o assunto constante da ordem de trabalhos, foi deliberado por unanimidade a sociedade conceder um empréstimo, no valor de € 40.000,00 (quarenta mil euros), à sócia DD.

Mais foi deliberado que este empréstimo não vence quaisquer juros e que o seu reembolso será efetuado quando a referida sócia tenha disponibilidade para o fazer (…)

9 - DD apôs pelo seu punho a sua assinatura no documento 10 junto com a petição inicial, intitulado «Recibo» datado de 10 de Novembro de 2004, em que está escrito:

«Recebi do Externato O Lar da Criança, Lda, (…), como empréstimo, a quantia de € 112.000,00 (Cento e doze mil euros), de acordo com o deliberado na Acta nº ...20, de 8/11/2004».

10 - DD apôs pelo seu punho a sua assinatura no documento 11 junto com a petição inicial, intitulado «Recibo», datado de 30 de Novembro de 2006, em que está escrito:

«Recebi do Externato O Lar da Criança, Lda, (…), como empréstimo, a quantia de € 40.000,00 (quarenta mil euros), de acordo com o deliberado na Acta nº ...20, de 8/11/2004».

11 - Ao longo dos anos em que DD geriu a autora, foi retirando para uso pessoal quantias do caixa da sociedade que ascenderam a 152.000 € e que não repôs, e a forma que os sócios encontraram para fazer a regularização contabilística dessas saídas de dinheiro foi fazer a formalização sob a veste de empréstimos, exarando em actas as deliberações referidas nos pontos 7 e 8, tendo sido também com esse propósito que foram emitidos e assinados os recibos referidos em 9 e 10. (novo ponto 11)[2].

B. Factualidade não provada[3]

a) - Que a autora tivesse entregado a DD em 10 de Novembro de 2004 a quantia de 112.000 €, sem prejuízo do que consta no ponto 11.

b) - Que a autora tivesse entregado a DD em 30 de Novembro de 2006 a quantia de 40.000 €, sem prejuízo do que consta no ponto 11.


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III. 2. DO MÉRITO DA REVISTA

Analisemos, então, as questões suscitadas na revista.


A. REVISTA INTERPOSTA PELO RÉU AA


Diga-se, antes de mais que o Supremo Tribunal de Justiça, por regra, apenas conhece da matéria de direito (682º, nº 2).
Assim, desde logo, não pode sindicar o erro na apreciação das provas e fixação dos factos materiais da causa, ou seja, censurar o não uso pela Relação dos poderes que lhe são conferidos pelo artº 662º/1 CPC, salvo nos termos do artº 674º/3 (havendo ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova)[4]. 

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  1ª QUESTÃO - DAS ARGUIDAS NULIDADES DO (novo) ACÓRDÃO


· Do excesso de pronúncia

Sustentam os recorrentes que a Relação, no seu novo acórdão (na sequência da decisão do STJ, que mandou baixar os autos para serem sanadas as ali apontadas contradições), não só não deu satisfação ao que foi determinado pelo Supremo, como, ainda, se pronunciou sobre matéria que extravasava da determinação daquele aresto do Supremo.

Com efeito, no anterior acórdão que proferimos, foi decidido: “Face ao exposto, acorda-se em (nos termos do artº 682º, 3, fine, do CC) determinar que os autos baixem ao tribunal recorrido a fim de serem sanadas todas as (supra apontadas) contradições na decisão sobre a matéria de facto (as quais, a manter-se, inviabilizam a decisão jurídica deste pleito)”.

E nesse mesmo acórdão, deixámos dito que, designadamente: «Dizer-se, v.g., que (facto provado) a Senhora DD apôs pelo seu punho a sua assinatura nos documentos “recibos” juntos na Petição Inicial como Docs. 10 e 11 para daí, sem mais, concluir pela prova dos empréstimos a que ali se refere, parece algo confuso ou contraditório, atento tudo o já aqui referido, salientando-se que – repete-se  -  o recebimento dos empréstimos nas condições que ali vêm aludidas são, afinal, os que constam do facto (cit.al. b) que a Relação deu como...não provado!

Há, assim, que clarificar se, afinal, a DD recebeu, ou não, dinheiro da A., quanto e em que circunstâncias, com enfoque para os empréstimos a que se alude na al. a) dos factos dados na sentença como não provados mas que a Relação veio a eliminar dos factos não provados (embora sem dizer se estava…provado), depois de afirmar o seu contrário.».

Ou seja, o facto de se referir que a nova actividade da Relação deveria ter particular “enfoque para os empréstimos a que se alude na al. a) dos factos dados na sentença como não provados mas que a Relação veio a eliminar dos factos não provados”, não quer dizer que estivesse amarrada à apreciação da matéria da dita al. a) dos factos dados na sentença como não provados (“Que a Autora tivesse entregue a DD as quantias de € 112.000,00 e de € 40.000,00 referidas, respetivamente, em 7 e 8 dos factos provados”).

O que ali foi determinado é que as apontadas contradições fossem sanadas. Embora, em boa verdade, tal actividade da Relação devesse incidir essencialmente sobre a matéria daquela al. a), pois quanto à al, b) dos factos dados na sentença como não provados (“Que, ao longo dos anos em que a falecida DD geriu a Autora, aquela procedesse, com regularidade e até 2006, a levantamentos e/ou utilização de montantes existentes na caixa da sociedade para uso pessoal, que só parcialmente reembolsou, faltando reembolsar a quantia de € 135.762,63”), tal matéria para a Relação, como o anterior acórdão explicou, era pacífica, pois, para além do mais que no acórdão se escreveu a propósito, ali se referiu expressamente que “quanto à alínea b), inexiste confissão, pelo que se decide manter como não provada essa factualidade”, o que acompanhou com a firme convicção de que tudo era fictício (conforme refere o Ac. do STJ), pois “evidencia-se a falta de fiabilidade da contabilidade da apelante e que o ROC fez conjecturas para encontrar explicação para as saídas de valores do caixa da sociedade com base no que lhe foi transmitido”.

A contradição apontada ao ac. da Relação estava, assim, essencialmente na al. a), pois que se, por um lado, a Relação afirmara ali que “Os recibos assinados pela sócia contendo a declaração de que recebeu da sociedade as quantias ali indicadas como empréstimo de acordo com as deliberações dos sócios constituem declarações confessórias de dívida com força probatória plena.”, logo ali escreveu o oposto dessa afirmação!
Ou seja, o mesmo Tribunal, no mesmo Acórdão, referiu, simultaneamente, o oposto, ao afirmar - o que a própria Autora confessa nos autos – : “Além disso, aquelas deliberações não espelham a realidade, pois é a própria sociedade que esclarece que nenhuma quantia foi entregue à sócia gerente na sequência e em execução delas. (…)”. Mais acrescentando que “É incontroverso que em 10/11/2004 e 30/11/2006 não foram entregues à sócia gerente as quantias de 112.000 e 40.000 €.”.

Ora, apesar das afirmações manifestamente contraditórias, designadamente e em especial quanto à matéria daquela al. a) dos factos não provados na sentença (“Que a Autora tivesse entregue a DD as quantias de € 112.000,00 e de € 40.000,00 referidas, respetivamente, em 7 e 8 dos factos provados”), a Relação veio a eliminar tal al. da relação dos factos não provados, sem dizer mais.  Ou seja, não disse se tal factualidade estava provada (se transitava para os factos provados!) – embora, em coerência com o que a Relação escreveu no Ac, com sustento na prova abundante que os autos ostentam e que ali refere, não se vislumbre outra resposta que não seja a manutenção de não provada da matéria daquela al. a)!

Ou seja, não é que se esteja perante qualquer excesso de pronúncia. Está-se, sim, perante erro de apreciação da matéria de facto, como melhor à frente se verá – no que tange à matéria da al. b) dos factos não provados na sentença e que a Relação, agora, entendeu (num volte-face um tanto surpreendente), veio dar como provada, passando a constituir o ponto 11 dos factos provados. Mal. porém, pois o fez com violação das regras de direito probatório, como se verá.


· Da oposição/contradição entre os fundamentos do acórdão e entre os fundamentos e a decisão

Vê aqui o Recorrente a nulidade ínsita na al. c) do nº 1 do artº 615º do CPC.

Porém, o que ali se prevê não é a contradição entre fundamentos, mas, sim, a oposição entre os fundamentos e a decisão.

Ora, tal oposição não se vislumbra. O que se vislumbra, sim, é a errada apreciação da prova (no que tange à matéria das als. a) e b) que a sentença considerara como não provadas, em particular no que se refere à al. b) que a Relação veio dar como provada, alterando o que havia decidido no anterior seu Acórdão - porém, como dito, erradamente, pois só em violação das regras de direito probatório chegou a  esse resultado, como ao adiante se verá).

Ou seja, a fundamentação vertida na sentença, maxime a fundamentação de facto (com especial enfoque para o aditamento do ponto 11 dos factos provados, em oposição do que havia antes sido decidido pelos mesmos Senhores Desembargadores) não está propriamente em contradição com o decidido, pois a decisão de revogação da sentença teve na base essencialmente aquele (novo) ponto 11, por via dele fazendo a Relação (estranho, diga-se em verdade) enquadramento jurídico na figura do mútuo.

O certo é que, aí, estamos no domínio de direito, da apreciação ou subsunção jurídica dos factos que ao julgador é livre fazer. O que nada tem a ver com a aqui suscitada nulidade da contradição entre os fundamentos e a decisão.

Convenhamos que na explanação feita no acórdão recorrido, maxime quanto à matéria factual, há algumas contradições e ambiguidades.

Com efeito, o Tribunal recorrido serve-se dos “recibos” assinados pela BB (neles apôs pelo seu punho a sua assinatura - Docs 10 e 11) para dar como provados os empréstimos, quando na fundamentação afirmara, de forma clara e inequívoca, que as deliberações referidas em tais “recibos” não espelham a realidade e que “é incontroverso que em 10.11.2004 e 30.11.2006 não foram entregues à sócia gerente as quantias de 112.000€ e 40.000€”.

Da mesma forma se não percebe como é que o mero facto de se dar como provado que a mesma Senhora apôs pelo seu punho a sua assinatura nos recibos permite à Relação concluir que se provaram os factos que constavam da anterior al. b) dos factos não provados (agora passando a constituir o pnto 11 dos factos...provados)

Não pode dizer-se que as declarações contidas nos recibos são confissões de dívida que fazem prova plena, pois o Tribunal a quo confirmou que a falecida BB não recebeu tais quantias em virtude das deliberações – e igualmente se pode dizer não estar assente que a falecida BB tenha recebido as referias quantias em virtude dos vários levantamentos ocorridos até 2006, pois que se o Tribunal a quo deu como não provado tal facto, também o não considerou...provado, sendo que, como já dito, é ostensiva a prova (v.g. relatório do ROC) de que tal factualidade, de facto, se não terá provado.

Assim, como já dissemos no anterior acórdão, se vê que o tribunal a quo lavra em certas contradições na explanação da sua argumentação factual.

Porém, repete-se, não cremos que tais contradições ou “confusões” consubstanciem a suscitada “nulidade da sentença” por “contradição entre a fundamentação e a decisão” (artº 615º, nº 1, al. c), 1ª parte, do CPC).

O que há, sim, é um erro na apreciação/valoração e na conjugação dos factos (provados e não provados), tendo sido com base nessa, algo confusa, sua leitura ou interpretação que o tribunal recorrido chegou à decisão proferida. Maxime, deu o tribunal recorrido uma força probatória incorrecta aos recibos assinados pela DD Melo (ou seja, uma força plena que não têm) e bem assim considerou como provada matéria que havia considerado como não provada, julgando nessa base ou pressupostos.

Ou seja, afinal o que temos é a inexactidão ou incorrecta leitura dos fundamentos de facto de uma decisão, mas que mais não configura do que erro de julgamento.

Uma sentença (decisão judicial) é nula quando os fundamentos invocados devessem, logicamente, conduzir a uma decisão diferente da que essa sentença expressa. Porém, cremos ser pacífico que a inexactidão dos fundamentos de uma decisão configura erro de julgamento e não uma contradição entre os fundamentos e a decisão[5].
Deve, pois, distinguir-se a nulidade da sentença do erro de julgamento.

O que os Recorrentes põem em causa – com ou sem razão, ver-se-á – é a apreciação/consideração feita pelo Acórdão da Relação relativamente à matéria factual que (cremos erradamente) considerou provada (o referido ponto 11 dos factos provados) e, outrossim, à subsequente interpretação do direito.

Porém, perante a análise factual e jurídica feita na decisão recorrida, não cremos poder-se dizer ou concluir que a mesma se mostra incoerente com os fundamentos que explana, antes é corolário da fundamentação (porém, incorrecta, como dito) de facto e de direito que ali se consigna. Se a decisão está certa ou errada, é outra questão, mas que nada tem a ver com a arguida nulidade da sentença por contradição entre os fundamentos e a decisão.

Em causa estará, portanto – e parece estar mesmo – , um erro de apreciação, que pode ser considerado e alterado no presente recurso, mas já não a referenciada nulidade da decisão recorrida.

Não se verifica, portanto, a arguida nulidade da decisão recorrida.


· Da ausência de fundamentação factual que suporte a decisão

Como dito e redito, parece claro que a fundamentação factual vertida na decisão recorrida é algo confusa e, como visto, até por vezes incorrendo em algumas contradições, como apontámos no anterior acórdão que lavrámos.

Efectivamente, não se percebe, por exemplo, por que razão se elimina a al. a) dos factos dados na sentença como não provados (qual seja, “a) Que a Autora tivesse entregado a DD as quantias de 112.000,00 e de 40.000,00 referidas, respectivamente, em 7 e 8 dos factos provados”) quando se afirma no mesmo acórdão que “Além disso, aquelas deliberações não espelham a realidade”, por (acrescenta) ser “incontroverso” que as quantias referidas nessas mesmas deliberações não foram entregues à sócia gerente, não se tendo verificado a traditio da quantia alegadamente mutuada  (precisamente, portanto, as deliberações e mútuos a que se refere o facto daquela al. a))!

Já agora, deve anotar-se que também se não percebe que se refira no acórdão a eliminação da al. a) dos factos não provados sem que se decida levá-la aos factos…provados. É que a não prova não significa (necessariamente) a prova do seu contrário. Pelo que sobre a matéria desse facto, em termos de efeito prático, nada se altera ao vertido na 1ª instância no que tange à factualidade provada para aqui relevante.

Mas, como já dito, não vislumbramos que tal “atitude” do tribunal recorrido consubstancie uma nulidade da sentença.

O mesmo se diga a propósito da alegada ausência de fundamentação factual que suporte a decisão – o que, diga-se, se não verifica.

Matéria factual há. E foi com base nela que a decisão foi tomada. Se a apreciação e valoração probatória feita pelo tribunal recorrido e bem assim a consequente decisão de mérito foram, ou não, acertadas, é questão que nada tem que ver com a pretensa nulidade de sentença.

O tribunal a quo limitou-se a considerar – de forma algo contraditória, é verdade – , como vimos, que os documentos intitulados de “recibo” eram confissões de dívida da falecida BB, resultantes do recebimento, por esta, da sociedade autora, das quantias neles aludidas, ali denominados “como empréstimo” (assim mesmo rezam tais documentos – 10 e 11 juntos com a p.i.). E com base nisso, e sem mais, entendendo que tais empréstimos são nulos por vício de forma, “rematou” pela obrigação de restituição de tais quantias com sustento no artº 289º/1 do CC.

Em suma, o que temos nestas pretensas “nulidades” (do acórdão) mais não é, afinal, do que divergências na consideração e apreciação da matéria de facto e outrossim da subsunção jurídica que o tribunal a quo operou.

Sem embargo do que dissemos supra acerca dos poderes do STJ em matéria de facto, o certo é que o referido não consubstancia qualquer das apontadas nulidades, maxime a ausência de fundamentação que suporte a decisão. É que, desde logo, e como é pacífico, a falta de motivação a que alude o art. 615º n.º 1 al. b) do CPC (anterior art. 668º n.º 1 al. b)), cominada com a sanção de nulidade da sentença, é a total omissão dos fundamentos de facto ou de direito. Uma especificação dessa matéria apenas incorrecta, incompleta ou deficiente não afecta o valor legal da sentença[6].

Ou seja, estamos aqui no âmbito do eventual erro de julgamento, que não perante ausência de matéria de facto. Esta, bem ou mal apreciada e elencada, existe: foram expostos todos os factos que se considerou provados e não provados e com base neles foi proferida a decisão de direito. Se bem ou mal, nada tem a ver com a apontada nulidade do acórdão.

Assim improcede esta questão.


· Da ausência de fundamentação de direito

É obvio que tal não ocorre.

O Ac. da Relação fez a sua apreciação de direito – aliás, foi precisamente depois de suscitada tal pretensa causa de nulidade do acórdão que a Relação, em 08.07.2021, em novo acórdão, lavrado em conferência (de 02.12.2021) veio fazer a apreciação jurídica da causa, subsumindo os factos tidos como provados ao direito que entendeu pertinente.

Portanto, fundamentação de direito existe. Se correcta ou desacertada, é matéria que tem a ver com a apreciação do mérito da decisão de direito.

E já agora, diga-se que, naturalmente, o Ac. da Relação de 08.07.2021 manteve a al. “E O Direito” do acórdão de 19.11.2020 – sob pena de, a não ser assim, se ficar sem a apreciação de direito do caso.


· 2ª QUESTÃO - DA IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO: se o ponto 11 dos factos considerados provados (anterior facto b) dos não provados) deve ser julgado não provado, por ocorrência de violação das regras de direito probatório

Os poderes do STJ, em sede de apreciação/alteração da matéria de facto, são muito restritos. Em regra, ao Supremo Tribunal de Justiça apenas está cometida a reapreciação de questões de direito (art. 682º, nº 1, do NCPC), assim se distinguindo das instâncias encarregadas também da delimitação da matéria de facto e modificabilidade da decisão sobre tal matéria.

Esta restrição, porém, não é absoluta, como decorre da remissão que o nº 2 do art. 682º faz para o art. 674º, nº 3, do NCPC, norma que atribui ao Supremo a competência para sindicar o desrespeito de lei no que concerne à violação de norma expressa que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.

Como refere o STJ no Ac. de 30.09.2009[7], “II - Cabem dentro dos poderes próprios que o STJ possui em matéria de facto as situações que integram a violação do direito probatório material, uma vez que as mesmas se reconduzem à violação de normas de direito substantivo, sendo ainda permitido ao STJ corrigir as omissões de julgamento e as obscuridades resultantes de contradições insanáveis na matéria de facto, que impeçam a aplicação do regime jurídico adequado, pelo que a fiscalização probatória do STJ está limitada à prova legal ou vinculada, isto é, aos meios de prova que tenham força probatória plena”[8].

Cremos que a Relação, ao dar como provado o ponto 11 da relação dos factos provados, incorreu em violação de regras de direito probatório. Estão em causa questões de direito - mesmo que relativas à prova dos factos provados ou não provados.

Vejamos.

O ponto 11 dos factos provados, assim considerado pela Relação - cremos, aliás, que andou mal, pois o que estava em causa nas apontadas contradições apontadas no anterior acórdão do STJ era, essencialmente, a al. a) da factualidade dada como não provada pela 1ª instância e que a Relação, decidira eliminar - tem o seguinte teor:

“11 - Ao longo dos anos em que DD geriu a autora, foi retirando para uso pessoal quantias do caixa da sociedade que ascenderam a 152.000 € e não repôs, e a forma que os sócios encontraram para fazer a regularização contabilística dessas saídas de dinheiro foi formalizar sob a veste de empréstimos essas saídas de dinheiro, exarando em actas as deliberações referidas nos pontos 7 e 8, tendo sido também com esse propósito que foram emitidos e assinados os recibos referidos em 9 e 10”.

Ora, desde logo - o que, diga-se, é salientado por ambos os recorrentes - , o teor deste ponto 11 parece consubstanciar, não um verdadeiro facto, mas, sim, uma conclusão.

Como observa o recorrente AA, com este parágrafo “o Tribunal a quo não só daria como provado que houve levantamentos do caixa da sociedade, mas também que estes levantamentos foram regularizados por vontade dos sócios através de determinadas deliberações e que os recibos de quitação assinadas pela Senhora DD tinham como propósito também a referida regularização da dívida – com este facto o Tribunal da Relação, sem mais, pretende decidir e fundamentara decisão.

Encerrou toda a decisão – thema decidendum – naquele facto!”

Ora, tal está fora dos poderes do Tribunal a quo, pois se a Relação tem poderes para modificar a decisão da matéria de facto, já não pode formular juízos conclusivos que encerram o próprio thema decidendum, pelo que, ao fazê-lo, cremos ter incorrido em violação dos poderes que o artº 662º do CPC lhe confere.

O que, porém, se nos afigura ainda mais grave, é que ficou mais que assente no anterior acórdão da Relação que a factualidade contida neste ponto 11 (correspondente à anterior al. b) dos factos … não provados) não se provara. Para a Relação chegar a tal conclusão, trouxe à liça a imensa prova (testemunhal e documental) que os autos então ostentavam e ostentam (dessa forma, ali mantendo a decisão de facto da 1ª instância).

Com efeito, na anterior decisão, a propósito dessa mesma matéria - nisto sendo corroborado pela decisão do Supremo -, deixou-se claro que se estava perante uma nítida “falta de fiabilidade da contabilidade da apelante e que o ROC fez conjecturas para encontrar explicação para as saídas de valores do caixa da sociedade com base no que lhe foi transmitido”. Também ali se deixando claro que quanto a tal matéria inexiste confissão, pelo que se decide manter como não provada essa factualidade”.

E veja-se que (o que é assaz curioso) neste novo acórdão a Relação, precisamente para fundamentar essa resposta positiva àquele ponto 11, reitera o que já havia dito no anterior acórdão, isto é, reafirma a ausência de prova (testemunhal e documental) que permitisse provar a apontada matéria factual.

Que assim é, basta atentar no seguinte excerto da fundamentação de facto ali vertida:

Mas nenhum “vale de caixa” foi junto aos autos e nem a apelante deu justificação para não o fazer;

Além disso, na petição inicial não são discriminadas as quantias que alegadamente foram sendo retiradas ao longo dos anos até 2006.

Repare-se ainda que a testemunha EE, que se identificou como TOC certificado e disse ter sido contabilista da sociedade durante mais  de 30 anos até meados do ano de 2018 referiu-se a “vales de caixa”, mas não esclareceu que destino lhes foi dado nem qual era o saldo do caixa quando conversou com a sócia gerente sobre a necessidade de regularizar a situação contabilisticamente concluindo esta testemunha no relatório por si elaborado que “Não existia, antes de 2004, uma conta corrente em nome da sócia BB que reflectisse as retiradas que efectuava”;

Deste «relatório» evidencia-se a falta de fiabilidade da contabilidade da apelante e que o ROC fez conjecturas para encontrar explicação para as saídas de valores do caixa da sociedade com base no que lhe foi transmitido;

Em suma, dos documentos invocados pela apelante não resulta evidente que a sócia gerente retirou do caixa para fins pessoais quantias que totalizaram de 152.000 ”.

Assim se vê que esta fundamentação, em substância, nem é diferente da que se havia feito constar do anterior Acórdão da Relação (de 19.11.2020). Bem pelo contrário, é substancialmente idêntica[9].

Ora, se a Relação considerou, naquele primeiro aresto - com ampla e sedimentada fundamentação - que não foi feita qualquer prova de que as quantias em causa foram retiradas da caixa nos termos e no montante em apreço (€ 152.000,00), sendo o próprio acórdão da Relação a reportar a falta de fiabilidade da contabilidade da Autora e a reconhecer que o ROC fez meras conjecturas para encontrar explicação para as saídas de valor do caixa da sociedade, como é que vem neste segundo acórdão (numa inversão de 180 graus, mas sem respaldo na prova que os autos ostentam, como havia feito ver naquele primeiro e, aliás, …igualmente resulta da fundamentação neste vertida para dar como provado aquele ponto11) dar o “dito por não dito”, dando provada tal factualidade, antes dada como não provada?

Mas curioso é o “raciocínio” da Relação para justificar tal inversão radical de posição:

Fundamenta, assim, o Acórdão a resposta positiva àquele ponto 11:

«- Ora, os empréstimos de dinheiro da apelante à sócia gerente não são factos impossíveis de acontecerem. Nem são factos notoriamente inexistentes, pois factos notórios são aqueles que são do conhecimento geral (cfr art. 412º nº 1 do Código de Processo Civil) enão é do conhecimento geral quea apelante não emprestou dinheiro à sócia gerente. Também as retiradas de dinheiro da sociedade pela sócia gerente para utilização pessoal, ficando assim devedora, não são factos impossíveis de terem ocorrido. Nem são factos notoriamente inexistentes, pois não é do conhecimento geral que não foram praticados. Assim, não é de concluir com base no art. 354º al. c) do CC que as confissões de dívida contidas naqueles recibos não fazem prova das dívidas de DD, contra esta e contra os seus sucessores ora apelados. Por seu lado, os apelados não fizeram prova de que não são verdadeiras as descritas circunstâncias em que foram tomadas as deliberações e assinados os recibos.

(…)

Como se evidencia destas referências aos depoimentos destas testemunhas, não permitem os mesmos formar a convicção de que nas datas das deliberações e dos recibos a sócia gerente não era devedora da sociedade por ter utilizado dinheiros desta num total de 152.000 € (…)

E lembremos que o art. 414º do CPC prevê que a dúvida sobre a realidade de um facto resolve-se contra a parte a quem aproveita»[10].

Convenhamos que é um tanto estranha tal “argumentação”: que “os empréstimos de dinheiro da apelante à sócia gerente não são factos impossíveis de acontecerem”, ou que “também as retiradas de dinheiro da sociedade pela sócia gerente para utilização pessoal, ficando assim devedora, não são factos impossíveis de terem ocorrido”.

Bom…, em boa verdade, nada é impossível. Mas não será seguramente por o facto não ser impossível de ter acontecido que…se vai dar o mesmo como assente!

Ou seja, o acórdão recorrido dá como provado o facto contido no aludido ponto o 11 apenas porque, tendo supostamente ocorrido saídas de caixa não documentadas, essa seria a conclusão a estabelecer pela circunstância de não ser impossível que o montante de € 152.000,00 tivesse sido retirado pela sócia gerente para uso pessoal.

Estranho, de facto!

Estamos perante um mau uso das presunções judiciais, em oposição ao que vem sendo sustentado por este Supremo Tribunal, como pode ver-se na sua jurisprudência, que se tem consolidado, citada por ABRANTES GERALDES[11].

Assim, por exemplo:

Ac. do STJ de 18/05/2017, 20/14: da conjugação do disposto nos arts. 682.º e 674.º, n.º 3, do CPC, com os arts. 349.º e 351.º do CC retira-se que o Supremo pode exercer o controlo sobre a construção ou desconstrução das presunções judiciais, utilizadas pelas instâncias, sindicando se a utilização das mesmas violou alguma norma legal, se carecem de coerência lógica ou, ainda, se falta o facto base, ou seja se o facto conhecido não está provado.

Ac. do STJ de 02/02/2016, (CJ, t. I, p. 118): o Supremo pode verificar se as ilações extraídas pela Relação exorbitam do âmbito dos factos provados ou deturpam o sentido normal daqueles.

Ac. do STJ, de 20/05/2015, 752/04: a censura do STJ ao julgamento da matéria de facto ocorre em duas situações: uma, decorrente de juízo negatório, por insuficiência ou deficiência da compreensão global da necessidade de formação de um quadro completo e suficiente para apreciar e dirimir a questão de direito que prevalece para o veredicto; outra, quando seja alegada a utilização, ou errada utilização, de determinados meios de prova, a saber nos casos em que tenha havido “ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe força de determinado meio de prova”.

Assim, portanto, a Relação fez um mau uso da presunção estabelecida nos apontados factos que reputou como assentes para chegar à conclusão que verteu no novo ponto 11 dos factos provados, dessa forma ofendendo a mais elementar lógica e violando as regras do ónus da prova e da inversão do ónus da prova consagradas nos arts. 342.º e344.º, ambos do CC.

Com efeito, era sobre a Autora que incidia o ónus da prova de que, efectivamente, a sócia gerente retirara, no período em referência, a quantia de € 152.000,00 da caixa para seu uso pessoal. Não podendo a Relação, simplesmente, dar como assente esta factualidade a partir de uma presunção que se viu ser ostensivamente insubsistente e ilógica.

E, obviamente, não pode a Relação chamar à colação os recibos que a BB assinou para sustentar a prova daquela facto. É que, como já fora dito e redito no anterior acórdão da Relação, esses recibos não correspondem à realidade, pois assente ficou que nenhum empréstimo fora feito pela Autora à BB, pelo que não pode considerar-se que os mesmos recibos consubstanciem uma confissão do que…está assente não ter existido!


*

Por outro lado, a Relação chama, também, agora, à colação o artº 414º do CPC, para lograr chegar à prova da factualidade ínsita naquele ponto 11.

Mas mal, porém.

Efectivamente (e como bem acentua a recorrente BB), não faz qualquer sentido a invocação do art. 414.º do CPC: primeiro, porque não se está perante qualquer dúvida que deva ser resolvida contra a parte a quem se aproveita, mas sim perante uma situação em que não foi feita prova minimamente suficiente do que se pretende dar como estabelecido; segundo, porque, a existir dúvida, ela teria sempre que ser resolvida contra a Autora que é a parte a quem aproveita o pretenso facto em pauta.

Ora, se assim é - como é, na verdade - , não pode deixar de se dar razão ao recorrente AA quando refere que “No entanto, por mor de um engenhoso raciocínio jurídico, respaldado em várias normas do direito substantivo, e mesmo sem acreditar na realidade plasmada no “facto”b), veio agora – numa “segunda instância” – o Tribunal da Relação ... dar como provado o facto 11. (anterior facto b))[12].

Assim se vê que o Tribunal a quo extravasou, de facto, os seus poderes, visto que, primeiro, apenas tem poderes para alterar a matéria defacto, e já não para formular juízos conclusivos que encerram o próprio thema decidendum, assim violando o artigo 662.° do CPC; depois, fez mau uso das presunções, nos sobreditos termos.


*

Desta forma, impõe-se alterar as respostas, quer ao ponto 11 dos factos provados (o tal “facto” - que o parece ser mas, afinal, não o é, pois é antes uma conclusão) que a Relação, dando o “dito por não dito”, veio a considerar provado, quer à factualidade que a mesma Relação agora veio considerar que não se provou - factualidade esta que, correspondem, no essencial, ao que na sentença já constava da al. a) dos factos ali dados como não provados e que a Relação, simplesmente, …eliminara mas nada mais acrescentando sobre o “destino” de tal matéria.

Correspondem “no essencial”, dizemos, pois que a Relação aditou-lhes a expressão “sem prejuízo do que consta no ponto 11”.

Assim, quanto à impugnação da matéria de facto, temos que:

    •  Quanto ao aludido ponto 11, a justificação para que deva ser considerado como não provado é a que acima se deixou;
    •  Quanto à factualidade dada no acórdão recorrido como não provada (- “que a autora tivesse entregado a DD em 10 de Novembro de 2004 a quantia de 112.000 €, sem prejuízo do que consta no ponto 11” e “que a autora tivesse entregado a DD em 30 de Novembro de 2006 a quantia de 40.000 €, sem prejuízo do que consta no ponto 11.”), a justificação para a decisão ora tomada está bem patente na prova carreada aos autos - mencionada supra, e, diga-se em verdade, referida expressamente em ambos os acórdãos da Relação! - , prova essa que só pode conduzir a uma conclusão: que a autora não entregou, em 10.11.2004 e 30.11.2006, à sua sócia gerente (a DD), as quantias, respectivamente, de 112.000 € e 40.000 €, nos termos constantes dos recibos por si subscritos.
Insiste-se que, efectivamente, isso mesmo está, ampla e expressamente assumido no acórdão recorrido, quer na primitiva versão, quer no aresto de 08/07/2021:
“É assim incontroverso, pois foi alegado na petição inicial e reiterado na alegação recursiva, que em 10/11/2004 e 30/11/2006 a apelante não entregou à sócia gerente as quantias de 112.000 e 40.000 €.”.

Atento o exposto, decide-se alterar as respostas à matéria de facto, nos seguintes termos:
1. A matéria do ponto 11 dos factos considerados provados pelo último acórdão da Relação (o ora recorrido) passa a considerar-se não provada (assim se mantendo o que já estava mais que assente no anterior acórdão da Relação - que neste ponto confirmara a 1ª instância);
2. É eliminado, in totum, a factualidade que a Relação agora (sob a rubrica “DDD)”) considera que não se provou, considerando-se provado quea autora não entregou, em 10.11.2004 e 30.11.2006, à sua sócia gerente (a DD), as quantias, respectivamente, de 112.000 € e 40.000 €, nos termos constantes dos recibos por si subscritos.”.


***

Eliminado/anulado que foi o facto 11 da relação dos factos provados, bem se poderá dizer que em boa medida - se não mesmo em toda a medida - , a apreciação das questões que seguem seria desnecessária, porque estaria prejudicada. É que o cerne da contenda está precisamente na factualidade ínsita naquele ponto 11 - em conjugação com o mais que aqui se decidiu quanto à impugnação da matéria de facto (ou seja, que passa considerar-se provado quea autora não entregou, em 10.11.2004 e 30.11.2006, à sua sócia gerente (a DD), as quantias, respectivamente, de 112.000 € e 40.000 €, nos termos constantes dos recibos por si subscritos.”).

Porém, dada a natureza e para que dúvidas não subsistam acerca dum possível reflexo de tais matérias no mérito dos autos (v.g.: a questão do valor probatório dos recibos…; do ónus da prova…; nulidade dos pretensos mútuos por falta de objecto…; se mútuos são simulados e se, havendo simulação, os 1º e 2º RR podem ser considerados terceiros em relação à tal simulação das “confissões de dívida”…; da invocação do artº 414º do C.P.C….; da inaplicabilidade do instituto do enriquecimento sem causa…; do alegado abuso de direito por banda da Autora - instituto, diga-se, de conhecimento oficioso…), porque recorrentes e recorrida se debateram sobre tais aspectos nas peças que produziram nas (duas) revistas que interpuseram, com claras divergências e, outrossim, dado o interesse jurídico que a apreciação de tais questões sempre tem e bem assim para que dúvidas não subsistam sobre o nosso entendimento a acerca dessas mesmas questões (ou, se quisermos, subquestões), delas se tomará conhecimento nos termos que seguem.


*

· 3ª QUESTÃO: Se os Réus não aceitaram o facto que na confissão da Autora lhe (a esta) é favorável e desfavorável àqueles (“que as deliberações a que os recibos respeitam destinaram-se a regularizar contabilisticamente as dívidas daquela para com a sociedade”).

Obviamente que têm razão os RR/Recorrentes.

Diz a Autora/Recorrida que estamos perante uma confissão judicial complexa: por um lado, temos a parte da confissão pela A. que lhe é desfavorável, qual seja, de que não houve qualquer empréstimo ou fluxo financeiro da Autora para a DD respeitante às deliberações de 2004 e 2006 e respetivos recibos por ela assinados com declaração do recebimento dos valores nas actas indicados; por outro lado, a parte da confissão pela A. que lhe é favorável, qual seja, a justificação do alegado recebimento de dinheiro (empréstimos da A.) pela DD, mas noutra(s) altura(s),  ou seja, que, afinal, “as deliberações a que os recibos respeitam destinaram-se a regularizar contabilisticamente as dívidas daquela para com a sociedade”.

Sendo assim – como a Recorrida entende ter sido – , os aludidos RR terão aceitado essa confissão no seu todo, ao abrigo do estatuído no artº 360º do CC (indivisibilidade da confissão), dessa forma ficando vinculados e assim ficando justificados os “recibos” assinados pela DD.

Não vemos a mais pequena razão à Autora/Recorrida, no que alega sobre o ponto ora em análise. E, tão simplesmente, porque, não apenas não consta dos autos qualquer elemento factual demonstrativo da ocorrência da aceitação pelos RR daquele facto para eles “desfavorável”, como a questão ficou “arrumada” quando a Relação decidiu no primeiro acórdão - e agora confirmado neste aresto do Supremo - manter como “não provada” a matéria ínsita na al. b) dos factos (correspondente ao ponto11 dos factos que o ac. recorrido considerara como provado mas que ora se fez reingressar aos factos não provados) que a sentença considerara não provados: precisamente a factualidade a que respeita o referido facto “desfavorável” (as alegadas anteriores dívidas da Autora)[13]!

Como pode pretender dar-se como “confessado” um facto que foi dado na sentença da 1ª instância (e assim manteve a Relação no anterior acórdão e que ora se confirma) como…não provado?

Qual a relevância dessa “confissão”, na economia (mérito) da demanda? Nenhuma: não se pode “confessar” o que, simplesmente, não existe!

No presente caso está-se, sem dúvida, a lidar com uma confissão[14] e complexa. Nas palavras de VAZ SERRA, verifica-se tal confissão quando o confitente confessa o facto, sem alterações, mas afirma outro facto que poderia servir de fundamento a uma excepção ou a uma reconvenção a seu favor[15]. Assim também, v.g., M. BRITO[16] e MANUEL DE ANDRADE[17].

Não olvidamos o que reza o artº 360º do CC: “Se a declaração confessória, judicial ou extrajudicial, for acompanhada da narração de outros factos ou circunstâncias tendentes a infirmar a eficácia do facto confessado ou a modificar ou extinguir os seus efeitos, a parte que dela quiser aproveitar-se como prova plena tem de aceitar também como verdadeiros os outros factos ou circunstâncias, salvo se provar a sua inexactidão[18].

Ressalta deste normativo que o princípio da indivisibilidade da confissão tem o alcance de colocar a parte contrária perante a alternativa de aceitar na íntegra o que o confitente afirmou ou de fazer a prova do que, por seu lado, havia alegado, princípio esse que, em última análise, é a expressão fiel das regras reguladoras da repartição do ónus da prova[19].

Ou seja, sendo a confissão o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável (art. 352.º)[20], é sempre indivisível (seja  uma confissão qualificada, seja uma confissão complexa[21]), e daí que quem dela se pretenda servir tenha de aceitar na sua plenitude ou integralidade o que lhe é favorável e o que lhe é desfavorável, a não ser que logre fazer a prova  da inexactidão da factualidade que lhe é desfavorável.

Temos aqui, então, uma inversão do ónus da prova quanto à parte favorável ao confitente[22], de modo que se quem pretender beneficiar da confissão não fizer a prova da inexactidão dos factos que lhe são desfavoráveis, tem de arcar com a consequência de ter de aceitar a confissão na íntegra.

Assim, portanto, aquele art. 360.º respeita à declaração confessória complexa, pelo que fazendo parte da confissão os factos favoráveis e os desfavoráveis, a contraparte que pretenda servir-se da parte da declaração que lhe é favorável deve igualmente aceitar a realidade dos factos que lhe são desfavoráveis[23]-[24]-[25].

Porém, como já ressalta do supra referido, a questão da inversão do ónus da prova acaba por ser aqui uma questão inócua, uma “falsa questão”, sem qualquer interesse. E pela simples razão de que foi o próprio tribunal recorrido a considerar (aqui reiterando o decidido em 1ª instância) que tal factualidade (a tal matéria “desfavorável” aos RR) está não provada.

Ou seja, deixam os réus/Recorrentes de ter de fazer a prova do facto contido na confissão complexa que lhes é desfavorável. É que a tal inexactidão” da factualidade “desfavorável” aos RR (referida no cit artº 360º) foi, afinal, tida como ponto assente nos autos. Logo, nada mais têm os RR de provar para beneficiarem da confissão da Autora relativamente ao facto que lhes é favorável (a inexistência dos empréstimos a que aludem os recibos assinados pela DD Melo).

Sempre se acrescente, porém, que se não vislumbra nos autos qualquer indício, sequer, minimamente consistente, no sentido da alegada (pela Autora) confissão dos RR dessa factualidade para eles “desfavorável”. Antes sempre os RR negaram o contrário (razão, aliás, da presente acção, pois no inventário que esteve na génese desta demanda não aceitaram as relacionadas dívidas da falecida DD à aqui Autora, “obrigando” esta a recorrer à presente demanda para peticionar o reconhecimento pelos RR a putativa dívida).

Aliás, sempre se aditará que as exigências de forma da pretensa aceitação da confissão pelos RR igualmente levariam à sua não verificação, pois que, como reza o Ac. do STJ de 16.06.2018 (a propósito da forma como deve ter lugar a aceitação da confissão da contraparte) “a contraparte tem que fazer menção concreta, individualizada, do facto que aceita, não bastando, para esse efeito, aceitação genérica” (…) “A aceitação tem de ser expressa, tem que ser feita conhecer no processo, pois que somente o que é expresso é que pode possuir especificação” (…)”.

Ora, em lugar algum dos autos se encontra – nem, sequer, se indicia – uma declaração expressa, clara, dos RR no sentido de que aceitaram a aludida factualidade alegada pela Autora e que lhes é desfavorável. O que ressalta à evidência dos autos é que essa factualidade não apenas foi negada pelos RR, como a documentação a ele junta isso mesmo igualmente confirma[26].

Se tivessem sido provados os aludidos fluxos financeiros da Autora para a DD, então, sim, incumbiria aos RR – para não se verem “onerados” com tal matéria “desfavorável” – fazer a prova de que a “beneficiária” desses “fluxos” nada ficou a dever à Autora em decorrência dos mesmos. Ou seja, para que os RR não se vissem prejudicados com as consequências advindas da confissão da parte favorável ao confitente (a Autora – parte desfavorável essa que tinham de aceitar por força da indivisibilidade da confissão, ut cit artº 360º CC), tinham de provar que ela não era verdadeira[27]. Porém, resulta dos autos não terem ocorrido tais “fluxos financeiros” (assim ressalta, desde logo – e decisivamente – da não prova da matéria da al. b) da relação dos factos dados como não provados, ora reiterada), donde não se almejar a necessidade prática, útil, de se falar aqui, sequer, em inversão do ónus da prova, a incidir, então, sobre os RR. Percute-se: não faz qualquer sentido falar em necessidade de prova (pelos RR) da inexistência ou inverdade dum facto alegado quando ambas as instâncias já o consideraram inexistente para a economia dos autos, porque por ambas as instâncias foi considerado não provado!

Assim sendo, não acarreta para a Recorrente qualquer benefício trazer à colação o disposto no artº 360º do CC (indivisibilidade da confissão), na medida em que se não pode falar em prova plena relativamente a factualidade que, repete-se, está dada como não provada. E, obviamente, não incumbe agora ao STJ (quer porque não foi impugnada tal matéria factual, quer porque, como vimos supra, extravasa dos poderes deste Supremo Tribunal) conhecer da matéria de facto, desde logo porque não está em causa qualquer das situações apontadas acima em que pudesse neste domínio intervir - salvo, é claro, havendo errado uso pela Relação das presunções judiciais (o que, de facto, ocorreu relativamente ao aludido ponto 11, como acima ficou dito, dessa forma se revertendo a factualidade ínsita nesse ponto 11 para o elenco dos factos…não provados, como assente estava no anterior Ac. da Relação).


· 4ª     QUESTÃO (se não cabia ao réu a prova do facto 11 - que no anterior ac. da Relação constituía a al. b) dos factos não provados e que assim igualmente constava da sentença) e 5ª QUESTÃO (se não tem aqui aplicação o princípio da indivisibilidade da confissão, por não se poder verificar qualquer “prova plena” de um facto que foi dado como não provado, e se assim foi violado o artº 360º do CC).

A apreciação de tais questões, obviamente, já consta do que ficou dito (eventualmente complementado com o que mais se dirá), nada mais se nos afigurando acrescentar.


· 5ª QUESTÃO: Se não tem aplicação ao caso dos autos o regime do artigo 360.º do Código Civil – Da inexistência da indivisibilidade da confissão no caso dos autos – Da inexistência de confissão de dívida por parte da DD, por aplicação do regime do artigo 354.º, alínea c), do Código Civil.

Em causa, portanto, a indivisibilidade da declaração confessória feita pela Autora.

O acórdão recorrido, entendendo que os RR se não podiam aproveitar da confissão feita pela Autora de que os factos a que se referem as actas e os recibos juntos e a elas reportados (ou seja, os empréstimos e subsequentes entregas de dinheiro ali mencionados) não se concretizaram, considerou que tais empréstimos se efectuaram e, como tal, e sem mais, condenou os RR.

Ora, como já supra ficou dito, está mais que assente nos autos, quer por expressa confissão da Autora, quer, designadamente, do relatório do ROC junto, que a DD Melo não recebeu, de facto, os montantes a que se reportam tais recibos.

Aliás, como já supra ficou dito, nunca podia o tribunal dar como provada a acção com sustento na indivisibilidade da declaração confessória – como acabou por fazer – , porque essa indivisibilidade da confissão sempre estaria arredada, uma vez que foi dado como não provado o facto (que o tribunal diz estar confessado e desfavorável aos RR) aludido na al. b) dos factos não provados (qual seja, a alegada origem da suposta dívida da DD Melo - não prova que aqui se mantem). Pelo que, percute-se, não faz qualquer sentido chamar à colação o artº 360º do CC para, por via da indivisibilidade da declaração confessória, procurar dar como provado facto (pretensamente integrado nessa mesma confissão) que os autos (ambas as instâncias) já deram como não provado!

É que, como acima ficou dito, reconhecendo o credor (a Autora) que os recibos respeitam, não aos empréstimos neles e nas actas neles referidos, mas a outros empréstimos ou levantamentos de caixa feitos pela DD Melo, então sobre aquele incidiria o ónus da prova de que na base de tais recibos esteve os referidos movimentos ou fluxos de caixa, anteriores aos ditos recibos. E tal não logrou a Autora provar – aliás, independentemente de quem quer que o tribunal tenha entendido ter esse ónus da prova, o certo é que (no anterior acórdão e que ora se corrobora) considerou não provada tal factualidade.

Assim, nunca podia o tribunal recorrido condenar – como condenou – os RR. com alegação de que os recibos juntos aos autos, assinados pelo punho da DD Melo, são, por si só, confissões de dívida, fazendo prova plena da putativa dívida neles referida, na medida em que, simplesmente, os mesmos não fazem tal prova. E pela simples razão de que é a própria confitente (a Autora) a “confessar” que os empréstimos referidos nesses mesmos recibos não tiveram lugar – o que, igualmente, é reconhecido pela Relação.

E o artº 354º, alínea c) do CC é claro, ao prescrever que “se o facto confessado for…notoriamente inexistente”, a confissão não faz prova contra o confitente”[28].

Acresce, como também supra ficou dito, que as declarações que os recibos consubstanciam não servem para fazer prova de factos que delas extravasam, ou seja, factos estranhos ao que “rezam” tais documentos particulares.


· 6ª QUESTÃO: se os deliberados mútuos são nulos por falta de objecto e, sendo-o, de nada valem os pretensos recibos de quitação

Que os mútuos, a terem existido, eram nulos, parece evidente, dada a necessidade de forma legal para os mesmos (à data da deliberação de 08/11/2004 o contrato de mútuo de valor superior a 20.000 € só era válido se fosse celebrado por escritura pública - art. 1143º na redacção do DL 343/98 de 06/11; da mesma forma, à data da deliberação de 16/11/2006 o contrato de mútuo de valor superior a 25.000 € só era válido se fosse celebrado por escritura pública – cit. art. 1143, agora na redacção do DL 116/.2008, de 04/07) e as consequências para a inobservância da forma legal (nulidade do contrato de mútuo, que é de conhecimento oficioso – arts. 219º, 220º e 286º do CC).

O contrato de mútuo vem definido no art. 1142.º do CC, como aquele “(…) pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade”.
Segundo a anotação ao artigo 1142.º por Pires de Lima e Antunes Varela [29], este é um contrato real, na medida em que só se completa com a entrega da coisa mutuada.
Cremos, porém, que esta concepção está em regressão, pois não haverá dificuldades – tal como ocorre com o depósito – em admitir, ao lado do mútuo típico real, mútuos meramente consensuais.
Como quer que seja, é sustentado pela Doutrina - ver, designadamente, FERNANDO BAPTISTA DE OLIVEIRA[30] - que o mútuo é um contrato real quod constitutionem, significando isto que, para a sua perfeição, não basta o acordo das vontades, sendo necessário um acto posterior a este: a entrega da coisa mutuada.
Celebrado o contrato e entregue a coisa ao mutuário, torna‑se este proprietário da mesma — artigo 1144.º [31].  Já no comodato, sucede o inverso: a propriedade nunca deixa a esfera do comodante.
Assim, o mutuário fica, essencialmente, adstrito a [32]:
- Pagar a retribuição — os juros — quando, a ela, haja lugar;
- Restituir o tantundem, isto é, coisa do mesmo género, quantidade e qualidade.

Ora, acontece, porém, que não se provou que a “coisa” tivesse sido mutuada (os alegados empréstimos) confissão, aliás, como vimos, inequívoca da própria Autora e que o Tribunal da Relação ... corrobora de forma expressa e clara, ao afirmar que: “Além disso, aquelas deliberações não espelham a realidade, pois é a própria sociedade que esclarece que nenhuma quantia foi entregue à sócia gerente na sequência e em execução delas”; e, ainda, que “É incontroverso que em 10/11/2004 e 30/11/2006 não foram entregues à sócia gerente as quantias de 112.000 e 40.000 €.[33].

Não tendo sido entregues os montantes aludidos nos “recibos” em causa, é claro que o pretenso contrato de mútuo é nulo por falta de objecto, nos termos do art. 280º do CC.

Neste sentido, veja-se o Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 13.2.2007[34]Sendo o contrato de mútuo um contrato real quod constitutionem, isto é, um contrato que só se completa com a entrega da coisa, e não tendo havido qualquer entrega, então tal "contrato" é nulo por falta de objecto, nos termos do art. 280º do CC.

No mesmo sentido o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 25.11.2013[35]: “Sendo o contrato de mútuo, um contrato real, determinando, neste sentido, que só se completa pela entrega da coisa, temos de admitir que na falta de entrega desta, ocorrerá, necessariamente, a nulidade do contrato de mútuo por falta de objecto nos termos do artº. 280º, do Código Civil, pois, apesar do que foi escrito na respectiva escritura, não ocorreu, nem na data da sua celebração, nem antes nem depois, a entrega de qualquer quantia pecuniária, devendo reconhecer-se, outrossim, que por tal motivo, ocorrerá a extinção da prestada garantia hipotecária”.

E nem sequer se provou, aliás, a entrega dos valores que vinham aludidos na parte da declaração confessória da Autora que lhe era favorável (que os supostos contratos de mútuo mais não foram que uma operação de regularização contabilística) – qual seja, a factualidade vertida na al. b) dos factos não provados na sentença e que o anterior ac. da Relação confirmara (não prova que aqui se confirmou). O que sempre, para a pretendida procedência da causa, seria irrelevante na medida em que – como melhor abaixo se verá – os recibos, que serviram de sustento à decisão condenatória do tribunal recorrido, não podem fazer prova (plena) de uma realidade a eles alheia ou seja, de “empréstimos” ou pagamentos que nada têm a ver com o que nos mesmos recibos é referido.

É certo que o Tribunal da Relação deu como provado que a DD “apôs pelo seu punho a sua assinatura” nos documentos “recibos” juntos na Petição Inicial como Doc. 10 e 11. Mas apenas isso. O que nada prova sobre a efectiva entrega dos “empréstimos” a que se referem tais “recibos”.

Ou seja, parece evidente que o facto de a Relação ter dado como provado a aposição de tais assinaturas não pode ter – nem tem – o efeito de, por si só, se considerar provado que os putativos empréstimos/recebimentos tenham ocorrido e muito menos nas condições ou circunstâncias que, de todo, extravasam do plasmado em tais recibos, quais sejam as referidas no facto constante da alínea b) da factualidade dada como não provada na sentença e no anterior acórdão da Relação e que aqui se reiterou. Tal conclusão de forma alguma corresponde, ou podia corresponder, à letra da declaração plasmada em tais “recibos”.

Dito de outra forma, os recibos de quitação não provam coisa alguma relativamente a eventuais entregas de dinheiro à sua subscritora, quer no que respeita aos empréstimos a que se reportam as actas neles referidas, quer (muito menos) quanto a outros empréstimos (fluxos ou movimentos de caixa..) eventualmente ocorridos em datas anteriores.

O mesmo é dizer que a força probatória de tais “recibos” – documentos particulares – não pode extravasar do âmbito das declarações que nos mesmos constam como feitas pela sua subscritora.

Assim, v.g., o Ac. do STJ de 09.12.2008: “A força probatória do documento particular circunscreve-se no âmbito das declarações (de ciência ou de vontade) que nele constam como feitas pelo respectivo subscritor[36] – o que está em sintonia com o disposto no artº 376º do CC.

Assim sendo, a resposta à questão ora sob análise não pode deixar de ser positiva: os deliberados mútuos são nulos por falta de objecto (artº 280º do CC), na medida em que ficou provado que tais mútuos a que se reportam (a entrega à mutuária dos respectivos montantes) não existiram. O que faz cair por terra a putativa confissão de dívida plasmada nos ditos “recibos”, estes que, portanto, nenhum valor probatório, ou utilidade, têm quanto ao que aqui se discute: a efectiva existência de empréstimos à DD.

Como muito menos prova fazem (não fazem nenhuma, na verdade) quanto aos alegados levantamentos e/ou utilização de montantes existentes na caixa da A. pela DD para seu uso pessoal – explicação (não provada) que a A. procurou, ingloriamente, dar para justificar o peticionado.

Bem a propósito, disse o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.01.2012[37]: “…Reconhecido pelo credor, nos articulados, que certa escritura, aparentemente constitutiva de um mútuo, continha afinal um mero acto recognitivo das dívidas emergentes de anteriores e informais empréstimos, consubstanciados em documentos particulares juntos e logo impugnados pela contraparte - e que serão, desde logo, nulos na medida em que não hajam respeitado as exigências de forma impostas pelo art.1143º do CC incumbe-lhe fazer prova da autoria e genuinidade de tais documentos e de que na base deles esteve a efectiva entrega ao mutuário das quantias pecuniárias neles mencionadas[38].

Ora, repete-se: tal prova não foi feita (pela Autora/pretensa credora), vindo, ao invés, a ser considerado na sentença e no anterior acórdão da Relação que sobre ela incidiu, e outrossim por esta decisão do Supremo, que tal factualidade se não provou (al. b) dos factos naquelas instâncias considerados não provados).

Daqui que nada tenham os RR/Recorrentes que pagar à Autora, relativamente ao peticionado – assim procedendo esta questão.


· 7ª e 8ª QUESTÕES: se os deliberados mútuos são simulados e, também por isso, a “confissão de dívida” constante dos “recibos” assinados pela DD nada prova. E se, havendo simulação, os 1º e 2º RR podem ser considerados terceiros em relação a tal simulação das “confissões de dívida”, não podendo, por isso, estas ser invocadas como prova plena contra eles.

Tais questões já haviam sido suscitadas, designadamente, na apelação, pelo aqui Recorrente AA (cfr. pp 21-23 das suas alegações).

Vejamos.

Assente está que os “recibos” assinados pela DD (docs. 10 e 11 da p.i.) não são verdadeiros, no sentido de que o que ali se diz não corresponde à verdade dos factos, pois que, como vimos, é o próprio Acórdão da Relação a reconhecer que os mesmos “recibos” não espelham a realidade, esclarecendo a própria Autora que nenhuma quantia foi entregue à sua aludida sócia-gerente na sequência e em execução das deliberações que conduziram ou motivaram a elaboração desses mesmos recibos.

Mas daí até se concluir que houve simulação negocial, vai uma grande diferença.

Vejamos.


Dispõe o art. 240.º, do Código Civil, que (1.) se, por acordo entre declarante e declaratário, e no intuito de enganar terceiros, houver divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante, o negócio diz-se simulado. (2.) O negócio simulado é nulo.
Assim, por simulação entende-se o acordo entre o declarante e o declaratário, no sentido de celebrarem um negócio que não corresponde à sua vontade real e no intuito de enganarem terceiros.
Esta norma tem em vista caracterizar um vício negocial que assenta na intencionalidade da divergência entre a vontade e a declaração, traduzida na consciência, por parte do declarante, de que emite uma declaração que não corresponde à sua vontade real: o mesmo não só sabe que a declaração emitida é diversa da sua vontade real, mas quer ainda emiti-la nestes termos.
Esta noção é correspondente à dada por Manuel de Andrade [39] e aceite pela generalidade da Doutrina [40].
Estamos perante uma divergência entre a vontade e a declaração que é livre [41], querida e propositadamente realizada tanto da parte do declarante como do declaratário.

Trata-se, como tal, de uma operação complexa que postula três acordos: um acordo simulatório, um acordo dissimulado e um acordo simulado.  O acordo simulatório visa a montagem da operação e dá corpo à intenção de enganar terceira.  O acordo dissimulado exprime a vontade real de ambas as partes e visa: ou o negócio verdadeiramente pretendido por elas ou um puro e simples retirar de efeitos ao negócio simulado.  Por último, o acordo simulado traduz a aparência do contrato, destinado a enganar a comunidade jurídica[42].

Tais requisitos, coevos da formação do contrato — acordo simulatório; propósito de enganar terceiros; divergência intencional entre a declaração de a vontade do declarante [43] — devem ser invocados e provados por quem pretenda prevalecer-se da simulação ou de aspectos do seu regime[44].  O que está em sintonia com as regras de repartição do ónus da prova, pois trata-se de requisitos constitutivos do direito invocado.

Dito isto, não vemos que estejam preenchidos todos os aludidos requisitos da simulação. O que ressalta à evidência na medida em que falta o requisito do intuito de enganar terceiros.
Com efeito, desde logo, desconhece-se se o intuito da elaboração dos recibos foi prejudicar os herdeiros da declarante DD (de entre os quais, os RR/Recorrentes), de forma a que vissem “esvasiada” a sua legítima por via da obrigação de pagamento das putativas dívidas, ou se apenas se visou regularizar contabilisticamente os anteriores fluxos de dinheiro decorrentes de levantamentos feitos pela mesma pessoa, alegadamente, em seu benefício pessoal.
Dada a não prova da factualidade vertida na referida al. b) dos factos não provados, correspondente ao ponto 11 que o ac. recorrido dera como provado mas cuja resposta foi aqui “revertida”, e a mera prova de que a dita Senhora apôs a sua assinatura em tais recibos, não podemos concluir sobre o real objectivo dos recibos.

Aliás, sempre se poderia questionar se os RR/Recorrentes – herdeiros da simuladora DD Melo – podem ser considerados terceiros, para efeitos de se aproveitarem da simulação para defesa dos seus direitos decorrentes da herança.
Cremos que podem. O que está em sintonia com o entendimento já vertido em Jurisprudência[45]. Dessa forma, os herdeiros de um simulador têm legitimidade para arguir a nulidade da simulação, maxime quando os mesmos pretendem exercer um direito próprio, um direito que não pode ser coarctado pela excepção do art. 243.º.  É que esta é uma concretização do princípio da boa fé negocial e visa apenas limitar o direito de quem declarou uma determinada vontade e não de quem, embora tenha sucedido na titularidade do seu património, exerce um direito distinto, violado pelos simuladores.

Por outro lado, de acordo com o artº 242.º do Código Civil, a nulidade da simulação “pode também ser invocada pelos herdeiros legitimários que pretendam agir em vida do autor da sucessão contra os negócios por ele simuladamente feitos com o intuito de os prejudicar.”.

Assim, como bem diz o Ac. do Supremo Tribuna de Justiça de 04.05.2010[46], Isto significa que, mesmo após a abertura da herança, têm, obviamente, os herdeiros legitimários, legitimidade para invocar a nulidade de negócios simulados que se traduzam em prejuízo da respectiva legítima, ainda que não com esse intuito. (…) Observa Carvalho Fernandes: (…) Mas não é de excluir, embora seja corrente colocar os herdeiros na mesma posição do simulador, poderem eles ser tratados como terceiros, enquanto visam satisfazer interesses específicos da sua posição de herdeiros que seriam afectados pela subsistência da simulação, particularmente sendo essa a situação dos herdeiros legitimários quando está em causa a defesa da sua legítima”.

No entanto, como dito, não estando provado o requisito do intuito de enganar os (terceiros) 1º e 2º RR (embora, diga-se em verdade, haja nos autos alguns indícios de que terá sido essa a intenção da falecida inventariada DD), não vale a pena avançar mais nesta questão, a qual, como tal, terá de improceder.

Sempre se acrescente que, mesmo a considerar terceiros os 1.º e 2.ª Réus, em relação ao aludido, hipotético, pacto “simulatório” referente às putativas “confissões de dívida”, essas mesmas “confissões de dívida” nunca poderiam ser invocadas como provas plenas pelo Tribunal a quo, uma vez que a prova plena só pode ser invocada pelo declaratário contra o declarante.

Assim, v.g., o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13.7.2004[47]: “I - O documento particular, ainda que reconhecida a sua autoria, pode ser invocado como prova plena pelo declaratário contra o declarante. II - Nas relações com terceiros a declaração constante do documento particular, apenas vale como elemento de prova a apreciar livremente pelo tribunal.”.

E, como dito, não é, sequer, preciso recorrer ao conceito ou princípio de “livre apreciação pelo tribunal” para se chegar à conclusão de que tais recibos não fazem prova plena (nos termos do artº 358º/2 do CC) relativamente aos Réus Recorrentes. E, simplesmente, porque, como ex abundantia ficou dito, está mais que assente nos autos (repete-se, desde logo por expressa e inequívoca confissão da Autora) que os empréstimos a que se referem os acionados “recibos” não ocorreram.


· 9ª QUESTÃO: se os recibos de quitação passados pela DD não podem provar ou reportar-se a uma realidade diferente de que neles é relatada.

Aqui, o que se pretende saber é se a força probatória de tais documentos (recibos) se circunscreve no âmbito das declarações que neles constam como feitos pela respectiva subscritora. É que se assim for entendido, então é claro que o tribunal recorrido fez errada interpretação e aplicação do artº 376º do CC.

O Acórdão recorrido considerou, sem mais, que pelo simples facto de a DD ter aposto a sua assinatura nos ditos “papéis” – documentos particulares – , tal era bastante para se fazer a prova plena do que neles é dito (não obstante a clara oposição dos RR, claramente vertida nas suas contestações – e a confissão da própria Autora de que o que tais recibos mencionam não corresponde à realidade, por os  empréstimos de dinheiro neles referidos não se terem concretizado).

Obviamente que tal prova não pode, de todo, considerar-se feita, pois está assente nos autos (desde logo (repete-se) por confissão da Autora) que as quantias aludidas nesses recibos não foram entregues à aludida Senhora. O que poderia, eventualmente, ter ocorrido – mas não foi provado (cfr. al. b) dos factos não provados) – era essa Senhora ter recebido da Autora quantias várias em momento anterior e a Autora pretender regularizar essa situação, em termos contabilísticos, recorrendo ao expediente da emissão de tais recibos. Mas, repete-se, tal não se provou.

Os recibos de quitação passados pela DD – que, como dito, não provam, sequer, a realidade neles aludida – , não podiam, assim, nunca, ter uma eficácia probatória para além da  realidade factual que neles consta.

É certo que reza o n.º 1 do artigo 376.º do Código Civil que “o documento particular cuja autoria seja reconhecida nos termos dos artigos antecedentes faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento”. Dispondo, por sua vez, o n.º 2 que os factos compreendidos na declaração consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante”.

Isto é, apenas se consideram provados os factos prejudiciais que estejam “compreendidos na declaração” atribuída ao seu autor, neste caso, à DD. Ora, o que está compreendido na “declaração” (leia-se, nos citados recibos) é, apenas e só, que a mesma ali declarou ser devedora da Autora, por desta ter recebido de empréstimo as quantias ali referenciadas, na sequência das deliberações da Assembleia Geral da Autora, constantes das actas mencionadas nos mesmos recibos (recebimento este, como dito, que não ocorreu).

Ora, não figura,   das referidas declarações que a falecida BB seja devedora perante a Autora, de quaisquer quantias decorrentes de eventuais levantamentos que tenha feito do caixa da sociedade até ao ano de 2006. Quanto a isso, não há confissão – o que é dito pelo próprio Tribunal da Relação (ao referir que nesse ponto “inexiste confissão…”).

Portanto, os ditos recibos não podiam fazer prova duma realidade diferente da que neles consta. É que – como já se referiu – “A força probatória do documento particular circunscreve-se no âmbito das declarações (de ciência ou de vontade) que nela constam como feitas pelo respectivo subscritor[48]. Nada mais.

Diga-se, apenas, ainda, que a interpretação da declaração negocial de tais documentos (recibos ou quitações), no contexto de todo o alegado e documentado, não levava a outro entendimento.
É certo que o Código não se pronuncia sobre o problema de saber quais as circunstâncias atendíveis para a interpretação da declaração negocial. Porém, quanto ao problema do tipo do sentido negocial decisivo para a interpretação, também aqui se deverá operar com a hipótese dum declaratário normal: serão atendíveis todos os coeficientes ou elementos que um declaratário medianamente instruído, diligente e sagaz, na posição do declaratário efectivo, teria tomado em conta. E a título exemplificativo, Manuel de Andrade [49] refere «os termos do negócio; os interesses que nele estão em jogo (e a consideração de qual seja o seu mais razoável tratamento); a finalidade prosseguida pelo declarante; as negociações prévias; as precedentes relações negociais entre as partes; os hábitos do declarante (de linguagem ou outros); os usos da prática, em matéria terminológica, ou de outra natureza que possa interessar, devendo prevalecer sobre os usos gerais ou especiais (próprios de certos meios ou profissões), etc.  Ao lado destas circunstâncias, referidas a título de exemplo, podem assinalar-se outras, designadamente «os modos de conduta por que, posteriormente, se prestou observância ao negócio concluído».
Ora, se atendermos às finalidade prosseguida pela declarante, “negociações” prévias (naturalmente havidas - maxime sobre movimentações de dinheiros da Autora), precedentes relações negociais entre as partes (Autora e a DD Melo – afinal, ela e a Autora praticamente se confundiam…), facilmente se chegará à mesma conclusão a que, afinal, chegou o Tribunal recorrido e que a Autora veio a confessar: os recibos não corresponderam ao que neles vem referido, em concreto não titulando empréstimos efectivos à referida Senhora, nada mais se sabendo sobre o que (e se) possam, eventualmente, “suportar”.

Em suma, os recibos de quitação passados pela DD não provam, nem podem provar, uma realidade alheia ao seu teor – desta forma procedendo esta questão suscitada no recurso.


· 10ª QUESTÃO: Caso os “recibos de quitação” assinados pela DD se reportassem a empréstimos diferentes dos mencionados nas “actas” neles aludidas, incumbia ao credor (à Autora) provar que na base deles esteve a efectiva entrega àquela mutuária de tais quantias pecuniárias?


Esta questão acaba por ficar prejudicada face ao respondido à antecedente questão:  os recibos de quitação passados pela DD não provam, nem fazem prova de uma realidade alheia ao seu teor, alheia a tais declarações (em concreto, prova de empréstimos ou fluxos de dinheiro da caixa da Autora, muito anteriores aos ditos recibos, ou o que quer que seja).

Sempre se acrescentando que, como dito e redito, ficou não provado (na sentença e no anterior Ac. da Relação) o facto contido na al. b) da relação dos factos nessas instâncias dados como não provados (não prova que aqui se repôs por via da decisão supra operada na impugnação da decisão da matéria de facto ínsita no Ac. recorrido que (como visto, numa estranha reviravolta e com não menos estranha fundamentação) veio, afinal, a dar como provado o citado ponto 11).

Daqui, portanto, deixando de ter interesse a questão do ónus da prova de que os mesmos recibos teriam servido para “regularizar”, contabilisticamente, outros empréstimos ou fluxos de dinheiro, anteriormente feitos pela A. à mesma Senhora.


· 11ª QUESTÃO: se, atento o referido nas anteriores questões, não se aplicam ao presente caso o n.º 2 do artigo 358.º nem o n.º 1 e 2 do artigo 376.º ambos do Código Civil.

Sobre esta questão, a resposta já ficou dada, não carecendo de maiores explicações.


***


B. REVISTA INTERPOSTA PELA RÉ BB


· DOS VÍCIOS ATINENTES À NOVA FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO (constante do Ac. de 08.07.2021):


o Quanto às alegadas ambiguidades ou obscuridade que tornam a decisão sobre a matéria de facto ininteligível e contraditória com a decisão e insuficiência da fundamentação de facto, por não permitirem a compreensão global da matéria de facto em apreciação, cremos que já ficou respondido aquando da pronúncia sobre as nulidades arguidas pelo Réu AA, o que aqui, nesse segmento, se reproduz.


o Da abusiva utilização de presunções judiciais, por manifesta ilogicidade das conclusões estabelecidas, bem como errónea avaliação das regras do ónus da prova e de inversão do ónus da prova previstas nos arts. 342.º e 344.º, ambos do CC - a impor que o ponto 11 dos factos considerados provados (anterior facto b)) deva ser julgado como não provado.

Já acima nos pronunciámos sobre esta questão, a propósito da apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto pelo Recorrente AA, ali se tendo considerado que o ponto 11 dos factos considerados provados (anterior facto b)) devia (e deve) ser julgado como não provado, por ocorrência de violação das regras de direito probatório.

Como ali observámos, é um tanto estranha a “argumentação” vertida no acórdão recorrido – que, com a alegação de que “os empréstimos de dinheiro da apelante à sócia gerente não são factos impossíveis de acontecerem”, ou que “também as retiradas de dinheiro da sociedade pela sócia gerente para utilização pessoal, ficando assim devedora, não são factos impossíveis de terem ocorrido”, sem mais e de “rajada”, deu como provada a actualidade do (novo) facto 11.

É que - dissemos supra -, não será, seguramente, (só) porque não é impossível que tenha ocorrido determinado facto que se vai concluir ... que aconteceu mesmo (dando-se, por isso, como assente).

Isto é, não pode aceitar-se que o acórdão recorrido desse como provado o facto contido naquele ponto o 11 apenas porque, tendo supostamente ocorrido saídas de caixa não documentadas, essa seria a conclusão a estabelecer pela circunstância de não ser impossível que o montante de € 152.000,00 tivesse sido retirado pela sócia gerente para uso pessoal!

Raciocínio estranho, de facto.

Assim, portanto, dissemos supra e ora reiteramos que, ao assim proceder para dar como provado aquele ponto 11, a Relação fez um mau uso das presunções judiciais, em oposição do que vem sendo sustentado por este Supremo Tribunal, conforme jurisprudência que citámos a título ilustrativo (pois vária outra poderíamos citar).

Como tal, aquele ponto 11 dos factos considerados provados (anterior facto b)) não podia deixar de ser “recolocado” na relação dos factos não provados, como fora feito, com fundamentação ampla e consistente, pelo anterior Ac. da Relação que, nisso, corroborara o decidido na sentença.


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No mais, o essencial das questões suscitadas pela Recorrente BB já foram abordadas supra. Razão pela qual pouco mais haverá a dizer.


· Da nulidade dos mútuos reportados pelas actas de 10.11.2004 e de 30.11.2006 e da conclusão do tribunal recorrido de que os Recorridos teriam de devolver à Recorrida, ao abrigo do disposto no artigo 289.º, n.º 1, do Código Civil, as quantias em que foram condenados pela Relação.

A resposta a esta questão já resulta do que acima ficou dito: se é certo que os mútuos estão sujeitos à forma legalmente exigida, acima referida, desde que atinjam os valores aludidos no citado artº 1143º do CC, sob pena de nulidade (ut artº 289º, nº1, do CC), o certo é que, in casu, não faz qualquer sentido falar-se em restituição à Autora do peticionado, pela simples razão (que somos “obrigados” a repetir) de que é a própria autora a confessar que as quantias aludidas nos recibos assinados pela DD Melo não correspondem a quaisquer empréstimos - ou seja, não foram por ela recebidas.

E mesmo que, como vimos, se pretendesse “transportar” tais “recibos” para pretensos ou hipotéticos levantamentos de dinheiro anteriormente feitos pela mesma Senhora, para uso pessoal – sendo, assim, os recibos apenas uma forma de regularizar contabilisticamente tais fluxos de dinheiro – , também por aqui se não chegaria a lado nenhum, pela simples razão de que se deu como não provada tal factualidade (prova essa que seria a cargo da Autora, dada a não prova dos empréstimos a que os recibos  se reportam), ínsita na al. b) da matéria de facto não provada na sentença e reiterada no anterior Ac. da Relação, não prova que aqui se reafirma.

Como ressalta do que ficou provado, é mais que claro que, simplesmente, se desconhecem, de todo, as circunstâncias e condições em que teriam sido retiradas da caixa da Autora as verbas alegadamente dali retiradas, razão pela qual não se aplicariam as convocadas regras dos arts. 286.º e 289.º do CC.

Ou seja, como bem observa a Ré BB, mesmo que se considerasse assente a factualidade do n.º 11 do probatório, mesmo assim só estaria assente que BB teria retirado do caixa, para seu uso pessoal, montantes que totalizaram € 152.000,00, o que sempre era insuficiente para se concluir que existiu um contrato de mútuo, que é o contrato pelo qual uma das partes empresta dinheiro à outra, ficando essa parte obrigada a restituir outro tanto no mesmo género e quantidade.


· Se os recibos assinados pela BB não valem como confissão de dívida.

A resposta já ficou dada: obviamente que, por si só, os recibos nada provam quanto aos empréstimos referidos, dada a impugnação dos Réus e a prova que ficou feita – expressamente assumida pela Relação – de que as quantias a que se referem não foram recebidas, ou seja, de que os empréstimos a que aludem não tiveram lugar.

Aliás, a prova da declaração em causa – dos alegados empréstimos (mútuos, na terminologia da lei) – faz-se pela forma exigida no citado artº 1143º do CC (redacção do DL 111/08, de 4.7). Pelo que a confissão dos empréstimos, para ser válida, sempre teria de ter lugar mediante documento com força probatória igual ou superior à da escritura pública então prescrita naquele normativo legal, assim o exigindo o artº 364º do CC. O que, como vimos, não ocorreu.


· Se não tem sentido a invocação do artº 414º do C.P.C.

Já acima dissemos o bastante: que a invocação que o Acórdão recorrido faz do artº 414º do CPC não parece fazer qualquer sentido na economia da demanda: quer porque não estamos perante qualquer dúvida que deva ser resolvida contra a parte a quem se aproveita, mas antes perante uma situação em que não foi feita prova minimamente suficiente do que se pretende dar como estabelecido, quer porque, mesmo que dúvida existisse, sempre tinha que ser resolvida contra a Autora que é a parte a quem aproveita o facto contido no (novo) ponto 11 que a Relação (erradamente), deu como assente (ut  artº 342º CC).


· Da inexistência de contrato de mútuo, com a consequente inaplicabilidade das regras dos artsº 286º e 289º do CC

Como supra ficou dito, os deliberados mútuos são nulos por falta de objecto e, como tal, de nada valem os pretensos recibos de quitação (a confissão de dívida ali plasmada).

Nada de muito mais relevante se nos afigurando acrescentar ao que supra ficou dito sobre o alegado contrato de mútuo, que aqui se reitera.

Sempre se acrescente, porém, que em bom rigor, os mútuos não se provam tão somente pela ocorrência de uma entrega de dinheiro a alguém: a entrega de dinheiro não basta, pois uma entrega de dinheiro pode ter inúmeros causas e significados. Só há mútuo se houver obrigação de posterior restituição.

O mesmo é dizer que a Autora não apenas teria de provar os levantamentos de caixa pela DD, mas, também, que tais levantamentos importariam a sua restituição, ou seja, fazer a prova da natureza dos levantamentos.

Ou seja, mesmo que se tivesse dado como provada a factualidade que a Relação levara ao ponto 11 dos factos provados - que, como vimos, se não provou - , ainda assim incumbia à Autora, também, alegar e provar a que título tais levantamentos tiveram lugar: foram empréstimos? Pagamento de despesas próprias da Autora (não documentadas)? Meras liberalidades? Distribuição de resultados?

Ora, como se acentuou no Ac. da Rel do Porto de 24.09.2018,

“I - O contrato de mútuo supõe a verificação de dois elementos constitutivos: i) entrega de uma coisa fungível ou de determinada quantia em dinheiro; ii) obrigação de restituição da coisa ou dinheiro mutuado e a cargo do demandado, acrescida de eventual remuneração.

II - Para a procedência da acção fundada em contrato de mútuo (ainda que nulo por falta de forma) não basta ao credor a prova da entrega de determinada quantia em dinheiro, sendo mister ainda que o mesmo demonstre que o demandado estava obrigado a restituir a dita quantia nos termos acordados.”.

E bem se compreende a essencialidade ao mútuo desta última obrigação (quer ao mútuo oneroso, quer ao mútuo gratuito), pois se destina a reequilibrar a situação patrimonial das partes, colocando-as na situação em que se encontravam ao tempo da conclusão do negócio.

Ora, como bem observa o recorrente, ao referir o Tribunal quo que “aos apelados cabia alegar e provar factualidade que permitisse concluir que as retiradas de dinheiro do caixa da sociedade tiveram causa(s) que implicava(m) não ser devida a sua restituição à apelante (cfr 2 do art. 342º do CC)está o mesmo a inverter a lógica dos ónus da prova.

É que, como já acima dissemos, cabia à Autora a prova dos levantamentos invocados e, outrossim, que tais levantamentos eram feitos a título de empréstimos. O que não logrou provar.

E parece evidente que não é bastante vir com a alegação da “regularização contabilística”, pois que, mesmo que da prova contabilística tivesse resultado a existência de saídas de dinheiro do caixa da sociedade – ou seja, mesmo que tal “facto” estivesse vertido na contabilidade da Autora, que nunca esteve até 2004/2006 – , à Autora cabia sempre fazer a prova de que as alegadas saídas de dinheiro tinham sido realizadas pela Senhora DD a título de empréstimo.

Como vimos, é incontroverso que das deliberações de concepção de mútuo da Autora em favor da falecida Senhora DD não se verificou qualquer entrega da coisa mutuada. Pelo que, com já dito, os putativos mútuos são nulos por falta de objecto, nos termos do artigo 280.º do Código Civil, porque a coisa não foi mutuada.

Ora, se inexiste o mútuo que é a causa de pedir da demanda da Autora, então os pretensos e respectivos “recibos dequitação” de nada valem, pois que as declarações neles vertidos não são (não podem ser) verdadeiras.

Um outro reparo ao acórdão recorrido:

Não pode o Tribunal recorrido - como fez - declarar como inexistente um mútuo que não chegou a ser celebrado por falta de pagamento dos valores previamente estabelecidos para, logo de seguida, determinar que o mesmo mútuo também é nulo – agora já não por ser inexistente – mas porque não se observou, na sua celebração, a forma então legalmente exigível para os contratos de mútuo (escritura pública). E, como é evidente, se o mútuo é inexistente é porque não houve qualquer quantia mutuada, pelo que ainda fará menos sentido o facto de constar do Acórdão sub judice que nasce para os Réus a obrigação de restituição de tudo o que tiver sido prestado com referência a determinadas deliberações da Autora[50]!


· Da inaplicabilidade do instituto do enriquecimento sem causa

Parece evidente que o recurso a tal instituto (ut artº 473º CC) não seria de aceitar. E pela simples razão de que tal pretensão nunca foi formulada pelos Autores – razão pela qual, também, os recorridos nunca tiveram oportunidade de sobre ela se pronunciar. –, sendo certo que o direito à restituição por via desse enriquecimento sempre estaria prescrito, nos termos do art. 482.º do CC, prescrição que a Recorrente BB expressamente invocou para os devidos efeitos.

Diga-se, aliás, que não fará sentido apelar-se ao princípio da liberdade de qualificação dos factos que assiste ao tribunal, para por essa via ínvia se lograr fazer com que a acção pudesse proceder com fundamento no enriquecimento sem causa. Até porque, para além do mais que se possa dizer, a questão não reside simplesmente, salvo o devido respeito, num diverso enquadramento jurídico dos factos pelo tribunal. Estão em equação, mais do isso, os próprios limites objectivos da acção definidos mediante a causa de pedir e o pedido, perímetro que ao tribunal não é lícito ultrapassar no exercício dos seus poderes jurisdicionais.

Ora, como se viu, a causa de pedir não foi estruturada mediante a alegação de factos integradores de enriquecimento injustificado - um conceito a que a autora inclusive jamais recorrera.

E muito menos pediu, sequer a título subsidiário, a restituição das quantias mutuadas com base no enriquecimento, outra razão decisiva, se tanto fosse necessário, no sentido de não poder prevalecer-se desse fundamento.

Tão-pouco pode dizer-se (por mera hipótese de raciocínio) que a petição deve ser interpretada no sentido de nela se ver compreendida a causa de pedir do enriquecimento.

Se assim fosse, como seria possível conciliar com essa causa petendi o pedido de declaração de nulidade dos mútuos e de condenação dos réus a reconhecerem-na em ordem à restituição?

Inviável seria, assim, o recurso ao instituto do enriquecimento sem causa.


· Se a Autora, ao vir prevalecer-se dos recibos assinados pela BB, que junta, actua em abuso de direito

Não nos parece.

É certo que, como dito, está mais que provado nos autos que os empréstimos aludidos nos recibos (emitidos na sequência das deliberações a que se referem as actas neles mencionados) não tiveram lugar. Como é certo que se não provou os alegados levantamentos de quantias da caixa da sociedade Autora, para uso pessoal da BB.

Porém, não se pode daqui concluir que tais levantamentos – que a Autora diz ter pretendido regularizar com os aludidos recibos – não tivessem, de facto, ocorrido. Simplesmente, não se provaram (cfr. a tal al. b) dos factos não provados, não prova que aqui é corroborada). Não mais que isso.

Não se vislumbra que tal preencha o conceito legal de abuso de direito.

A Autora, confessando, embora, que os empréstimos aludidos nos recibos não tiveram lugar, veio, também, alegar que não seria por isso que os RR deixariam de ser condenados a devolver os montantes peticionados, dada a alegação de que tais recibos, afinal, sempre titulavam levantamentos de dinheiros, saídos da Autora para a DD Melo (os apontados levantamentos de caixa). É que – diz a Autora – , confessando o que lhe era favorável (a inexistência dos empréstimos que referem os recibos) e bem assim o que lhe era desfavorável (os ditos levantamentos, que, afinal, os recibos vieram “regularizar”, por via da indivisibilidade da declaração confessória), sempre acabaria por ter ganho de causa.

Mas, simplesmente, não provou tais movimentos/levantamentos feitos pela DD Melo, com a explicitação feita nos sobreditos.

Afinal, a Autora, alegando o que alegou, estaria convencida de que tinha mesmo direito aos valores que peticiona, tendo argumentado de forma extensa no fito de o demonstrar, só não tendo tido ganho de causa porque não logrou fazer a prova do que alegara e lhe competia provar.
Abuso de direito é o exercício de um direito de forma ilegítima por se exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé [51], pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.  Abrange o exercício de qualquer direito de forma anormal, quanto à sua intensidade ou à sua execução, de modo a poder comprometer o gozo dos direitos de terceiro e a criar uma desproporção entre a utilidade do exercício do direito e as consequências decorrentes desse exercício.

Assim, há abuso de direito, segundo a concepção objectiva consagrada no artigo 334.º do C.C., sempre que o titular do direito o exerce com manifesto excesso dos limites impostos pela boa fé e pelos bons costumes, ou pelo fim económico ou social do direito. 

Para que o abuso de direito se verifique é necessário que, suposta a existência deste, ele seja exercido com clamorosa ofensiva da justiça, em termos que manifesta e intoleravelmente brigam com o sentimento jurídico dominante na colectividade.

Situação que se não vislumbra na situação sub judice.


*

Poder-se-ia, eventualmente, dizer que a conduta da Autora “roça” a má fé processual (542.º do NCPC), na medida em que confessa que os recibos que juntou, afinal, não são para prova do que neles vem referido (empréstimos), mas para prova de coisa diferente (os supostos levantamentos).

Não nos parece consubstanciada essa postura processual.

O processo integra uma liça judiciária, na qual cada uma das partes tem o direito de solicitar ao tribunal uma determinada pretensão, apoiada em certos factos ou razões de direito, quando esteja razoavelmente convencida da sua razão. A lide deixa de ser justa e legítima quando uma das partes deixa de agir dentro das regras da boa-fé, colocando ao tribunal pretensões ou alegações de factos ou de normas jurídicas sabendo ou devendo saber que a razão não está do seu lado.

Contudo, a condenação como litigante de má fé pressupõe prudência e cuidado do julgador, bem como a correcta destrinça entre lide temerária ou ousada e a actuação dolosa ou gravemente negligente, sob pena de se poder estar a cercear indevidamente o direito de acção.

O mesmo integra-se no direito fundamental de acesso aos tribunais (art. 20°, n° 1 da C.R.P.), constituindo um direito subjectivo autónomo e distinto do direito material que se pretende fazer actual em juízo, pelo que o seu exercício não está dependente de qualquer requisito prévio de demonstração da existência do direito substancial. Exigir isso, seria fechar a porta a todos os interessados: aos que não têm, e aos que têm razão. Assim, o recurso aos tribunais judiciais representa um facto lícito, mesmo que se venha a demonstrar que o direito que se pretendeu fazer valer em juízo não existia.

Logo, a litigância de má fé não pode confundir-se com: pretensão ou oposição cujo decaimento sobreveio por mera fragilidade da prova respectiva, de não se ter logrado convencer o tribunal da realidade trazida a julgamento; a eventual dificuldade de apurar os factos e de os interpretar; na discordância na interpretação e aplicação da lei aos factos; ou a defesa convicta e séria de uma posição, sem, contudo, lograr convencer.

Assim, a postura da Autora também extravasa daquela hipotética litigância de má fé.


***

Em conclusão, só se almeja uma solução para os recursos de revista interpostos: a sua procedência.

IV. DECISÃO

Face ao exposto, acorda-se em julgar procedentes os recursos e, consequentemente, conceder as revistas, revogando-se o Acórdão recorrido e confirmando-se a sentença da 1ª instância que absolveu os réus do pedido.

Custas a cargo da Autora.

Notifique.

Lisboa,

Fernando Baptista (Juiz Conselheiro Relator)

Vieira e Cunha (Juiz Conselheiro 1º Adjunto)

Abrantes Geraldes (Juiz Conselheiro 2º Adjunto)

________
[1] Conclusões que (em particular no que tange ao Réu AA) são assaz prolixas, esquecendo-se do que estatui o artº 639º, nº1 CPC, ao referir que as conclusões devem ser sintéticas, concisas, de forma a, sem grandes explanações, se perceber os fundamentos por que se pede a alteração ou anulação da decisão recorrida.
E só não se determina a notificação para tal síntese conclusiva ser operada para não retardar ainda mais o desfecho do mérito dos autos.
[2] Este ponto foi aditado aos factos provados no Ac. (o 2ª) da Relação de 08.07.2021, proferido na sequência do Ac. do STJ que determinou a baixa dos autos para sanar contradições, facto esse que veio substituir a al. b) dos factos considerados não provados na sentença, alínea essa cuja resposta de não provado a Relação havia mantido no primeiro Acórdão (e que  rezava assim: “b) Que, ao longo dos anos em que a falecida DD geriu a Autora, aquela procedesse, com regularidade e até 2006, a levantamentos e/ou utilização de montantes existentes na caixa da sociedade para uso pessoal, que só parcialmente reembolsou, faltando reembolsar a quantia de € 135.762,63”).
[3] Consigna-se que as duas alíneas que seguem correspondem, no essencial, ao teor da alínea a) dos factos considerados na sentença como não provados (que rezava assim: a) Que a Autora tivesse entregado a DD as quantias de € 112.000,00 e de € 40.000,00 referidas, respectivamente, em 7 e 8 dos factos provados.”), mas que a Relação no primeiro Ac. havia (sem mais dizer) eliminado dos factos não provados.
[4] Cfr Recursos em Processo Civil, ABRANTES GERALDES, 2ª ed., 368.
[5] Cfr., ALBERTOD OS REIS, Cc5d. Proc. Civil Anotado, 5º, 141; ANTUNES VARELA e Outros, Manual Proc. Civil, 1ª ed., 671; RODRIGUES BASTOS, Notas ao CPC, III, p. 246; e Acs. do STJ, BMJ, 281/241, 380/444, 381/592, 432/342, e CJ, 1994, II,263, 995, II,57.
[6] Cfr., por todos, RODRIGUES BASTOS, “Notas ao CPC”, vol. III, pág. 194 e LEBRE DE FREITAS e outros, “CPC Anotado, vol. II, pág. 669.
[7] Proc. 09S623.
[8] Destaque nosso.
[9] Escrevera-se, com efeito, ali:

É incontroverso que em 10/11/2004 e 30/11/2006 não foram entregues à sócia gerente as quantias de 112.000 € e 40.000 €.

O que está em causa é apurar se as duas deliberações e os recibos se destinaram a formalizar sob a veste de empréstimos, anteriores retiradas de dinheiro do caixa da sociedade, documentadas por “vales de caixa”.

Mas nenhum “vale de caixa” foi junto aos autos e nem a apelante deu justificação para não o fazer. Isto, apesar de vir agora dizer nesta apelação que «Os vales de caixa ou documentos equivalentes que titulavam cada levantamento efectuado pela sócia gerente DD Ávila de Melo, foram-lhe devolvidos quando esta assinou os recibos mediante os quais se confessou devedora dos montantes neles referidos».

Além disso, na petição inicial não são discriminadas as quantias que alegadamente foram sendo retiradas ao longo dos anos até 2006. Porém, como resulta daquelas actas, as deliberações foram tomadas também pela sócia ora 3ª ré, que é casada com o gerente da apelante, AA José Garcia Serafim da Costa - como se vê da certidão da habilitação de herdeiros -, que em representação desta outorgou a procuração forense junta com a petição inicial, e foi a 3ª ré, que na qualidade de cabeça de casal no inventário relacionou duas dívidas da falecida sócia à ora apelante num total de 135.762,63 €, que é o valor em discussão na presente acção. Repare-se ainda que a testemunha José Miguel de AA, que se identificou como TOC certificado e disse ter sido contabilista da sociedade durante mais de 30 anos até meados do ano de 2018 referiu-se a “vales de caixa”, mas não esclareceu que destino lhes foi dado nem qual era o saldo do caixa quando conversou com a sócia gerente sobre a necessidade de regularizar a situação contabilisticamente. Vejamos agora alguns segmentos do «relatório» elaborado pelo ROC da Oliveira, Reis & Associados, SROC, Lda, datado de 12/04/2019 e junto pela apelante em 24/06/2019:

(…)

Deste «relatório» evidencia-se a falta de fiabilidade da contabilidade da apelante e que o ROC fez conjecturas para encontrar explicação para as saídas de valores do caixa da sociedade com base no que lhe foi transmitido.

Por outro lado, se a finalidade dos sócios foi tornar possível regularizar contabilisticamente as dívidas da sócia gerente, tratando-as como sendo resultantes de empréstimos, não faz sentido que tenham deliberado «conceder» empréstimos.

Em suma, dos documentos invocados pela apelante não resulta evidente que a sócia gerente retirou do caixa para fins pessoais quantias que totalizaram de 152.000 €.

Sustenta a apelante que as actas não foram objecto de impugnação.

Mas os dois primeiros réus não eram sócios.

Além disso, aquelas deliberações não espelham a realidade, pois é a própria sociedade que esclarece que nenhuma quantia foi entregue à sócia gerente na sequência e em execução delas. (destaques nossos).
[10] Destaques nossos.
[11] In Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 5.ª ed., p. 407, 409 e 411.
[12] O sublinhado é nosso.
[13] Rezava, como visto, assim a dita al. b) dos factos não provados: “b) Que, ao longo dos anos em que a falecida DD geriu a Autora, aquela procedesse, com regularidade e até 2006, a levantamentos e/ou utilização de montantes existentes na caixa da sociedade para uso pessoal, que só parcialmente reembolsou, faltando reembolsar a quantia de € 135.762,63.”.
Matéria que aqui se manteve como não provada, por via da impugnação da decisão da matéria de facto no que tange ao facto que o ac. recorrido deu como provado sob o ponto 11.
[14] Que mais não é do que o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária (CASTRO MENDES, Dir. Processual Civil, 1967, 1º, 253).
[15] Provas, 58.
[16] C. C. Anotado, 1º-484.
[17] Noções Elementares de Processo Civil, 1979, 251.
[18] Destaque nosso.
[19] Sobre o princípio da indivisibilidade da confissão, ver VAZ SERRA, in Provas, no Bol. 112. Diz, aqui (a pp 52), este Mestre: “Parece dever manter-se o princípio da indivisibilidade da confissão, como meio de respeitar a intenção do confitente (que se confessa certo facto pode ser que o faça porque afirma outro que lhe restringe ou modifica o alcance) e como meio de estimular ao reconhecimento da verdade dos factos desfavoráveis ao confitente (se este sabe que a confissão vai ser aceite na sua integridade, mais facilmente será levado a confessar).” “A sua justificação (da indivisibilidade da confissão) está numa razão lógica: o facto favorável ao confitente está logicamente ligado ao favorável, constituindo ambos um todo, uma unidade, na intenção do confitente, de sorte que, se a força probatória da confissão resulta da declaração deste, o adversário pode beneficiar com ela apenas quando aceita a declaração total; e está também numa razão prática: se a confissão não fosse indivisível, poderiam muitos abster-se de confessar”.

Também PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, acerca deste princípio, escreveram: “Se a declaração confessória é especialmente valorizada pelas grandes probabilidades que tem de ser verdadeira ou exacta uma afirmação contrária aos interesses da própria parte, não faria sentido, nem seria justo, que este crédito de sinceridade concedido ao declarante não acompanhasse a parte restante da sua declaração. Não seria justo, noutros termos, que a parte contrária pudesse sacar em seu proveito a presunção de seriedade do confitente que a lei estabelece, e a repudiasse ao mesmo tempo na parte em que a declaração contraria os seus interesses. Outra é a situação, se a parte contrária ao confitente, aceitando embora a presunção de veracidade que cobre a confissão, chama a si o encargo de demonstrar que ela não é exacta na parte favorável aos interesses do declarante” - in CCAnotado, vol. I, p. 320.

[20] Ou seja, dum facto constitutivo dum seu dever ou sujeição, extintivo ou impeditivo de um seu direito ou modificativo de uma situação jurídica em sentido contrário ao seu interesse, ou, ao invés, a negação da realidade de um facto favorável ao declarante, isto é, dum facto constitutivo dum seu direito, extintivo ou impeditivo dum seu dever ou sujeição ou modificativo duma situação jurídica no sentido do seu interesse – LEBRE DE FREITAS, A Acção Declarativa Comum à Luz do Código de Processo Civil de 2013, p. 255.

[21] Se a confissão for simples, limitando-se a reconhecer a veracidade do facto, nos termos do art. 352.º já citado, não se põe, por natureza, a questão da sua divisibilidade – RODRIGUES BASTOS, Notas ao CC, vol. II, p. 139.

[22] VAZ SERRA, Provas, Bol. 111, p. 57 e ss.

[23] Ver Ac. do STJ de 12/1/99 (MIRANDA GUSMÃO), Bol. 483, p. 160 e ss.

[24] Ver VAZ SERRA, ob. cit., pág. 52.

Exemplifica ANTUNES VARELA: O demandado confessa que recebeu a quantia que o autor alega ter-lhe emprestado; mas acrescenta que a pagou em determinada data ou que o mutuante remiu a dívida – Ob. cit., pág. 540.

E dá outro exemplo (mais “ajustado” ao caso sub judice):

De novo exemplifica ANTUNES VARELA: se o réu confessar ter recebido a quantia que o autor afirma ter-lhe emprestado, mas acrescentando que já a restituiu ao autor, incumbirá a este provar o contrário, ou seja, que a mesma não lhe foi restituída, se quiser aproveitar-se da confissão. Sendo certo que de outro modo seria o réu que, na qualidade de devedor, haveria de provar o pagamento – ob. cit., p. 542.

[25] Três vias sendo permitidas à parte contrária (à do confitente): (i) prescindir da confissão, não tendo a mesma a eficácia da prova plena, mas apenas como meio de prova sujeito à livre apreciação do julgador (art. 361.º); (ii) aceitar como tendo-se verificado os factos e as circunstâncias que lhe são desfavoráveis, ganhando, então, a confissão a eficácia de prova plena; (iii) declarar que se quer aproveitar da confissão, mas que se reserva o direito de provar a inexactidão dos factos que lhe são desfavoráveis, caso em que a confissão adquire também a eficácia da prova plena, mas a realidade de tais factos ou circunstâncias que a ela, parte contrária, são desfavoráveis só ficará completamente estabelecida se não fizer a prova do contrário.
[26] Atente-se, v.g., no que disse o Réu AA na sua contestação (artsº 90 e 81º):

“80 – A verdade reconhecida pela autora e pelo Sr. AA aquando da sua inquirição como testemunha no incidente de reclamação contra a relação no processo de inventário é que não foram feitos quaisquer pagamentos à referida DD, nem a título de concessão de empréstimos, nem a título de distribuição de resultados.

81 – Também a Senhora Dra. HH, revisora oficial de contas elaborou, a pedido do réu AA, um relatório de análise às contas da sociedade junto ao processo de inventário, do qual resulta também a conclusão que tais pagamentos – de distribuições de resultados e empréstimos – não ocorreramdoc. 13.” – destaques nossos.
[27] Sobre esta matéria, pode ver-se, ainda, o Dr. MÁRIO DE BRITO, no «Código Civil», ano I, p. 484.
[28] Destaque nosso.
[29] In Código Civil Anotado, vol. II, 4.ª ed., Coimbra Editora, 1997, p. 761.
[30] Contratos Privados, vol I, 2ª ed., 2015, Coimbra Editora, pp 807.
[31] Cf. Bianca Gardella Tedeschi, Mutuo (contratto di), DDP/SCiv XI (1994), 537‑558 (542).
[32] Cfr. Giorgio Giampiccolo, Mutuo (diritto privato), ED XVII (1977), 444‑474 (459 e ss.).
[33] Destaques nossos.
[34] Processo n.º 07A079.
[35] Processo n.º 4316/1 1.2TBVFR-A.P1.
[36] Destaque nosso.
[37] Processo n.º 6933/04.8YYLSB-C.L1.S1.
[38] Destaque nosso.
[39] Cfr. Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, Almedina, 1983, p. 169.
[40] Ver por todos Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, pp. 357 e ss.
[41] Característica que permite distinguir este vício da coacção física.
[42] Neste sentido ver Menezes Cordeiro, «Tratado de Direito Civil Português», vol. I, T. 1, p. 551.
[43] Neste sentido, ver, ainda, o Ac. STJ de 10/7/97 in www.cidadevirtual.pt/stj/jurisp.
[44] Ac. do STJ de 6/4/1996, in CJSTJ, 1996, t II, pp. 102‑105.
[45] Ver, v.g.:
—       Ac. Supremo Tribunal de Justiça — N.º 03B2536 STJ000 Oliveira Barros Data 09-10-2003:
I — O conceito de negócio simulado encontra‑se explicitado, de harmonia com a doutrina tradicional, no n.º 1.º do art. 240.º, de que decorre que há simulação sempre que concorram divergência intencional entre a vontade e a declaração das partes, combinação ou conluio que determine a falsidade dessa declaração (acordo simulatório), e a intenção, intuito ou propósito de enganar ou prejudicar terceiros.  II — Ainda quando não tenha havido intenção fraudulenta, isto é, de prejudicar terceiros (animus nocendi) — caso mais frequente —, haverá simulação se existir o intuito ou propósito de enganar terceiros (animus decipiendi).  III — A simulação pode ser absoluta — hipótese em que o negócio por tal viciado colorem habet, substantiam vero nullam —, ou relativa, caso em que o negócio celebrado colorem habet, substantiam vero alteram, como acontece no caso da alegada doação disfarçada de venda: nesse caso, subjaz ao negócio ostensivo ou aparente, fictício, um outro, latente, oculto, encoberto, dissimulado, disfarçado ou camuflado, que é o verdadeiramente querido pelas partes.  IV — É nulo por simulação o contrato de compra e venda de imóvel destinado a encobrir uma doação quando se prove que o pretenso vendedor apenas teve em vista prejudicar os seus herdeiros legitimários, subtraindo aquele imóvel à herança e partilha por sua morte.  V — Assim subtraído o imóvel pretensamente vendido ao acervo hereditário, os herdeiros defendem, nesse caso, um direito próprio à quota hereditária.
Ac. Supremo Tribunal de Justiça, N.º 082041JSTJ00017348 Pais de Sousa N.º SJ199211250820412 — 25‑11‑92; AC STJ DE 1966/02/18 IN BMJ N154 PAG343; AC STJ DE 1981/06/11 IN BMJ N308 PAG210; AC STJ DE 1978/11/21 IN BMJ N281 PAG244; AC RL DE 1979/01/23 IN CJ ANOIV TI PAG112.AC STJ PROC80909 DE 1991/11/05. I — Para efeitos do disposto no artigo 394, ns. 1 e 2 do Código Civil, são de considerar terceiros os herdeiros legítimos ou legatários do simulador, que este, com a simulação, pretendia prejudicar.  II — Em relação ao negócio simulado, os sucessores do simulador tanto podem aparecer na mesma posição do outorgante do negócio, como na de terceiros.  No primeiro caso são continuadores da personalidade do simulador, em virtude de um direito que este lhes transmitiu.  No outro, aparecem alicerçados num direito próprio que não lhes foi transmitido pelo autor da herança. http://www.dgsi.pt/jtrp. nsf/c3fb530030
ea1c61802568d9005cd5bb/beac415e69889ffe80256cb70032a6b9?OpenDocument&Highlight=0,herdeiros,simula%C3%A7%C3%A3o
—       Ac. do Tribunal da Relação do Porto 0020521 JTRP00034484 Alziro Cardoso RP200212030020521 03‑12‑2002; AC STJ DE 1999/09/23 IN BMJ N489 PAG304; C STJ DE 1992/11/25 IN BMJ N421 PAG380; STJ DE 1981/06/11 IN BMJ N308 PAG210; AC STJ DE 1980/11/05 IN BMJ N301 PAG395; AC RC DE 1988/06/07 IN CJ T3 ANOXIII PAG86.  I — Em determinadas circunstâncias excepcionais é admissível, prova testemunhal sobre acordo simulatório e negócio dissimulado, nomeadamente quando exista um princípio de prova por escrito, se demonstre ter sido moral ou materialmente impossível a obtenção de uma prova escrita e em caso de perda não culposa do documento que fornecia a prova.  II — Os herdeiros de um simulador têm legitimidade para arguir a nulidade da simulação.  III — O direito de invocar a nulidade da simulação não pode caducar por efeito da pretensa aquisição do prédio por usucapião se não há prova de posse em nome próprio do pretenso adquirente nem prova de que este haja sucedido na posse do seu antecessor.  IV — Não têm a posição de terceiros de boa fé, quanto à simulação invocada pelos réus, os autores que pretendem não a anulação do negócio simulado, celebrado pelo seu alegado antepossuidor, em cuja posição jurídica sucederam, mas sim manter esse negócio.
[46] Processo n.º 2964/05.9TBSTS.P1.S1.
[47] Processo n.º 04B2302.
[48] Acórdão do STJ de 09.12.2008, processo n.º 08A3665, datado de 09-12-2008.
[49]In Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, reimpressão, Coimbra, 1992.
[50] Como se consignou no Ac. do STJ de 22.04.2004 (proc. 03B3318) - Lucas Coelho, “III - Improcede a acção de restituição de quantias mutuadas tendo como causa de pedir os factos integradores de mútuos feridos de nulidade por inobservância da forma legal - com fundamento nos quais se formularam os pedidos de condenação dos mutuários a reconhecerem a nulidade e a restituírem as importâncias entregues -, na falta de prova do valor de cada um dos mútuos e das datas das entregas, cujo ónus compete ao autor mutuante, nos termos do nº. 1 do artigo 342º do Código Civil” (destaque nosso).
[51]O princípio da boa fé, que é de aplicação geral a todos os domínios do jurídico, vale para todo o comportamento juridicamente relevante das pessoas” (Coutinho de Abreu, “Do Abuso de Direito”, p. 61) e pressupõe, necessariamente, uma “específica relação inter‑pessoal (embora não necessariamente negocial, ou sequer, pré ou circum‑negocial), fonte de uma específica relação de confiança — ou, pelo menos, expectação de conduta — cuja frustração ou violação seja particularmente clamorosa” (Orlando de Carvalho, “Teoria Geral do Direito Civil”, Centelha, Coimbra, 1991, p. 56).
A boa fé, na sua vertente de princípio geral de direito, constitui um “critério que deve presidir e orientar todo o comportamento” (Fernando Cunha Sá, “Abuso do Direito”, p. 172) e que consiste num agir caracterizado pela correcção, lealdade e honestidade.  Efectiva­mente, segundo Coutinho de Abreu (“Do Abuso de Direito”, p. 55) o princípio da boa fé significa “que as pessoas devem ter um comportamento honesto, correcto, leal nomeadamente, no exercício dos direitos e deveres, não defraudando a legítima confiança ou expectativa dos outros”.