IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ATROPELAMENTO
CONDUTA DO ARGUIDO
CONDUTA DO PEÃO
GRAU DE RESPONSABILIDADE
Sumário


I) - Constitui entendimento consolidado na jurisprudência que a prova da inobservância das regras estradais faz presumir a culpa daquele que as desrespeite, desde que a infracção seja causal do acidente.
II) - Tendo o condutor do veículo JL e o peão atropelado contribuído para a produção do sinistro, com invasão da faixa de rodagem contrária pelo veículo, embate no peão que se encontrava nessa faixa, despiste e embate numa habitação situada uns metros mais à frente, por mútuo e ilícito desrespeito de regras estradais, disposições legais destinadas à protecção de interesses alheios, pode concluir-se que ambos actuaram com imprudência, de forma contrária ao dever geral de diligência que se lhes impunha, pelo que estamos perante uma situação do artº. 570º, n.º 1 do Código Civil.
III) - Na atribuição do grau de responsabilidade de cada um dos intervenientes no acidente, deve sempre o tribunal estipular tal grau de acordo com o princípio da proporcionalidade.
IV) - Deste princípio decorre que na ponderação do grau de responsabilidade em causa, na repartição de culpas na produção do acidente, deve o tribunal atender à especial intensidade dos riscos próprios do veículo e, por outro lado, ao comportamento causal do lesado e a sua determinação na conduta que terá contribuído para as lesões sofridas.
V) - Assim, tendo em conta a imprudência, imperícia e falta de atenção do condutor do JL, que imprimiu ao veículo uma velocidade superior a 80 km/hora (quando a velocidade máxima permitida no local era de 50 Km/hora), perdeu o controlo do mesmo e invadiu a faixa de rodagem contrária, sem cuidar das condições da via e do trânsito, nomeadamente de peões, que se processava na altura, vindo a embater num peão que na altura atravessava a estrada, bem como a intensidade dos riscos inerentes à própria circulação do veículo, deverá o grau de responsabilidade do peão na eclosão do acidente ser menor em relação à do condutor do veículo.

Texto Integral


Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

Fundo de Garantia Automóvel intentou a presente acção declarativa sob a forma de processo comum, contra X - Companhia de Seguros, S.A. e, subsidiariamente, contra:
1. J. M.,
2. C. A.,
pedindo que seja o condutor do veículo JL considerando único e exclusivo responsável pelo acidente de viação em causa nos presentes autos e, em conformidade:

a) seja a Ré X condenada no pagamento ao aqui Autor da quantia de € 20.457,44, acrescida dos juros legais vencidos, contados desde a data da citação até efectivo e integral pagamento, incrementados em 25%, e ainda no pagamento das despesas que o Autor vier a suportar com a cobrança do reembolso que também serão oportunamente liquidadas em ampliação do pedido ou em execução de sentença, bem como nas custas a que deu causa;
b) Subsidiariamente, caso se demonstre a inexistência e invalidade do seguro de responsabilidade civil que titulava a circulação do veículo JL à data de 3/07/2015, sejam os Réus subsidiários condenados no pagamento ao Autor da quantia de € 20.457,44, acrescida dos juros legais, contados desde a data da citação até efectivo e integral pagamento, e ainda no pagamento das despesas que o Autor vier a suportar com a cobrança do reembolso que também serão oportunamente liquidadas em ampliação do pedido ou em execução de sentença, bem como nas custas a que deu causa.
Para tanto alega, em síntese, que em 3/07/2015, pelas 20h20, ocorreu um acidente de viação na Rua ..., sensivelmente em frente ao n.º de polícia ..., freguesia de ..., concelho de Fafe, em que foram intervenientes o veículo ligeiro de mercadorias, de marca Seat, modelo Ibiza, com a matrícula JL, conduzido pelo 1º Réu subsidiário e propriedade do 2º Réu subsidiário, e o peão C. P..
Após descrever o acidente, as características e condições da via, bem como o local onde o mesmo ocorreu, alega que o acidente, que consistiu no atropelamento do peão C. P., ficou a dever-se ao comportamento culposo do 1º Réu subsidiário, que conduzia o veículo JL em velocidade excessiva para o local, face ao limite legal, e sem prestar a devida atenção ao trânsito de peões, não observando as precauções exigidas pela mais elementar prudência e cuidado.
O proprietário do veículo JL, aqui 2º Réu subsidiário, celebrou com a Ré X um contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel emergente da circulação desse veículo.
Defende a interposição da presente acção contra todos os RR. atenta a existência de fundado conflito decorrente da nulidade do contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel que titulava a circulação do veículo interveniente no sinistro invocada pela Seguradora, contraposta à validade de tal contrato de seguro invocada pelo proprietário do veículo, tomador do seguro.
Em face dessas posições divergentes, o A. procedeu ao pagamento de indemnizações e despesas relacionadas com o sinistro, nos termos do artº. 50º do DL 291/2007 de 21/8, que descrimina nos artºs 82º a 84º da petição inicial, tendo despendido o montante total de € 20.457,44 na regularização do sinistro dos autos.
Conclui que se encontra sub-rogado nos direitos dos lesados ressarcidos, nos termos do artº. 54º, nºs 1, 3 e 4 do supra citado diploma legal, assistindo-lhe o direito de exigir dos RR. as indemnizações satisfeitas, tendo ainda direito aos juros de mora legais e ao reembolso das despesas de liquidação e cobrança que houver feito.

Os RR. J. M. e C. A. contestaram, invocando a excepção da prescrição do direito de regresso invocado pelo Autor relativamente aos pagamentos efectuados por este até 25/09/2016, pugnando pela validade do contrato de seguro celebrado com a Ré Seguradora relativo ao veículo JL e impugnando grande parte da factualidade alegada na petição inicial, apresentando uma versão da dinâmica do acidente distinta da ali descrita, imputando a culpa pela ocorrência do sinistro exclusivamente ao peão C. P., que atravessou a faixa de rodagem sem observar as mais basilares regras de precaução e cuidado.

Concluem os RR., pugnando:
- pela procedência da excepção de prescrição invocada, com a absolvição dos RR. do pedido;
- seja considerado válido e em vigor o contrato de seguro de responsabilidade civil celebrado com a Ré X sobre o veículo de matrícula JL, titulado pela apólice nº. .....33;
- pela improcedência da acção, com a absolvição dos RR. contestantes do pedido.

A Ré X - Companhia de Seguros, S.A., por sua vez, contestou, impugnando a factualidade alegada na petição inicial, designadamente quanto à dinâmica do acidente e aos danos invocados como ressarcidos, defendendo, ainda, a existência de fundamentos para a nulidade ou anulabilidade do contrato de seguro referente ao veículo interveniente no sinistro, por falsas declarações do tomador de seguro no tocante à propriedade e condutor habitual do mesmo.
Termina, pugnando pela improcedência da acção e sua absolvição do pedido.

Os RR. J. M. e C. A. vieram exercer o contraditório, impugnando o alegado pela Ré X e mantendo tudo quanto deixaram dito na sua contestação.

O A. apresentou resposta na qual pugnou pela improcedência da excepção da prescrição deduzida pelos RR. subsidiários, concluindo pela tempestividade da presente acção e mantendo o alegado na petição inicial.

Foi realizada audiência prévia, na qual foi proferido despacho saneador, onde os RR. subsidiários declararam dar sem efeito a excepção de prescrição por eles invocada, se procedeu ao saneamento da acção, verificando-se a validade e regularidade da instância, se definiu o objecto do litígio e enunciou os temas de prova, que não sofreram reclamações.

Procedeu-se à realização da audiência de discussão e julgamento, com observância do legal formalismo, na qual os RR. declararam aceitar a matéria vertida nos artºs 65º a 82º da petição inicial.

Após, foi proferida sentença que julgou a presente acção parcialmente procedente, por parcialmente provada e:
a) Declarou improcedente o pedido de declaração do condutor do veículo JL como único e exclusivo responsável pelo acidente de viação em crise nos presentes autos.
b) Condenou a Ré X - Companhia de Seguros, S.A. no pagamento da quantia de € 10.228,72 ao Autor, acrescida de juros à taxa legal, desde a data de citação até efectivo e integral pagamento, incrementados em 25%, e das despesas extrajudiciais com a cobrança do reembolso que o Autor vier a liquidar.
c) Absolveu os Réus do demais peticionado.

Inconformado com tal decisão, o Autor Fundo de Garantia Automóvel dela interpôs recurso, extraindo das respectivas alegações as seguintes conclusões [transcrição]:

1. O facto 16 da matéria de facto provada deve passar a ter a seguinte redacção: "No decurso de tal travessia. próximo do eixo da via, surgiu o veículo JL circulando na hemifaixa destinada à circulação no sentido Fafe - Celorico de Basto."
2. O facto 18 da matéria de facto provada deve ser alterado passando a ter a seguinte redacção: "Ao aperceber-se da aproximação do veículo JL e que não chegaria ao outro lado da via antes da passagem do mesmo. o peão C. P. voltou para trás, para a hemifaixa de rodagem afecta ao sentido de trânsito Celorico de Basto - Fafe."
3. O facto 19 deve ser alterado e passar a ter a seguinte redacção: "Ao deparar-se com o peão próximo do eixo da via. o Réu J. M. accionou o travão e perdeu o controlo do veículo e despistou-se."
4. O facto 23 da matéria de facto provada deve ser alterado e passar a ter a seguinte redacção: "Após o embate no peão, o condutor do JL manteve-se em despiste."
5. As alíneas c), d) e e) da matéria de facto não provada devem passar a constar da matéria de facto provada.
6. A alínea g) da matéria de facto não provada deve ser eliminada, aditando-se uma nova alínea, considerando-se como não provado que: O Réu J. M. tenha realizado gualguer manobra no sentido de desviar-se do C. P. antes do embate com o mesmo."
7. A revogação da decisão sobre a matéria de facto acima referida, funda-se na interpretação do acervo probatório constantes dos autos, nomeadamente os depoimentos do R. J. M., e das testemunhas C. P., CABO DA GNR, L. A. e, bem assim, a Participação do Acidente de Viação e o Relatório de Averiguação.

***
8. Atenta a reconformação da matéria de facto, deve considerar-se, que o comportamento do condutor do veículo JL contribuiu de forma única e exclusiva para o atropelamento do peão.
9. O condutor do JL violou com a sua conduta várias regras estradais, como sendo as que constam do disposto nos artigos 3º, 13º, 24º e 25º do CE.
10. Da conduta do peão não se surpreende qualquer facto que possa ser objecto de censura.
11. Devendo a companhia de seguros R. nos autos ser condenada na proporção de 100%.
***
12. Sem conceder, e ainda que não proceda, o que se admite por mera cautela, ainda assim é forçoso que se conclua, da prova produzida nos autos, que o condutor do JL tem responsabilidade exclusiva na eclosão do sinistro.
13. Na verdade, a velocidade excessiva e a invasão da faixa de rodagem contrária foram elementos determinantes na eclosão do sinistro.
14. O condutor do JL poderia e deveria ter avistado o peão a cerca de 191 metros de distância, quando este se aproximava do eixo da via.
15. O condutor do TZ, caso conduzisse com atenção e perícia, e adequando a velocidade e a condução à estrada e ao trânsito, teria tempo e espaço para avistar o peão e reagir de forma a abrandar e parar no espaço visível e livre à sua frente.
16. Devendo a companhia de seguros R. nos autos ser condenada na proporção de 100%.
***
17. Sem conceder, e caso o tribunal ad quem entenda atribuir culpa também ao peão na eclosão do sinistro - com o que não se concorda - tendo em conta a falta de destreza, imperícia e falta de atenção do condutor do veículo, imprimindo ao veículo uma velocidade superior a 80km/h, invadindo a faixa de rodagem contrária, entrando em despiste, sem cuidar das condições da via e do trânsito, nomeadamente de peões, que se processava na altura, deve entender-se que a culpa deve ser amplamente reduzida, entendendo o FGA que deve ser distribuída na proporção de 10% para o peão e 90% para o condutor do veículo JL.
18. Respondendo a companhia de seguros na proporção assim definida, nos termos do 570º do CC.
19. O tribunal a quo violou os artigos 3º, 13º, 24º, 25º, 99º, 100º e 101º do Código da Estrada e, bem assim, o disposto no artigo 570º do CC.

Termina entendendo que o presente recurso deve ser julgado procedente, nos termos acima peticionados.

A Ré Seguradora apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.
Os RR. J. M. e C. A. não apresentaram contra-alegações.

O recurso foi admitido por despacho de 25/10/2021 (refª. 175722797).
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, não podendo o Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, tendo por base as disposições conjugadas dos artºs 608º, nº. 2 (aplicável “ex vi” do artº. 663º, n.º 2 in fine), 635º, nº. 4, 637º, nº. 2 e 639º, nºs 1 e 2 todos do Novo Código de Processo Civil (doravante designado NCPC), aprovado pela Lei nº. 41/2013 de 26/6.

Nos presentes autos, o objecto do recurso interposto pelo Autor, delimitado pelo teor das respectivas conclusões, circunscreve-se à apreciação das seguintes questões:

I) – Impugnação da decisão sobre a matéria de facto;
II) – Saber se deverá ser alterada a solução jurídica da causa, quanto à responsabilidade pela ocorrência do acidente.
*
Na sentença recorrida foram considerados provados, com relevância para a decisão da causa, os seguintes factos [transcrição]:

1) No dia 3 de julho de 2015, pelas 20h20m, ocorreu um acidente de viação na Rua ..., sensivelmente em frente ao n.º de polícia ..., freguesia de ..., concelho de Fafe.
2) No referido acidente intervieram o veículo ligeiro de mercadorias, de marca Seat, modelo Ibiza, de cor cinzenta e matrícula JL, conduzido pelo Réu J. M. e propriedade do Réu C. A., e o peão C. P..
3) O local onde ocorreu o acidente configura uma curva, com inclinação ascendente, com duas vias de trânsito, uma destinada ao sentido Fafe - Celorico de Basto e a outra destinada ao sentido inverso.
4) Separadas por uma linha longitudinal descontínua.
5) A faixa de rodagem tem 6,20 metros de largura, dividida em duas hemifaixas de 3,10 metros de largura para cada um dos dois sentidos de trânsito (Fafe-Celorico de Basto e Celorico de Basto-Fafe).
6) O pavimento era de asfalto betuminoso e encontrava-se, à data, em bom estado de conservação.
7) O local do acidente é ladeado por edifícios de habitação e comércio, consistindo numa localidade, sendo a velocidade máxima permitida de 50 km/hora.
8) Em tal local existem dois espelhos parabólicos instalados num poste do lado da hemifaixa destinada à circulação no sentido Fafe – Celorico de Basto.
9) A estrada, no lado direito, atento o sentido de marcha Fafe – Celorico de Basto, apresenta uma berma, com cerca de um metro de largura, onde existe passeio para os peões.
10) No lado esquerdo, atento o mesmo sentido de marcha, existe uma berma de dimensões variáveis onde não existe passeio para peões.
11) À hora do sinistro o estado do tempo era bom e a via era iluminada pela luz do dia.
12) Atento o sentido de marcha do JL (Fafe – Celorico de Basto), no local do acidente, a estrada configura um cruzamento da Rua do … com a Rua ... e do Largo de ... com a Rua ....
13) Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas, o peão C. P. encontrava-se a pé, no limite da hemifaixa destinada ao trânsito no sentido Celorico de Basto–Fafe, em local onde a mesma configura uma curva, mais próximo da entrada da Quinta ..., em frente ao café ....
14) E porque pretendia atravessar a estrada, olhou para ambos os lados, mas sem olhar para os espelhos referidos em 8).
15) E iniciou a travessia da faixa de rodagem, da esquerda para a direita, atento o sentido de marcha Fafe-Celorico de Basto.
16) No decurso de tal travessia, e tendo já atravessado o eixo da via, surgiu o veículo JL, circulando na hemifaixa destinada à circulação no sentido Fafe – Celorico de Basto.
17) A uma velocidade superior a 80 Km/h.
18) Ao aperceber-se da aproximação do veículo JL e que não chegaria ao outro lado da via antes da passagem do mesmo, o peão C. P. hesitou e voltou atrás, para a hemifaixa de rodagem afeta ao sentido de trânsito Celorico de Basto-Fafe.
19) Ao deparar-se com o peão na sua hemifaixa de rodagem, o Réu J. M. acionou o travão e tentou desviar-se das trajetórias do peão C. P., tentando contorná-lo pela sua esquerda e posteriormente pela sua direita.
20) Tendo invadido a hemifaixa de rodagem afeta ao sentido de trânsito contrário, ou seja, a hemifaixa de rodagem da esquerda, na direção Celorico de Basto – Fafe.
21) Onde veio a embater com o lado esquerdo do seu veículo no peão C. P..
22) Tendo o peão sido projetado, ficando após imobilizado no solo.
23) Após o embate com o peão, o condutor do JL perdeu o controlo do veículo e despistou-se.
24) Indo embater na entrada do portão da garagem da habitação que se situa do lado direito, atento o seu sentido de marcha, uns metros à frente do local do atropelamento, com o n.º de polícia ... da Rua de ....
25) Mantendo-se em despiste até se imobilizar por completo contra a berma da estrada, do lado direito, atento o seu sentido de marcha.
26) Deixando para trás, desde o local do atropelamento, um rasto de travagem de 37,40 metros (roda dianteira esquerda) e de 27,45 metros (roda dianteira direita).
27) No local do embate não existe passadeira, ficando a mais próxima a uma distância superior a 100 metros.
28) Tendo em conta o sentido de circulação seguido pelo 1.º Réu subsidiário, a travessia do peão C. P. era visível, no início da travessia, junto à extremidade da hemifaixa no sentido de circulação inverso, a 33 metros de distância, a meio da travessia de tal hemifaixa a 71 metros de distância, e no eixo da via a 191 metros de distância.
29) Do local onde o peão iniciou a travessia, a estrada é visível à sua direita numa distância de cerca de 70,05 metros.
30) Em consequência do sinistro, o C. P. sofreu ferida contusa na região frontoparietal direita e fratura exposta dos ossos da perna esquerda.
31) Foi socorrido e transportado para o Hospital de ... – Guimarães, onde esteve internado até 20.07.2015.
32) Para tratamento de tais lesões, o C. P. foi sujeito a cirurgia corretora no dia 4.7.2015, na qual foram realizados os procedimentos de redução cirúrgica e osteossíntese da fratura.
33) Após alta hospitalar para o domicílio, fez marcha com apoio de duas canadianas,
34) Foi orientado para a consulta externa de Ortopedia.
35) Passou a ter apoio domiciliário de enfermagem para tratamento das feridas da perna que, além da infeção local, se revelavam de difícil cicatrização.
36) Devido ao atraso na consolidação óssea é sujeito a novo internamento hospitalar em 14.12.2015.
37) Em 18.12.2015 foi operado novamente.
38) Nesta intervenção cirúrgica foi retirado o material de fixação interna e realizada nova osteossíntese, agora com excerto ósseo.
39) Em 21.12.2015 tem alta hospitalar para o domicílio, mantendo os cuidados de enfermagem e orientado para a consulta externa de Ortopedia.
40) Em 18.10.2016, considerando que se mantinha a pseudartrose da tíbia esquerda, com varização ao nível do foco da fratura, o C. P. é sujeito a novo internamento, agora, no Hospital Privado … em ….
41) Tendo sido operado nesse mesmo dia para nova osteossíntese com placa e parafusos com excerto ósseo.
42) Tem alta hospitalar em 23.10.2016.
43) E alta da consulta externa de Ortopedia, em 21.05.2018, após se ter verificado a consolidação óssea.
44) Realizou sempre, e em simultâneo, o tratamento por Fisioterapia.
45) Em consequência do sinistro, ocorreram danos materiais no portão da garagem, e nas pedras de granito adjacentes ao mesmo, da habitação com o n.º de polícia ... da Rua de ..., da qual é proprietário o F. M.
46) Por força do acidente descrito em 1) a 29) o Autor procedeu ao pagamento:
- A C. P., da quantia global de € 10.052,82, correspondentes a despesas de transporte no valor de € 44,00, a Assistências/Tratamentos Hospitalares no valor de € 5.717,61 e a Despesas Médico/Medicamentosas no valor de € 4.291,21.
- Ao Hospital ... – Guimarães, Braga, em 4.05.2016, da quantia de € 9.324,31, a título de despesas com internamento e tratamentos inerentes.
- A F. M, em 24.07.2017, a quantia de € 474,40, a título de despesas com a reparação dos danos verificados no seu prédio.
47) Por despesas com a averiguação o Autor pagou à Y Consulting, S.A, € 57,81, em 11.08.2017, e € 123,00, em 23.12.2015.
48) Pelo relatório de avaliação do dano corporal junto como documento 4, e bem assim, pelas demais consultas e consequentes avaliações, o Autor pagou ao gabinete do Dr. A. L., a quantia de €75,00, em 24.11.2017, €75,00, em 30.03.2017, €50,00, em 16.12.2016, €75,00, em 6.5.2016, €75,00, em 8.02.2019 e €75,00, em 22.06.2018.
49) O Réu C. A. celebrou com a Ré X, Companhia de Seguros, S.A., contrato de seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis, titulado pela apólice n.º .....33, tendo por objeto o veículo automóvel de marca Opel modelo Corsa e matrícula EV.
50) Tendo sido indicado como condutor habitual do veículo o tomador do seguro.
51) O objeto do seguro foi alterado em 5 de outubro de 2013, para o veículo de matrícula JL, mantendo-se as demais garantias do contrato, assim como o condutor habitual declarado.
52) No âmbito de tal contrato de seguro, a ré seguradora X emitiu as atas de seguro, as cartas verdes, os certificados de seguro automóvel, os dísticos e cobrou os prémios de seguro, pagos pelo Réu C. A., para os períodos entre 16 de março de 2012 a 15 de março de 2013 (período inicial), de 16 de março de 2013 a 15 de março de 2014 (1.ª prorrogação), de 16 de março de 2014 a 15 de março de 2015 (2.ª prorrogação) e de 16 de março de 2015 a 15 de março de 2016 (3.ª prorrogação).
53) A Seguradora dirigiu ao Réu C. A. missivas datadas de 21.08.2015, declarando pretender a anulação do seguro contratado em virtude de falsas declarações, tendo igualmente dado conhecimento de tal posição ao Fundo de Garantia Automóvel a 19 de novembro de 2015.
54) O réu J. M. é irmão do Réu C. A..
55) E nasceu em ..-7-1991.

Por outro lado, na sentença recorrida foram considerados não provados os seguintes factos [transcrição]:

a) A berma referida em 10) tinha cerca de 0,50 metros.
b) No momento referido em 14) o peão C. P. olhou para os dois espelhos parabólicos instalados no outro lado da faixa de rodagem.
c) Certificando-se que não circulava nenhum veículo em nenhuma das vias que pretendia atravessar.
d) O peão C. P. apercebeu-se da aproximação do veículo JL antes de traspor a linha longitudinal descontínua que dividia as duas hemifaixas.
e) No momento que precedeu o embate com o peão C. P. o Réu J. M. conduzia sem atenção à estrada.
f) O veículo JL embateu no peão com o canto frontal esquerdo e continuamente com toda a lateral parte frontal, até embater no espelho lateral esquerdo.
g) O Réu J. M. não chegou a acionar o sistema de travagem nem a fazer qualquer manobra no sentido de desviar-se de C. P. antes do embate com o mesmo.
h) No momento que precedeu o acidente o Réu J. M. circulava a velocidade não superior a 50 Km/hora.
i) O peão C. P. iniciou a travessia da estrada sem olhar nem para a esquerda nem para a direita, de forma desatenta, num momento em que o veículo JL lhe era visível.
j) Do local onde o peão C. P. iniciou a travessia da estrada a mesma era-lhe visível à sua direita por uma distância de mais de 200 metros.
k) O peão C. P. atravessou a via em passo acelerado.
l) O embate entre o veículo JL e o peão C. P. deu-se na hemifaixa de rodagem reservada ao sentido de trânsito Fafe - Celorico de Basto.
m) O Réu J. M. era o condutor habitual e proprietário do veículo JL.
n) O Réu C. A. nunca foi proprietário nem possuidor de tal veículo, não sendo o seu condutor habitual.
o) O Réu C. A. declarou ser o condutor habitual do veículo JL sabendo que tal não correspondia à verdade, tendo como objetivo manter a cotação tarifária do contrato, nomeadamente, inexistência de qualquer agravamento de prémio de seguro que existiria dada a idade do seu irmão.
*
Apreciando e decidindo.

I) - Impugnação da decisão sobre a matéria de facto:

Vem o A., ora recorrente, impugnar a decisão sobre a matéria de facto, pretendendo que:

a) - nos pontos 16, 18, 19 e 23 dos factos provados seja dado como provado que:
16) No decurso de tal travessia, próximo do eixo da via, surgiu o veículo JL circulando na hemifaixa destinada à circulação no sentido Fafe - Celorico de Basto;
18) Ao aperceber-se da aproximação do veículo JL e que não chegaria ao outro lado da via antes da passagem do mesmo, o peão C. P. voltou para trás, para a hemifaixa de rodagem afecta ao sentido de trânsito Celorico de Basto – Fafe;
19) Ao deparar-se com o peão próximo do eixo da via, o Réu J. M. accionou o travão e perdeu o controlo do veículo e despistou-se;
23) Após o embate no peão, o condutor do JL manteve-se em despiste;
b) – as alíneas c), d) e e) dos factos não provados sejam dadas como provadas;
c) - a alínea g) dos factos não provados seja eliminada, aditando-se uma nova alínea, considerando-se como não provado que:
O Réu J. M. tenha realizado qualquer manobra no sentido de desviar-se do C. P. antes do embate com o mesmo;
por entender que o Tribunal “a quo” fez uma incorrecta apreciação da prova produzida nos autos, designadamente do depoimento de parte do R. J. M., dos depoimentos das testemunhas C. P., N. P. e L. F., da Participação de Acidente de Viação elaborada pela GNR (doc. 1 da petição inicial) e do Relatório de Averiguação de Acidente de Viação elaborado pela testemunha perito averiguador L. F. (doc. 2 da petição inicial).

Ora, na “motivação de facto” que integra a sentença recorrida, escreveu-se o seguinte [transcrição]:
«Para a decisão sobre a matéria de facto provada e não provada, a convicção do Tribunal assentou na posição assumida pelas partes nos respetivos articulados e em juízo no tocante à confissão de factos alegados, no teor dos documentos juntos aos autos, nas declarações e depoimento de parte prestados, na inspeção ao local realizada e na inquirição das testemunhas que teve lugar na audiência final, elementos instrutórios apreciados conjuntamente segundo as regras do ónus da prova e as regras da experiência.
Realça-se que nem toda a factualidade alegada foi levada à factualidade provada e não provada, expurgando-se a matéria conclusiva, de direito, e irrelevante para a decisão da causa. Assim, e no tocante aos factos provados 30) a 46) os mesmos resultaram do acordo das partes quanto à sua veracidade, expresso na audiência de 7-4-2021.
Os factos provados 1) a 29), e não provados a) a l) correspondem à factualidade atinente à dinâmica do acidente e caraterísticas da via em que o mesmo se deu.
As caraterísticas da via resultam, essencialmente, do vertido na participação do acidente de viação e fotografias do local do acidente juntas à petição inicial e em audiência, bem como das declarações do militar da GNR inquirido em juízo e da inspeção ao local realizada. Atestando tais provas o vertido em 3) a 12) e 27) a 29), mas afastando o descrito nos factos não provados a) e j) – a berma referida em 10) tem uma dimensão variável, como resulta das fotos juntas, consubstanciando no local onde foi tentada a travessia da via por C. P. um caminho calcetado que não é um passeio para peões, mas sim uma área onde os mesmos podem circular, como o podem fazer também veículos automóveis, e as medições realizadas no local afastaram o vertido em j), como decorre do auto de inspeção lavrado (são visíveis apenas 70,05 metros à direita).
No tocante à dinâmica do acidente, e como infelizmente sucede em muitos casos semelhantes, a prova produzida foi relativamente esparsa. As pessoas inquiridas com conhecimento direto dos factos, ou seja, que disseram ter presenciado o acidente, foram apenas três: o Réu J. M., o peão C. P. e a testemunha P. F..
Sucede porém que esta última testemunha, apesar de não se poder dizer com toda a certeza que mentiu em juízo, não deixou de ter pontos do seu depoimento que suscitam, no mínimo, grande estranheza e desconfiança quanto à efetiva visualização do acidente. Na verdade, a mesma referiu, com aparente certeza, que o Sr. C. P. chegou no dia do atropelamento ao local de carro, tendo estacionado o mesmo e, logo após, tentado atravessar a via aqui em causa, momento em que foi embatido pelo veículo JL. Mais referiu que chegou a cumprimentar o referido Sr. C. P. antes do infeliz embate. Mas, questionado o Sr. C. P., o mesmo referiu que já se encontrava no local antes do sinistro em apreciação… Sem ter chegado ali de carro, não se recordando de cumprimentar a Sr.ª P. F.. Mais ainda, o próprio militar da GNR não faz menção de qualquer testemunha com o nome da Sr.ª P. F., como seria provável que acontecesse se tivesse percecionado o acidente e lá ficado a assistir às diligências que se seguiram ao mesmo. O depoimento desta testemunha, face às apontadas contradições e fragilidades, tem-se assim como dúbio e não credível, não podendo auxiliar ou influenciar o Tribunal em qualquer sentido.
A descrição do acidente queda-se assim com o descrito pelo Réu J. M., condutor do veículo JL – em depoimento de parte, inexistindo todavia impedimento legal à consideração das suas declarações para efeito de formação da convicção do Tribunal no tocante à matéria relativamente à qual foi o mesmo inquirido –, e pelo peão C. P.. E que depuseram duma forma, tanto num caso como noutro, com claras dificuldades em descrever, ponto por ponto, o que aconteceu, o que, mais do que influenciado por uma natural parcialidade (pois que não deixam de ter, ambos, interesse no desfecho da ação), que não deixou de transparecer em alguns pontos, também decorrerá certamente da dificuldade em descrever eventos que se esgotam em segundos, sendo uma dificuldade habitual nesta espécie de litígios.
Não obstante, e pese embora tais dificuldades, não deixou o Tribunal de ter por certa a dinâmica comprovada, com o afastamento de alguns dos factos, coadjuvando as descrições realizadas com os elementos constantes da participação do acidente, relatório de acidente junto com a petição inicial, elementos juntos pela Conservatória a 25-6-2020, o resultado da inspeção ao local, e com as declarações do militar do GNR. De sublinhar, a este respeito, que a inspeção ao local se revelou especialmente impressiva, denotando duma forma que as fotografias juntas aos autos não transpareciam de igual forma a fraca visibilidade no local para quem pretenda atravessar a via no local em causa nos autos.
Tais elementos apontam, univocamente, para a veracidade do referido em 1), 2), 13), 15), 18), 22), e 23) a 26), inexistindo propriamente discórdia ou controvérsia quanto aos mesmos.
O mesmo já não sucedeu quanto à demais matéria atinente à dinâmica do acidente.
Foi desde logo contestado que o peão C. P. tenha olhado para os dois lados da estrada antes de tentar a sua travessia, quando se encontrava na extremidade da hemifaixa destinada ao trânsito no sentido Celorico da Beira – Fafe. Não obstante, e pese embora tal cuidado tenha sido impugnado pelos Réus pessoas singulares, o certo é que inexistiu qualquer prova que ateste, de forma clara, que tal diligência prévia não tenha sido encetada, sendo que pelas regras da experiência é mais habitual (quase inato) que antes de se atravessar uma estrada se olhe para os dois lados, não podendo assim o Tribunal ter por certo que o peão não o fez.
Mas certo é também, porque admitido pelo próprio peão, que o mesmo não recorreu aos espelhos parabólicos existentes no local e que lhe permitiriam aferir se existiam quaisquer veículos a circular na reta que antecedia a curva onde pretendia atravessar a estrada (e por onde circulava o veículo JL). De notar que face às medições realizadas no local, para lá de 70 metros à sua direita no local onde iniciou a travessia, a estrada só é visível com recurso a tais espelhos (inutilizados atualmente, mas funcionais à data, de acordo com o peão sinistrado). Do exposto decorreu o teor do facto provado 14), e o teor dos factos não provados b) e c).
Não existindo igualmente factos que atestem que no início da travessia o peão tivesse já possibilidade de ver ou que tenha visto o veículo JL, até tendo em consideração a fraca visibilidade para a direita da estrada existente no local, daí decorrendo o teor do facto não provado i).
Também controvertida foi a concreta extensão da travessia das faixas de rodagem que o peão chegou a levar a cabo. Neste ponto o testemunho de C. P. foi claramente confuso e contraditório, com constantes indecisões e inflexões. E, diga-se, pareceu que padeceu de tais fragilidades porque no seu entender uma não passagem do eixo da via corresponderia a uma não responsabilização do mesmo pelo acidente, posição que parecia estar empenhado em marcar. Não se podendo esquecer que esta testemunha não é parte desinteressada na versão dos factos que vingar em juízo (até porque existe um outro processo a correr termos em que peticiona indemnização por força de danos decorrentes deste sinistro).
Ora, cumpre notar que face ao referido credivelmente pelo militar da GNR em juízo, rastos de travagem existentes no local e descritos no croquis junto com a petição inicial, e indicação no momento do local do embate, que o embate entre o veículo JL e o peão C. P. se deu no local apontado no referido croquis, com o lado esquerdo do JL na perna do peão, ou seja, na hemifaixa destinada à circulação no sentido Celorico da Beira – Fafe, a 2,95m do limite junto à berma de tal hemifaixa e, consequentemente, a 15 cm do eixo da via.
Mas a verdade é que se foi em tal local que ocorreu o embate, e tendo por certo o admitido por C. P., de que ainda deu alguns passos atrás na via, fruto de hesitação quando viu o JL a aproximar-se, o referido peão teria já de ter atravessado o eixo da via, pois que esses passos o fariam andar seguramente mais do que os 15 cm que distam o local de embate do eixo da via. De resto, essa travessia do eixo acaba por melhor explicar a razão pela qual o condutor do JL terá ainda tentado um guinar à esquerda, para contornar o peão, que veio infelizmente a ser contrabalanceado pelos passos atrás do mesmo, que tiveram como resposta uma mudança de direção à direita e subsequente despiste – tal como referido pelo condutor Réu, acreditando-se o Tribunal no por si mencionado quanto às manobras de evasão por si tentadas.
Daí decorrendo o teor dos factos provados 16), 19) – referindo-se a respeito deste facto que inexistem também factos que nos levem a colocar em causa o início de tentativa de travagem antes do embate, pois que se se tentou desviar, provável é que também tenha tentado começar a travar ao mesmo tempo -, 20) e 21), e dos factos não provados d), f) – no tocante a estes pontos a prova produzida foi insuficiente para ter certezas quanto aos mesmos -, g) e l).
A prova produzida foi igualmente insuficiente para termos por certa a velocidade a que o peão C. P. atravessava a estrada, pois o próprio disse não se recordar da mesma, e o próprio Réu J. M. também não conseguiu dar resposta clara a tal questão, daí decorrendo o teor do facto não provado k).
No tocante à dinâmica do acidente deu ainda o Tribunal como certo que o condutor do veículo JL circulava a uma velocidade superior a 80 km/h, não provando que a velocidade a que circulava fosse inferior aos 50 km/h, contrariamente ao referido pelo Réu condutor. No tocante a tal velocidade não se pode, nem se baseou o Tribunal, como é manifesto, na perceção de elevada velocidade descrita pelo peão C. P.. Baseou-se, isso sim, nos rastos de travagem descritos no croquis junto à petição inicial, e comprovados em 26). Tais rastos de travagem são elementos que não ocorrem em todos os acidentes de viação, mas, quando existentes, como é aqui o caso, são elementos preciosos para a determinação da velocidade dos veículos intervenientes em sinistros. Inexistem quaisquer rastos de travagem antes do embate – o que não implica que não se tenha iniciado antes a travagem, mas tão só que tal travagem não deixou, até então, quaisquer rastos. Mas, após o embate, e mesmo com o despiste, tais rastos não deixam de apontar no sentido de que o Réu condutor tentou travar o seu veículo, tendo as rodas um mínimo de aderência ao solo para deixar as suas marcas, podendo os rastos apontar no sentido da velocidade aproximada que imprimia ao seu automóvel. Ora, recorrendo a tabelas existentes que apontam para as distâncias médias de paragem, desde a perceção por um condutor atento dum obstáculo na estrada, seguida de travagem, até imobilização do veículo, disponíveis, entre outros locais, no site http://www.imt-ip/sites/IMTT/Portugues/EnsinoCondução/ManuaisEnsinoConducao/Documents/Fichas
/FT_DistanciasdeSeguranca.pdf, podemos ter por certo que um rasto de travagem de 37,40m, como o registado no local após o embate, excede claramente os 12,50m de travagem previstos como necessários para imobilizar um veículo que circule a 50 km/h. E, recorrendo a tais tabelas, podemos concluir que o Réu circularia a uma velocidade seguramente superior a 80 km/h.
Do exposto decorreu a prova do facto 17), e o teor do facto não provado h).
Face às manobras evasivas que ainda foram tentadas – e num tempo de reação que era diminuto, face à pouca visibilidade existente para quem circula no sentido em que o JL circulava face a peões que atravessem a estrada no local onde C. P. optou por atravessar a estrada, como decorre do vertido em 28) – não se pode concluir que o Réu J. M. circulasse de forma distraída e desatento à estrada – embora, face a essa velocidade, o seu tempo de reação fosse obviamente menor do que se circulasse a velocidade inferior.
Daí decorrendo o teor do facto não provado e).
Isto posto, e no tocante aos danos resultantes do acidente, para além dos factos confessados por acordo, a que já aludimos, resultaram também provados os factos 47) a 49), atento o teor dos documentos juntos com os nºs 8 e 9 à petição inicial, sendo de notar que as despesas ali mencionadas e datas de pagamentos encontram-se devidamente elencadas, e estão em linha com os valores habituais para a realização de diligências de averiguação e consultas e avaliações semelhantes às ali reportadas, que face ao expediente junto terão efetivamente tido lugar, inexistindo razões para colocar em dúvida o acerto de tais valores, pese embora a sua impugnação pelos Réus. Tendo-se assim os mesmos como suficientemente comprovados.
Também a prova documental junta, mais concretamente os documentos juntos pelos Réus às suas contestações e, bem assim, pela Ré Seguradora a 13-3-2020, atestam a celebração do contrato de seguro nos termos comprovados em 49) a 52).
No tocante ao facto provado 53) o mesmo resulta do teor dos documentos 6 e 7 juntos com a contestação dos Réus pessoas singulares, e doc. 3 junto à petição inicial.
Quanto aos factos provados 54) e 55), os mesmos acabam por não ser contestados pelos Réus C. A. e J. M., o que seria suficiente para tê-los como assentes, mas foram também atestados, quer pela documentação junta – designadamente a participação do acidente – que alude à data de nascimento do Réu J. M., quer pela inquirição dalgumas das testemunhas, que atestaram a relação familiar ali mencionada – designadamente por R. M., mãe de ambos.
No tocante ao teor do contrato de seguro celebrado entre a Ré X e C. A. encontrava-se controvertida a questão referente à propriedade do veículo JL e de quem era o seu condutor habitual. Na versão dos factos apresentada pela Ré Seguradora a propriedade de tal veículo pertencia a J. M., sendo ele o seu real condutor habitual, tendo ocorrido falsas declarações de C. A. na celebração dos contratos de seguro, ao não comunicar tal circunstância aquando da alteração mencionada em 51), com o intuito (acertado em conjunto com o irmão) de beneficiar dum prémio de seguro mais barato, atenta a menor idade de J. M..
Mas a verdade é que da prova produzida não é possível chegar à conclusão de que tal versão dos factos se pode ter como verdadeira. Ao invés, e face à prova produzida, designadamente o referido pelas testemunhas A. P., B. P. e R. M., o que parece corresponder à verdade é a versão apresentada pelos Réus, de que aquele carro era propriedade de C. A., que sempre tratou da burocracia atinente ao mesmo, tendo beneficiado de registo a seu favor, como resulta do expediente junto a 25-6-2020 aos presentes autos. E se é certo que essas testemunhas não deixaram de referir que J. M. por vezes conduzia tal carro, fazia-o esporadicamente, não sendo o mais habitual condutor do mesmo, permitindo-lhe o irmão a sua utilização a título de favor, quando o Réu J. M. não tinha a disponibilidade do veículo da empresa sua empregadora que normalmente utilizava.
Na verdade, a única prova que poderia apontar em sentido diverso seria a declaração junta como doc. 2 à contestação apresentada pela Seguradora, no âmbito da qual existe um campo, supostamente preenchido na sequência de informação prestada em tal sentido pelo Réu J. M., em que o mesmo, perante a questão “é o condutor habitual do veículo?”, terá respondido “sim”. Inquirido quanto à forma como tal declaração foi preenchida, M. M. admitiu que o Réu J. M. só escreveu a descrição do acidente e assinou a declaração, tendo o campo referente ao facto de ser o condutor habitual do veículo sido preenchido por si. Referiu que tal foi feito no âmbito duma conversa que acha que foi rápida. Temos assim que tal menção do Réu como condutor habitual pode ter resultado dum erro em tal conversação, pois que em declarações de parte o Réu J. M. negou ter dado a entender que seria o habitual utilizador do veículo, tendo apenas dito que teria usado o veículo naquele dia por não ter automóvel alternativo. E a conversa para o preenchimento de tal declaração foi, também nas palavras de J. M., muito rápida, o que se prestava a tal equívoco – ou, pelo menos, fraca compreensão do conceito de “condução habitual” por J. M..
Tal documento, por si só, é consequentemente incapaz de atestar o pretendido pela Ré Seguradora, pois que nenhuma outra prova – testemunhal ou outra – atesta que fosse efetivamente este J. M. quem utilizava, no seu dia a dia, com maior regularidade que o seu irmão, o veículo aqui em causa. Que seria, consequentemente, o condutor habitual de tal veículo.
Apontando a prova produzida, como já referimos, no sentido inverso. Assim, a existir alguma falsa declaração, a mesma aparenta ser a vertida na declaração junta como doc. 2 à contestação da Ré, não subscrita pessoalmente por J. M., frise-se de novo, em que o mesmo é qualificado como condutor habitual, pois que a prova produzida é manifestamente frágil para nos permitir chegar a tal conclusão.
Decorrendo de tudo o exposto a não prova dos factos m) a o).»

Decorre do disposto no artº. 662º, n.º 1 do NCPC que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Ora, a possibilidade de reapreciação da prova produzida em 1ª instância, enquanto garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto, está subordinada à observância de determinados ónus que a lei adjectiva impõe ao recorrente.
Na verdade, a apontada garantia nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida na audiência final, impondo-se, por isso, ao recorrente, no respeito dos princípios estruturantes da cooperação, da lealdade e boa-fé processuais, que proceda à delimitação com, toda a precisão, dos concretos pontos da decisão que pretende questionar, os meios de prova, disponibilizados pelo processo ou pelo registo ou gravação nele realizada, que imponham, sobre aqueles pontos, distinta decisão, e a decisão que, no entender do recorrente, deve ser encontrada para os pontos de facto objecto da impugnação (cfr. acórdão do STJ de 1/10/2015, relatora Cons. Maria dos Prazeres Beleza, proc. n.º 6626/09.0TVLSB, disponível em www.dgsi.pt).
Neste sentido, o artº. 640º do NCPC estabelece os ónus que impendem sobre o recorrente que impugna a decisão relativa à matéria de facto, sendo a cominação para a inobservância do que aí se impõe a rejeição do recurso quanto à parte afectada.
Por força deste dispositivo legal, deverá o recorrente enunciar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados (alínea a) do nº. 1), requisito essencial já que delimita o poder de cognição do Tribunal “ad quem”, se a decisão incluir factos de que se não possa conhecer oficiosamente e se estiverem em causa direitos livremente disponíveis. Deve ainda o recorrente indicar os meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida (alínea b) do nº. 1), assim como apresentar o seu projecto de decisão, ou seja, expor de forma clara a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (alínea c) do nº. 1).
Decorre do que atrás se deixou dito que, no caso em apreço, o recorrente cumpriu os ónus que aquele dispositivo legal impõe, quer os enunciados nas três alíneas do nº. 1, quer o da alínea a) do nº. 2, tendo inclusive procedido à transcrição de alguns excertos do depoimento de parte do R. J. M. e dos depoimentos das testemunhas C. P., N. P. e L. F., por ele mencionadas para fundamentar a sua pretensão, e estando gravados, no caso concreto, os depoimentos prestados em audiência de julgamento, bem como constando do processo toda a prova documental tida em atenção pelo Tribunal “a quo” na formação da sua convicção, nada obsta à reapreciação da decisão da matéria de facto relativamente aos factos provados e não provados colocados em crise no presente recurso.
Em sede de reapreciação da prova gravada no âmbito do recurso da decisão sobre a matéria de facto, incumbe à Relação, “enquanto tribunal de segunda instância, reapreciar, não só se a convicção do tribunal a quo tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova e os outros elementos constantes dos autos revelam, mas também avaliar e valorar (de acordo com o princípio da livre convicção) toda a prova produzida nos autos em termos de formar a sua própria convicção relativamente aos concretos pontos da matéria de facto objecto de impugnação, modificando a decisão de facto se, relativamente aos mesmos, tiver formado uma convicção segura da existência de erro de julgamento na matéria de facto” (cfr. acórdão da RG de 15/10/2020, proc. nº. 3007/19.0T8GMR, disponível em www.dgsi.pt).
Importa, porém, não esquecer que se mantêm em vigor os princípios gerais da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova (este último consagrado no artº. 607º, nº. 5 do NCPC), sendo certo que o juiz da 1ª instância, perante o qual a prova é produzida, está em posição privilegiada para proceder à sua avaliação e, designadamente, surpreender no comportamento das testemunhas elementos relevantes para aferir da espontaneidade e credibilidade dos depoimentos que frequentemente não transparecem da gravação.
Assim, a alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto só deve ser efectuada pelo Tribunal da Relação quando seja possível concluir, com a necessária segurança, que a prova produzida aponta em sentido diverso e impõe uma decisão diferente da que foi proferida em 1ª instância, ou seja, quando a Relação tiver formado uma convicção segura da existência de erro de julgamento relativamente a concretos pontos de facto impugnados (cfr. acórdãos da RG de 30/11/2017, proc. nº. 1426/15.0T8BGC-A, de 30/01/2020, proc. nº. 500/18.6T8MDL e de 15/10/2020 acima referido, todos disponíveis em www.dgsi.pt).
Tendo por base estas considerações prévias, cumpre-nos, pois, apreciar e decidir sobre a impugnação da matéria de facto apresentada pela ora recorrente.
Com efeito, após ouvida a gravação da prova produzida em audiência de julgamento – com destaque para o depoimento de parte do R. J. M. (condutor do veículo ligeiro de mercadorias JL) e os depoimentos das testemunhas C. P. (peão atropelado), N. P. (militar da GNR que se deslocou ao local, tomou conta da ocorrência e elaborou a participação do acidente e o croquis nela incorporado) e L. F. (perito averiguador que procedeu às diligências de averiguação deste sinistro e elaborou o Relatório de Averiguação de Acidente de Viação que constitui o doc. 2 da petição inicial), todos eles mencionados nas alegações de recurso, relativamente aos factos provados e não provados acima referidos e colocados em crise pelo recorrente - e sopesando-a com a restante prova existente no processo, designadamente com os depoimentos das demais testemunhas inquiridas, a participação do acidente e respectivo croquis elaborada pela GNR de Fafe (doc. 1 da petição inicial), o auto de inspecção judicial ao local realizada em 19/05/2021, o relatório de averiguação do acidente elaborado pelo perito averiguador (doc. 2 da petição inicial), referidos na “motivação de facto” e nas alegações de recurso, e ainda com as regras da experiência comum, concluímos ser de atender parcialmente à pretensão do A./recorrente, no sentido de ser alterada a redacção dos pontos 16), 19) e 23) dos factos provados (embora em moldes ligeiramente diferentes dos referidos pelo recorrente, como adiante se explanará), assim como da alínea g) dos factos não provados (que não será eliminada, como pretende o recorrente, sendo apenas alterada a respectiva redacção) e ser dada como provada a matéria vertida na alínea d) dos factos não provados, não assistindo razão ao recorrente, salvo o devido respeito, quanto à restante matéria de facto que pretende ver alterada – ou seja, a redacção do ponto 18) dos factos provados e a matéria vertida nas alíneas c) e e) acima referidas seja considerada provada – relativamente à qual constatamos que o Tribunal “a quo” fez, no essencial, uma correcta apreciação e análise crítica de todos os elementos de prova mencionados na fundamentação, tal como consta clara e detalhadamente explanado na “motivação de facto” da sentença recorrida que acima transcrevemos, havendo, apenas, que:
- introduzir uma pequena alteração na redacção do ponto 18) dos factos provados, por forma a que a mesma seja rigorosamente mais consentânea com o depoimento de parte do R. J. M. e a prova testemunhal e documental produzida nos autos;
- fazer um reparo relativamente à matéria constante da alínea e) acima referida que o recorrente pretende seja dada como provada, como adiante se mencionará.
Vejamos então.

Os pontos 16), 18), 19) e 23) dos factos provados que o recorrente pretende ver alterados têm a seguinte redacção:
16) No decurso de tal travessia, e tendo já atravessado o eixo da via, surgiu o veículo JL, circulando na hemifaixa destinada à circulação no sentido Fafe – Celorico de Basto;
18) Ao aperceber-se da aproximação do veículo JL e que não chegaria ao outro lado da via antes da passagem do mesmo, o peão C. P. hesitou e voltou atrás, para a hemifaixa de rodagem afeta ao sentido de trânsito Celorico de Basto-Fafe;
19) Ao deparar-se com o peão na sua hemifaixa de rodagem, o Réu J. M. acionou o travão e tentou desviar-se das trajetórias do peão C. P., tentando contorná-lo pela sua esquerda e posteriormente pela sua direita;
23) Após o embate com o peão, o condutor do JL perdeu o controlo do veículo e despistou-se.
Pretende o recorrente que sejam considerados provados os factos vertidos nas mencionadas alíneas c), d) e e) dos factos não provados que passamos a transcrever:
c) Certificando-se que não circulava nenhum veículo em nenhuma das vias que pretendia atravessar;
d) O peão C. P. apercebeu-se da aproximação do veículo JL antes de traspor a linha longitudinal descontínua que dividia as duas hemifaixas;
e) No momento que precedeu o embate com o peão C. P. o Réu J. M. conduzia sem atenção à estrada.
A alínea g) dos factos não provados que o recorrente pretende que seja eliminada, aditando-se uma nova alínea com outra redacção (o que, no fundo, significa que se mantém esta alínea no capítulo dos factos não provados, mas com uma redacção diferente) é a seguinte:
g) O Réu J. M. não chegou a acionar o sistema de travagem nem a fazer qualquer manobra no sentido de desviar-se de C. P. antes do embate com o mesmo.
Fundamenta a sua pretensão, quanto aos factos supra referidos que têm a ver com a dinâmica do acidente, em determinados excertos do depoimento de parte do R. J. M. e dos depoimentos das testemunhas C. P., N. P. e L. F. acima mencionadas, que transcreve nas suas alegações, em conjugação com a participação de acidente de viação elaborada pela GNR (doc. 1 da petição inicial) e o Relatório de Averiguação de Acidente de Viação (doc. 2 da petição inicial), argumentando, em síntese, que a matéria de facto provada e não provada ora colocada em crise está em contradição com a prova produzida nos autos acima referida, existindo, ainda, contradição entre os factos considerados provados e não provados.
Entende o recorrente que o Tribunal “a quo” deveria ter dado como provado que:
- O peão C. P., antes de iniciar a travessia da estrada em questão, certificou-se que não circulava nenhum veículo em nenhuma das vias que pretendia atravessar;
- O peão não transpôs a linha longitudinal descontínua que dividia as duas hemifaixas, tendo parado no eixo da via ao avistar o JL;
- A reacção do peão ao recuar em direcção à hemifaixa afecta ao sentido de trânsito Celorico de Basto-Fafe não corresponde a qualquer hesitação, antes é um movimento de defesa em face da aproximação rápida do JL;
- O R. J. M. circulava com excesso de velocidade e desatento pelo que só avista o peão no eixo da via, a uma distância de aproximadamente 10 metros. Acto contínuo, trava e perde o controlo do veículo, entrando em despiste. Por efeito, invade a hemifaixa de rodagem onde estava o peão, vindo a colher o mesmo. Após o embate no peão, e mantendo-se em despiste, imobiliza-se do lado direito da faixa de rodagem em que seguia, a cerca de 37,40 metros do local do atropelamento.
Conforme resulta da “motivação de facto” que integra a sentença recorrida, as únicas pessoas inquiridas que disseram ter presenciado o acidente foram o R. J. M. (condutor do veículo JL), as testemunhas C. P. (peão atropelado) e P. F. (residente na Rua ... onde ocorreu o acidente), tendo o Tribunal “a quo” considerado o depoimento da testemunha P. F. dúbio e não credível face às contradições e fragilidades que apontou.
Ora, revisitados os depoimentos prestados em audiência de julgamento, constatamos que a testemunha P. F. referiu que reside na rua onde ocorreu o acidente, situando-se a sua casa uns metros mais à frente do local do atropelamento, em frente ao café que existe do outro lado da estrada, no sentido onde circulava o veículo JL. Embora esta testemunha tenha referido que presenciou o acidente, porque na altura estava na sua varanda a estender roupa, não podemos deixar de concordar com o Tribunal recorrido quando refere que algumas partes do seu depoimento suscitam, no mínimo, grande estranheza e desconfiança quanto à efectiva visualização do acidente, em face das contradições e fragilidades que lhe são apontadas.
Ademais, o facto da testemunha estar na varanda a estender roupa não confere a certeza de que a mesma tenha percepcionado toda a dinâmica do acidente, pois segundo as regras da experiência comum e da normalidade dos acontecimentos, é muito provável que a testemunha estivesse atenta ao trabalho que estava a fazer (estender roupa) e que só se tenha apercebido do que se estava a passar na estrada quando ouviu os gritos de um seu colega a avisar para o peão fugir, como ela própria admitiu.
Com efeito, foi admitido pela testemunha que “estava na sua vida”, a estender roupa, e o que chamou mais a sua atenção foi ter ouvido um colega seu, que estava no café, a gritar para o Sr. C. P. “fuja”; nessa altura, olhou para a estrada e aí é que viu o carro a bater na perna do peão, referindo que aconteceu tudo muito rápido. Foi referido pela própria testemunha que não viu o veículo antes de embater no Sr. C. P., pois a esquina da sua casa tapa-lhe a visibilidade para a recta de onde vinha o JL.
Do depoimento desta testemunha, quando muito, apenas se poderia extrair que a mesma teria presenciado, tão só, a parte final do acidente, ou seja, quando o veículo embateu na vítima, tendo sido alertada pelos gritos do seu colega que a fizeram olhar para o local.
O depoimento desta testemunha mostrou-se inconsistente e contraditório, pois se, por um lado, não soube precisar em que parte da estrada é que o peão estava quando foi embatido, se o veículo travou ou se guinou para algum lado (pois não viu o carro a vir na estrada, antes do embate) e se os espelhos parabólicos, na altura, se encontravam lá colocados, não se tendo apercebido dos rastos de travagem no asfalto; por outro lado, referiu que o Sr. C. P. olhou para os dois lados antes de atravessar, que o veículo vinha “a uma velocidade normal”, que o peão estava no meio da estrada e deu “um salto” para trás antes de ser embatido, o que é contraditório com o que referiu antes e não se coaduna com o facto de não estar a prestar atenção ao que se passava na estrada antes de ter ouvido os gritos do seu colega, uma vez que estava “entretida” a estender a roupa.
Dadas as incongruências e fragilidades deste depoimento, não pode o mesmo ser valorado também por este Tribunal na formação da sua convicção.
Em relação à dinâmica do acidente, resta-nos, pois, os depoimentos dos intervenientes no mesmo, o R. J. M. (condutor do veículo JL) e a testemunha C. P. (peão atropelado).
Como é referido na sentença recorrida, embora ambos tenham interesse no desfecho desta acção (não se podendo esquecer que a testemunha C. P. não é totalmente descomprometida e desinteressada da presente lide, porquanto resulta da audição da gravação dos depoimentos prestados na audiência de julgamento, que o mesmo intentou uma acção contra a aqui Ré Seguradora, que se encontra a correr termos, e em que peticiona uma indemnização pelos danos decorrentes deste sinistro) e tenham tido alguma dificuldade em descrever com coerência, ponto por ponto, o que aconteceu - o que certamente decorrerá da dificuldade em descrever factos que se esgotam em segundos ou fracções de segundo, sendo uma dificuldade habitual nesta espécie de litígios – nalguns aspectos relacionados com a descrição do acidente, os respectivos depoimentos foram equivalentes ou complementares um do outro (não entrando em contradição), tendo o Tribunal levado os mesmos em consideração, coadjuvando-os com outros elementos de prova, designadamente com a participação do acidente elaborada pela GNR, o relatório de averiguação do sinistro juntos com a petição inicial, o auto de inspecção judicial ao local e as declarações do militar da GNR que se deslocou ao local, tomou conta da ocorrência e elaborou a participação, bem como do perito averiguador que fez a averiguação deste acidente e elaborou o correspondente relatório.
Resulta do depoimento de parte do R. J. M., condutor do veículo JL, nomeadamente dos excertos transcritos nas alegações, que o próprio admitiu ter avistado o peão a atravessar a estrada da esquerda para a direita, atento o seu sentido de marcha (Fafe – Celorico de Basto), antes dele chegar ao eixo da via, quando estava a cerca de 10 metros do peão.
Ora, tendo sido dado como provado que o JL circulava a mais de 80 km/hora, numa localidade onde a velocidade máxima permitida é de 50 km/hora (factos provados 7 e 17), e referindo o condutor do veículo que avistou o peão próximo do eixo da via, a cerca de 10 metros de distância dele, não há dúvida que se aproximou do mesmo em segundos, sem grande hipótese de reacção, permitindo apenas ao peão dar um passo atrás (como foi referido pela testemunha C. P.), acabando por ser colhido na hemifaixa afecta ao sentido de trânsito Celorico de Basto - Fafe.
A versão apresentada pelo R. J. M. em sede de julgamento - de que terá tentado contornar o peão pela esquerda, entrando na faixa de rodagem contrária (pois pensou que ele ia continuar a atravessar a estrada), e como o peão parou, o R. guinou o veículo para a direita a fim de voltar novamente para a sua faixa de rodagem, para não lhe bater, acabando por embater nele ainda na faixa contrária - não logrou convencer o Tribunal, pois não faz qualquer sentido que num curto espaço de tempo e numa distância tão curta como a referida pelo R., o condutor do JL tenha conseguido guinar à esquerda e depois à direita. O R. J. M. seguia a mais de 80 km/hora e vê o peão segundos antes de lhe embater na faixa de rodagem contrária, a cerca de 15 cm do eixo da via, de acordo com o local do embate assinalado no croquis elaborado pela GNR e as medidas nele indicadas.
Nestas circunstâncias de facto e apelando às regras da experiência comum, o condutor do JL não teria tempo ou espaço para fazer as manobras descritas no facto provado 19, até porque se o peão não estava na sua faixa de rodagem, mas sim na faixa de rodagem contrária, o mais lógico seria o condutor manter-se na sua faixa de rodagem e travar, não se vislumbrando qualquer razão para que o R. J. M. tenha desviado o veículo para a esquerda e depois para a direita.
Aliás, só em sede de defesa apresentada no âmbito da presente acção, é que o R. J. M. relatou estas alegadas manobras, porquanto nas declarações que prestou às autoridades policiais logo após o acidente e que se mostram transcritas na participação da GNR, apenas referiu que: "Vinha do trabalho quando me apercebi de um senhor a cruzar a estrada, quando me apercebi tentei travar para não lhe dar, mas não consegui, perdi o controlo da viatura e embati no senhor que estava parado no meio da estrada (...).”
O R. condutor prestou declarações, no mesmo sentido, ao perito averiguador em 19/11/2015, que integram o relatório de averiguação do acidente junto com a petição inicial, estando manuscritas e assinadas pelo mesmo, que passamos a transcrever: "Circulava na Rua ... sentido Fafe – Lameira, quando me apercebi do peão a cruzar a estrada vindo da Quinta ... em direcção ao Café. Nesse momento travei e por ter perdido o controlo passei ligeiramente para a via contrária e bati no peão com a frente esquerda quando o peão estava parado (...).”
Quanto à versão do acidente apresentada pelo R. J. M. no âmbito desta acção, não há qualquer outra prova para além da afirmação por ele feita em sede de depoimento de parte, que confirme as aludidas manobras de evasão.
De acordo com as declarações inicialmente prestadas pelo R. à autoridade policial, mesmo em cima do acontecimento, quando os factos estavam mais presentes na sua memória, as quais são praticamente coincidentes com as que prestou ao perito averiguador passados 4 meses desde o acidente, estando, por isso, mais próximas da realidade dos factos, o R. J. M., que seguia a mais de 80 Km/hora, terá sempre afirmado que quando avistou o peão a atravessar a estrada, procurou travar o veículo e perdeu o controlo do mesmo, tendo invadido a faixa de rodagem contrária à que circulava e aí atropelou o peão.
Na participação do acidente, em especial no croquis, não há menção a qualquer rasto consistente com aquele alegado ziguezague ou tentativa de contornar o peão, mas apenas ao embate no peão na faixa de rodagem contrária àquela em que o R. circulava, a projecção do peão para o chão (por referência a uma mancha de sangue) e, bem assim, o rasto de travagem do JL a partir do sítio do embate com cerca de 37,40 metros e a imobilização do mesmo contra a berma da estrada, do lado direito, atento o seu sentido de marcha, após ter embatido no portão da garagem de uma casa localizada nesse mesmo lado da via, uns metros à frente do local do atropelamento.
Por sua vez, a testemunha C. P. referiu que saiu a pé do portão da sua propriedade em direcção à estrada e após ter olhado para os dois lados da mesma, começou a atravessar a estrada para ir ao café que fica em frente, tendo avançado dois ou três passos para a frente e quando estava a cerca de 2 metros da linha branca que marca o início da faixa de rodagem (ou que delimita a berma) de onde provinha (ou seja, 2 metros para dentro da estrada), olhou para baixo e viu um carro ao longe a circular na faixa de rodagem contrária àquela onde estava; nessa altura, parou e disse "vou para a frente ou vou para trás?" (o que denota uma certa hesitação da sua parte sobre a reacção a tomar), foi quando ouviu um rapaz que estava na esplanada do café, situado em frente ao seu portão, e que se apercebeu que o veículo vinha com muita velocidade, a gritar “fuja, fuja”, sendo que nessa altura olhou, viu o carro a aproximar-se, ficou atrapalhado (evidenciando aqui também alguma hesitação) e começou a recuar o que pode, tendo o veículo ido contra si descontrolado, saindo da faixa de rodagem onde circulava, atingindo a testemunha numa perna já dentro da faixa de rodagem onde esta se encontrava, e atirando-a para o chão.
Esta descrição do acidente feita pela testemunha C. P. em audiência de julgamento é, na sua essência, convergente com as declarações que prestou, por escrito, depois da ocorrência do mesmo e que foram entregues à autoridade policial, encontrando-se transcritas na participação do acidente elaborada pela GNR em 10/07/2015 e que foram transpostas para o relatório de averiguação do acidente elaborado pelo perito averiguador em Novembro de 2015:
«Declarações do peão: “(…) olhei para a esquerda e direita (...), verificando que não vinha nenhum automóvel, iniciei a passagem para atravessar quando de imediato fui alertado pelas pessoas que estavam na esplanada do café ..., mesmo à minha frente, aos gritos para eu fugir, nesse mesmo instante dei um passo atrás, mas fui de imediato fui atropelado ainda na faixa de rodagem contrária à circulação do veículo que me bateu, sentido Fafe – Lameira (…)”».
Quando foi perguntado à testemunha se o veículo se despistou e foi atingi-lo na sua faixa de rodagem, a testemunha afirmou que o veículo não se despistou antes do embate, só se tendo despistado depois de lhe ter batido, desconhecendo a razão porque ele saiu da faixa de rodagem onde circulava e o foi atingir na faixa contrária, tendo referido, ainda, que não chegou a atravessar o eixo da via.
Esta testemunha referiu, ainda, que estando na berma da estrada em frente ao seu portão, no início da travessia, atenta a configuração da via, não consegue ter ampla visibilidade para a recta por onde circulava o JL (no sentido Fafe - Celorico de Basto), só começando a ver os veículos que circulem nesse sentido se estiver dentro da faixa de rodagem a 1 metro da berma, acrescentando também que os veículos que circulem nessa recta, no mesmo sentido do JL, só se conseguem aperceber que alguém está a atravessar a estrada, no sítio onde o sinistrado estava a atravessar, quando a pessoa já está cerca de 1 metro dentro da estrada, ou seja, se alguém estiver na berma de onde o peão saiu, os condutores que circulem naquele sentido não o conseguem ver.
No entanto, esta afirmação da testemunha C. P. não se coaduna propriamente com a descrição que é feita no auto de inspecção judicial daquilo que foi directamente percepcionado pelo Mº Juiz “a quo” no local, quando caminhou ao longo da recta por onde circulava o veículo JL, se posicionou na berma da estrada em frente ao portão da Quinta ... (propriedade do sinistrado), a meio da hemifaixa destinada ao trânsito que circula no sentido Celorico de Basto – Fafe e no eixo da via e atravessou a estrada em frente ao dito portão desde a berma até ao lado oposto, tendo efectuado medições no local, o que foi determinante para o Tribunal “a quo” dar como provados os factos 28 e 29.

Com efeito, no referido auto de inspecção judicial ao local é referido o seguinte:
«Chegados ao local foram realizadas as seguintes medições:
(…)
- Caminhando ao longo da recta supra mencionada, pelo local onde se encontraria um condutor do veículo automóvel que prosseguisse no sentido Fafe/Celorico de Basto, o primeiro ponto onde é visível um peão que inicie a travessia da estrada em frente ao portão da propriedade ali existente denominada "Quinta ...", dista do ponto inicial 33 metros;
- A primeira vez que o referido condutor poderá ver um peão que se encontre a meio da hemifaixa destinada ao trânsito que circula no sentido Celorico de Basto/Fafe, dista 71 metros;
- É possível a um condutor que circule no sentido Fafe /Celorico de Basto avistar desde a passadeira, a uma distância de 191,09 metros, um peão que se encontre no eixo da via;
- No local foi feita a experiência de atravessar a estrada em frente ao referido portão da Quinta ... e o percurso desde a berma da estrada até ao lado oposto demorou cerca de 8 segundos;
- Constatou-se ainda que um peão na berma da estrada em frente à referida Quinta ..., consegue avistar um veículo que circule no sentido Fafe/Celorico, a uma distância de cerca de 70,05 metros
De todo o modo, a testemunha C. P. acabou por reconhecer que aquele local em frente ao portão da sua propriedade é perigoso para atravessar a estrada em direcção ao café, tendo também admitido que não olhou para os espelhos parabólicos existentes no local na altura, e que lhe permitiriam aferir se existiam quaisquer veículos a circular na recta que antecedia a curva onde pretendia atravessar a estrada (e por onde circulava o veículo JL).
Importa referir que o peão sinistrado manteve sempre a versão de que nunca passou do eixo da via, o que não foi contrariado pelo condutor do JL. Referiu ter avançado cerca de 2 metros para dentro da faixa de rodagem e quando estava próximo do eixo da via e se apercebeu da aproximação do JL, nessa altura ouviu os gritos da pessoa que estava no café a dizer-lhe para fugir e deu um passo atrás, sendo logo de seguida embatido pela viatura, o que se coaduna com o facto de ter sido colhido a cerca de 15 cm do eixo da via, considerando o local do embate assinalado no croquis elaborado pela GNR.
Conforme se alcança da “motivação de facto”, o Tribunal recorrido, para ter dado como provado no facto 16 que o peão já havia atravessado o eixo da via, recorreu a uma operação de cálculo aritmético com base nas medidas indicadas no croquis da GNR, considerando a medida da hemifaixa na qual o lesado iniciou a travessia (3,10 metros), a distância do local provável do embate para o limite junto à berma dessa hemifaixa (2,95 metros) e a ideia fixa de que alguns passos para trás teriam que significar mais do que um recuo de 15 cm.
No entanto, este raciocínio matemático não pode resistir perante outros factos dados como assentes e assinalados no croquis da GNR, ou seja: o local do atropelamento foi dentro da hemifaixa de rodagem no sentido Celorico de Basto - Fafe; a mancha de sangue nessa hemifaixa coincidente com o local da imobilização do peão, após projecção, dista 2,40 metros do eixo da via.
Ademais, não se pode desconsiderar em absoluto o depoimento do peão sobre esta matéria, o qual foi sempre consistente no sentido de afirmar que nunca ultrapassou o eixo da via.
Entendemos que não se pode dar como provado no ponto 16 dos factos provados que o lesado ultrapassou o eixo da via, apenas por se considerar que uns passos atrás significam mais do que 15 cm, sendo certo que o R. J. M. e a testemunha C. P. admitiram terem-se visto um ao outro quando o peão se encontrava próximo do eixo da via.
Para além disso, a alínea d) dos factos não provados não pode assentar única e exclusivamente nesse cálculo aritmético, tendo antes que resultar da análise conjunta de toda a prova produzida, nomeadamente do depoimento de parte do R. condutor, das declarações que este prestou às autoridades policiais e ao perito averiguador e do depoimento do peão C. P., em conjugação com os elementos constantes do croquis, devendo a matéria nela vertida ser dada como provada.
No que concerne ao depoimento da testemunha N. P. (militar da GNR que se deslocou ao local, tomou conta da ocorrência e elaborou a participação do acidente e o croquis nela incorporado), daquilo que nos foi possível perceber da audição da gravação, uma vez que em determinadas alturas do seu depoimento a qualidade da gravação não é a melhor, havendo partes do mesmo que são completamente imperceptíveis, esta confirmou ter falado com o condutor do veículo no local do acidente, tendo sido ele que lhe indicou o local do embate, e que teve a preocupação de colocar na participação tudo o que tinha interesse relativamente ao acidente, procedendo também à transcrição das declarações que foram prestadas pelo condutor do JL no local, nas quais o mesmo refere, como já atrás se mencionou, que tentou travar, mas perdeu o controlo da viatura e embateu no senhor que estava parado no meio da estrada (entenda-se próximo do eixo da via, conforme resulta dos depoimentos do R. J. M. e do peão sinistrado prestados em audiência de julgamento).
Ora, se o R. J. M., após travagem, perde o controlo do veículo, como ele próprio afirmou, segundo o senso comum, não é possível que tenha descrito as tentativas de desvio para a esquerda e depois para a direita que o Tribunal recorrido deu como provado. E tendo perdido o controlo do veículo, o R. condutor invadiu a faixa contrária e atropelou o peão que ali se encontrava, vindo a parar na faixa da direita, atento o seu sentido de marcha, após 37,40 metros de rastos de travagem.
Ao ser confrontado pelo Mº Juiz “a quo” com o facto do condutor do JL ter indicado o local do embate antes dos rastos de travagem representados no croquis e dele ter referido que travou antes de embater no peão (não existindo quaisquer marcas de travagem antes daquele local), este militar da GNR afirmou que “uma travagem, não significa directamente uma derrapagem” e que o facto da viatura ter deixou marcas no pavimento depois do local de embate, não que dizer que não tenha travado antes dele ocorrer.
Não temos motivos para colocar em crise este depoimento da testemunha N. P., uma vez que se trata de um agente da autoridade que não tem qualquer relação com os intervenientes no acidente e nenhum interesse nesta causa, o que confere credibilidade ao seu depoimento.
Acresce, ainda, referir que o depoimento da testemunha L. F. (perito averiguador que fez a apreciação do sinistro e elaborou o relatório de averiguação do acidente que se encontra junto aos autos), prestado de forma imparcial e objectiva, foi convergente com o que consta na participação do acidente e croquis nela incorporado elaborada pela GNR e com as declarações do condutor do veículo JL e do peão atropelado, prestadas por escrito e assinadas por eles, que se encontram juntas ao relatório de averiguação.
Ao ser confrontado com as fotografias insertas no relatório de averiguação que elaborou, a testemunha explicou as sinalizações em cores diferentes nelas incorporadas, tendo confirmado que o que consta do aludido relatório resulta das averiguações que fez junto dos dois intervenientes no acidente, o condutor do JL e o peão atropelado, e da sua deslocação ao local do acidente, tendo ainda levado em consideração a participação do acidente e o croquis elaborados pela GNR.
Referiu, ainda, que quando falou com o condutor do veículo, este fez a descrição do acidente por escrito, que transcreveu para o relatório, tendo aquele afirmado que quando se apercebeu do peão a atravessar a estrada, nesse momento travou e por ter perdido o controlo da viatura, passou ligeiramente para a faixa de rodagem contrária e bateu no peão com a frente esquerda, o que se mostra consentâneo com a restante prova produzida nos termos supra referidos.
Esclareceu que falou também com o peão, tendo este escrito a versão dele do acidente (sendo a página a seguir às declarações escritas pelo condutor). Analisadas tais declarações manuscritas e assinadas pelo sinistrado, verificamos que o mesmo limita-se a remeter para as declarações que prestou à GNR, tendo o perito averiguador transcrito essas mesmas declarações no relatório de averiguação.
Por outro lado, foi esta testemunha confrontada com a versão do acidente apresentada pelo R. J. M. em sede de julgamento, designadamente quanto às manobras de desvio do peão. Porém, para este perito averiguador não faz sentido nenhum que tendo o condutor do JL perdido o controlo da viatura, consiga em algum momento tentar desviar-se das trajectórias do peão, tendo esta testemunha referido que se está em despiste é impossível controlar o carro de forma a contornar o peão.
Mais uma vez se confirma, através do depoimento da testemunha L. F., que o R. J. M. declarou em momento próximo ao sinistro que quando viu o peão, travou e perdeu o controlo do veículo, invadindo a faixa de rodagem contrária e atropelando o C. P.. Estas foram as declarações do mesmo ao perito averiguador, que são semelhantes às que prestou à GNR, sendo que estes elementos de prova contrariam a tese do R. condutor apresentada em sede de contestação e no julgamento, que o Tribunal “a quo” acolheu, dando como provadas as suas tentativas de desvio do peão.
Assim, da conjugação de todos os elementos de prova acima enunciados, e ainda em consonância com as regras da experiência comum, entendemos que deve ser alterada a factualidade provada: no ponto 16), no sentido de se considerar não provado que o peão atravessou o eixo da via; no ponto 19) dos factos provados, no sentido de se considerar não provado que o condutor do veículo JL se deparou com o peão na sua hemifaixa de rodagem e que terá tentado desviar-se das trajectórias do peão C. P., tentando contorná-lo pela sua esquerda e posteriormente pela sua direita, ressalvando a parte em que refere que o R. J. M. accionou o travão; e no ponto 23), no sentido de considerar não provado que o condutor do JL perdeu o controlo do veículo após o embate com o peão, como pretendido pelo A./recorrente, havendo que introduzir uma ligeira alteração na redacção indicada por aquele, por forma a que a mesma seja rigorosamente mais consentânea com o depoimento de parte do R. J. M. e com a prova testemunhal e documental produzida nos autos, passando a ser a seguinte:
16) No decurso de tal travessia, quando se encontrava próximo do eixo da via, surgiu o veículo JL circulando na hemifaixa destinada à circulação no sentido Fafe - Celorico de Basto;
19) Ao deparar-se com o peão próximo do eixo da via, o Réu J. M. accionou o travão e perdeu o controlo do veículo;
23) Após o embate no peão, o condutor do JL entrou em despiste.
Para além de que deve manter-se o ponto 18) dos factos provados, sem a eliminação da parte que refere que o peão hesitou, não procedendo neste segmento a pretensão do recorrente, introduzindo-se, no entanto, uma pequena alteração na sua redacção por forma a que a mesma seja rigorosamente mais consentânea com a prova testemunhal e documental produzida nos autos, passando a ser a seguinte:
18) Ao aperceber-se da aproximação do veículo JL e que não chegaria ao outro lado da via antes da passagem do mesmo, o peão C. P. hesitou e começou a recuar na hemifaixa de rodagem afecta ao sentido de trânsito Celorico de Basto - Fafe.
Por força da alteração introduzida no ponto 19) dos factos provados, deve manter-se a alínea g) dos factos não provados, com a redacção indicada pelo recorrente, considerando-se não provado o seguinte:
g) Que o Réu J. M. tenha realizado qualquer manobra no sentido de desviar-se do C. P. antes do embate com o mesmo.
No seguimento da factualidade dada como provada nos pontos 16) e 18) supra referidos, entendemos que a matéria vertida na alínea d) dos factos não provados deve passar a constar do capítulo dos factos provados, como pretende o recorrente, constituindo o ponto 18-A) com a seguinte redacção:
18-A) O peão C. P. apercebeu-se da aproximação do veículo JL antes de transpor a linha longitudinal descontínua que dividia as duas hemifaixas.
Por outro lado, mantendo-se inalterada a factualidade provada no ponto 14) dos factos provados, que não foi objecto de impugnação por parte do recorrente, e em face da prova testemunhal e documental produzida nos autos supra enunciada, afigura-se-nos que deve manter-se a alínea c) dos factos não provados.

Por último, pretende o recorrente que seja considerada provada a matéria vertida na alínea e) dos factos não provados, que tem a seguinte redacção:
e) No momento que precedeu o embate com o peão C. P. o Réu J. M. conduzia sem atenção à estrada.
Importa, no entanto, referir que consideramos que a matéria constante da alínea e) supra referida assume carácter meramente conclusivo, não consubstanciando qualquer facto concreto, material que pudesse ser dado como provado.
Na verdade, o conteúdo da mencionada alínea e) encerra, mais do que afirmações factuais, factos ou juízos de facto, asserções conclusivas/valorativas incidentes sobre questões do litígio, estando em causa expressões que não configurando, em si mesmas, factos materiais, se reconduzem à formulação de juízos conclusivos que antes se deveriam extrair dos factos materiais que os suportam e que se integram no thema decidendum.
Com efeito, a matéria inserta naquela alínea decorre do alegado nos artºs 7º, 20º a 22º, 25º a 27º, 30º, 36º a 38º e parte do artº. 39º da petição inicial, nos quais o A. descreve as características da via e o tipo de condução praticada pelo condutor do veículo JL, que levou a que este invadisse a faixa de rodagem contrária e fosse embater no peão que ali se encontrava, ou seja, por circular a uma velocidade largamente superior à velocidade máxima permitida para o local e desadequada às características da estrada por onde seguia.
Os factos alegados naquele articulado tinham em vista fundamentar o pedido formulado pelo A., no sentido do condutor do veículo JL ser considerado o único culpado pela ocorrência do acidente e, em consequência disso, obter a condenação da Ré Seguradora, ou dos RR. subsidiários (caso se demonstrasse a inexistência e invalidade do seguro de responsabilidade civil que titulava a circulação do veículo JL) a pagar-lhe as quantias despendidas pelo A. no pagamento de indemnizações aos lesados pelo acidente e as despesas em que o mesmo incorreu com a instrução e liquidação do presente processo.
Ora, tendo em atenção o objecto do pedido formulado pelo A. e a respectiva causa de pedir, afigura-se-nos que o Tribunal não deve fazer constar do capítulo dos factos provados a mencionada alínea e), porquanto as afirmações dela constantes consubstanciam juízos conclusivos a serem extraídos dos factos materiais e concretos alegados pelo A. nos artigos da petição inicial acima referidos.
Em face do acima exposto e nos termos do disposto no artº. 662º, nº. 1 do NCPC, procede parcialmente a impugnação da matéria de facto deduzida pelo A./recorrente, alterando-se a redacção dos pontos 16), 18), 19) e 23) dos factos provados e da alínea g) dos factos não provados nos termos atrás mencionados e aditando-se aos factos provados o ponto 18-A) acima referido, mantendo-se, no entanto, inalterada a restante matéria de facto provada e não provada supra descrita.
*
II) – Saber se deverá ser alterada a solução jurídica da causa, quanto à responsabilidade pela ocorrência do acidente:

O A./recorrente insurge-se contra a sentença recorrida na parte em que o Tribunal “a quo” considerou que a eclosão do acidente não se deu por exclusiva responsabilidade do R. J. M., condutor do veículo JL, tendo igualmente concorrido para a ocorrência do sinistro a conduta do peão C. P., concluindo, ao abrigo do disposto no artº. 570º do Código Civil, que ambos contribuíram culposamente em igual medida para o efeito, ou seja, na proporção de 50% para cada um deles.
Entende o recorrente que procedendo a alteração da matéria de facto nos termos por ele pretendidos, deve considerar-se que o sinistro ocorreu por culpa exclusiva do condutor do veículo JL, porquanto com a sua conduta violou várias regras estradais, como as que constam nos artºs 3º, 13º, 24º e 25º do Código da Estrada (doravante designado CE), e não se retirando da conduta do peão qualquer facto que possa ser objecto de censura, deverá a Ré Seguradora ser condenada na proporção de 100%.
Por outro lado, mesmo que não ocorra a alteração da matéria de facto, o recorrente continua a defender que, em face da prova produzida nos autos, terá de concluir-se que o peão não violou qualquer norma estradal, tendo o acidente ocorrido única e exclusivamente por culpa do condutor do JL, devendo a Seguradora ser condenada na proporção de 100%, argumentando, em síntese, que:
- a velocidade excessiva que o condutor imprimiu ao veículo e a invasão da faixa de rodagem contrária foram elementos determinantes na eclosão do sinistro;
- o condutor do JL poderia e deveria ter avistado o peão a cerca de 191 metros de distância, quando este se aproximava do eixo da via;
- o condutor do JL, caso conduzisse com atenção e perícia, e adequando a velocidade e a condução à estrada e ao trânsito, teria tempo e espaço para avistar o peão e reagir de forma a abrandar e parar no espaço visível e livre à sua frente.
Por último, pretende o recorrente, caso este tribunal de recurso entenda atribuir culpa também ao peão na eclosão do sinistro, tendo em conta a falta de destreza, imperícia e falta de atenção do condutor do veículo, imprimindo ao veículo uma velocidade superior a 80 km/hora, invadindo a faixa de rodagem contrária, entrando em despiste, sem cuidar das condições da via e do trânsito, nomeadamente de peões, que se processava na altura, que a culpa a atribuir ao peão seja amplamente reduzida, devendo ser distribuída na proporção de 10% para o peão e 90% para o condutor do veículo JL.
Tendo em conta que a alteração da decisão jurídica da causa, nomeadamente quanto à responsabilidade pela ocorrência do acidente, se baseava essencialmente na alteração da decisão da matéria de facto nos termos pretendidos pelo recorrente, o que não ocorreu na sua totalidade, e apesar deste tribunal de recurso ter alterado a redacção dos pontos 16), 18), 19) e 23) dos factos provados e da alínea g) dos factos não provados, ter dado como provada a matéria constante da alínea d) dos factos não provados e não ter considerado provadas as alíneas c) e e) dos factos não provados, factos estes que não têm a virtualidade de sustentar a posição defendida pelo recorrente, no sentido de imputar exclusivamente ao condutor do veículo JL a culpa na produção do acidente e de considerar que nenhuma responsabilidade poderá ser assacada ao peão que atravessava a estrada naquele momento, adiantamos, desde já, que partilhamos da posição sustentada pelo Tribunal “a quo”, no sentido de haver concorrência de culpas do condutor do veículo JL e do peão C. P., por ambos terem contribuído para a ocorrência do sinistro.

Apreciando a conduta do condutor do JL, cumpre-nos dizer o seguinte:
Em primeiro lugar, o condutor de um veículo tem que adequar a sua condução às vias pelas quais circula. No caso em apreço, tratando-se de uma estrada situada dentro de uma localidade, na qual a velocidade máxima permitida é de 50 km/hora, estando a mesma ladeada por edifícios de habitação e comércio, configurando o local onde ocorreu o acidente uma curva à direita, atento o sentido de marcha do JL, deveria o R. J. M. ter adequado a velocidade e condução da viatura, circulando pelo menos a 50 km/hora, como lhe impõe o n.º 1 do artº. 24º do CE, nos termos do qual “o condutor deve regular a velocidade de modo a que, atendendo à presença de outros utilizadores, em particular os vulneráveis, às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente.”
Em segundo lugar, o artº. 25º, nº. 1, al. c) e h) do mesmo diploma legal impõe a moderação da velocidade, sem prejuízo dos limites máximos fixados, nas localidades ou vias marginadas por edificações, nas curvas, cruzamentos, entroncamentos, rotundas, lombas e outros locais de visibilidade reduzida.
No caso que nos ocupa, ficou provado que o veículo JL circulava a uma velocidade superior à legalmente permitida para o local – que era de 50 km/hora – pois o R. J. M. imprimia ao seu veículo, momentos antes do acidente, uma velocidade superior a 80 km/hora, o que veio a revelar-se determinante na perda de controlo do veículo e no atropelamento do peão que se encontrava na faixa de rodagem contrária.
Em terceiro lugar, preceitua o nº. 1 do artº. 13º do CE que “a posição de marcha dos veículos deve fazer-se pelo lado direito da faixa de rodagem, conservando das bermas ou passeios uma distância suficiente que permita evitar acidentes”, dispondo o nº. 2 que “quando necessário, pode ser utilizado o lado esquerdo da faixa de rodagem para ultrapassar ou mudar de direcção.”
Ora, resultou provado que o condutor do JL invadiu a faixa de rodagem destinada ao trânsito em sentido contrário, tendo embatido com o seu veículo no peão quando o mesmo se encontrava em tal hemifaixa. Assim, não estando o R. condutor a ultrapassar outro veículo, nem pretendendo mudar de direcção, não podia o mesmo ter invadido a hemifaixa da esquerda, sendo que ao fazê-lo, violou aquela norma legal.
Deste modo, como bem refere o Tribunal “a quo” na sentença recorrida, em face da factualidade dada como provada, podemos concluir o condutor do JL violou as normas contidas no artº. 13º do CE (no que respeita à alegada invasão da hemifaixa destinada à circulação no sentido contrário àquele em que o JL circulava) e nos artºs 24º, nºs 1 e 3 e 25º, n.º 1, al. c) e h) e n.º 2 do mesmo Código (por circulação em excesso de velocidade, nos termos de tais preceitos).
Como vem sendo pacificamente defendido pela jurisprudência, a prova da inobservância das regras estradais faz presumir a culpa daquele que as desrespeite, desde que a infracção seja causal do acidente (cfr. acórdãos do STJ de 11/04/2019, proc. nº. 4573/17.0T8BRG e de 18/03/2004, proc. nº. 04B675, ambos disponíveis em www.dgsi.pt).

Nesta conformidade, concordamos com a apreciação que é feita, na sentença recorrida, da conduta do R. J. M., condutor do veículo JL, na parte em que refere o seguinte [transcrição]:
«Ora, no tocante à circulação em excesso de velocidade, parece-nos claro que a mesma foi causal (ou, como melhor veremos, uma das causas contributivas, a par com a conduta do próprio peão) do acidente aqui em apreço. E corresponde, também, a uma conduta censurável ao arguido.
Na verdade, e pese embora o local onde o peão C. P. atravessou a estrada seja pouco visível a quem se aproxima daquela curva no sentido prosseguido pelo condutor do JL, sendo um peão que atravesse a via naquele local apenas visível às distâncias referidas em 28), temos por certo que, acaso J. M. circulasse naquele infeliz dia a velocidade inferior à legalmente permitida, de 50 km/h, teria conseguido, se não travar completamente o seu veículo, pelo menos desviá-lo do peão C. P. de forma a evitar o embate que ocorreu. (…)
Assim, ainda que o condutor apenas tivesse tido oportunidade de começar a ver o peão quando o mesmo iniciasse a travessia da via naquele local, e então começasse a reagir, teria, se circulasse dentro do limite de velocidade, ou espaço para imobilizar completamente o seu veículo sem embater no peão, ou espaço para travar o seu veículo duma forma quase total, permitindo uma maior janela de oportunidade para desviar o seu veículo do peão, o que certamente conseguiria fazer em tal caso.
A circulação do veículo a tal velocidade excessiva foi assim causal do acidente, como se disse, e censurável, pois que o condutor podia e devia adotar uma condução distinta, em respeito pelos limites de velocidade que legalmente lhe eram impostos.»
No entanto, contrariamente ao que é referido na sentença recorrida, a censurabilidade da conduta do R. condutor também é extensível à invasão da hemifaixa contrária, pois ao deparar-se com o peão próximo do eixo da via, accionou o travão e perdeu o controlo do veículo, atingindo o peão que se encontrava na faixa contrária. Como vimos, o condutor do JL não conseguiu travar o veículo quando accionou o sistema de travagem e perdeu o controlo sobre o mesmo, invadindo assim a faixa de rodagem contrária, devido à velocidade excessiva com que circulava naquela estrada.
Passamos, agora, a analisar a conduta do peão, à qual o Tribunal recorrido imputou 50% de culpa.
De acordo com o disposto no artº. 99º, n.º 2, da al. a) do CE "os peões podem transitar pela faixa de rodagem, com prudência e por forma a não prejudicar o trânsito de veículos, quando efectuem o seu atravessamento."

No atravessamento da faixa de rodagem, o n.º 1 do artº. 101º do mesmo Código impõe que os peões, antes de atravessarem a faixa de rodagem, se certifiquem previamente de que podem fazer a travessia sem perigo de acidente, tendo em conta a distância que os separa dos veículos que nela transitam e a respectiva velocidade. Além disso, o atravessamento da faixa de rodagem deve fazer-se o mais rapidamente possível (nº. 2).
Entende o recorrente que, neste caso, não é possível imputar ao peão a violação de qualquer norma legal relativa ao trânsito de peões, nem tampouco a violação de qualquer dever de cuidado geral como causais do embate.
Ora, contrariamente ao que é defendido pelo recorrente, consideramos que a conduta do peão C. P. não está isenta de reparos, pois em função da factualidade dada como provada, teremos de concluir, tal como fez o Tribunal recorrido, que ele também contribuiu para a produção do acidente.

Sobre a conduta do peão refere-se na sentença sob escrutínio o seguinte [transcrição]:
«Ora, da factualidade comprovada resulta que no local onde o peão atravessou a estrada (que, de resto, é de si conhecido e reconhecido como perigoso, o que torna ainda mais estranha a sua imprudência ao optar por aquele local para atravessar a estrada) a visibilidade dum peão que inicie a travessia tentada por C. P. por parte de quem se aproxima no sentido Fafe – Celorico de Basto é bastante reduzida – como resulta claramente do já mencionado facto 28). E é igualmente reduzida a visibilidade do peão para a estrada à direita, no local em que C. P. iniciou a travessia das hemifaixa de rodagem: é de apenas 70,05 metros, conforme facto provado 29).
Considerando que um veículo que circule a 50 km/h circula a cerca de 13,889 metros por segundo, tal confere a um peão que ali pretenda atravessar a rua cerca de 5 segundos para o efetuar em segurança, ou seja, imaginando que um carro surge no campo de visão exatamente no momento em que um peão inicia ali a travessia, chegará àquele ponto na estrada cinco segundos depois. Sendo manifesto que cinco segundos são um tempo reduzido para atravessar 6,20 de estrada, como era o caso da via aqui em apreço (tanto assim que na inspeção ao local se concluiu que, numa passada normal, seriam necessários cerca de 8 segundos para tal). Em acréscimo, foi admitido pelo próprio peão que não se socorreu dos espelhos parabólicos ali instalados, e que lhe permitiriam ter uma visão completa da reta onde circulava o veículo JL, e evitar o início da travessia, que teve os infelizes resultados comprovados nestes autos.
O atravessamento da faixa de rodagem naquela curva de muito reduzida visibilidade, sem se assegurar que dispunha do tempo necessário para o fazer em total segurança – pois que tal, face ao já referido, não era possível em tal local – , bem como a sua hesitação quando se apercebeu da aproximação do JL, andando para a frente e para trás na via, foi consequentemente uma das causas contributivas do acidente, ilícita por violadora de direitos ao património das entidades já supra mencionadas e da regra estradal citada, censurável pois que o referido peão podia e devia ter agido de outra forma, optando por outro local para atravessar a via, e causal do acidente pois que, se tivesse optado por atravessar a estrada em local mais visível, o condutor do JL, ainda que circulando a velocidade excessiva, poderia ter tido oportunidade de visualizá-lo antes, e travar ou evadir-se do mesmo – bem como poderia o peão também adequar mais facilmente a sua travessia aos veículos que mais facilmente visualizaria.
Estamos assim perante uma situação do artigo 570º, n.º 1 do Código Civil, que dispõe que “quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao Tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultarem, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída”.
(…)
Cremos, deste modo, poder concluir com segurança que tanto o condutor do veículo JL como o peão C. P. contribuíram para a produção do sinistro, com o embate no peão, despiste e embate na habitação de F. M, por mútuo e ilícito desrespeito de regras estradais, disposições legais destinadas à proteção de interesses alheios, podendo concluir-se que ambos atuaram com imprudência, de forma contrária ao dever geral de diligência que se lhes impunha.»
Importa, pois, ao abrigo do supra citado artº. 570º, nº. 1 do Código Civil, determinar o grau de responsabilidade de cada um dos intervenientes no acidente na produção do mesmo.

A este respeito refere-se na sentença recorrida o seguinte [transcrição]:
«Confrontando a conduta do condutor com a do peão, e avaliando em concreto o grau de contribuição de cada uma delas para a produção do acidente, designadamente atendendo às concretas características da via por onde circulavam e passeavam, e aos deveres que se impunham a cada um deles e que se reconduzem ao poder dever de evitar a eclosão do acidente, concluímos que acabam por contribuir culposamente em igual medida para a ocorrência do acidente, contribuindo em 50%, cada um, para o mesmo.
Tal significa que ao condutor do JL, o Réu J. M., ou a entidade a quem tiver sido transferida a responsabilidade civil emergente do sinistro aqui em apreço, será apenas exigível, em consequência, o ressarcimento de 50% dos danos ocasionados pelo acidente que culposamente provocou (a par com o peão C. P.).»
Contudo, salvo o devido respeito, não concordamos com a proporção que é definida pelo Tribunal “a quo” para o R. J. M. e para o peão atropelado, por considerarmos excessiva a percentagem de culpa que foi atribuída a este último.
No que tange à atribuição do grau de responsabilidade de cada um dos intervenientes, deve sempre o tribunal estipular tal grau de acordo com o princípio da proporcionalidade.
Deste princípio decorre que na ponderação do grau de responsabilidade em causa, na repartição de culpas na produção do acidente, deve o tribunal atender à especial intensidade dos riscos próprios do veículo e, por outro lado, ao comportamento causal do lesado e a sua determinação na conduta que terá contribuído para as lesões sofridas.
No caso presente, ao condutor do JL é exigível um nível mais elevado e rigoroso do cumprimento das regras estradais estabelecidas nos artºs 13º, 24º, nºs 1 e 3 e 25º, nº. 1, al. c) e h) e nº. 2 todos do CE, em consonância com a sua habilitação legal para a condução automóvel.
Por outro lado, ainda que se entenda que o lesado infringiu alguma regra legal, o nível de exigência é sempre mais reduzido. Tanto mais que o sinistrado é colhido na faixa de rodagem contrária àquela onde o veículo circulava. O peão ainda teve a destreza de recuar na faixa onde se encontrava e assim, na sua perspectiva, deixar passar o veículo, o que terá reduzido em muito os danos que sofreu. Para além de que não era previsível para o peão, nem tal lhe era exigível, que o condutor do JL iria invadir a faixa de rodagem na qual se encontrava.
Assim, tendo em conta a imprudência, imperícia e falta de atenção do condutor do JL, que imprimiu ao veículo uma velocidade superior a 80 km/hora, perdeu o controlo do mesmo e invadiu a faixa de rodagem contrária, sem cuidar das condições da via e do trânsito, nomeadamente de peões, que se processava na altura, bem como a intensidade dos riscos inerentes à própria circulação do veículo, entendemos que o grau de responsabilidade do peão na eclosão do acidente deve ser amplamente reduzido, dada a menor censurabilidade da sua conduta pelas razões atrás explanadas, pelo que fixamos a responsabilidade de cada um dos intervenientes na proporção de 10% para o peão e 90% para o condutor do veículo JL.
O que significa que à Ré X, para quem foi transferida a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo JL, será exigível o ressarcimento de 90% dos danos ocasionados pelo acidente que o R. J. M. culposamente provocou (a par com o peão C. P.), que foram dados como provados na presente acção e cujo ressarcimento é reclamado pelo Autor FGA.
Em face da factualidade assente nos pontos 46) a 48) dos factos provados, o montante total que o A. teve de despender com o pagamento de indemnizações aos lesados pelos danos sofridos e das despesas com a averiguação do sinistro e com a elaboração do relatório do dano corporal junto aos autos, ascende a € 20.457,34, cabendo à Ré Seguradora ressarcir o A. de 90% desse valor, que corresponde a € 18.411,61.
Por tudo o que se deixou exposto, terá de proceder parcialmente, nesta parte, o recurso interposto pelo Autor FGA.
*
SUMÁRIO:

I) - Constitui entendimento consolidado na jurisprudência que a prova da inobservância das regras estradais faz presumir a culpa daquele que as desrespeite, desde que a infracção seja causal do acidente.
II) - Tendo o condutor do veículo JL e o peão atropelado contribuído para a produção do sinistro, com invasão da faixa de rodagem contrária pelo veículo, embate no peão que se encontrava nessa faixa, despiste e embate numa habitação situada uns metros mais à frente, por mútuo e ilícito desrespeito de regras estradais, disposições legais destinadas à protecção de interesses alheios, pode concluir-se que ambos actuaram com imprudência, de forma contrária ao dever geral de diligência que se lhes impunha, pelo que estamos perante uma situação do artº. 570º, n.º 1 do Código Civil.
III) - Na atribuição do grau de responsabilidade de cada um dos intervenientes no acidente, deve sempre o tribunal estipular tal grau de acordo com o princípio da proporcionalidade.
IV) - Deste princípio decorre que na ponderação do grau de responsabilidade em causa, na repartição de culpas na produção do acidente, deve o tribunal atender à especial intensidade dos riscos próprios do veículo e, por outro lado, ao comportamento causal do lesado e a sua determinação na conduta que terá contribuído para as lesões sofridas.
V) - Assim, tendo em conta a imprudência, imperícia e falta de atenção do condutor do JL, que imprimiu ao veículo uma velocidade superior a 80 km/hora (quando a velocidade máxima permitida no local era de 50 Km/hora), perdeu o controlo do mesmo e invadiu a faixa de rodagem contrária, sem cuidar das condições da via e do trânsito, nomeadamente de peões, que se processava na altura, vindo a embater num peão que na altura atravessava a estrada, bem como a intensidade dos riscos inerentes à própria circulação do veículo, deverá o grau de responsabilidade do peão na eclosão do acidente ser menor em relação à do condutor do veículo.

III. DECISÃO

Em face do exposto e concluindo, acordam os Juízes da Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar parcialmente procedente o recurso de apelação interposto pelo Autor Fundo de Garantia Automóvel e, em consequência:

1. Determinam a alteração da redacção dos pontos 16), 18), 19) e 23) dos factos provados e da alínea g) dos factos não provados e o aditamento aos factos provados o ponto 18-A) nos termos atrás mencionados, mantendo-se, no entanto, inalterada a restante matéria de facto provada e não provada supra descrita;
2. Revogam a sentença recorrida na parte relativa à atribuição do grau de responsabilidade do Réu J. M. e do peão C. P. na produção do acidente destes autos e, em consequência:
a) Fixam a responsabilidade de cada um dos intervenientes na proporção de 10% para o peão C. P. e 90% para o Réu J. M., condutor do veículo JL;
b) Condenam a Ré X - Companhia de Seguros, S.A., no pagamento da quantia de € 18.411,61 ao Autor, correspondente a 90% do valor por ele peticionado, acrescida de juros à taxa legal, desde a data de citação até efectivo e integral pagamento, incrementados em 25%, e das despesas extrajudiciais com a cobrança do reembolso que o Autor vier a liquidar.
3. No mais, decidem manter a sentença recorrida.

Custas a cargo da Ré Seguradora, na proporção do respectivo decaimento.
Notifique.
Guimarães, 24 de Fevereiro de 2022
(processado em computador e revisto, antes de assinado, pela relatora)

Maria Cristina Cerdeira (Relatora)
Raquel Baptista Tavares (1ª Adjunta)
Margarida Almeida Fernandes (2ª Adjunta)