INCAPACIDADE PERMANENTE ABSOLUTA PARA O TRABALHO
Sumário

Para que se conclua que o lesado ficou totalmente incapacitado para o trabalho não basta provar que o autor perdeu o emprego, nem que ficou impossibilitado de exercer as funções que exercia habitualmente na empresa onde trabalhava por estas exigirem esforço físico intenso.
É necessário demonstrar a impossibilidade de reconversão profissional do autor, alegando factos para tal, designadamente que a empresa não podia empregá-lo em funções compatíveis com a sua incapacidade, aptidão laboral e habilitações literárias.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I.
B.......... instaurou acção declarativa com forma de processo sumário contra COMPANHIA DE SEGUROS X.........., SA.

Pediu que a ré fosse condenada a pagar-lhe a quantia de 1.907.496$00, acrescida dos juros legais desde a citação e ainda tudo o que vier a ser liquidado em execução de sentença.
Como fundamento, alegou factos tendentes a demonstrar que sofreu danos (que discriminou e quantificou) em consequência de acidente de viação ocorrido por culpa exclusiva do condutor do veículo automóvel de matrícula ..-..-GU, cuja responsabilidade civil se encontrava transferida para a ré mediante contrato de seguro titulado pela apólice nº AU-....... .
A ré contestou, aceitando a existência do contrato de seguro e impugnando os demais factos alegados pelo autor, quer no que respeita à dinâmica do acidente, quer à extensão e montante dos danos.
Requereu também a intervenção principal de COMPANHIA DE SEGUROS Y.........., SA, com o fundamento de o acidente em causa ser simultaneamente de viação e de trabalho e de a responsabilidade por acidentes de trabalho se encontrar transferida para aquela seguradora.
Admitida a intervenção, foi citada aquela seguradora, que não formulou qualquer pedido.
Posteriormente, o autor liquidou e ampliou o pedido, acrescendo ao já formulado na petição inicial a quantia de € 258.771,36.
Em consequência da ampliação, foi ordenada a correcção da distribuição, tendo a presente acção passado a seguir a forma do processo ordinário.

Percorrida a tramitação normal, veio a ser proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e condenou a ré a pagar ao autor a quantia de € 98.606,00, acrescida de juros à taxa anual de 7% desde 21.05.00 até 30.04.03 e à taxa de 4% ao ano desde 01.05.03 até integral pagamento, podendo a ré descontar nessa verba total o montante acumulado que pagou entretanto ao autor, com imputação em primeiro lugar nos juros e em segundo lugar, no que restar, no capital.

Inconformado com a decisão, o autor interpôs recurso de apelação, formulando as seguintes

Conclusões:

1ª – Dado que todos os elementos de prova quanto ao quesito 23 estão nos autos, deve a resposta ao mesmo ser alterada para Provado.
2ª – A título de danos não patrimoniais deve ser fixada a indemnização de € 60.000,00 – por ser a que minimamente pode ressarcir o autor.
3ª – A título de dano patrimonial – incapacidade para o trabalho – deve ser fixada a quantia de € 150.000,00.
4ª – Sendo certo que essa quantia, mesmo assim, não repõe a perda de salários.
5ª – Pois o autor jamais vai poder exercer a sua actividade na C.......... .
6ª – Nesta medida deve ser alterada a Douta Sentença, que fez errada interpretação dos artºs 483º e 496º do C.P.C..

A ré contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso e pela manutenção da sentença recorrida.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

*
II.
A matéria de facto dada como provada pelo tribunal recorrido é a seguinte:

Em 14.03.00, cerca das 15.30 horas, o autor conduzia o velocípede com motor 1STS-..-.. pela EN ..., que liga a Zona Industrial à .........., freguesia de .........., .........., no sentido Zona Industrial/.......... . (A)
Quando o 1STS-..-.. circulava na referida EN ..., no lugar ........., .........., .........., o veículo de matrícula ..-..-GU saiu de uma oficina ali existente, conduzido por D.......... . (B)
O velocípede 1STS-..-.. circulava pela metade direita da faixa de rodagem, atento o seu sentido de marcha, a uma velocidade não superior a 40km/h. (1º, 2º)
O veículo GU arrancou para a faixa de rodagem da EN ... depois de ter parado na saída do logradouro da oficina que vem referida em B), ocupando a metade direita da faixa de rodagem, atento o sentido de marcha do 1STS-..-.., quando o autor já estava a três metros de distância do veículo ..-..-GU. (3º, 4º, 5º)
O embate ocorreu na metade direita da faixa de rodagem, atento o sentido de marcha do 1STS-..-.. . (6º)
O ..-..-GU pertence a E.......... e era conduzido pelo D.......... no interesse e por conta daquele. (7º)
O E.......... tinha entregue o GU ao D.......... para este reparar tal veículo. (8º)
O 1STS-..-.. pertence ao autor por o haver adquirido por compra. (9º)
Após o embate o autor foi transportado ao Hospital .......... e, de imediato, transferido para o Hospital K.........., no Porto. (10º)
Onde lhe foram diagnosticadas e confirmadas as seguintes lesões: fractura da bacia – com diástese da sínfise pública e luxação sacro ilíaca direita –, volumoso hematoma escrotal esquerdo, peritonite fecal consequente a solução de continuidade no cólon sigmoide, fractura supra intercondiliana do fémur direito e derrame pleural bilateral. (11º)
Foi de imediato sujeito a intervenção cirúrgica aos intestinos, sendo-lhe colocado um saco para expulsar as fezes. (12º, 13º)
Aí se manteve internado. (14º)
De seguida foi operado à perna direita. (15º)
Manteve-se internado no Hospital K.......... desde 14.03.00 até 26.04.00. (16º)
Passando posteriormente a ser assistido no Hospital de Santo Tirso. (17º)
Aqui foi operado a uma nádega, posteriormente a duas hérnias e foi operado para proceder à ligação do intestino. (18º, 19º, 20º)
Ainda foi operado a uma virilha. (21º)
Desde a data do acidente até 22.08.00, o autor esteve durante 109 dias internado em hospitais e sujeito a sucessivas intervenções cirúrgicas. (22º)
No decurso desses cuidados médicos foi detectado ao autor diabetes. (23º).
Sujeito a nove intervenções cirúrgicas. (24º)
Sofreu dores. (25º)
Toda a sua vida familiar, afectiva e sexual se alterou. (26º)
Até 20.02.02, o autor esteve totalmente incapacitado para trabalhar e a partir dessa data ficou afectado de incapacidade permanente para o trabalho de 36%. (27º)
Não manteve uma relação tão intensa com os seus filhos, ora por estar cansado, ora por estar com dores. (28º)
Não pode manter uma vida sexual normal. (29º).
Esteve sem trabalhar desde o dia do acidente até 20.02.02. (30º)
À data do acidente o autor prestava o seu trabalho na empresa denominada C.........., Lda em .......... . (C)
Até ao dia do acidente auferia mensalmente um salário líquido de € 514,39 na sociedade comercial C.........., Lda. e, por força da incapacidade permanente que o ficou a afectar, perdeu o emprego nessa sociedade. (31º)
Essa remuneração era paga 14 meses no ano. (32º)
O autor prestava o seu trabalho das 16h às 24h. (33º)
Todas as manhãs o autor trabalhava conjuntamente com a sua mulher no cultivo das suas terras e no maneio das suas vacas leiteiras. (34º)
O autor lavrava as terras, semeava os pensos e cuidava das terras. (35º)
Tinha em média seis ou sete vacas leiteiras. (36º)
Até 20.02.02 o autor nada pôde executar nos seus trabalhos agrícolas e pecuários, tendo a família do autor de alterar a pecuária de bovinos leiteiros para bovinos de engorda por estes serem menos exigentes no maneio e a família do autor teve de vender as vacas leiteiras e a quota do leite. (37º)
Nessa sua actividade, o autor auferia sempre, em média, por mês € 249,40. (38º).
O autor em sucessivas viagens para os cuidados médicos despendeu € 1.250,00. (39º)
O autor após 20.02.02, data de estabilização clínica, ficou afectado de incapacidade permanente para o trabalho de 36%. (40º)
Não consegue estar em pé mais que uma ou duas horas e tem dificuldade em caminhar. (41º, 42º)
Tem dificuldade na execução dos trabalhos agrícolas e pecuários, tendo de reduzir tais trabalhos e sendo os mesmos mais penosos. (43º)
O trabalho na C.........., Lda implicava esforço físico intenso, nomeadamente pegar sistematicamente em cargas de mais de 25 kgs. (44º, 45º, 46º)
O autor nasceu em 25.05.55. (E)
A reparação do ciclomotor custará € 250,00. (50º)
Por contrato de seguro titulado pela apólice AV........, a responsabilidade civil por danos decorrentes da circulação do ..-..-GU encontrava-se transferida para a ré companhia de Seguros X.........., SA. (D)
*
III.
O recurso é balizado pelas conclusões das alegações, estando vedado ao tribunal apreciar e conhecer de matérias que naquelas não se encontrem incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso (artºs 684º, nº 3 e 690º, nºs 1 e 3 do CPC), acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.

As questões a decidir no presente recurso são as seguintes:
1 – Se a resposta ao quesito 23º deve ser “Provado”.
2 – Se a indemnização pelos danos de natureza não patrimonial sofridos pelo autor deve ser fixada em € 60.000,00.
3 - Se a indemnização pela incapacidade para o trabalho do autor deve ser fixada em € 150.000,00.

1 – Alteração da resposta ao quesito 23º
O quesito 23º da base instrutória tem a seguinte redacção:
“No decurso desses cuidados médicos foram-lhe detectados diabetes: consequência da sucessiva medicação a que foi sujeito?”
E obteve a seguinte resposta:
“Provado que no decurso desses cuidados médicos foi detectado diabetes ao autor.”

Pretende o autor que a resposta aquele quesito seja alterada para “Provado”, uma vez que o único meio de prova produzido para o mesmo foi o exame médico e os peritos médicos responderam-lhe da seguinte forma: “Sim de acordo com os registos clínicos de fls. 163”.
Ao contrário do que a ré refere nas suas contra-alegações, o autor não vem reclamar da resposta ao mencionado quesito por deficiência, obscuridade e contradição, que são vícios formais (cfr. artº 653º, nº 4 do CPC). O que o autor visa é uma alteração da resposta dada ao quesito, ao abrigo do disposto no artº 712º, nº 1, al. a) do CPC, por entender que os autos contêm todos os elementos que serviram de base à mesma.

Dispõe o citado artº 712º, nº 1, do CPC que a decisão sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação:
a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artº 690º-A, a decisão sobre a matéria de facto;
b) Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas.
c) Se o recorrente apresentar documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que decisão assentou.

No caso em apreço, apesar de os depoimentos prestados terem sido gravados, o autor não os impugnou nos termos do artº 690º-A do CPC, pelo que está excluída ab initio a situação prevista na 2ª parte da al. a) do citado artº 712º.
O meio de prova invocado pelo autor não impõe, por si só, decisão diversa insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas, uma vez que a prova pericial é um meio probatório de livre apreciação pelo Tribunal (artº 389º do CC – Diploma a que pertencem todas as normas adiante citadas sem menção de origem). A decisão sobre a matéria de facto não pode, por isso, ser alterada com fundamento no disposto na al. b) do nº 1 do artº 712º.
Também não se aplica a al. c) daquele normativo.

Resta saber se o processo contém todos os elementos de prova que serviram de base à resposta dada ao quesito 23º.
Como se alcança da decisão sobre a matéria de facto, o Mº Juiz a quo motivou genericamente as respostas aos quesitos formulados sobre as lesões decorrentes do acidente e as sequelas delas resultantes nos “…extensos documentos hospitalares juntos tanto ao processo principal como ao processo apenso, bem como os três relatórios de exame médico realizado ao autor.” (cfr. o antepenúltimo parágrafo de fls. 219). No parágrafo seguinte fundamentou especificamente a data da estabilização clínica das lesões do autor.
Os relatórios dos exames médicos e os documentos hospitalares juntos a estes autos e aos autos apensos foram assim os únicos elementos probatórios em que assentou a resposta ao quesito 23º, pelo que este tribunal pode alterar a resposta dada ao mesmo, ao abrigo do disposto na 1ª parte da al. a) do nº 1 do citado artº 712º.

Dispõe o artº 388º que a prova pericial tem por fim a percepção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, ou quando os factos, relativos a pessoas, não devam ser objecto de inspecção judicial.
Por seu turno, o artº 389º estabelece que a força probatória das respostas aos quesitos é apreciada livremente pelo tribunal.
No domínio da prova pericial (tal como na prova por inspecção e por testemunhas) vigora o princípio da prova livre, por contraposição ao princípio da prova legal (que funciona na prova por documentos, por confissão e por presunções legais).
Prova livre não significa, no entanto, prova arbitrária, mas prova apreciada pelo juiz segundo a sua experiência, a sua prudência, o seu bom senso, com inteira liberdade, sem estar vinculado ou adstrito a quaisquer regras, medidas ou critérios legais.
No domínio da prova pericial, o tribunal pode afastar-se livremente do parecer dos peritos, sem necessidade de justificar o seu ponto de vista, quer porque tenha partido de factos diferentes dos que aceitou o perito, quer porque discorde das conclusões dele ou dos raciocínios em que elas se apoiam, quer porque os demais elementos de prova existentes nos autos, invalidem, a seu ver, o laudo dos peritos. [Pires de Lima/Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, 3ª ed., vol. I, pág. 3389
O que o julgador não pode é funcionar, ele mesmo, como perito, afastando deliberadamente o parecer contido no relatório dos peritos, substituindo-lhe, sem o fundamentar, outros elementos de convicção.

No caso em apreço, como já se disse, a resposta ao quesito 23º (bem como aos restantes quesitos respeitantes às lesões e sequelas do acidente) foi genericamente fundamentada nos relatórios dos exames médicos e nos documentos hospitalares juntos aos presentes autos e aos autos de procedimento cautelar de arbitramento de reparação provisória apensos.
O facto vertido no quesito 23º foi alegado pelo autor no articulado superveniente de ampliação do pedido que apresentou a fls. 120 e, como tal, foi aditado à base instrutória a fls. 133.
A matéria do mesmo só foi pois apreciada pelos peritos médicos no exame realizado em 18.02.04. Na sequência de reclamação apresentada pela ré, vieram os peritos médicos responder aquele quesito da seguinte forma: “Sim, de acordo com os registos clínicos de fls. 163.” (cfr. fls. 191).
O que se pretende apurar com aquele quesito é o nexo de causalidade entre a diabetes que foi detectada ao autor e a medicação a que foi sujeito para tratamento das lesões derivadas do acidente.
Tal nexo de causalidade não se pode estabelecer por observação directa do examinando. Para o estabelecer, teriam os peritos médicos de saber quais os medicamentos que o autor tomou. Sabendo quais eram esses medicamentos e sabendo ou sendo exigível que saibam, por força dos conhecimentos especiais que lhes advêm da sua profissão, qual a composição e efeitos desses medicamentos, ficariam então aptos a formular a conclusão necessária à resposta ao quesito 23º.
Ora, o que consta do registo clínico de fls. 163 é precisamente a nomenclatura de vários medicamentos que foram ministrados ao autor.
Admite-se que a resposta dos peritos médicos não seja um primor de precisão. Seria mais explícita se explicasse sumariamente qual a composição e quais os efeitos possíveis dos medicamentos.
Mas entende-se perfeitamente que se os peritos médicos responderam de forma positiva ao quesito, fazendo referência aos medicamentos nomeados no dito registo clínico do autor, é porque estabeleceram o nexo de causalidade entre a composição dos mesmos e a diabetes que veio a ser detectada.
Tendo os peritos chegado aquela conclusão por força dos especiais conhecimentos médicos que possuem, para afastar o nexo de causalidade entre a medicação e a diabetes teria o Mº Juiz a quo de ter explicado as razões que o levaram a formar a sua convicção naquele sentido, analisando criticamente o relatório pericial e os registos clínicos juntos aos autos e confrontando-os com outros meios de prova.
Tal não foi feito, tendo-se motivado genericamente a resposta ao quesito 23º nos exames médicos e nos registos clínicos, sem indicação de qualquer outro elemento probatório.
E precisamente com base no relatório do exame médico, por referência ao registo clínico de fls. 163 e ainda à informação clínica de fls. 59 dos presentes autos e ao registo clínico de fls. 63 dos autos apensos, tem de se responder de forma positiva ao quesito 23º.

Assim, ao abrigo do disposto no artº 712º, nº 1, al. a), 1ª parte, do C.P.C., altera-se a resposta ao quesito 23º para “Provado”, pelo que na factualidade acima descrita passará a constar:
“No decurso desses cuidados médicos foi detectado diabetes ao autor em consequência da sucessiva medicação a que foi sujeito. (23º)”

2 – Montante da indemnização pelos danos de natureza não patrimonial sofridos pelo autor
Dispõe o artº 496º, nº 1 que “Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito”.
A gravidade do dano há-de medir-se por um padrão objectivo e não à luz de factores subjectivos e há-de apreciar-se em função da tutela do direito, devendo ser de tal modo grave que justifique a concessão de uma satisfação de ordem patrimonial ao lesado. [Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, 2ª ed., vol. I, págs. 486 e 487]
No caso em apreço, não está em causa que os danos não patrimoniais sofridos pelo autor sejam suficientemente graves para merecerem a tutela do direito e, por isso, indemnizáveis. Apenas se questiona o montante da indemnização devida por tais danos.

A este propósito, dispõe o nº 3 do normativo citado que “O montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo, em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artº 494º;”
Na formulação de um juízo de equidade, deve o juiz atender aos factores que resultem da factualidade provada, fazendo prevalecer as razões de conveniência e de oportunidade sobre os critérios normativos fixados na lei.
As circunstâncias expressamente referidas no artº 494º são o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado, fazendo ainda referência este normativo “às demais circunstâncias do caso”. Nas demais circunstâncias do caso incluem-se, obrigatoriamente, os padrões de indemnização geralmente adoptados na jurisprudência e as flutuações do valor da moeda.
O facto de a lei ter mandado atender quer à culpa e à situação económica do lesante, quer à situação económica do lesado (pela remissão expressa do nº 3 do artº 496º para o artº 494º), significa que, no caso dos danos não patrimoniais, a indemnização reveste uma natureza mista: por um lado, visa compensar de algum modo, mais do que indemnizar, os danos sofridos pela pessoa lesada; por outro lado, visa reprovar ou castigar, no plano civilístico e com os meios próprios do direito privado, a conduta do agente. [Antunes Varela, obra citada, pág. 488]
A jurisprudência do STJ tem evoluído no sentido de que a compensação pelos danos de natureza não patrimonial deverá ser significativa e não miserabilista, constituindo um lenitivo para os danos suportados. Só dessa forma se dará cumprimento efectivo ao comando do artº 496º. [Ac. do STJ de 25.06.02, CJ/STJ-02-II-128]

No caso em análise, os danos de natureza não patrimonial sofridos pelo autor em consequência do acidente decorrem da seguinte factualidade:
O autor sofreu fractura da bacia – com diástese da sínfise púbica e luxação sacro ilíaca direita –, volumoso hematoma escrotal esquerdo, peritonite fecal consequente a solução de continuidade no cólon sigmoide, fractura supra intercondiliana do fémur direito e derrame pleural bilateral.
Foi sujeito a intervenção cirúrgica aos intestinos, sendo-lhe colocado um saco para expulsar as fezes, e posteriormente operado para proceder à ligação do intestino. Foi ainda operado à perna direita, a uma nádega, a duas hérnias e a uma virilha. Ao todo, o autor foi sujeito a nove intervenções cirúrgicas.
Esteve internado em hospitais no total de 109 dias e sofreu dores.
No decurso dos cuidados médicos que lhe foram prestados, foi-lhe detectado diabetes em consequência da sucessiva medicação a que foi sujeito.
Não manteve uma relação tão intensa com os seus filhos, ora por estar cansado, ora por estar com dores.
O autor não consegue estar em pé mais que uma ou duas horas, tem dificuldade em caminhar e não pode manter uma vida sexual normal.

Na fixação do quantum indemnizatório, há que atender ainda ao facto de o autor ter 44 anos à data do acidente.

Na sentença recorrida, atribuiu-se ao autor a indemnização global de € 25.000,00 para compensar os danos acima referidos, com excepção dos danos decorrentes da diabetes.
Face à alteração da resposta dada ao quesito 23º, terão agora tais danos de ser considerados e englobados no cômputo geral da indemnização. Como é facto notório, a diabetes acarreta restrições alimentares, uso de medicação adequada e risco acrescido de infecções.
Ponderadas todas as circunstâncias do caso concreto acima mencionado e à semelhança de recentes decisões do STJ [Ver os Acs. de 17.06.04, 18.11.04, 25.11.04, 11.01.05, 13.01.05 e 15.02.05, www.dgsi.pt.] e desta Relação, [Ver os Acs. de 13.05.02 e 04.02.03, base citada] afigura-se-nos adequado o montante de € 30.000,00 para compensar o autor de todos os danos não patrimoniais que sofreu em consequência do acidente.

3 – Montante da indemnização pela perda da capacidade de ganho
Pretende o autor que, apesar de ter ficado portador de uma incapacidade parcial permanente de 36%, ficou, na realidade, totalmente incapaz para o trabalho e que a indemnização por tal dano tem o compensar dessa incapacidade total.

Como se diz no Ac. do STJ de 28.10.99, [CJ/STJ-99-III-66] a incapacidade para o trabalho é um dano material que pode assumir três aspectos diferentes:
O primeiro é a incapacidade funcional do corpo humano ou de um seu órgão (no sentido médico-legal deste termo, diferente do seu sentido estritamente médico). Está aqui em causa uma alteração funcional da pessoa que afecta a sua integridade física, impedindo-a de exercer determinada actividade corporal ou sujeitando-a a exercitá-la de modo imperfeito, deficiente ou doloroso. É o caso de quem fique privado de um número significativo de dentes, afectando o órgão da mastigação.
O segundo é a incapacidade para o trabalho em geral.
O terceiro é a incapacidade para o trabalho profissional do lesado, em particular.
Da incapacidade para o trabalho podem resultar danos emergentes, lucros cessantes e danos futuros, todos eles indemnizáveis, ao abrigo do disposto no artº 564º, nºs 1 e 2.
Os danos emergentes correspondem aos prejuízos sofridos, ou seja, à diminuição no património no lesado (artº 564º, nº 1, 1ª parte). A fixação da indemnização por danos emergentes não oferece, regra geral, grande dificuldade, obedecendo, em princípio, a uma pura operação aritmética.
Nos lucros cessantes incluem-se os benefícios que o lesado deveria ter obtido e não obteve (artº 564º, nº 1, 2ª parte). Este tipo de dano deve ser calculado segundo critérios de probabilidade ou de verosimilhança, de acordo com o que, em cada caso concreto, poderá vir a acontecer, pressupondo que as coisas seguem o seu curso normal; se, mesmo assim, não puder apurar-se o seu valor exacto, o tribunal deve julgar segundo a equidade, ao abrigo do disposto nos artºs 566º, nº 3.
A perda ou diminuição da capacidade laboral por morte ou por incapacidade permanente total ou parcial origina a perda de um rendimento que se repercute em prejuízos sofridos e a sofrer pelo lesado ou por aqueles que viviam ou vivem na sua dependência económica. Este é um dano futuro previsível, como tal, indemnizável ao abrigo do disposto no artº 564º, nº 2.
No que respeita aos danos futuros derivados da incapacidade permanente parcial, podem colocar-se várias hipóteses: a) o lesado ficou com uma certa percentagem de incapacidade, mas totalmente incapacitado de trabalhar no seu ofício e não é possível reconvertê-lo; b) na mesma situação, é possível reconverter o lesado a outra actividade, sem diminuição salarial; c) a situação anterior, mas com diminuição de salário; d) a incapacidade permanente parcial reflecte-se no trabalho nessa mesma percentagem. [Sobre esta matéria, ver o estudo do Cons. Sousa Dinis, “Dano Corporal em Acidentes de Viação”, CJ/STJ-01-I-5]

A fixação da indemnização pelos danos futuros decorrentes da incapacidade para o trabalho deve fazer-se sempre com recurso à equidade, nas fronteiras dos artºs 564º, nº 2, 566º, nº 3, 496º, nº 3 e 494º, como vem sendo entendimento unânime da jurisprudência. [Ver, entre outros, para além dos Acs. do STJ de 25.06.02 e 11.01.05, já citados nas notas 5 e 6, respectivamente, ainda os Acs. do mesmo Tribunal de 06.07.00, CJ/STJ-00-II-144 e de 30.10.01 e 15.06.04, disponíveis na base citada]
Dá-se aqui como reproduzido o que acima se escreveu acerca da formulação de um juízo de equidade.
Como se lê no Ac. do STJ de 06.07.00, [Citado na nota anterior] na atribuição da indemnização pela perda de rendimento do trabalho decorrente de incapacidade, o julgamento da equidade, como processo de acomodação dos valores legais às características do caso concreto, não pode prescindir do que é normal acontecer no que se refere à duração da vida, à progressão profissional do lesado e finalmente à flutuação do dinheiro quando perspectivado um período correspondente ao da vida provável do lesado.
Com vista a reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento lesivo (cfr. artº 562º), consagrou-se jurisprudencialmente um critério que se exprime da seguinte maneira: a indemnização em dinheiro do dano futuro de incapacidade permanente corresponde a um capital produtor do rendimento que a vítima não irá auferir, capital esse que se extinga no final do período provável da sua vida.
É no cálculo de semelhante capital que a equidade intervém, pois há que assentar no tempo provável de vida da vítima, na diferença que, em cada época futura, existira entre o rendimento auferido e o que auferiria se não fosse a lesão e, finalmente, no valor da unidade monetária em que a indemnização se irá exprimir.
A dificuldade e mesmo impossibilidade de concretizar alguns desses dados, nomeadamente os que se prendem com a progressão profissional do lesado e com a evolução do valor da moeda a longo prazo, obrigam a que se recorra a expedientes mais ou menos abstractos, operando sobre os dados que equitativamente se devem ter como assentes, de que são exemplo as tabelas financeiras.
Tal como qualquer outro método de cálculo que seja a expressão de um critério abstracto, as tabelas financeiras, a serem usadas, devem sê-lo como meros auxiliares, como elementos instrumentais da equidade.
Se a equidade é precisamente a justiça do caso concreto, independente das normas gerais e abstractas eventualmente aplicáveis, seria contrário à mesma vincular o julgador ao uso de cálculos matemáticos que são parte integrante de normas gerais e abstractas.
A equidade continua assim a ser o critério primordial na fixação da indemnização pelos danos futuros derivados da incapacidade para o trabalho.

Já acima referimos as quatro hipóteses que podem ocorrer em caso de incapacidade permanente parcial: a) incapacidade total para o exercício da profissão habitual sem possibilidade de reconversão; b) incapacidade total para o exercício da profissão habitual com possibilidade de reconversão e sem diminuição salarial; c) incapacidade total para o exercício da profissão com possibilidade de reconversão mas com diminuição salarial; d) reflexo da incapacidade permanente parcial no trabalho na percentagem da mesma.
Daquelas hipóteses, a única que atribui o direito a indemnização por incapacidade total para o trabalho é a prevista na al. a).
Na hipótese prevista na al. b), será de se indemnizar o eventual esforço físico e psíquico suplementar para obter o mesmo resultado do trabalho decorrente da percentagem de incapacidade de que o lesado ficou portador.
Na hipótese prevista na al. c), na fixação do quantum indemnizatório há que atender à diferença para o salário anterior, tendo em conta o período provável de vida activa profissional.
E, finalmente, na situação referida na al. d), a diminuição da capacidade de trabalho equivale à diminuição da capacidade de ganho, na exacta percentagem da incapacidade permanente parcial que foi atribuída ao lesado. [Sobre esta matéria, ver Cons. Sousa Dinis, estudo e local citados]

Na sentença recorrida, enquadrou-se a situação do autor na hipótese referida na al. d): na fixação da indemnização, atendeu-se ao reflexo que a incapacidade permanente parcial de 36% tem na sua capacidade de trabalho que se equiparou à capacidade de ganho.
Para tal, fez-se uso das tabelas financeiras, somando os rendimentos que o autor obtinha das duas actividades a que se dedicava (fabril e agrícola), tendo em conta um período de vida activa até aos 65 anos de idade e ponderando uma rentabilidade de capital de 3% ao ano.
Com base naqueles cálculos, atribuiu-se ao autor a indemnização de € 52.567,00.

Para a atribuição ao autor de uma indemnização pelos danos futuros decorrentes da incapacidade para o trabalho, há que atender à seguinte factualidade:
À data do acidente o autor trabalhava na empresa C.........., Ldª, auferindo um salário líquido de € 514,39, 14 vezes por ano.
O autor prestava aquele seu trabalho das 16h às 24h.
Todas as manhãs o autor trabalhava conjuntamente com a sua mulher no cultivo das suas terras e no maneio das suas vacas leiteiras. Lavrava as terras, semeava os pensos e cuidava das terras.
Nessa sua actividade, o autor auferia sempre, em média, por mês € 249,40.
Após 20.02.02, data de estabilização clínica, o autor ficou afectado de incapacidade permanente para o trabalho de 36%.
O autor não consegue estar em pé mais que uma ou duas horas e tem dificuldade em caminhar.
Tem dificuldade na execução dos trabalhos agrícolas e pecuários, tendo de reduzir tais trabalhos e sendo os mesmos mais penosos.
O trabalho na C.........., Lda implicava esforço físico intenso, nomeadamente pegar sistematicamente em cargas de mais de 25 kg.
Por força da incapacidade permanente que o ficou a afectar, perdeu o emprego na C.........., Lda.
Em 20.02.02, o autor tinha 46 anos de idade.

Provou-se efectivamente que a actividade que desempenhava na empresa C.........., Lda implicava esforço físico intenso, nomeadamente pegar em cargas de mais de 25 kg, que o autor actualmente tem dificuldade em caminhar e em estar de pé mais do que uma ou duas horas, e ainda que, por força da incapacidade de que ficou afectado, perdeu o emprego na C.........., Lda.

Parece-nos que tais factos são insuficientes para que deles se conclua que o autor ficou totalmente incapacitado para o trabalho.
Não basta provar que o autor perdeu o emprego, nem que ficou impossibilitado de exercer as funções que exercia habitualmente na empresa onde trabalhava por estas exigirem esforço físico intenso.
Era necessário demonstrar a impossibilidade de reconversão profissional do autor, alegando factos para tal, designadamente que a empresa não podia empregá-lo em funções compatíveis com a sua incapacidade, aptidão laboral e habilitações literárias.
Sem a demonstração da impossibilidade de reconversão profissional do autor, não se pode concluir que ele ficou totalmente incapacitado para o trabalho.
Sendo assim, a sentença recorrida fez um correcto enquadramento jurídico dos factos, ao considerar na atribuição da indemnização pela perda de capacidade de trabalho do autor apenas o reflexo que a incapacidade parcial permanente de 36% tem na sua capacidade de ganho, quer no que respeita ao trabalho fabril, quer ao trabalho agrícola.

O uso das tabelas financeiras como método de cálculo da indemnização pela perda da capacidade de trabalho, não sendo imperativo, constitui um dos meios possíveis de auxílio à determinação do montante da indemnização.
O que importa é que a utilização daquele método, ou de qualquer outro, conduza a um resultado justo e equilibrado tendo em conta as circunstâncias do caso concreto, reflectindo o juízo de equidade que deve presidir à atribuição da indemnização.

E, no caso em apreço, o montante de € 52.567,00 atribuído ao autor pelo dano de perda de capacidade de trabalho mostra-se correcto e adequado, pelo que nenhuma censura há a fazer-lhe.

Na procedência parcial das conclusões da apelante, deve ser alterada o montante global da indemnização para € 103.606,00.
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IV.
Pelo exposto, acorda-se em julgar a apelação em parte procedente, revogando-se parcialmente a sentença recorrida e, em consequência:

- Condena-se a ré a pagar ao autor a quantia de € 103.606,00 (cento e três mil seiscentos e seis euros), acrescida de juros legais desde a citação até integral pagamento, a calcular às taxas anuais de 7% até 30.04.03 e de 4% a partir de 01.05.03;
- Mantém-se o mais que foi decidido.

Custas nesta instância a cargo do apelante e da apelada, na proporção do decaimento.
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Porto, 12 de Janeiro de 2006
Deolinda Maria Fazendas Borges Varão
Ana Paula Fonseca Lobo
António Domingos Ribeiro Coelho da Rocha