PRESCRIÇÃO DO DIREITO DE INDEMNIZAÇÃO
INTERRUPÇÃO
CRIME DE PERIGO CONCRETO
Sumário


I - O prazo de prescrição do direito à indemnização, previsto no art.º 498º do Código Civil, seja o prazo normal, previsto no seu nº 1, seja o mais longo previsto no nº 3, conta-se “da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, embora com desconhecimento da pessoa do responsável e da extensão integral dos danos, sem prejuízo da prescrição ordinária se tiver decorrido o respectivo prazo a contar do facto danoso”.
II - A situação fáctica descrita nos autos enquadra-se na previsão do art.º 1348º do Código Civil, não existindo elementos suficientes para a enquadrar no crime tipificado no art.º 277º do Código Penal. Mesmo que a actuação da ré integrasse este tipo legal de crime, por se tratar de um crime de perigo concreto, em que a verificação do dano não é elemento do tipo, o mesmo consumou-se com a criação do perigo.
III - O prazo prescricional do direito de indemnização da autora não se iniciou “entre os dias 05/11/2015 e 24/11/2015”, altura em que a autora, por sua conta, efectuou as obras de reparação do muro, repondo as suas condições de estabilidade e segurança, mas sete anos antes, quando, em resultado de escavação efectuada pela ré, no âmbito de uma obra realizada no prédio vizinho, a autora tomou conhecimento de que o muro que lhe pertence perdeu condições de estabilidade e corria o risco de desabar.

Texto Integral


ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I – RELATÓRIO

Município ... instaurou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra Construções X, Lda., pedindo que esta seja condenada a pagar-lhe a quantia global de € 5.595,92, acrescida de juros calculados à taxa legal sobre a importância de € 4.772,67, contados desde a data de entrada em julgado da acção e até efectivo e integral pagamento.
Alegou, para tanto e em síntese, que a Ré, no decurso de umas obras por si realizadas de construção de um loteamento, acabou por provocar danos num muro, que integra o património do Autor.

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A Ré contestou, por excepção, invocando a prescrição do direito invocado pelo Autor, e por impugnação, negando ter provocado os alegados danos, pugnando pela consequente absolvição do pedido.
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Foi proferido o despacho saneador em que se afirmou a competência do Tribunal, a regularidade da instância e a validade do processado. Fixou-se o valor da causa em €5.595,92 e admitiu-se os meios de prova.
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Realizou-se a audiência de julgamento e proferiu-se sentença em que se decidiu:

«Pelo exposto, julgo procedente a exceção de prescrição invocada, absolvendo a R. Construções X, Lda., dos pedidos contra si formulados pelo A. Município ....
Custas pelo A.»
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Inconformado, o Autor interpôs o presente recurso, que instruiu com as pertinentes alegações, em que formula as seguintes conclusões:

«1ª) A factualidade geradora de responsabilidade civil da Ré e da respectiva obrigação de indemnizar preenche os elementos de um tipo legal de crime, mais precisamente do crime de infracção de regras de construção (artigo 277º do CP), pelo que sempre seria de proceder ao alongamento do prazo de prescrição nos termos do disposto no artigo 498. ° n.º 3 do Código Civil.
2ª) Os termos em que se encontra estruturada a acção, aferidos pelo respectivo pedido e causa de pedir, não deixam dúvidas sobre o acento tónico da questão e o objecto da pretensão, no sentido da sua incidência na reconstrução e reposição das condições de segurança do muro, provocadas pela ameaça de derrocada, relativamente às quais a inclinação, que apenas se foi acentuando com o tempo, surge sem autonomia.
3ª) A entender-se diferentemente – situando-se o início da prescrição na data do facto ilícito e conhecimento dos primeiros danos (2008) -, o direito de indemnização pelo dano consubstanciado na imprevisível derrocada e consequente deterioração do muro estaria já extinto antes de o evento danoso ocorrer, sanção que nada justificaria por nenhuma inércia do credor haver a censurar, como é fundamento do instituto da prescrição.
4ª) O início do prazo de prescrição deu-se quando, entre os dias 05/11/2015 e 24/11/2015, o A. realizou as obras (ponto 31 dos factos provados).
5ª) Sendo os factos qualificáveis como crime, o prazo prescricional aplicável deverá ser o de 5 anos, pelo que não estava ultrapassado em 29/06/2020, data da entrada da presente acção (ponto 41 dos factos provados).
6ª) Se assim se não entender e o prazo prescricional for o mais curto (3 anos), então terá de se verificar se ocorreu algum facto com efeito interruptivo do prazo sob pena do mesmo já estar ultrapassado.
7ª) Em 08/06/2016 (ponto 38 dos factos provados) a aqui Ré foi notificada da contestação que o aqui A. apresentou naquele outro processo em que foram referidas as obras realizadas, o respectivo custo e que o mesmo era imputável àquela, pelo que a notificação judicial em causa exprimiu directamente a intenção de exercer o direito, pelo que provocou a interrupção do prazo prescricional (artigo 323º nº 1 do CC).
8ª) A sentença proferida naquele processo foi notificada às partes, via SITAF, em 12/12/2019 (ponto 40 dos factos provados) e, por isso, transitou em julgado em 08/01/2020 (artigo 29º nº 1 do CPTA).
9ª) Portanto, o prazo de prescrição iniciou-se entre os dias 05/11/2015 e 24/11/2015 (ponto 31 dos factos provados) e interrompeu-se em 08/06/2016 (ponto 38 dos factos provados).
10ª) A interrupção inutiliza para a prescrição todo o tempo decorrido anteriormente, começando a correr novo prazo a partir do acto interruptivo (08/06/2016), mas isto sem prejuízo do disposto nos n.os 1 e 3 do artigo 327º do CC (artigo 326º nº 1 do CC).
11ª) A nova prescrição está sujeita ao prazo da prescrição primitiva (artigo 326º nº 2 do CC).
12ª) Se a interrupção resultar de notificação, o novo prazo de prescrição não começa a correr enquanto não passar em julgado a decisão que puser termo ao processo (artigo 327º nº 1 do CC), ou seja, a parir de 08/01/2020.
13ª) Assim, considerando-se o prazo prescricional de 3 anos ou o de 5 anos, não se verifica a prescrição do direito de indemnização.
14ª) Nem sequer há necessidade de se chamar à colação a suspensão deste prazo, que se verificou entre 09/03/2020 e 03/06/2020, por efeito da aplicação do disposto no artigo 7º nº 3 da Lei n.º 1-A/2020 de 19 de março.
15ª) A decisão recorrida violou, para além do mais, as normas dos artigos 323º nº 1, 326º nos 1 e 2, 327º nos 1 e 3, 498º nos 1 e 3 do Código Civil e 7º nº 3 da Lei n.º 1-A/2020 de 19 de março.

Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente, determinando-se a revogação da sentença recorrida e a respectiva substituição por outra que julgue improcedente a excepção de prescrição, procedente a acção e condene a Ré no pedido».
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A Ré contra-alegou.
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O processo foi remetido a este Tribunal da Relação, onde o recurso foi admitido nos termos em que o fora na 1ª instância.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO E QUESTÕES A DECIDIR.

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do Apelante, tal como decorre das disposições legais dos artºs 635º nº4 e 639º do CPC, não podendo o tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (art.º 608º nº2 do CPC).

As questões a resolver são as que constam das conclusões da apelação, acima reproduzidas e que assim se sintetizam:

a) Se não ocorreu a prescrição do invocado direito do Autor.
b) Caso se julgue improcedente a excepção da prescrição, conhecer das questões que ficaram prejudicadas (mérito da acção).

III - FUNDAMENTOS DE FACTO

A) Factos julgados provados na sentença recorrida:

«1. O A. é uma pessoa coletiva territorial de direito público, dotada de órgãos representativos, bem como de serviços públicos, que visa a prossecução dos interesses próprios da população respetiva.
2. A R. é uma sociedade comercial por quotas que se dedica à atividade industrial de construção civil, o que faz por forma habitual, sistemática e com intuito lucrativo.
3. A realização dos investimentos na construção, apetrechamento e manutenção dos estabelecimentos de educação pré-escolar e do ensino básico, previstos na Carta Educativa do Concelho de ..., é da competência do Município ....
4. A Escola JI/EB1 de ..., integrada no Agrupamento de Escolas das …, está prevista na Carta Educativa do Concelho de ....
5. O património e os equipamentos afetos à Escola JI/EB1 de ..., mostram-se transferidos, em termos de titularidade, para o património do Município ....
6. A R. foi a promotora do processo de loteamento nº 313/03 da Câmara Municipal de … e, assim, a titular do alvará de loteamento nº 25/04, no âmbito do qual aquela construiu 20 lotes e realizou obras de urbanização, o que tudo fez no lugar de …, na freguesia de ..., no Concelho de ....
7. A R., em 2007, no âmbito das obras de infraestruturas do aludido loteamento, efetuou uma escavação face ao muro do recinto escolar que existia a confrontar com tal loteamento.
8. Por força de tal escavação, as fundações do muro ficaram à vista,
9. do que resultou a perda das condições de estabilidade do mesmo, ficando em risco de ruína e desabamento,
10. o que tornava necessária a execução de obras que garantissem as condições de segurança do muro, mais precisamente, a sua reconstrução, o rebaixamento da fundação para o nível do solo, após corte, e, posteriormente, a recolocação da rede de vedação.
11. Tratava-se de um muro com cerca de 0,70 metros de altura,
12. construído em pedras de granito irregular,
13. com junta seca
14. e com uma rede de vedação na parte superior.
15. Por ofício nº 118/2008, de 24/07/2008, da Junta de Freguesia de ..., rececionado pelo A. em 29/07/2008, cujo teor, constante de fls. 163 a 164, verso, aqui se dá por reproduzido, aquela dá conhecimento a este do facto de os muros da aludida escola estarem a cair, devido ao desaterro do loteamento promovido pela R., juntando fotografias referentes ao estado de tal muro.
16. Através do ofício nº 2220/L-JC, de 07/08/2008, recebido pela R. em 08/08/2008, o A. dá conhecimento à R. da exposição aludida em 15., chamando a atenção da R. para a parte de tal ofício em que se faz referência às condições de segurança do muro da escola.
17. Em 27/10/2008 é proferido despacho por um vereador da Câmara Municipal de …, com poderes subdelegados, do seguinte teor: “Dado que até à presente data o promotor do loteamento não respondeu ao ofício 2220/L-JC de 2008/08/07, deverá ser novamente oficiado de que qualquer dano resultante da derrocada do muro da escola será da sua inteira responsabilidade.”.
18. O A. remeteu à R. o ofício nº 2935/L-MO, de 29/10/2008, rececionado pela R. em 30/10/2008, do seguinte teor: “Relativamente ao processo em epígrafe, informo V.Exª.s que, dado que até à presente data, não deram resposta ao n/ofício nº 2220/L de 08/08/07, de que se junta fotocópia, qualquer dano resultante da derrocada do muro da Escola será da sua inteira responsabilidade.”.
19. Em 06/11/2008 a R. respondeu a tal notificação afirmando desconhecer “(…) qualquer derrocada do muro da escola (…)” e solicitando a marcação de uma reunião no local.
20. Em 21/11/2008, a Câmara Municipal de …, representada por V. G., Técnico Superior do Departamento de Gestão Urbanística da Câmara Municipal de …, e a R., representada pelo respetivo gerente, L. M., reuniram no local para apreciarem a segurança do muro.
21. Em 10/03/2010, a Junta de Freguesia de ..., remeteu ao A. nova comunicação, com o seguinte conteúdo: “A Junta de Freguesia depara com uma situação muito perigosa relacionada com o muro do Jardim Infantil/Escola Primária confrontado com a rua dos …, o muro está bastante inclinado ameaça ruir e causa perigo para as crianças que brincam no recreio. Agradecemos a reparação imediata para evitar acidentes pessoais a pessoas e bens que frequentam o local.”.
22. Em 09/09/2010, o chefe de divisão do Departamento de Obras Municipais da Câmara Municipal de … presta ao A. a seguinte informação: “Em anexo, juntamos cópias do estado do muro que confronta com a EB1 e cujas fundações foram descalçadas. A inclinação do mesmo começa a ser preocupante, temendo-se a hipótese de derrocada com o aproximar do Inverno. Em 2008, conforme atesta o Registo 4803, de que se junta cópia, houve reunião com o empreiteiro e a DOL, no sentido de o Promotor do loteamento executar as obras necessárias no muro. Em face do presente ofício da Junta de Freguesia, conclui-se que o muro continua a degradar-se em virtude de ter sido descalçado com as obras inerentes ao loteamento. Em nosso entender, e face ao exposto, somos da opinião que deverá ser a DOL a contactar o empreiteiro a resolver o problema”.
23. Em 11/01/2011, o consultor jurídico da Câmara Municipal de ... presta a seguinte informação: “A Junta de Freguesia de … vem denunciar/oficiar que o muro do Jardim Infantil/ Escola Primária, confrontando com a Rua dos ..., está bastante inclinado, ameaça ruir e causa perigo para as crianças que brincam no recreio. Colhe-se o parecer técnico (Eng. V. G.) que o muro ameaça ruir em resultado de a sua fundação ter sido descalçada com as obras inerentes ao loteamento; e diz ainda, que teme-se a hipótese de derrocada com o aproximar do inverno. Muito embora, a responsabilidade de eventual derrocada e danos para os transeuntes, nomeadamente crianças que poderão aumentar o perigo em resultado de brincadeiras, seja do promotor do loteamento dado que não houve, ainda, receção definitiva das obras do loteamento, será de notificar o empreiteiro para, no prazo de 30 dias (seguidos a contar da receção da notificação), proceder à reparação das deficiências que tal muro apresenta. Se, no final desse prazo, independentemente da alegada reunião com os Serviços Técnicos do DOM (Departamento de Obras Municipais), não tiverem sido efetuadas as obras necessárias de reparação do muro, poderá a Câmara proceder à sua execução a expensas do promotor do loteamento”.
24. Em 20/01/2011, o A. remeteu à R. uma carta com o seguinte teor: “Relativamente ao assunto em título, ficam Vexas notificados para no prazo de 30 dias seguidos, a contar da data de recepção do presente ofício, proceder à reparação das deficiências do muro, conforme informações anexas”.
25. Por carta datada de 26/01/2011, recebida pelo A. em 01/02/2011, a R. informou o A. que considerava que o mencionado muro estava “(…) mais perigoso no interior da escola do que do lado do loteamento (…)”, mais pedindo a realização de uma nova reunião no local.
26. Em 16/03/2011, os técnicos do A., V. G. (engenheiro civil), A. T. (engenheiro civil) e F. B. (arquiteto), elaboraram um auto de vistoria, a qual foi ordenada por despacho do Vereador C. M., cujo teor, constante de fls. 190, verso, e 191, aqui se dá por reproduzido.
27. O A., em 17/06/2014, notificou a R. do teor do sobredito auto de vistoria, bem como de que dispunha do prazo de 30 dias para iniciarem as obras aludidas nesse auto.
28. A R. sabia, pelo menos desde a data aludida em 20., que o muro estava no estado aludido em 8. e 9.
29. Em 05/11/2015, sem que a R. tivesse feito as aludidas obras de reconstrução do muro, verificava-se forte inclinação do muro para a via pública, com sinais de perda de solo das fundações, sendo iminente o risco de desabamento sobre a via pública (Rua dos ...),
30. podendo atingir pessoas que por ali estivessem a passar ou veículos automóveis, com os consequentes danos pessoais e materiais.
31. O A., com o intuito de restabelecer as condições de segurança no local, entre os dias 05/11/2015 e 24/11/2015, demoliu parcialmente o muro existente nas secções que se apresentavam em estado de ruína, rebaixou a respetiva fundação para o nível da via pública adjacente e construiu, em parte, um novo muro com as fundações em rachão médio, revestido com argamassa de cimento e areia, com a respetiva elevação em betão ciclópico, colocando em cima uma rede plastificada verde, com arame plastificado, também, verde, 12 x 8, malha 50, com 1,5 metros de altura, presa em prumos de ferro tubulares galvanizados, espaçados de 2,5 m em 2,5 m.
32. O A. empregou em tal construção os seguintes materiais, equipamentos e mão de obra, com o custo global de € 4.772,67: 323 sacos de cimento, com 25 quilogramas cada um, pelo que pagou a quantia de € 3,25 por cada saco, num total de € 1.049,75; 29 toneladas de meia areia do rio, pelo que pagou a quantia de € 18,36 por cada tonelada, num total de € 532,44; 12 toneladas de rachão médio, pelo que pagou a quantia de € 4,61 por cada tonelada, num total de € 55,35; um rolo de arame plastificado verde (12 x 8), pelo que pagou a quantia de € 46,50; um litro de diluente celuloso, pelo que pagou a quantia de € 4,50; um litro de sub-capa verde, pelo que pagou a quantia de € 6,64; um litro de esmalte verde, pelo que pagou a quantia de € 10,84; 30 metros de rede plastificada verde, arame (12 x 8), malha 50, com 1,5 metros de altura, pelo que pagou a quantia de € 5,47 por cada metro, num total de € 164,10; sete tubos galvanizados, pelo que pagou a quantia de € 57,20 por cada tubo, num total de € 400,40; equipa de 4 trolhas, que trabalharam durante 35 horas, pelo que pagou a quantia de € 7,10 por cada hora, num total de € 994,00; equipa de 3 trolhas, que trabalharam durante 35 horas, pelo que pagou € 7,10 por cada hora, num total de € 745,50; um serralheiro, que trabalhou durante 35 horas, pelo que pagou a quantia de € 7,10 por cada hora, num total de € 248,50; um abre-valas, que trabalhou durante 7 horas, pelo que pagou a quantia de € 13,45 por cada hora, num total de € 94,15; um camião de 3 eixos, que foi utilizado durante 7 horas, pelo que pagou a quantia de € 20,00 por cada hora, num total de € 140,00; e uma carrinha, que foi utilizada durante 14 horas, pelo que pagou a quantia de € 20,00 por cada hora, num total de € 280,00.
33. Em 24/11/2015, o chefe de divisão do Departamento de Obras Municipais informou o diretor desse departamento de que as obras de reconstrução do dito muro estavam concluídas.
34. Em 03/02/2016, o Presidente da Câmara Municipal de ... proferiu decisão, cujo teor, constante de fls. 210, verso, e 211, aqui se dá por reproduzida, reclamando da R. o pagamento dos aludidos € 4.772,67.
35. A decisão aludida em 34. foi notificada à R. em fevereiro de 2016.
36. A R. reclamou da decisão aludida em 34. nos termos constantes de fls. 207 a 209, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
37. A aqui R. intentou, no Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, uma ação administrativa contra o aqui A., que correu termos pela Unidade Orgânica 1, aí registada com o nº 834/16.4BEBRG, pedindo a anulação dos despachos do Presidente da Câmara Municipal de ... de 07/03/2015, de 13/11/2015, de 27/11/2015 e de 03/02/2016 e, consequentemente, a condenação do aqui A. a abster-se de cobrar à R. a quantia de 4.772,67€, correspondente à quantificação feita pelo A. dos custos da reconstrução do muro da Escola JI/EB1 de ..., em Guimarães, levada a cabo pelos serviços municipais.
38. Em 08/06/2016, a aqui R. foi notificada da contestação que o aqui A. apresentou no referido processo, cujo teor, constante de fls. 249 a 255, aqui se dá por reproduzido.
39. No âmbito do processo aludido em 37., foi, em 09/12/2019, proferida sentença, transitada em julgado, cujo teor, constante de fls. 142, verso, a 161, aqui se dá por reproduzido, na qual se decidiu julgar a ação proposta pela aqui R. procedente e, consequentemente, anular os atos impugnados.
40. Tal sentença foi notificada às partes em 12/12/2019.
41. A presente ação foi intentada em 29/06/2020,
42. tendo a R. sido citada para a mesma em 01/07/2020.
43. Pelo menos desde 27/10/2008, o A. tem conhecimento de que a aqui R. praticou os atos aludidos em 7., com as consequências descritas em 8. e 9.
44. Em 13/03/2007, o aqui A. emitiu, relativamente às infraestruturas construídas pela R. no âmbito da referida operação de loteamento, auto de receção provisório, do qual consta o seguinte: “Aos treze dias do mês de Março de dois mil e sete, compareceram no local da obra V. G. e A. T., para procederem na presença do promotor do loteamento aos exames de todos os trabalhos das obras de infraestruturas de pavimentação, águas pluviais e telefónicas tendo verificado que as mesmas encontram-se corretamente executadas, razão porque as consideram em condições de serem recebidas provisoriamente.”».

B) Factos julgados não provados

«a. Em 06/12/2007 e em 09/04/2008, a Junta de freguesia de ..., comunicou à Câmara Municipal de ... a existência de um muro da Escola JI/EB1 de ..., confrontante com o mencionado loteamento, em risco de derrocada em virtude de desaterro efetuado pela Ré no âmbito das aludidas obras do loteamento.
b. O muro ficou em risco de derrocada por falta de manutenção do mesmo por parte do A.,
c. aliado ao facto de tal muro ter sido erigido sem alicerces ou armação de ferro, estando apenas assente no solo,
d. e à circunstância de o vasto “silvado” e outra vegetação de grande dimensão que o cobria ter implicado um aumento do peso sobre o mesmo, comprometendo a sua estabilidade, em especial, quando atingido no inverno por rajadas de vento e chuva.»

IV – FUNDAMENTOS DE DIREITO

A) Da prescrição:

A prescrição, no direito civil, constitui uma excepção de direito material extintiva do direito, que, para operar, carece de ser invocada pelo devedor, ou seja, não pode o Tribunal dela conhecer oficiosamente

Sobre a sua “ratio” referia Vaz Serra (1):
– “Sem querer entrar na discussão de qual seja exactamente o fundamento da prescrição, que uns vêem na probabilidade de ter sido feito o pagamento, outros na presunção de renúncia do credor, ou na sanção da sua negligência, ou na consolidação das situações de facto, ou na protecção do devedor contra a dificuldade de prova do pagamento ou sossegado quanto à não-exigência da dívida, ou na necessidade social de segurança jurídica e certeza dos direitos, ou na de sanear a vida jurídica de direitos praticamente caducos, ou na de promover o exercício oportuno dos direitos – pode dizer-se que a prescrição se baseia, mais ou menos, em todas estas considerações, sem que possa afirmar-se só uma delas ser decisiva e relevante”.
Vem regulada nos artºs 298º e 300º a 327º do CC, sendo que, no que tange ao prazo de prescrição do direito à indemnização, rege o art.º 498º do mesmo diploma.

No caso em apreço está em discussão se decorreu ou não o prazo prescricional do direito à indemnização, que, pela presente acção, a autora visa efectivar, ou seja, se prescreveu, ou não, o direito da autora a ser indemnizada pelos alegados danos que a conduta da ré lhe causou, correspondentes ao valor da reparação do muro, que teve de efectuar a expensas suas, já que a ré, apesar de para tal interpelada, a não a efectuou.

Na sentença recorrida julgou-se verificada a prescrição do invocado direito da autora, com o seguinte fundamento:
– “Incumbia ao A. o ónus de demonstrar o devido enquadramento jurídico da situação, isto é, de que a conduta imputada à R. constituía a prática do referido ilícito criminal.
Porém, não resultou provada qualquer factualidade que pudesse levar à conclusão de que o facto ilícito praticado pela R. constitua a prática do crime acima referido.
Deste modo, deverá considerar-se que o prazo de prescrição aplicável no caso sub judice é o prazo de prescrição de 3 anos, consagrado no artigo 498º, n.º 1, do CC.
Tendo tal prazo de prescrição conhecido o seu início em 2008, o mesmo atingiu o seu termo em 2011.
Porém, se é certo que esta ação apenas foi intentada em 2020, também é certo que apenas em 08/06/2016 a aqui R. foi notificada da contestação que o ora A. apresentou no aludido processo que correu no Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, no âmbito da qual o aqui A. exprimiu a intenção de exercer o direito que se discute nesta ação.
Dúvidas não restam, pois, de que, tanto naquele dia de 08/06/2016 como à data em que a A. intentou a presente ação, o prazo de prescrição aplicável à situação em apreciação já há muito havia decorrido, tendo, pois, ocorrido a prescrição do direito invocado pelo A.”

Contrapõe o Município recorrente, em suma, que:
– O início do prazo de prescrição deu-se quando, entre os dias 05/11/2015 e 24/11/2015, o A. realizou as obras (ponto 31 dos factos provados).
– Sendo os factos qualificáveis como crime (mais precisamente crime de infracção de regras de construção – artigo 277º do CP), o prazo prescricional é de 5 anos, pelo que não estava ultrapassado em 29/06/2020, data da entrada da presente acção (ponto 41 dos factos provados).
– Se se entender que o prazo prescricional é de 3 anos, como em 08/06/2016 (ponto 38 dos factos provados) a aqui Ré foi notificada da contestação que o aqui A. apresentou naquele outro processo em que foram referidas as obras realizadas, o respectivo custo e que o mesmo era imputável àquela, tal notificação provocou a interrupção do prazo prescricional, que só voltou a correr após o trânsito em julgado da sentença proferida nessa acção (08/01/2020), pelo que não decorrera ainda o prazo prescricional quando esta acção foi instaurada.
Apreciando
A situação fáctica descrita nos autos enquadra-se, em nosso entender, na previsão do art.º 1348º do Código Civil (ex vi art.º 1304º), não existindo elementos suficientes para a enquadrar no crime tipificado no art.º 277º do Código Penal.

Efectivamente, prevê-se e pune-se neste normativo penal:
Quem, no âmbito da sua actividade profissional infringir regras legais, regulamentares ou técnicas que devam ser observadas no planeamento, direcção ou execução de construção, demolição ou instalação, ou na sua modificação ou conservação e criar deste modo perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado, é punido com pena de prisão de um a oito anos. Se o perigo for criado por negligência, com pena de prisão até cinco anos. Se a conduta for praticada por negligência, o agente é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
Trata-se de um crime de perigo concreto.
Os crimes de perigo caracterizam-se pela inexistência para o tipo de uma lesão efectiva de bens ou interesses. Ou seja, o tipo legal de crime não exige a verificação do dano – que será um crime autónomo ou tratado sob a forma de “agravação pelo dano” – bastando, para a sua verificação, o perigo da sua ocorrência.
O que vem provado sob o nºs 7, 8 e 9 poderia constituir infracção de regras técnicas. Contudo, após a efectivação das obras relativas às infraestruturas do loteamento (em resultado das quais o muro do apelante ficou sem segurança), o Município autor emitiu auto de recepção provisório, do qual consta: “Aos treze dias do mês de Março de dois mil e sete, compareceram no local da obra V. G. e A. T., para procederem na presença do promotor do loteamento aos exames de todos os trabalhos das obras de infraestruturas de pavimentação, águas pluviais e telefónicas tendo verificado que as mesmas encontram-se corretamente executadas, razão porque as consideram em condições de serem recebidas provisoriamente.”».
Ou seja, o próprio município autor deu por bem executadas, sem erro, as obras em questão.
No entanto, não deixaremos de analisar a questão em apreço para a hipótese de os factos constituírem crime.
Ora, mesmo que considerássemos terem sido alegados e provados os elementos essenciais e indispensáveis deste tipo legal de crime – que a ré infringiu regras técnicas (as regras técnicas são as que os profissionais praticam de acordo com o saber do seu ofício e que concretamente se impõem no planeamento e execução segura de determinada obra e na prevenção de acidentes), criando perigo concreto para a vida, integridade física ou bens patrimoniais de elevado valor – sempre estaríamos perante uma conduta negligente, pelo que, atenta a moldura penal (art.º 277º nº 3 do C. Penal) o prazo de prescrição do procedimento criminal seria de 5 anos (art.º 118º nº 1 al. c) do C. Penal).
Como acima referimos, trata-se de um crime de perigo concreto, em que a verificação do dano não é elemento legal do tipo,
O perigo em questão, decorrente de não se ter respeitado as tais regras técnicas, verifica-se, pelo menos, desde que constatado pela Junta de freguesia, que alertou a autora em 29-7-2008 (facto nº 15).
Assim o procedimento criminal por este crime de perigo concreto já teria prescrito em 2014.
Contudo, o que para o caso interessa não é a prescrição do procedimento criminal, mas sim a prescrição do direito da autora a ser indemnizada pelos danos sofridos, consubstanciados na reparação que teve de efectuar para evitar a derrocada do muro.
Ora, seja o prazo de 3 anos, previsto no nº 1 do art.º 498º do CC, seja o prazo mais longo previsto no nº 3 (no caso, de 5 anos para o procedimento criminal), o mesmo conta-se da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, embora com desconhecimento da pessoa do responsável e da extensão integral dos danos, sem prejuízo da prescrição ordinária se tiver decorrido o respectivo.
O município autor tem conhecimento de que, em resultado de escavação efectuada pela ré no âmbito de uma obra realizada no prédio vizinho, o muro que lhe pertence se encontra sem condições de estabilidade e em risco de desabar (factos 7, 8, e 9), carecendo de obras que garantissem as condições de segurança do muro, mais precisamente, a sua reconstrução, o rebaixamento da fundação para o nível do solo, após corte, e, posteriormente, a recolocação da rede de vedação (facto 10), desde 29-7-2008 (facto 15), ou “pelo menos desde 21-11-2008”, como se concede na sentença (factos 28 e 20).
Assim, contrariamente ao defendido pelo município apelante, o prazo prescricional não se iniciou “entre os dias 05/11/2015 e 24/11/2015”, altura em que por sua conta efectuou as obras de reparação do muro, mas 7 anos antes, quando teve conhecimento da lesão do seu direito de propriedade e do direito que lhe competia de ser indemnizada (reparação in natura).
Ora, a prescrição interrompe-se com o reconhecimento do direito, efectuado perante o respectivo titular por aquele contra quem o direito pode ser exercido (art.º 325º do CC) – o que nunca sucedeu.
Ou mediante citação ou notificação judicial de qualquer acto que exprima, directa ou indirectamente, a intenção de exercer o direito, seja qual for o processo a que o acto pertence e ainda que o tribunal seja incompetente (art.º 323º nº 1 do CC). Sendo equiparado à citação ou notificação qualquer outro meio judicial pelo qual se dê conhecimento do acto àquele contra quem o direito pode ser exercido (nº 3 do referido artigo).
Mesmo que a notificação, à aqui apelada, da contestação da acção que interpusera no Tribunal Administrativo e em que o município autor era demandado, referida nos factos 37, 38 e 39, pudesse ser considerada “notificação de acto que exprima directa ou indirectamente, a intenção de exercer o direito”, tendo a mesma ocorrido em 08-6-2016, não teria a virtualidade de interromper um prazo que já se mostrava expirado.
Pelo exposto não acolhemos as doutas conclusões do apelante, impondo-se confirmar a sentença recorrida.

V – DELIBERAÇÃO

Nestes termos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o presente recurso, confirmando a sentença recorrida.
Custas pelo apelante.
Guimarães, 24-02-2020

Eva Almeida
António Beça Pereira
Ana Cristina Duarte


1. Prescrição Extintiva e Caducidade, p. 32.