PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
CESSAÇÃO ANTECIPADA DA EXONERAÇÃO
NOTIFICAÇÃO AO INSOLVENTE
NOTIFICAÇÃO PESSOAL
Sumário

I – Independentemente de estarem, ou não, representados por mandatário, os devedores (insolventes) devem ser notificados para se poderem pronunciar sobre a cessação antecipada do procedimento de exoneração, requerida por um dos credores.
II – Se a sua notificação é dirigida para a morada fixada na sentença que declarou a insolvência, mas que corresponde ao imóvel já vendido no apenso de Liquidação, não pode tal notificação ter-se como eficaz.
(da responsabilidade do relator)

Texto Integral

Processo n.º 665/16.1T8AVR.P1

Recorrente – BB

Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto:

I - Relatório
AA e BB, casados entre si no regime de comunhão de adquiridos, vieram, em 26 de fevereiro de 2016, apresentar-se à insolvência, requerendo também a concessão da exoneração do passivo restante.

Depois de proferido despacho no sentido de os requerentes completarem a sua petição [7.03.2016], ao qual os mesmos corresponderam, veio a ser proferida, a 15.03.2016, a sentença que declarou a insolvência dos requerentes [Assim, ao abrigo do disposto nos arts. 3.º e 28.º, ambos do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa, declaro a insolvência dos requerentes AA, portador do cartão de cidadão n.º …….. . zz., com o NIF ………, e BBs, portadora do cartão de cidadão n.º …….. .zz., com o NIF ……… * Fixo a residência dos insolventes na Rua …., ., .. …., …, ….-…].

Foi junto aos autos, além do mais, o relatório elaborado nos termos do artigo 155 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), a Assembleia de Credores teve lugar a 12 de maio de 2016 e, por despacho proferido a 11.07.2018 [retificado a 13.07.2018, por manifesto lapso na identificação dos insolventes], foi liminarmente admitido o pedido de exoneração do passivo restante e determinado o encerramento do processo de insolvência [- admito liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante; - determino que o rendimento disponível dos devedores/insolventes, objeto da cessão ora determinada, será integrado por todos os rendimentos que lhes advenham a qualquer título com exclusão do correspondente ao montante mensal de duas vezes (2x) o salário mínimo nacional. * Durante o período da cessão não são permitidas quaisquer execuções sobre os bens dos devedores destinadas à satisfação dos créditos sobre a insolvência, prevalecendo a cessão dos seus rendimentos sobre quaisquer acordos que condicionem ou por qualquer forma limitem a cessão de bens ou rendimentos dos devedores (arts. 239.º, n.º 5 e 242.º, n.º 1 do CIRE). * Registe e publicite a nomeação de fiduciário nos termos previstos pelo art. 38.º, n.º 2 e 4 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, ex vi art. 240, n.º 2 do mesmo diploma. Proceda ao registo e publicação do presente despacho nos termos prescritos pelos arts. 37.º e 38.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, ex vi arts. 247.º e 230.º, n.º 2 do mesmo diploma. * Nos termos do art. 230.º, n.º 1, al. e) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, profere-se despacho de encerramento do processo de insolvência, com os efeitos previstos no n.º 7 do art. 233.º do CIRE, na redação do D.L. n.º 79/2017 de 30/06, dando-se nesta data início ao período de cessão. * Notifique, sendo os insolventes informados dos deveres que sobre os mesmos impendem, nos termos do disposto no art. 239.º, n.º 4 do CIRE].

Depois de para tanto notificado, o Administrador de Insolvência (AI) veio apresentar relatório nos termos do artigo 240, n.º 2 do CIRE (relativo ao primeiro ano de cessão), a 3.02.2020, onde refere que “apesar das várias tentativas efetuadas – E-mails e telefonemas ao longo de vários dias, não conseguiu falar com o mandatário/patrono dos insolventes. A informação recolhida foi ao telefone com a mulher do insolvente, Sra. BB.” Igualmente refere que os insolventes “residem em casa arrendada na Av. …, n.º …, … (...) o rendimento do agregado familiar (...) totalizando o valor mensal de cerca de 1.900,00€ (...) Mediante a insistência do AI a Insolvente combinou que iria falar com o mandatário para que a informação solicitada seja enviada com a maior brevidade possível”.

Na sequência, a 18.03.2020, a credora CC, CRL, veio requerer a “cessação antecipada do período de cessão de rendimentos dos insolventes, e o consequente indeferimento da exoneração do passivo restante”, fundamentando esse pedido “em virtude de os insolventes não terem apresentado os documentos solicitados pelo fiduciário, apesar das insistências deste, nem terem procedido à entrega de qualquer valor, sendo forçoso concluir, que face ao relatório elaborado pelo fiduciário, existe rendimento disponível – art. 243.º, n.º 1, al. a) e n.º 3, e art. 239.º, n.º 4, als. a) e c), todos do CIRE.”

O Sr. AI, a 10.09.2020, juntou novo relatório, este relativo ao segundo ano do período de cessão. Aí refere, além do mais, que “mantém a morada de residência, em casa arrendada, na Av. …, n.º …, …”, que “O rendimento do agregado (...) totalizando o valor mensal de cerca de 1.850,00€. Não foi cedida pelos devedores qualquer verba”. Acrescenta: “O Administrador de Insolvências, aquando da recolha de informação para a elaboração deste 2.º relatório, recordou a insolvente, que necessitava dos recibos de pagamento de honorários da insolvente e dos recibos do pagamento da pensão do insolvente relativos aos dois anos de cessão: 2018 a 2019 e 2019 a 2020”.

A 19.11.2020 foi proferido despacho com as seguintes determinações:
“a) Ordena-se a notificação dos devedores/insolventes, com cópia dos relatórios apresentados pelo Sr. fiduciário e do requerimento apresentado pela credora CC, CRL, quer na pessoa do mandatário, quer na sua própria pessoa, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 247.º n.º 2 do Código de Processo Civil, para, em 10 dias, pronunciarem-se quanto ao pedido de cessação antecipada do procedimento de exoneração e ainda para juntarem aos autos cópia dos recibos dos salários auferidos por si ou documentos dos subsídios ou pensões de reforma de que eventualmente tenha beneficiado desde o inicio do período de cessão até à presente data e das declarações fiscais de rendimentos, apresentadas para efeitos de IRS, com a advertência de que a exoneração poderá ser recusada se, sem motivo razoável, não fornecerem e entregarem no prazo concedido as informações e documentos referidos. b) Determina-se a notificação dos demais credores da insolvência e do Sr. fiduciário para, querendo, em 10 dias, pronunciarem-se quanto à requerida cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante.”

A cada um dos insolventes foi enviada notificação para a “Av. …, n.º … – … ….-… … [fls. 778 e 747 do processo eletrónico – p.e.] e ambas vieram devolvidas com a indicação “Endereço insuficiente” [fls. 604, 603, 599 e 598 do p.e.].

A 9.02.2021, foi proferido despacho com o seguinte teor: “Analisados os autos constata-se que apenas a insolvente se encontra representada por mandatário (procuração junta em 28/06/2018), na sequência da renúncia operada no apenso D por parte da mandatária constituída por ambos os insolventes aquando do início do processo. Por outro lado, constata-se ainda que as cartas remetidas para notificação aos insolventes, determinada pelo despacho proferido em 19/11/2020, vieram devolvidas com menção “endereço insuficiente”. Sendo certo que tais cartas foram remetidas para a morada indicada pelo Sr. fiduciário no último relatório, como sendo aquela que corresponderá à atual morada dos insolventes, a saber, Av. … no …, ….-… ….. Analisados os autos constata-se que os insolventes vieram indicar a sua nova morada, através do requerimento que deu entrada em 21/03/2017, como localizada na Rua …, . – .. …. - …, ….-… …. Pelo exposto, não se podendo considerar os insolventes notificados na morada para onde foram expedidas as notificações e atendendo às consequências gravosas que daí decorrerão, antes de mais, notifique o mandatário da insolvente para, em 10 dias, vir indicar a atual morada dos insolventes” e, a 10.03.2021, voltou a proferir-se despacho, agora nestes termos: “Notifique novamente a insolvente, na pessoa do seu mandatário, para, em 10 dias, vir indicar a atual morada dos insolventes, agora com a advertência de que, não cumprindo o que lhe foi determinado e nada justificando, haverá condenação em multa processual a fixar entre €51,00 e €510,00 (artigo 417.º do Código de Processo Civil, aplicável por remissão do artigo 17.º do CIRE e artigo 27.º do Regulamento das Custas Judiciais)”. E a 26.05.2021, por último, proferiu-se o seguinte despacho: “Os presentes autos têm estado a aguardar pela efetivação da notificação dos insolventes em ordem a que os mesmos se pronunciem quanto ao pedido de cessação antecipada do procedimento de exoneração e ainda para juntarem aos autos vários documentos. Analisados os autos constata-se que, na sentença, foi fixada aos insolventes a seguinte morada que os mesmos indicaram na petição inicial: “Rua …., .,. …, …, ….-…”. As cartas remetidas aos insolventes para notificação foram enviadas para outra morada, designadamente a indicada nos relatórios apresentados pelo Sr. fiduciário, tendo sido devolvidas com a menção “endereço insuficiente”. Determinou-se a notificação do mandatário da insolvente para indicar a atual morada dos insolventes e pelo mesmo nada foi dito. Face ao exposto cumpre relevar o seguinte. Entre os deveres previstos no n.º 4 do artigo 239 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), encontra-se o de informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio, no prazo de 10 dias após a respetiva ocorrência. Sendo certo que, por força do disposto nos artigos 247 n.º 2 e 249 do Código de Processo Civil, terá de se considerar que a notificação feita produzirá os seus efeitos, desde que dirigida para a residência indicada, presumindo-se feita no terceiro dia posterior ao do registo da carta ou no primeiro dia útil seguinte a esse, quando o não seja, independentemente da devolução do expediente. No referido contexto, em que os próprios insolventes não indicaram outra morada e nem comunicaram qualquer alteração de morada, ter-se-á de concluir que a morada escolhida para notificação continua a ser a fixada na sentença. Cabendo assim diligenciar pela notificação na referida morada, sem que a mesma deixe de produzir efeitos, nos termos acima assinalados, mesmo que o expediente em causa venha a ser devolvido, ainda que com a menção a qualquer mudança de domicilio, porque, como se disse, sobre os próprios insolventes impendia o dever de comunicar qualquer alteração do seu domicilio ao Tribunal (...) Mas dito isto, relevando ainda os efeitos gravosos em causa, não deixará de se determinar adicionalmente a pesquisa à base de dados a fim de apurar se existirão novas moradas. Pelo exposto, determina-se que se diligencie pelo apuramento de novas moradas dos insolventes nas bases de dados e a notificação dos mesmos, através de carta registada, remetida para a morada fixada na sentença e igualmente para as novas moradas que se venham a apurar, nos exatos termos e para os efeitos determinados no despacho proferido em 19/11/2020.”

Foram feitas diligências e enviadas notificações para os insolventes, na Rua …, n.º .. [fls. 435 e 401 do p.e] e na morada fixada na sentença, Rua …, n.º ., . …. [fls. 367 e 333 do p.e.] tendo estas últimas sido devolvidas com a informação “Mudou-se” [fls. 201 e 198 do p.e.]

A 8.10.2021 foi proferida a decisão aqui em recurso: “Pelo exposto, com os fundamentos acima referidos, determino a cessação antecipada do procedimento e em consequência recuso a exoneração do passivo restante aos devedores AA e BBs.”

Os fundamentos para que remete a decisão antes referida são, em síntese, os que transcrevemos e sublinhamos:
“O credor (...) veio requerer a cessação antecipada do procedimento de exoneração (...) Foi proferido despacho determinando, entre o mais, a notificação dos insolventes, com cópia dos relatórios apresentados pelo fiduciário e do requerimento apresentado pela credora CC, CRL, quer na pessoa do mandatário, quer na sua própria pessoa, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 247 n.º 2 do Código de Processo Civil, para, em 10 dias, pronunciarem-se quanto ao pedido de cessação antecipada do procedimento de exoneração e ainda para juntarem aos autos cópia dos recibos dos salários auferidos por si ou documentos dos subsídios ou pensões de reforma (...). No prazo concedido para o efeito os insolventes nada juntaram ou justificaram. Nos termos do disposto no artigo 243 do CIRE (...) É verdade que as cartas remetidas pelo Tribunal têm sido devolvidas, sendo que as últimas, remetidas para a morada indicada na petição inicial e fixada na sentença, com menção de mudança de residência. No entanto, conforme decorre dos autos, o Tribunal tudo tem feito para indagar do paradeiro dos devedores. Sendo certo que foram já remetidas cartas para a morada indicada pelos próprios devedores na petição inicial e fixada na sentença, sem que estes tenham vindo indicar outra morada. Não se podendo descurar que, entre os deveres previstos no n.º 4 do artigo 239 do CIRE, como se disse, encontra-se o de informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio, no prazo de 10 dias após a respetiva ocorrência. Sendo certo que, por força do disposto nos artigos 247 n.º 2 e 249 do Código de Processo Civil, terá de se considerar que a notificação feita produzirá os seus efeitos, desde que dirigida para a residência indicada, presumindo-se feita no terceiro dia posterior ao do registo da carta ou no primeiro dia útil seguinte a esse, quando o não seja, independentemente da devolução do expediente. No referido contexto, em que os próprios insolventes não indicaram outra morada e nem comunicaram qualquer alteração do seu domicílio, ter-se-á de concluir que a morada escolhida para notificação continua a ser a fixada na sentença e que a devolução das cartas não impedirá que se profira decisão. Sendo evidente que a qualquer pessoa – num quadro em que busca uma segunda oportunidade, além do mais, à custa do património de terceiros, estando pendente uma acção judicial – sempre se imporá que não se venha a alhear em absoluto do processo. Daí também decorrendo que, no mínimo, com negligência grave, os devedores omitiram os deveres de informação que decorrem da alínea a) do n.º 4 do artigo 239 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, colocando-se em posição de vir a ser inviabilizado o apuramento das suas condições económicas. Negligência grave essa revelado pelo facto de a conduta ter perdurado por um período de tempo longo (não se reportando apenas a um simples ato esporádico ou isolado) e na violação reiterada do dever de colaboração. (...) para além do óbvio dever de ceder os rendimentos não salvaguardados no despacho inicial, o legislador não deixou igualmente de prever outros deveres, entre eles, o de informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado e ainda o de informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio. No pressuposto de que tais deveres revestem particular relevância, não só para se aferir da tal conduta reta e proba em ordem a legitimar uma nova oportunidade, mas acima de tudo em ordem a facultar ao tribunal e ao fiduciário um controlo mínimo dos rendimentos a entregar. (...) Assumindo-se que a simples violação da obrigação de prestar as informações em causa poderá constituir fundamento, só por si, para a cessação antecipada do procedimento de exoneração ou para a sua recusa a final (nesse sentido, entre outros, acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 06/04/2017 e acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 10/05/2018, base de dados da DGSI, processo n.º 1288/12.0TJPRT.P1 e 454/10. 7TBGLG.E1). E por isso mesmo é que o legislador previu no artigo 243 n.º 3 do CIRE, que a exoneração seja sempre recusada se o devedor, sem motivo razoável, não fornecer no prazo que lhe seja fixado informações que comprovem o cumprimento das suas obrigações, ou, devidamente convocado, falte injustificadamente à audiência em que deveria prestá-las. (...)”.

II – Do Recurso
A insolvente BB veio apelar da decisão e, pretendendo a sua revogação, formulou as seguintes Conclusões:
I - O recurso vem interposto da decisão que determinou a cessação antecipada do procedimento e recusou a exoneração do passivo restante da recorrente e seu marido.
II – Existiram, é verdade, reiteradas dificuldades de notificação por via postal da ora recorrente e seu marido, tendo as notificações postais do tribunal sido enviadas para as moradas dos dois imóveis dos insolventes constantes dos autos. Contudo, ambos os imóveis haviam já sido vendidos no âmbito do apenso da liquidação, como é do conhecimento do tribunal. Por esse motivo, as notificações em causa têm um valor (substancialmente) nulo.
III – Para [além] da questão eficácia das notificações, a própria venda dos imóveis deveria ter sido ponderada na questão da colaboração dos insolventes; Não nos parecendo adequado que meras questões de notificação relativas a eventuais rendimentos, possam prevalecer de forma absoluta, de forma a tornar indiferente a colaboração total dos insolventes na venda efetiva dos seus dois imóveis, e a recolha de um produto superior a duas centenas de milhares de euros para pagamento aos credores;
IV – Na sequência das vendas supra referidas, os insolventes foram para casa de renda, tendo junto o respetivo contrato ao processo; Não tendo nenhuma tentativa de notificação sido efetuada para a morada do arrendado.
V – É certo que o mandatário da ora recorrente foi diversas vezes notificado, porém, salvo melhor juízo, a lei impõe neste caso, também a notificação autónoma dos insolventes; De forma a acautelar dificuldades de contacto entre mandatário e seu constituinte.
VI – Por outro lado, o insolvente marido não se encontra representado por advogado, pelo que quanto a ele, a notificação teria de se realizar. Nem tem mandatário, sendo aliás discutível se o pode constituir;
VII – O insolvente-marido foi vítima de doença grave, nomeadamente aneurisma cerebral e sofre de um grau de incapacidade de 72% (setenta e dois por cento), nesta altura consolidada e irreversível (cf., docs. já junto aos autos). Mantendo-se uma situação de saúde, com relatórios médicos que atestam que “(...) mantém incapacidade total para a sua atividade profissional ou para o exercício de compromissos legais”. Como também já era do conhecimento do Tribunal.
VIII – O insolvente-marido está muito provavelmente incapaz de praticar atos com dolo ou negligência, que seria (e é) um requisito normativo essencial para que fosse proferido o douto despacho recorrido. O que o Tribunal teria de eventual e previamente teria de averiguar.
IX – Culpa essa, que de resto nunca existiria, atentos os restantes fundamentos supra alegados.
X – O despacho recorrido violou o disposto pelos arts. 247 e 249, ambos do CPC e os arts. 239 e 243 do CIRE, que deveriam ter sido interpretados e aplicados como supra exposto, e deve nessa medida ser revogado.

Não tendo havido resposta ao recurso, o mesmo foi recebido nos termos legais. Depois de pedido o acompanhamento do processo, com vista à análise dos diversos apensos, em especial do da liquidação do ativo, nada se alterou ao despacho que recebeu o recurso e, atendendo à natureza urgente dos autos, foram dispensados os Vistos.

Nada obsta à apreciação do mérito da apelação, cujo objeto, tendo em conta as conclusões da apelante, consiste em saber se a) foi violado o disposto nos artigos 247 e 249 do Código de Processo Civil (CPC), ou seja, saber se os insolventes [a insolvente/recorrente e também o insolvente, se considerarmos que o recurso também a este aproveita] foram notificados para o exercício do contraditório e se b) foi violado o disposto nos artigos 239 e 243 do CIRE, por errada interpretação do tribunal.

III – Fundamentação
III.I – Fundamentação de facto
Os factos constantes do relatório que antecede mostram-se bastantes ao conhecimento do recurso, sem embargo de, para melhor esclarecimento, e tendo em conta tudo quanto consta dos diversos apensos, se esclarecer a seguinte factualidade e as datas que à mesma respeitam:
- Na sentença que, a 15.03.2016, declarou a insolvência dos requerentes foi fixada a residência dos mesmos na rua …, ., .. …., …, ….-….
- Por despacho proferido a 11.07.2018, foi admitido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante e foi excluído do rendimento disponível dos insolventes o montante mensal equivalente a dois salários mínimos.
- Em 3.02.2020, o AI veio apresentar relatório nos termos do artigo 240, n.º 2 do CIRE (relativo ao primeiro ano de cessão), onde refere, além do mais, que os insolventes “residem em casa arrendada na Av. …, n.º …, …”.
- Em 18.03.2020, a credora CC, CRL, veio requerer a “cessação antecipada do período de cessão de rendimentos dos insolventes, e o consequente indeferimento da exoneração do passivo restante”.
- A 10.09.2020, o Sr. Administrador juntou novo relatório, este relativo ao segundo ano do período de cessão. Aí refere, além do mais, que os insolventes “mantém a morada de residência, em casa arrendada, na Av…., n.º …, …”.
- Por acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 7.12.2018 [Apenso “H”] foi revogado o despacho de 11.07.2018, que havia indeferido o requerimento dos insolventes no sentido de se manterem a ocupar o imóvel [rua …, ., ..º ….], determinando que os insolventes pudessem continuar a ocupá-lo [casa de morada da família] até “que seja efetuada a venda”.
- O imóvel antes referido (verba n.º 1 do auto de apreensão de bens) foi vendido por escritura realizada a 15.05.2019.
- Após realização da escritura de compra e venda relativa às verbas n.ºs 2 e 3, em 27.08.2020, o apenso de liquidação foi encerrado em 13.10.2020.
- A anterior mandatária dos insolventes veio renunciar à procuração a 25.06.2018 e, a 28.06.2018, foi junta aos autos a procuração pela qual a insolvente, a 27.06.2018, constitui novo mandatário, aí constando que a mandante reside na morada fixada nos autos [rua …...].

III.II – Fundamentação de Direito
Sustenta a recorrente que as notificações feitas nos autos – relativas à notificação dos insolventes para que pudessem pronunciar-se – sobre a requerida cessação antecipada do procedimento de exoneração não têm qualquer valor, uma vez que não foram feitas para a morada dos insolventes, mas para o imóvel onde antes residiam, entretanto vendido no apenso de liquidação. Em conformidade, considera que foi violado o disposto nos artigos 247 e 249 do CPC.

Conforme resulta do próprio entendimento do tribunal recorrido – e que se acompanha – a notificação dos insolventes, a fim de serem ouvidos, nos termos do disposto no artigo 243, n.º 3 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), é uma notificação endereçada aos devedores, distinta da notificação do mandatário que eventualmente hajam constituído.

No caso presente, o tribunal recorrido proferiu a decisão apelada, depois de considerar que “por força do disposto nos artigos 247 n.º 2 e 249 do Código de Processo Civil, terá de se considerar que a notificação feita produzirá os seus efeitos, desde que dirigida para a residência indicada, presumindo-se feita no terceiro dia posterior ao do registo da carta ou no primeiro dia útil seguinte a esse, quando o não seja, independentemente da devolução do expediente. No referido contexto, em que os próprios insolventes não indicaram outra morada e nem comunicaram qualquer alteração do seu domicílio, ter-se-á de concluir que a morada escolhida para notificação continua a ser a fixada na sentença”.

Sucede que a morada pressuposta na decisão, e que efetivamente foi a morada inicialmente fixada na sentença que declarou a insolvência, era a residência dos insolventes, a casa de morada da família, mas (apenas) até a mesma ser vendida no apenso de Liquidação [Apenso “D”], o que ocorreu em 15.05.2019. Facto este que era necessariamente do conhecimento do tribunal, quer quando determinou a notificação postal dos insolventes quer quando, posteriormente, considerou essa notificação [não obstante a devolução das cartas registadas com a informação “Mudou-se”] como válida.

Por outro lado, a afirmação do tribunal recorrido, segundo a qual os insolventes não indicaram nova e diversa morada daquela que foi fixada na sentença, não nos parece que corresponda exatamente ao que consta dos autos. Com efeito, e por duas vezes, nos relatórios apresentados, o Fiduciário informa que os insolventes mudaram de residência, vivendo agora em casa arrendada. Com base nesta informação, o tribunal faz a primeira tentativa de notificação dos insolventes, mas as cartas foram devolvidas com a informação de “Endereço insuficiente”.

Salvo melhor entendimento, a renovada informação do Fiduciário, conjugada com a devolução das cartas por “Endereço insuficiente” não podia levar o tribunal recorrido a socorrer-se da morada que constituía a inicial residência dos notificandos, porquanto esta já não era – claramente – a morada real: houve a venda do imóvel, o Fiduciário indica a mudança de morada, e a devolução da carta informa que a causa é “Mudou-se”.

Efetivamente, com a informação do Fiduciário e a devolução por insuficiência de endereço, o tribunal devia diligenciar para que a morada dos insolventes fosse completada, socorrendo-se de diligência do Fiduciário [que contactou com a insolvente e havia repetidamente informado aquela morada] ou, se necessário, junto das autoridades policiais – artigo 236, n.º 1, parte final, do CPC.

A estas considerações não é oponível a circunstância de a recorrente haver constituído mandatário a 27.06.2018 e nessa procuração identificar a sua morada como correspondendo à fixada no processo: a casa de morada da família apenas foi vendida cerca de um ano após a aludida constituição do mandatário. Nem, por outro lado, a posterior notificação sucessiva do mandatário, nomeadamente para esclarecer a morada atualizada da recorrente.

É certo que o mandatário da insolvente não prestou a colaboração que lhe foi pedida; aliás, nem sequer vem identificada a morada da recorrente no recurso e, por outro lado, invoca-se um contrato de arrendamento celebrado pelos insolventes e que terá sido junto aos autos, mas percorrendo todos eles (processo principal e apensos) não se consegue detetar o mesmo. Naturalmente que mais consentâneo com as próprias obrigações da insolvente/mandante, seria, singelamente, indicar a sua correta morada. De todo o modo, e efetivamente, a notificação tinha de ter sido endereçada aos insolventes e um deles nem sequer constituiu mandatário.

Em suma, não pode concluir-se, diversamente do que entendeu o tribunal recorrido, que a recorrente (ou o insolvente) hajam sido notificados para se pronunciarem sobre a requerida cessação antecipada do procedimento de exoneração.

A invocação da ineficácia da notificação dos insolventes – como sucede no caso presente – é suscitável em sede de recurso da decisão que pressupôs a sua eficácia, e uma vez proferida essa decisão.

Por outro lado, o recurso da insolvente aproveita ao insolvente, seu marido, nos termos do disposto no artigo 634, n.º 1 do CPC. Com efeito, e não obstante a epígrafe do artigo 264 do CIRE (“Coligação”), não pode deixar de se considerar que estamos perante um caso de litisconsórcio necessário, quando é um bem comum (casa de morada da família) o imóvel liquidado no apenso, precisamente o correspondente à morada fixada no processo a ambos os insolventes.

Em conformidade, há que concluir que a notificação aqui em causa, ao contrário do decidido, não tendo chegado ao conhecimento dos destinatários, não produziu quaisquer efeitos, ou seja, não ocorreu a notificação para efeitos do n.º 3 do artigo 243 do CIRE.

Por ser assim, há que revogar a decisão recorrida, determinando-se a realização das diligências necessárias à determinação da atual morada dos devedores, para posterior notificação dos mesmos, a fim de se poderem pronunciar, nos termos previstos pelo n.º 3 do artigo 243 do CIRE. E, atenta esta conclusão, nada mais cumpre apreciar, em sede de recurso.

As custas do recurso são devidas nos exatos termos em que vierem a ser fixadas na decisão final do incidente de cessação antecipada do procedimento de exoneração.

IV – Dispositivo
Pelas razões ditas, acorda-se na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto em julgar procedente o recurso e, em conformidade, revoga-se a decisão recorrida, a qual deve ser substituída por outra que determine as diligências necessárias em ordem a determinar a atual morada dos devedores, a fim de serem notificados, em cumprimento do disposto no n.º 3 do artigo 234 do CIRE.

Custas conforme vierem a ser fixadas na decisão final do incidente de cessação antecipada do procedimento de exoneração.

Porto, 24.01.2022
José Eusébio Almeida
Carlos Gil
Mendes Coelho