I. Está fora das atribuições do STJ, enquanto Tribunal de revista, sindicar o modo como a Relação reapreciou os meios de prova sujeitos a livre apreciação ou fez uso de presunções legais, fora dos limites do art.º 674.º, n.º 3, do CPC.
II. O Supremo só pode censurar o acervo factual operado pelas instâncias quando esteja em causa a violação de regras de direito probatório material, ou seja, das normas que regulam o ónus da prova, bem como a admissibilidade e a força probatória dos diversos meios de prova.
III. O ónus da prova de coisa defeituosa incumbe ao comprador.
IV. A interpretação de declarações negociais só constitui matéria de direito quando o sentido da declaração deva ser determinado segundo o critério do n.º 1 do art.º 236.º do CC ou surja a questão de saber se foi respeitado o art.º 238.º, do mesmo Código, estando vedado ao STJ o apuramento da vontade real das partes por constituir matéria de facto, da exclusiva competência das instâncias.
V. O n.º 1 do art.º 236.º do CC consagra a denominada teoria da impressão do destinatário, segundo a qual o sentido juridicamente relevante com que deve valer uma declaração negocial há-de corresponder àquele que lhe seria dado por um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, que, conhecendo as circunstâncias que este concretamente conhecia, atribuiria à declaração, agindo com capacidade e diligência médias.
VI. Estamos perante a venda de uma coisa genérica, quando não foi individualizada, tendo apenas sido determinada quanto ao género e quantidade.
VII. Tratando-se de venda de coisa genérica, nos termos do art.º 918.º do CC, é determinada a aplicação das regras do não cumprimento das obrigações, pelo que, por força do disposto no art.º 796.º, n.º 1, do mesmo Código, o perecimento ou deterioração da coisa corre por conta do adquirente.
VIII. Num contrato de comodato, só se mostra possível a indemnização em dinheiro, em substituição da restituição da coisa, nos termos do art.º 1136.º do CC, quando já não se mostre possível essa restituição, por perda ou deterioração da coisa.
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça – 1.ª Secção[2]:
I. Relatório
Cerfundão – Embalamento e Comercialização de Cereja da Cova da Beira, Lda., instaurou acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra Abrunhoeste – Conservação e Refrigeração de Frutas, S.A., ambas melhor identificadas nos autos, pedindo que esta seja condenada a pagar-lhe a quantia de 42.452,49 € (quarenta e dois mil, quatrocentos e cinquenta e dois euros e quarenta e nove cêntimos), acrescida de juros de mora, desde 20/07/2019 até ao efectivo e integral pagamento.
Para tanto, alegou, em resumo, que, no exercício da sua actividade comercial, vendeu à ré pêra rocha, conforme factura n.º 152/00119, a qual devia ter sido paga em 20/7/2019, mas que não pagou.
A ré contestou, por impugnação, alegando, em síntese, que a autora incumpriu o contrato celebrado, quanto às quantidades, embalagem e preço/kilo da referida pêra rocha, pelo que o montante constante da aludida factura não é devido na sua totalidade, mas apenas no montante de 6.509,45 €. E deduziu reconvenção peticionando:
- que lhe seja reconhecido um crédito sobre a autora/reconvinda no valor de 7.011,00 € (sete mil e onze euros), referente aos palotes que aquela lhe entregou e esta última recebeu de empréstimo e não devolveu;
- que seja declarado compensado e, consequentemente, julgado extinto o crédito, no valor de 6.509,45 € (seis mil, quinhentos e nove euros e quarenta e cinco cêntimos), que a autora/reconvinda detinha sobre a ré/reconvinte, em razão do remanescente do valor da pêra rocha que destinou ao mercado de frescos e que constituiu objecto do contrato de compra e venda, entre ambas celebrado;
- que seja a autora/reconvinda condenada a pagar à ré/reconvinte a quantia remanescente de 501,55 € (quinhentos e um euros e cinquenta e cinco cêntimos), acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, desde a data da notificação daquela até integral e efectivo pagamento.
Peticionou, ainda, a condenação da A. como litigante de má-fé, em multa e indemnização à R., por ter alterado a realidade dos factos, deduzindo pretensão cuja falta de fundamento não poderia ignorar, com o fim de conseguir um objectivo ilegal.
Na audiência prévia realizada, foi admitida a reconvenção deduzida, foi proferido despacho saneador tabelar, bem como foi fixado o objecto do litígio e foram identificados os temas de prova, sem reclamações.
Após realização da audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença, onde se decidiu julgar a acção parcialmente procedente e a reconvenção procedente e, em consequência:
A) Condenar a ré Abrunhoeste – Conservação e Refrigeração de Frutas, S.A., a pagar à autora Cerfundão – Embalamento e Comercialização de Cereja da Cova da Beira, Lda., a quantia de 7.073,71 € (sete mil e setenta e três euros e setenta e um cêntimos), acrescida de juros legais vencidos desde a citação (em 02.08.2019) até à presente data (01/09/2020), no valor de 549,42 € (quinhentos e quarenta e nove euros e quarenta e dois cêntimos), no valor total de 7.623,13 € (sete mil seiscentos e vinte e três euros e treze cêntimos).
B) Condenar a autora Cerfundão – Embalamento e Comercialização de Cereja da Cova da Beira, Lda. a pagar à ré Abrunhoeste – Conservação e Refrigeração de Frutas, S.A. a quantia de 7.011,00 € (sete mil e onze euros).
C) Compensando as quantias descritas nos pontos A) e B), deste dispositivo, condenar a ré Abrunhoeste – Conservação e Refrigeração de Frutas, S.A. a pagar à autora Cerfundão – Embalamento e Comercialização de Cereja da Cova da Beira, Lda., a quantia de 612,13 € (seiscentos e doze euros e treze cêntimos), acrescida de juros legais vincendos, calculados, à taxa legal, até efectivo e integral pagamento.
D) Julgar totalmente improcedente o pedido de condenação da autora Cerfundão – Embalamento e Comercialização de Cereja da Cova da Beira, Lda., como litigante de má-fé, absolvendo-a do respectivo pedido.
Inconformada, a autora interpôs recurso de apelação que o Tribunal da Relação de Coimbra, por acórdão de 12/10/2021, julgou deliberando:
“- não conhecer da excepção de caducidade invocada pela A.;
- julgar parcialmente procedente o recurso quanto à matéria de facto;
- condenar a R. no pagamento à A. da quantia de € 39.454,28, acrescido de juros de mora, devidos desde a data da citação (ocorrida em 02/08/2019) vencidos e vincendos, calculados, à taxa legal aplicável aos créditos de que são titulares empresas comerciais (cfr. artigo 102.º, 3.º parágrafo, do Código Comercial), até efectivo e integral pagamento, absolvendo-a do remanescente;
- julgar o pedido reconvencional apresentado pela R. totalmente improcedente, dele absolvendo a A.”
Não conformada, desta feita, a ré interpôs recurso de revista e apresentou as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
“1) O Acórdão recorrido padece de vícios lógicos e estruturais que prejudicam a sua validade intrínseca e, bem assim, incorre em erros no plano da interpretação e aplicação do direito, que necessariamente impõem a revogação da decisão recorrida,
2) Entendeu o Tribunal recorrido que deveria ser retirado dos factos dados como provados o ponto 49.,
3) Decidiu, consequente e erradamente o Tribunal recorrido que “Incumbindo à R. o ónus de alegar e demonstrar que da totalidade da fruta fornecida pela A. e por esta facturada, para além da constante do ponto 27 tinham ainda sido retiradas 87.729,50 toneladas de fruta defeituosa, esta prova não resultou feita, não podendo manter-se a conclusão a que chegou o tribunal a quo (…)”
4) O Tribunal a quo analisou de forma manifestamente incipiente a relação contratual entre as partes e, por isso, errou na aplicação do direito, proferindo uma decisão desajustada e injusta.
5) Por via do contrato celebrado entra as partes – facto 6 da factualidade assente -, a Recorrida comprometeu-se a entregar pêra Rocha à Recorrente e esta comprometeu-se a liquidar os seguintes valores: € 0,35 por cada quilograma de pera de calibre superior a 55 milímetros e €0,25 por cada quilograma de pera rocha com calibre entre 50 e 55 milímetros.
6) Mais ficou expressamente acordado entre as partes que toda a pêra que tivesse um calibre inferior a 50 milímetros, que fosse destinada a indústria, que estivesse podre ou desidrata, não seria remunerada com qualquer valor.
7) Sendo estas as condições comerciais acordadas entre as partes, resta verificar como se fazia a verificação do preenchimento dessas condições de remuneração, matéria que consta dos factos provados 9, 10, 12, 13, 14, 15, 20, 21, 31, 34, 40
8) Da factualidade apurada conclui-se que o valor em concreto de cada quilograma de fruta entregue pela Autora, apenas seria possível de apurar, após verificação da respectiva calibragem de toda a pera entrada, como também, das condições fitossanitárias dessa mesma pêra.
9) E tal aferição quer de calibragem, quer das condições da fruta, apenas se pode dar por concluída após a passagem de toda a fruta recebida, pelas 3 fases de processamento da pêra nas instalações da Recorrente, tal como ficou dado por assente na factualidade apurada.
10) Errou manifestamente o Tribunal a quo ao concluir, como o faz, que a Recorrente não demonstrou a quantidade de fruta que foi destinada a indústria.
11) A Recorrente demonstrou essa precisa quantidade no momento nem que nos termos acordados lhe era exigível demonstrar, ou seja, no momento de apuramento das contas finais, quando toda a fruta já tinha passado pelas fases de verificação de calibre e qualidade!
12) Apuramento esse que foi – e bem – evidenciado pelo Tribunal de 1ª Instância e completamente desconsiderado - mal - pelo Tribunal a quo
13) O Tribunal a quo errou ao concluir que a Recorrente “aceitou” toda a fruta, não demonstrando a quantidade que fora rejeitada por podridão, desidratação ou de escopo para indústria.
14) Confunde a Tribunal a quo pressuposto de não-aceitação de fruta ou recusa de fruta, com o conceito de aferição das condições da fruta para determinação do valor acordado entre as partes para a sua remuneração.
15) O calibre e condição fitossanitária da pêra não eram condições de aceitação ou não pêra, mas apenas e somente, critérios para apuramento do valor a liquidar, ou seja, para determinação do preço.
16) Ao contrário do decidido pelo Tribunal a quo, a Recorrente demonstrou o sucessivo reporte que fez à Recorrida no que se referia às más condições de grande percentagem da fruta recebida, e este era um reporte de informação, pois, conforme demonstrado essa fruta não seria remunerada na contabilidade final do preço a pagar, como resulta dos nomeadamente dos factos assentes 34 e 46
17) É, pois, errada a conclusão alcançada pelo Erra Tribunal a quo de que a fruta destinada para indústria demonstrada pela Recorrente é apenas a que consta do facto assente 27.
18) A Recorrente demonstrou que para além dessa fruta identificada no ponto 27., muitas outras toneladas – concretamente identificadas no momento do saldo final – foram reportadas à Recorrida.
19) Note-se que mesmo no ponto 27 da factualidade apurada consta a expressa referência a que essa é apenas a fruta que já se havia logrado apurar (à data de 11.09.2017), mas de forma alguma limitada a esse momento de apuramento.
20) Aliás, a indicação de fruta podre e para indústria – para além da já referida no ponto 27 – é especificamente reportada em várias comunicações, tal como consta dos pontos 32, 33, 44 e 46 da factualidade apurada.
21) A considerar como considerou a Relação de Coimbra, sempre deveria esse Tribunal ter procedido à ampliação da matéria de facto, de forma a apurar – atenta a factualidade assente mormente nos citados pontos 32, 33, 44 e 46 – quais as toneladas de fruta que foram destinadas à indústria ou que se encontravam podres e/ou desidratadas, para além da quantidade já identificada no ponto 27 dos facto assentes.
22) Não o tendo feito, pode agora este Supremo Tribunal de Justiça, ao abrigo do disposto no artigo 682º, n.º 3 do CPC, o que se requer, ordenar a baixa do processo para que se proceda a essa ampliação.
23) De facto, cabe sempre a este Supremo Tribunal de Justiça a possibilidade de avaliar se a Relação fez mau uso dos poderes que lhe advêm pelo art. 662.º do CPC, o que, in casu, se reputa que aconteceu.
24) De facto, existe notória contradição entre os factos assentes, por um lado, e a conclusão do Tribunal a quo, por outro lado, de que a Recorrente não provou que existiram mais toneladas de fruta retiradas para indústria do que aquelas que vêm identificadas no ponto 27. da factualidade assente.
25) A não conformidade da fruta fornecida está patente nos factos provados 18, 19, 20, 21, 23, 26, 32, 33, 41, 44, 46, 50, 51 e 52.
26) Realça-se que o raciocínio do Tribunal a quo para dar como não provado o ponto 49 assentou primordialmente na circunstância de invocar que dos “pontos essenciais da compra e venda contratada”, que estão refletidos nos pontos 5 a 8 dos factos apurados, não resultaria demonstrado que ficara acordado que a verificação da fruta, em termos de calibre e de qualidade, não seria efetuada logo na receção, mas antes até ao momento final da respetiva revenda.
27) O contrato celebrado entre as partes é um contrato atípico, visto o preço a pagar ser incerto à data da entrega da fruta.
28) E todos os operadores deste mercado de fruta bem sabem que é assim que se processa a forma de apuramento do preço que se terá que pagar.
29) Decidiu mal a Relação de Coimbra ao fazer tábua rasa dos vários pontos da factualidade apurada em que se demonstra a reclamação junto da Recorrida da má qualidade da fruta, para concluir que a Recorrente não fez prova do defeito da coisa entregue.
30) De todo o modo - e ainda que assim não se entendesse, o que apenas se conceber, sem conceder - como já exposto, o acordado entre as partes, não é subsumível ao quanto está previsto no 913º do Código Civil, pois as partes configuraram – previamente – no âmbito da sua liberdade contratual, o tratamento a dar à fruta que fosse considerada podre, desidratada ou para indústria.
31) Ou seja, não se impunha à aqui Recorrente o cumprimento de nenhum prazo – que não o prazo de apuramento do valor final - de denúncia de fruta desidratada ou para indústria, tal como decidido pelo Tribunal recorrido.
32) As partes já haviam acordado - no momento da celebração do acordo comercial que estabeleceram – o desfecho a dar a fruta que reunisse essas condições, ou seja, que não seria remunerada, não se estabelecendo nenhum outro prazo de denúncia, que não fosse o do apuramento do saldo final.
33) Não faz qualquer sentido discutir-se neste caso no regime da venda de coisas defeituosas como faz a Relação de Coimbra, considerando que este regime impõe ao comprador o ónus de denúncia do defeito da coisa ao vendedor, com objetivo de dar a este último a possibilidade de retificar ou corrigir o cumprimento defeituoso da sua prestação.
34) Neste caso, não se impunha nenhuma possibilidade de retificação ou correção.
35) A fruta em causa tinha sido toda entregue, cabia apenas efetuar uma aferição da respetiva calibragem e das condições fitossanitárias, para efeitos de remuneração.
36) Assim, deveria então o Tribunal a quo ter feito efetivo uso do mecanismo previsto no artigo 236.º do Código Civil para a interpretação da declaração negocial das partes (até porque a questão da interpretação negocial é, sabe-se hoje, não uma estrita questão-de-facto mas autêntica questão de direito Assim cfr. MENEZES CORDEIRO, Tratado de direito civil, 3.ª ed., Coimbra, 2005, I, 743 e ss.)
37) Para se poder aferir qual a interpretação dada pelas partes a uma determinada declaração negocial, impõe-se que a mesma seja interpretada no sentido que um declaratário normal, com base em todas as circunstâncias por ele conhecidas ou suscetíveis de o serem, podia e devia entender como sendo a vontade do declarante.
38) A interpretação do negócio jurídico não deve conduzir nunca a simples saídas formais. Ela deve ser assumida como uma operação concreta, integrada em diversas coordenadas. Embora virada para declarações concretas ela deve ter em conta o conjunto do negócio jurídico, a ambiência em que foi criado e vai ser executado, as regras supletivas por ele afastadas e o regime delas decorrentes.
39) Destarte, para apuramento do sentido com que deverá valer determinada declaração negocial, as partes e, in casu, o Tribunal, não se podem ater à mera interpretação literal dessa declaração, mas, sim, a todos os fatores e circunstâncias que terão, necessariamente, influenciado a emissão dessa declaração, nomeadamente, a linguagem própria do declarante.
40) Aliás, tal especificidade da linguagem do declarante afigura-se tão mais relevante quando o objecto do negócio versa sobre a área de actuação daquele.
41) Assim, e analisando a declaração negocial in casu, a mesma surge no contexto de entrega de fruta de um produtor a uma central de frutas, ambos operadores reconhecidos deste meio comercial, contexto do qual é, obviamente, indissociável.
42) E esta é, de facto, uma questão fundamental nos presentes autos e que foi manifestamente desvalorizada e incompreendida pelo Tribunal a quo.
43) É por tal, que no caso de fruta para indústria, as partes não estabeleceram qualquer obrigação de devolução à Recorrida, apenas culminaram a existência da mesma com uma não remuneração.
44) E essa não remuneração, não impõe que seja a mesma qualificada como produto defeituoso, para a conceção e previsão do quanto está estatuído no artigo 913º do Código Civil, nomeadamente, para efeitos do prazo de denúncia.
45) Impunha-se, sim, no âmbito do contrato celebrado, que a Recorrente informasse após o escoamento de toda a fruta, após devida calibragem e verificação de qualidade, as quantidades concretas de fruta que tinham calibres remuneráveis e que não tinham apresentado problemas fitossanitários que tivessem impedido a sua comercialização.
46) O Tribunal a quo fez uma completa desconsideração de toda a prova produzida, e proferiu uma decisão que está em contradição com a factualidade dada como assente.
47) O Acórdão recorrido viola e faz uma errada interpretação do disposto nos artigos 232º, 342º, 883º, 885º, 913º do Código Civil, impondo-se a sua revogação.
48) Considerou o Tribunal a quo que assistia razão à Recorrida no que tange à reconstituição natural, ao invés de uma condenação em valor pecuniário.
49) Não se concorda, também, neste ponto com o decidido.
50) A Recorrente interpelou a Recorrida para a devolução dos palotes em 15 de Junho de 2018 – cf facto provado 56.
51) No entanto, não só a Recorrida não devolveu esses palotes, como nunca fez qualquer prova ou demonstração da existência atual dos mesmos.
52) Por conduta e confissão da Recorrida, ficou arredada qualquer possibilidade de reconstituição natural, cabendo-lhe indemnizar a Recorrente pelo valor atribuído a esses palotes e que ficou devidamente demonstrado nos autos.
Termos em que, e nos demais que V. Ex.as se dignarão suprir, deverá ser concedido ao presente recurso e deverá ser integralmente revogado o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra e, como consequência dessa revogação, que seja proferida novo acórdão a repristinar a decisão que foi proferida pela 1ª Instância.
Caso assim não se entenda, sempre deverá este Supremo Tribunal ordenar a baixa do processo, para ampliação da matéria de facto, para apuramento da(s) causa(s) e quantidade de fruta entregue pela recorrida que foi destinada a indústria, que se encontrava podre e/ou desidratada, só assim se fazendo a indispensável e costumada JUSTIÇA!”
A recorrida contra-alegou, pugnando pela confirmação do acórdão recorrido.
O recurso foi admitido como de revista, com subida imediata e com efeito meramente devolutivo, modo de subida e efeito que foram mantidos pelo actual Relator.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir o mérito do presente recurso.
Em face das conclusões apresentadas pela recorrente, que, como é sabido, delimitam o objecto e âmbito do recurso, sem prejuízo das situações excepcionais de conhecimento oficioso, e tendo presente que se apreciam questões e não razões, as questões a decidir, aqui, são as seguintes:
1 - Se houve erro na apreciação das provas, por violação das regras do ónus da prova;
2 - Se houve violação do disposto no art.º 662.º do CPC, por não ter sido ordenada a ampliação da matéria de facto, dado existir contradição entre os factos assentes;
3 - E se houve erro na apreciação do direito, atinente às regras da formação do contrato, à interpretação da declaração negocial, à venda da pêra e à restituição da coisa comodatada.
II. Fundamentação
1. De facto
No acórdão recorrido foram dados como provados os seguintes factos:
1. A autora é uma sociedade comercial que tem por escopo, designadamente, o embalamento e comercialização de cereja e de outros frutos; o comércio por grosso e a retalho de frutas e produtos hortícolas; o comércio a retalho de combustíveis para veículos a motor; o comércio por grosso e a retalho de cereais, sementes, leguminosas, oleaginosas, fertilizantes e outras matérias primas agrícolas; venda ambulante de frutas e produtos hortícolas e preparação, conservação, transformação, secagem e desidratação de frutas e produtos hortícolas, incluindo frutos de casca rija.
2. A ré é uma sociedade comercial que tem por objecto social a conservação, a refrigeração, a comercialização e a importação de frutas e outros produtos alimentares.
3. No ano de 2016, no âmbito das actividades comerciais, a autora e a ré celebraram um contrato de compra e venda de cerca de 28 toneladas de pêra rocha proveniente de alguns produtores da autora.
4. No âmbito desse contrato, a ré realizou o pagamento de forma faseada.
5. Nesse ano de 2016, inicialmente, a autora entregou a referida pêra em palotes desorganizados e, após a ré lhe ter solicitado a organização dos referidos palotes consoante os produtores associados da autora, esta observou as instruções da ré.
6. No início do mês de agosto de 2017, no âmbito das actividades comerciais, a autora e a ré acordaram que:
i. a autora iria entregar à ré pêra rocha dos seus produtores associados;
ii. o preço seria aferido consoante o diâmetro da referida pêra rocha:
i. superior a 55 milímetros, o preço seria de €0,350;
ii. entre 55 a 50 milímetros o preço seria de €0,25 e
iii. inferior a 50 milímetros, fruta com escopo para indústria, fruta podre, desidratada, o preço acordado seria de €0,00.
7. Resulta do e-mail datado de 03 de Agosto de 2017, enviado por AA para BB e CC que: “Boa tarde, Escrevo da Cerfundão para retomarmos contacto e a relação comercial tal como no ano transato. Tal como conversado com o meu colega responsável pela equipa de engenheiros de campo, a partir da próxima semana teremos já pera disponível, pelo que poderemos começar a trabalhar convosco se assim for do vosso entendimento. É expectável que tenhamos no decorrer da campanha cerca de 100 T de pera, (volume que carece de confirmação posterior.) A nossa proposta inicial será podermos trabalhar dentro dos valores do ano passado que parecem ser razoáveis para ambos. Aguardo o vosso feedback e ficamos ao dispor para o que considerarem necessário. Cumprimentos,”
8. Resulta do e-mail datado de 04 de Agosto de 2017, enviado por BB para AA que: “Estimado AA, Agradecemos o V/ e-mail e informamos que temos todo o interesse em continuar com a nossa parceria. Para esta campanha não podemos garantir os valores da campanha passada. A campanha passada foi uma campanha muito especial, marcada por uma enorme quebra de produção no país e que inflacionou bastante os preços ao produtor. Este ano prevê-se um volume de produção muito superior pelo que nos é difícil assegurar preços fixos a pagar, a fazê-lo, terão de ser na seguinte linha: Preço €0,35 x kilo para calibres 55+ Calibre 50/55 = €0,25. 50-, fruta de indústria, fruta podre e com doenças sem valor comercial. Ficaremos a aguardar o V/ feedback. Cumprimentos, BB.”
9. No início do mês de Agosto de 2017, a autora e a ré não sabiam a quantidade exacta de pêra rocha que os pomares dos produtores associados da autora iriam produzir.
10. Antes da colheita de pêra rocha pelos respectivos produtores associados da autora, não era possível às partes processuais prever o concreto estado fitossanitário, fisiológico, físico e os calibres da pêra rocha que seria colhida pelos produtores associados da autora.
11. No ano de 2017, ao contrário do ano de 2016, a ré não visitou os pomares dos produtores associados da autora.
12. Entre os dias 17.08.2017 a 08.09.2017, a autora entregou à ré um total de 251 882,50kg de pêra rocha.
13. A autora entregou a referida pêra rocha nas instalações da ré, armazenada em vários palotes que não vinham organizados consoante os respectivos produtores associados da autora.
14. A falta de organização dos palotes e das respectivas cargas causou grandes transtornos à ré no momento da recepção de fruta, designadamente na identificação dos produtores da autora, na medida em que teve de organizar as entradas por parcela de produtor.
15. O exercício da actividade profissional da ré, no processamento de pêra rocha, desdobra-se em três grandes fases:
i. 1.ª fase denominada por recepção e respectiva entrada da fruta;
ii. 2.ª fase denominada por calibragem da fruta, para separação e posterior conservação em frio e,
iii. 3.ª fase denominada por embalagem e selecção, para saída da fruta.
16. Na 1.ª fase, aquando da entrada da pêra rocha proveniente da autora nas instalações da ré, são elaboradas, por cada entrega, as fichas de controlo da qualidade, nas quais se identificam as características da fruta, os seus problemas fitossanitários, desordens fisiológicas e os seus problemas físicos.
17. Nesta primeira fase é determinado o “Brix” (grau de açúcar da fruta) e a “penetromia” (a dureza, em razão do seu estado de maturação).
18. Algumas pêras rocha entregues pela autora, em número não concretamente apurado, nos meses de Agosto e Setembro de 2017 apresentavam valores médios de “penetromia”.
19. Na primeira fase, a ré constatou que algumas pêras rocha entregues pela autora apresentavam:
i. «Stenfiliose»: que é quase indetectável a olho nu e que evolui na câmara frigorífica e provoca podridões;
ii. «Psilas»: a pêra fica preta e sem qualidade;
iii. «Pedrado»: fungo que torna a pele da pêra preta;
iv. «Acastanhamento interno»: provoca o apodrecimento;
v. «Cochonilha de S. José»: provoca pintas vermelhas que levam à depreciação e apodrecimento;
vi. pouca dureza;
vii. “batidas”; “feridas”; “roçados”; “carepa”; “pedúnculo partido ou ausente”; “excesso de maturação”; “moles”, “desidratados”; “podridões”; “escaldão solar”; “deformações”, “suja com terra”, e “roçados”.
20. Quer no decurso da 2.ª fase do procedimento, designada de calibragem, quer no decurso da 3.ª fase do processo de selecção de fruta, correspondente à fase de embalagem, os trabalhadores da ré retiram fruta por não se encontrar nas condições exigidas para ser comercializada no mercado de frescos.
21. Nessas duas fases são retiradas maiores quantidades de pêras rocha - podre e para indústria – comparativamente à primeira fase.
22. Resulta do e-mail datado de 04 de setembro de 2017, enviado por DD para BB e CC que: “Boa tarde, Junto envio as entradas dos carros da Cerfundão que chegaram no dia 01/09 que deram entrada direta para a indústria por excesso de maturação. Com os melhores cumprimentos, DD.”
23. Resulta do e-mail datado de 08 de setembro de 2017, enviado por BB para AA que: “Boa tarde AA, conforme conversamos ainda agora queria reforçar a nossa preocupação com a qualidade da fruta entrada. Temos lotes com pressão abaixo de 2 e sem a menor condição de venda em fresco. Temos vários lotes rejeitados e estamos com receio de qualidade na generalidade da fruta. O ano passado tivemos lotes de produtores com fruta boa e um produtor com fruta menos boa, tudo isto foi devidamente identificado e fomos até previamente informados da qualidade da fruta. Não estávamos à espera da situação deste ano, face a isto gostaríamos de propor o seguinte: 1- que venham visitar-nos e confirmar o estado da fruta; 2- suspender o envio de novas cargas; 3- segunda-feira vamos fazer um balanço de todas as entradas e preparar os relatórios de qualidade a enviar.”
24. Neste seguimento, no dia 11.09.2017, EE, FF e outro elemento da autora dirigiram-se às instalações da ré para avaliarem as concretas condições da pêra rocha entregue.
25. EE, FF e outro elemento da autora, durante o período da manhã, visitaram todas as câmaras de frio onde estavam armazenados os palotes de pêra rocha entregues pela autora.
26. EE, FF e outro elemento da autora constataram que a pêra rocha entregue apresentava problemas, sobretudo ao nível da maturação, que determinavam o seu encaminhamento para a indústria.
27. Nessa deslocação, a autora informou a ré que, do total de fruta para indústria que já tinha sido apurada – 32 377,10kg –, conseguia vender 24 844 50kg por um preço superior àquele que a ré conseguia obter.
28. Neste seguimento, a autora solicitou à ré que não vendesse os ditos 24 844 50kg, na medida em que iria buscá-los para vendê-los.
29. Após, a ré devolveu à autora os referidos 24 844 50kg de pêra rocha.
30. A autora pediu à ré que tentasse obter o melhor resultado possível quanto aos remanescentes 7 532,60kg e a ré aceitou.
31. Após as referidas operações aritméticas, a ré ficou com uma entrada líquida de 219 505 49kg de pêra rocha entregue pela autora que transitou para a fase 2, denominada por calibragem.
32. Resulta do e-mail datado de 20 de Outubro de 2017, enviado por DD para a autora (...) que: “Boa tarde, No dia 9 tivemos a visita da EE que observou a calibragem da fruta e foi notório que os principais problemas são batidas e frutos moles. Foram medidas a pressão de alguns lotes e 3 deles apresentavam pressões médias abaixo dos 4 kg. Neste sentido falamos que iriamos fazer um esforço para tentar escoar a fruta rapidamente e foi o que fizemos esta semana. Durante o embalamento da vossa fruta obtivemos uma % elevada de indústria e fruta mole (podre). Junto envio algumas fotos. Tivemos de rejeitar alguns palotes porque a fruta estava muito mole batida. Assim sendo gostávamos de vos convidar novamente para observarem esta fruta. Ficamos a aguardar o vosso feedback. Com os melhores cumprimentos, DD.”
33. Resulta do e-mail datado de 14 de Novembro de 2017, enviado por DD para a autora (...) que: “Boa tarde, Dando seguimento à reunião ocorrida no dia 31 de Outubro na qual eu não esteve presente, venho mencionar novamente que no dia 9 de Outubro a EE veio fazer uma visita à AbrunhOeste na qual foram verificadas pressões. Constatou-se que alguns lotes apresentavam já uma pressão baixa para exportação e até mesmo para o Mercado Nacional. No entanto, informámos que iriamos fazer um esforço no sentido de escoar a fruta e é o que temos feito até à data. Depois de ter vindo de férias verifiquei que alguns lotes tem desenvolvido escaldão superficial, o que não é de esperar nesta altura do ano (é normal aparecer em fruta sem smartfresh em finais de Dezembro/início de Janeiro). Junto envio algumas fotos desta fruta. Este escaldão pode estar relacionada com o facto da fruta não ter sido arrefecida logo após a colheita, crucial para a conservação da pera Rocha. Neste momento estamos a testar vários lotes, fazendo vida de prateleira antecipada para perceber em quais existe uma maior incidência de escaldão. Queremos chamar mais uma vez a atenção para o desperdício (moles, batidas, escaldão superficial) que a esta fruta está a ter. Convidamos-vos uma vez mais a visitar-nos para verificarem esta situação. Com os melhores cumprimentos, DD.”
34. Resulta do e-mail do dia 06.12.2017, pelas 15:04h, enviado por BB a AA que: “Nós recebemos da Cerfundão 251.882,50KG de Pera Rocha, dos quais 32.377,1KG foram para a indústria e destes 24.844,5kg foram devolvidos à Cerfundão Em suma deverão ser facturados como primeiro abono 227038kg (251.882,50 -24.844,5) de Pera Rocha. Como nota lembro que como inicialmente apurado os KG para a indústria não serão valorizados nas contas finais.”
35. No dia 11.12.2017, AA reencaminhou o referido e-mail para o departamento geral da autora com os seguintes dizeres: “Por favor facture à Abrunhoeste 227038kg ao valor de 0,35/Kg. (email abaixo com detalhe, por favor confirme se as quantidades que eles referem estão correctas.)”
36. Em 14.12.2017, a autora emitiu a factura com o n.º ….17 de 14.12.2017, no valor global de €84.232,92 (oitenta e quatro mil, duzentos e trinta e dois euros e noventa e dois cêntimos).
37. Resulta do e-mail do dia 19.12.2017, pelas 10:17h, enviado por AA a BB que: “Bom dia BB. Se lhes faturo, como pede, 227038kg a 0,1322€, como lhe vou faturar os valores remanescentes? Volto a faturar os mesmos 227038kg? Não me parece que contabilisticamente faça sentido e não sei sequer se é possível… aguardo o seu comentário!”
38. Resulta do e-mail do dia 19.12.2017, pelas 10:44h, enviado por BB a AA que: “Bom dia AA, É exactamente como diz, as descrições serão por exemplo: 1º abono de Pera Rocha: 227038kg a 0,1322€ 2º abono de Pera Rocha: 227038kg a x€ 3º abono de Pera Rocha: 227038kg ax€ liquidação da Pera Rocha: 227038kg a x€ Agradecemos a retificação com urgência para conseguirmos fazer um pagamento esta semana. Obrigado.”
39. Após, a autora anulou a factura com o n.º 1883/00117 de 14.12.2017, no valor global de €84.232,92 (oitenta e quatro mil, duzentos e trinta e dois euros e noventa e dois cêntimos).
40. Com os referidos adiantamentos de pagamento, a ré pagava parcelarmente à autora e, quando a ré ficasse sem stock de pêra rocha proveniente da autora, seriam feitos os respectivos acertos de contas, no último “abono”.
41. Resulta do e-mail datado de 20 de Dezembro de 2017, enviado por DD para a autora (...) que: “Boa tarde, A partir deste ano vamos disponibilizar o relatório resumo da qualidade da fruta recepcionada por variedade. Junto envio o ficheiro relativo às entradas de fruta de 2017. Estamos disponíveis para qualquer esclarecimento que entendam necessário. Com os melhores cumprimentos, DD.”
42. A autora emitiu a factura n.º 1887/00117 de 21.12.2017, no valor de €31.815,30 (trinta e um mil, oitocentos e quinze euros e trinta cêntimos), com os dizeres “Qt. Faturada 227.038,0 KG P. Unitário 0,132”.
43. A ré pagou a referida factura.
44. Resulta do e-mail datado de 29 de Janeiro de 2018, enviado por DD para a autora (...) que: “Boa tarde, Venho por este meio informar que da câmara que abrimos na semana passada (com tratamento Smartfresh) já tiramos 6 paloxes que não estavam em condições de comercialização: 1 paloxe com fruta podre (com o vosso lote: PER170000000058 de 15-08-2017); · 5 paloxes com fruta para a indústria (com o vosso lote: PER170000000071 de 18-08-2017). Junto envio as fotos da fruta em questão. Com os melhores cumprimentos, DD.”
45. Resulta do e-mail datado de 30 de Janeiro de 2018, enviado pela autora (...) para DD que: “Em consequência da reclamação, apresentada por V. Ex.ª, através do email anterior, e por intermédio da qual nos expõe o mau condicionamento e/ou má conservação da fruta, pera rocha, que foi expedida pela Cerfundão, Lda, no dia 24 de Agosto de 2017 e rececionada pela Abrunhoeste no mesmo dia, gostaríamos, muito respeitosamente, de providenciar os seguintes esclarecimentos: - de acordo com a vossa ficha de controlo de qualidade à recepção (que segue em anexo), com data de 24/08/2017, a fruta chegou com média de dureza de 5.3, ºBrix com média de 16.1 e cor verde; - Em relação aos aspetos fitossanitários, problemas físicos e desordens fisiológicas foi muito bem classificada tendo em conta que apenas dois parâmetros foram classificados como médios, sendo que os restantes classificados como ausência; - Por fim e não menos importante, não existe a referência em qual câmara é que foi armazenada a fruta bem como qual o banho e/ou tratamento utilizado; - Em relação à Vossa ficha de controlo de qualidade à receção, com data de 25/08/2017 e como é de conhecimento de ambas as entidades, foram devolvidos 18 palotes que não se encontravam conformes, presumido desse modo, que os palotes foram bem verificados e que os palotes não devolvidos se encontram em perfeitas condições e de acordo com os vossos critérios (pois seriam devolvidos, juntamente com os outros caso não estivessem); - Existe o registo que esses mesmos palotes foram para a Câmara de Atmosfera Controlada nº 6, no entanto, também não existe a referência a qualquer tipo de banho e/ou tratamento. Assim, e atendendo aos factos expostos, somos de firme opinião de que o serviço em causa, por parte da Cerfundão Lda foi efectuado com qualidade, não aceitando qualquer rejeição do produto após a receção do mesmo. No entanto, permanecemos inteiramente à disposição de V. Ex.ª, caso existam quaisquer dúvidas ou questões adicionais que nos queira colocar. Com os melhores cumprimentos, GG.”
46. Resulta do e-mail datado de 02 de Fevereiro de 2018, enviado por DD para vários elementos da autora (...) que: “Boa tarde. Vimos por este meio dar os esclarecimentos solicitados pela Cerfundão. As amostras de frutos (10 frutos) retirados para o controlo de qualidade durante o processo de receção, neste caso especificamente o nosso lote interno (…) tinham de facto a dureza, brix mencionados. O processo de controle de qualidade é feito por amostragem, por produtor, por fruto, por variedade, por parcela. A Cerfundão enviou cargas indiscriminadas, de diversos produtores, de diversas parcelas, com divergência de pressões, tratamentos, doenças, qualidade e diversos outros aspectos fitossanitários. Este facto foi devidamente reportado e provocou não só uma enorme discrepância nos lotes como enorme dificuldade de classificação, controle e manipulação da fruta. O lote em questão era constituído por 4 produtores (1013, 1007, 1018, 3028) sendo que neste caso a amostra de frutos não foi representava de toda a fruta, como podemos verificar agora. A Cerfundão é a única responsável pela divergência de lotes. - relativamente a este lote, em 5 palotes a fruta estava completamente madura, 1 palote apresentava frutos com bastantes podridões (como poderão verificar no e-mail enviado anteriormente), no ponto anterior é explicado o porquê da dificuldade de classificação da fruta. - Inicialmente a fruta foi armazenada na câmara 6 e posteriormente foi transferida para a câmara 5. Relativamente aos tratamentos pós-colheita, a fruta foi banhada com pirimetanil (BANHO 2 – esta informação consta no relatório de recepção) e teve tratamento com Smartfresh. - foi a partir de 25/08/2016 que surgiu o alerta com a fraca qualidade da fruta da Cerfundão, que estava madura, com pressões completamente díspares e momento a partir do qual tentámos fazer um controlo mais abrangente com amostragens maiores. A fruta que não tem condições de venda apenas gera prejuízo de tempo, custo de transporte, custos de conservação e armazenamento, custos de manipulação, entre outros. É do conhecimento de todos que a qualidade da fruta da Cerfundão é no geral muito fraca, inclusivamente a Cerfundão solicitou à AbrunhOeste que fizesse o melhor possível com a fruta, mesmo aquela que não estava em condições. A AbrunhOeste tem feito o máximo esforço para vender esta fruta, muitas vezes em prejuízo dos seus próprios clientes que efetuaram diversas reclamações e devoluções, com custos e penalizações financeiras e reputacionais. A AbrunhOeste não está a “rejeitar” a fruta, está apenas a reportar os problemas de qualidade, como sempre tem vindo a fazer, sendo certo que fruta que não é vendida ou que é rejeitada pelos clientes não será remunerada, conforme acordo que estabelecemos. Com os melhores cumprimentos, DD”.
47. A autora emitiu a factura n.º ….18 de 14.03.2018, com os dizeres “2º abono 227038 * 0.0416”, no valor de €10.000,00 (dez mil euros).
48. A ré pagou a referida factura.
49. Eliminado pela Relação.
50. Resulta do e-mail datado de 15 de Junho de 2018, enviado por BB para AA e CC que: “Boa tarde AA, Envio em anexo as contas finais da Pera Rocha da Cerfundão. Adicionalmente, temos uma questão muito importante a acertar que é a do vasilhame. A Abrunhoeste enviou vasilhame próprio, incorreu em custos e recebeu a fruta em vasilhame indiferenciado. Precisamos de recuperar este vasilhame urgentemente. Apesar de isto representar uma duplicação de custos, estamos disponíveis para o recolher pelo que agradecemos que nos informem se o pudemos fazer já na próxima semana. O vosso vasilhame está também disponível para recolha. Cumprimentos, BB.”
51. Resulta do e-mail datado de 22 de Junho de 2018, enviado por BB para AA e CC, assunto: Contas Finais, que: “Bom dia AA, Agradeço que faturem para que possamos dar sequência ao pagamento. Aguardamos resposta à questão do vasilhame. Cumprimentos, BB.”
52. Resulta do e-mail datado de 03 de Julho de 2018, enviado por AA para BB e CC que: “Boa tarde BB, depois de reunir com a gerência não temos condições de aceitar a vossa proposta. Podemos aceitar como valor mínimo 0,30€ pelos 219000kg entrados. (…).”
53. Em 21.05.2019, a autora emitiu a factura n.º ….19, no montante de €42.452,49 (quarenta e dois mil, quatrocentos e cinquenta e dois euros e quarenta e nove cêntimos).
54. A pedido da autora, a ré entregou-lhe 60 palotes com as seguintes características: palotes, de plástico, de cor branca, com 12/1-61, com 4 pés, com capacidade para 270kg de pêra rocha, com os dizeres “Abrunhoeste”.
55. A autora não restituiu à ré os referidos palotes.
56. Em 15 de junho de 2018, a ré solicitou à autora que lhe restituísse o referido vasilhame (palotes).
57. Cada palote têm um custo de aquisição, de €95,00 (noventa e cinco euros), acrescido de IVA à taxa legal de 23%, por cada unidade, o que perfaz o valor global de €116,85 (cento e dezasseis euros e oitenta e cinco cêntimos), cada um.
E foram dados como não provados os que seguem:
a. Em 2017, a ré não teve intervenção nos tratamentos a que a pêra dos produtores da autora foi sujeita, nem às condições da sua rega nem nas eventuais mondas a efectuar.
b. Depois da apanha, a pêra proveniente da autora não foi conservada, de imediato, no frio.
c. A autora e a ré acordaram que a pêra rocha devolvida seria de €0,00.
d. A falta de organização das cargas por produtor consubstancia um procedimento oposto àquele que é adoptado pela generalidade das sociedades comerciais e/ou produtores de quem a ré recebe fruta.
e. A autora tinha em 2017 e tem um programa certificado de rastreabilidade que através da etiquetagem de cada palote consegue saber a informação necessária quanto ao lote de cada produtor.
f. A autora – para que a ré não se apercebesse das concretas condições fitossanitárias, fisiológicas e físicas da fruta que estava a recepcionar, sobretudo no que respeitava ao seu estado de maturação - carregava os palotes de forma estratégica: os palotes com a pêra rocha que apresentava piores condições fitossanitárias, fisiológicas ou problemas físicos, eram colocados nos extremos (base e topo) das cargas e os palotes que continham a pêra rocha em melhores condições de sanidade ou físicas, eram colocados entre os palotes com fruta de pior qualidade.
g. Os palotes que continham fruta em melhores condições, eram colocados no meio da carga, de modo a ficarem ao nível dos olhos do trabalhador da ré responsável pelas entradas.
h. Quando se apercebeu do acima descrito, a ré procedeu a uma reavaliação de toda pêra rocha proveniente de produtores associados da autora.
i. No seguimento da falta de organização dos palotes por parte da autora, a ré remeteu 4 553,50kg de pêra rocha, correspondentes a dezoito (18) palotes para a indústria, apesar de inicialmente, terem sido consideradas “boas”.
j. Para além dos 24 844 50kg de pêra rocha, não foi devolvida mais quantidade de fruta pela ré, porque a autora não dispunha de mais clientes a quem pudesse destinar fruta para a indústria.
k. A autora anulou a factura com o n.º …17 de 14.12.2017, no valor global de €84.232,92 (oitenta e quatro mil, duzentos e trinta e dois euros e noventa e dois cêntimos), após a ré ter transmitido à autora que não era possível efectuar o pagamento da referida factura.
l. A autora, após alguma insistência para pagamento, emitiu a factura n.º …18 de 14.03.2018.
m. Em 20.06.2019, a autora emitiu a factura n.º …19, no montante de €42.452,49 (quarenta e dois mil, quatrocentos e cinquenta e dois euros e quarenta e nove cêntimos), referente ao valor ainda em falta do fornecimento de pêra rocha efectuado pela autora, recebido e confirmado pela ré.
n. A ré pagou a factura n.º …19, no montante de €42.452,49 (quarenta e dois mil, quatrocentos e cinquenta e dois euros e quarenta e nove cêntimos).
o. Após os pagamentos referidos nos factos provados n.ºs 45 e 50, a ré recusou-se a fazer qualquer outro pagamento, invocando dificuldades.
p. No decorrer da fase da recepção da fruta, a ré comunicou à autora que a grande maioria da pêra entregue apresentava problemas ao nível da maturação e que, consequentemente, uma grande quantidade daquela fruta somente podia ser destinada à indústria.
q. O vasilhame (palotes) deveria ter sido restituído pela autora conjuntamente com a entrega da fruta ou no final da colheita.
r. A autora encontra-se na posse de 60 (sessenta) palotes da ré.”
2. De direito
2.1. Do erro na apreciação das provas
Invoca a recorrente, ainda que com alguma confusão quanto à apreciação da matéria de facto e da matéria de direito, que o Tribunal da Relação errou na apreciação das provas ao eliminar o facto que tinha sido dado como provado pela 1.ª instância sob o n.º 49.
O Tribunal da Relação, como já se referenciou, aquando da reapreciação da matéria de facto, apenas eliminou dos factos provados o ponto 49 com o seguinte teor: “Da totalidade da pêra rocha entregue pela autora à ré, após a fase da recepção e até ao momento final de venda: foram retirados 18 504,40kg de fruta podre; foram remetidos para indústria 63 641,37kg; perderam-se 5 583,82kgs por desidratação; destinaram-se ao mercado de frescos 131 776,31kg.”.
Para o efeito, como consta do acórdão recorrido, entendeu-se o seguinte: “Denote-se que do ponto 49 da matéria de facto assente decorre que a R. da totalidade da fruta entregue retirou mais de 120 toneladas (que corresponde a mais de 40% da totalidade da fruta entregue) que considerou sem valor comercial (por estarem podres, desidratadas ou apenas se destinarem a indústria), mas sem que do mesmo conste que a causa da desidratação, podridão ou falta de qualidade, resultassem da desconformidade ou defeito da fruta, para além do que já constava como provado no ponto 23 a 27.
De igual forma, não consta especificada a razão pela qual a R. remeteu para indústria 63 641,37kg, ou seja, não resulta que a perda de uma quantidade tão elevada de fruta se devesse à falta de qualidade ou à desconformidade com as condições acordadas, da fruta entregue pela A. à R.
Ocorre que tal premissa e consequente conclusão não estão de acordo com os factos dados como assentes nos pontos 5 a 8 e que se reportam às condições que foram acordadas entre a A. e R. relativamente à compra e venda de pêra rocha, aliás por escrito, por proposta efectuada pela R. e, ao que se denota, aceite pela A. (artºs 217 e 224 do C.C.)
Assim, o que resulta da proposta enviada por escrito pela R. à A., refletida no ponto 8 e, por esta aceite, conforme decorre do ponto 6, é que a A. venderia pêra rocha à R. dos produtores seus associados, com preços fixados de acordo com a calibragem da pêra rocha, pressupondo a qualidade necessária à sua revenda no mercado de frescos. A que se encontrasse podre, desidratada e/ou apenas apta para indústria, não teria qualquer valor comercial, não sendo objecto de remuneração e, por assim ser, não se integrava no contrato de compra e venda comercial celebrado entre A. e R., que pressupõe como seu elemento essencial a obrigação de pagamento de um preço (cfr. artº 879 c) do C.C.) e a obrigação de entrega da coisa conforme ao contrato celebrado.
Quanto assim não aconteça, estamos perante uma venda defeituosa, ou seja, a coisa vendida apresenta defeitos que lhe retiram o seu valor comercial e, nesse caso cabe à R. (compradora) o ónus de alegação e prova destes factos, pois que constituem excepção ao pedido formulado pela A. (cfr. artº 342 nº 2 do C.C.).
Acresce que, existindo recepção da coisa vendida com elaboração das respectivas fichas de recepção e qualidade (conforme resulta dos documentos juntos a fls. 53 a 70), cabe à R. alegar e provar que os defeitos da coisa não eram aparentes ou verificáveis nessa recepção, ou que acordou com a A. que tal verificação poderia decorrer e de forma unilateral, até ao momento final da revenda por parte da R. e que só nessa data, apurada a quantidade final de pêra rocha que esta tinha conseguido destinar ao mercado de frescos, seria feito o acerto de contas final.
A este respeito e ao contrário do que considerou o tribunal recorrido, dos pontos 5 a 8 que reproduzem em traços gerais os pontos essenciais da compra e venda contratada, não resulta que tal tenha sido acordado, sendo certo que era esta uma condição essencial do contrato que se não mostra tenha sido acordada pelas partes. O acordo posterior à emissão de factura pela A., referida no ponto 36, para faseamento do pagamento em três fases, denominados pela R. “abonos”, não permitem esta conclusão, que a existir condicionava o pagamento da fruta fornecida à sua efectiva revenda pela R. e que desonerava a R. do ónus de alegar e provar que a fruta fornecida padecia de defeito.
Ora, este acordo não se retira dos emails trocados quanto à forma e momento de pagamento desta fruta e referidos na convicção do tribunal a quo, mas apenas que foi acordado um sistema de pagamentos faseados do preço de fruta já vendida e aliás já facturada pela A. (pontos 34 a 38).
Acresce que, dos depoimentos de AA, BB e CC também não resulta este acordo que, ainda que existisse, porque elemento essencial do contrato teria que resultar da proposta apresentada e aceite pela A. (…)”.
Resulta, assim, que o tribunal a quo entendeu que pertencia à ré o ónus de provar que aquela quantidade de fruta constante do ponto 49 se mostrava com defeito, nos termos do art.º 342.º, n.º 2, do CC. E, para além disto, considerou, igualmente a prova testemunhal advinda dos depoimentos de AA, BB e CC, bem como a prova documental constante dos emails trocados entre as partes, que não permitia sustentar a prova deste facto, ou seja, que existia acordo entre as partes quanto à forma de apurar quais os defeitos que a fruta apresentava. Mais entendeu que o acordo dos termos da compra e venda contratada entre as partes plasmado nos factos provados 5 a 8 e no acordo posterior à emissão da factura em causa, decorrente do facto provado 36, permite apenas concluir o acordo do pagamento em três fases dos “abonos”, mas já não permite concluir o acordo com a autora que a verificação da fruta poderia decorrer e de forma unilateral, até ao momento final da revenda por parte da ré, e que só nessa data, apurada a quantidade final de pêra rocha que esta tinha conseguido destinar ao mercado de frescos, seria feito o acerto de contas final.
Antes de mais, cumpre dizer que o Supremo Tribunal de Justiça apenas pode sindicar a matéria de facto, no recurso de revista, nos casos excepcionais previstos no n.º 3 do art.º 674.º do CPC.
Com efeito, como é sabido, de acordo com o disposto no art.º 682.º, n.º 2, do CPC, no recurso de revista, o STJ não pode alterar a decisão quanto à matéria de facto proferida pelo Tribunal recorrido, salvo no âmbito previsto no n.º 3 do artigo 674.º do mesmo diploma, isto é, quando haja ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou haja violação de norma legal que fixe a força probatória de determinado meio de prova. Ao STJ, como tribunal de revista, compete aplicar o regime jurídico que considere adequado aos factos fixados pelas instâncias (n.º 1 do art.º 674.º do CPC), sendo a estas e, designadamente à Relação, que cabe apurar a factualidade relevante para a decisão do litígio, não podendo o STJ, em regra, alterar a matéria de facto por elas fixada.
Assim, insiste-se, tal como é jurisprudência sedimentada neste Tribunal, a intervenção do STJ na decisão da matéria de facto está limitada aos casos previstos nos art.ºs 674.º, n.º 3, e 682.º, n.º 3, ambos do CPC, pelo que é definitivo o juízo formulado pelo tribunal da Relação, no âmbito do disposto no art.º 662.º, n.º 1, do mesmo Código, sobre a prova sujeita a livre apreciação, como são os depoimentos de testemunhas, os documentos sem força probatória plena ou o uso de presunções judiciais[3].
Para além dos acórdãos acabados de referir na última nota de rodapé, podem ainda ver-se outros do mesmo Tribunal como o de 23-02-2021, Revista n.º 1206/06.4TVPRT.P2.S1[4], de 02-06-2021, Revista n.º 1281/12.2TBMCN.P2.S1[5], de 13-10-2020, Revista n.º 12521/14.3T8LSB.L1.S1[6] e de 29-10-2020, Revista n.º 3214/18.3T8PNF.P1.S1[7].
A reapreciação pelo STJ das presunções judiciais adopta as vestes de apreciação de matéria de direito tão só quando se trata de apreciar da legalidade desse uso, o que não foi invocado pela recorrente, nem é o caso. Na verdade, o acórdão recorrido tratou de fazer, precisamente, o inverso: desfez a presunção que o tribunal de 1.ª instância usou quanto à prova do facto 49, por entender não ser possível extrair essa conclusão dos demais factos provados, nem mesmo da prova testemunhal e documental que indicou.
Quanto a esta parte, a intervenção do STJ, conforme decorre do disposto no art.º 674.º, n.º 3 do CPC, está limitada apenas ao caso de violação do direito probatório material[8].
Contudo, inexiste nos autos qualquer violação de direito probatório material, pelo que mostra-se arredado do núcleo de conhecimento deste Supremo Tribunal a reapreciação da matéria de facto com base na apreciação desta prova.
Na parte impugnada que se mostra sindicável nesta revista, é entendimento unânime neste STJ, bem como na doutrina, que o ónus da prova de coisa defeituosa incumbe ao comprador, conforme explanado, entre outros, nos seguintes Acórdãos do STJ de 22-06-2017, Revista n.º 124/06.0TBAGN.C1.S1[9] e de 25-09-2019, Revista n.º 495/14.5TJVNF.G1.S1[10].
Como explicado no Ac. do STJ de 18-02-2021, Revista n.º 29108/18.4YIPRT.C1.S1[11], a propósito de citação do «Conselheiro Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, II, pág. 517:
“O Supremo só pode censurar o assentamento factual operado pelas instâncias quando esteja em causa a violação de regras de direito probatório material, ou seja, das normas que regulam o ónus da prova (estabelecendo as respectivas regras distributivas), bem como a admissibilidade e a força probatória dos diversos meios de prova. Isto é: apenas poderá imiscuir-se (sindicar) a matéria de facto dada como assente pelas instâncias se vier invocada pelas partes ou se verificar (ex-officio) a existência ou a necessidade de recurso a meios com força probatória plena. Não pode assim, em princípio, e por ex., o Supremo censurar a convicção formada pelas instâncias sobre a matéria de facto submetida ao princípio geral da prova livre a que se reporta o art. 607º.”
É neste sentido que o Supremo Tribunal de Justiça tem decidido de forma constante e uniforme:
“Está vedado ao Supremo conhecer de eventual erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa, apenas lhe sendo permitido sindicar a actuação da Relação nos casos designados por prova vinculada ou tarifada” (Ac. STJ de 12.07.2018, P. 701/14 (Maria do Rosário Morgado);
“Tratando-se de prova sujeita à livre apreciação do juiz, a derradeira palavra sobre eventual erro de apreciação cabe à Relação, não podendo o STJ intervir e modificar a decisão” (Ac. do STJ de 09.05.2019, P. 9036/09 (Olindo Geraldes), e no mesmo sentido o Acórdão de 17.12. 2015 (Abrantes Geraldes).».
No presente caso, porque estamos no âmbito de acção declarativa de condenação para apreciar os pressupostos de compra e venda comercial, independentemente de se considerar se estamos ou não perante uma compra e venda defeituosa, competiria sempre à ré o ónus de provar quais as quantidades de fruta que estariam integradas na categoria de fruta sem valor comercial. Na verdade, a prova deste facto extintivo da obrigação do pagamento do preço é matéria de excepção, nos termos do art.º 342.º, n.º 2, do CC, sendo a ré a responsável pela sua prova, o que não logrou fazer. Ademais, nos termos explanados no acórdão recorrido, em face da prova documental e testemunhal produzida e nos termos contratuais estabelecidos entre as partes e constantes dos factos provados números 5 a 8, e bem assim o constante no facto provado 36, não se mostra possível extrair a conclusão constante do facto 49.
Improcede, assim, sem mais considerações, a primeira questão.
2.2. Da alteração da matéria de facto
Invoca, ainda, a recorrente que o Tribunal da Relação fez mau uso dos poderes previstos no art.º 662.º do CPC, pois deveria ter ordenado a ampliação da matéria de facto, a fim de apurar “quais as toneladas de fruta que foram destinadas à indústria ou que se encontravam podres e/ou desidratadas, para além da quantidade já identificada no ponto 27 dos facto assentes”, em face do que se mostra provado nos pontos 32, 33, 44 e 46.
É entendimento unânime neste Supremo Tribunal que, enquanto tribunal de revista, é-lhe permitido verificar se o Tribunal da Relação usou de forma correcta os poderes conferidos pelo art.º 662.º, n.os 1 e 2, do CPC, limitando-se essa fiscalização a averiguar se ocorreu um uso deficiente ou patológico desses poderes.
A Relação deve proceder à reapreciação da matéria de facto respeitando o disposto nos art.ºs 662.º, n.os 1 e 2, 663.º, n.os 1 e 2, e 607.º a 612.º, todos do CPC, ou seja, conforme sumariado no Ac. do STJ de 30-11-2021, Revista n.º 212/15.2T8BRG-B.G1.S1[12]: “I - Em sede de sindicância sobre o uso dos poderes pelo tribunal da Relação na reapreciação da decisão de facto impugnada, cabe ao tribunal de revista ajuizar se, em tal pronunciamento, foram observadas as diretrizes prescritas no art. 607.º, n.º 4, 1.ª parte, do CPC, de modo a que o tribunal de recurso estribe a formação da sua convicção sobre o invocado erro de julgamento através dos fatores decisivos para tal. Mas já não cabe ao tribunal de revista intrometer-se na apreciação do mérito da análise probatória realizada nem tão pouco na aferição da sua consistência, o que lhe está vedado por virtude do preceituado nos arts. 674.º, n.º 3, a contrario sensu, e 682.º, n.ºs 1 e 2, do CPC. III - Em suma, ao tribunal de revista compete assegurar a legalidade processual do método apreciativo efetuado pela Relação, mas não sindicar o eventual erro desse julgamento nos domínios da apreciação e valoração da prova livre nem da livre e prudente convicção do julgador.”
No mesmo sentido, entendeu o Ac. do STJ de 03-11-2021, Revista n.º 4096/18.0T8VFR.P1.S1[13].
No caso, consta do acórdão recorrido que a Relação procedeu à análise crítica da prova produzida, cumprindo todo o disposto no art.º 607.º do CPC e, como tal, formou a sua convicção através de um método lógico e racional sem violar qualquer norma de direito probatório material, pelo que inexiste qualquer violação do disposto no art.º 662.º do CPC.
Relativamente aos factos que a recorrente entende que devem vir a ser apurados, através da ampliação da matéria de facto, nos termos do art.º 682.º, n.º 3, do CPC, em concreto, saber quais a toneladas de pêra que não estavam em condições de ser aproveitadas, isto é, que valeriam € 0,00, entendemos que não pode proceder a sua pretensão.
O art.º 682.º, n.º 3, do CPC pressupõe que o facto com que se pretende ampliar a matéria de facto tenha sido alegado e que não tenha sido considerado pelo tribunal a quo como facto relevante para a decisão da causa, sendo que este Supremo Tribunal deverá entender que esse facto será relevante para a decisão de direito.
Todavia, no acórdão recorrido entendeu-se eliminar o ponto 49 dos factos provados, onde já estaria provado o que a recorrente agora pretende ver apurado em sede de ampliação da matéria de facto. Ou seja, pretende a recorrente, uma vez que a Relação eliminou dos factos provados a quantidade de pêra inutilizada, fazer entrar novamente tal facto com base no art.º 682.º, n.º 3, do CPC. A prova foi produzida em sede de 1.ª instância, tendo na sentença sido entendido que a quantidade de pêra inutilizada era em quantidade superior - facto 49. Porém, no acórdão recorrido, sem qualquer censura, conforme já demonstrámos, o facto 49 foi eliminado dos factos provados, pelo que não pode a recorrente provar novamente aquilo que já foi considerado não provado.
Desta forma, o acórdão recorrido, ao alterar a decisão relativa à matéria de facto, não violou qualquer disposição legal, designadamente as especificadas pela Recorrente, pelo que carece de fundamento a revista nesta parte, bem como não há lugar à ampliação da matéria de facto, porque o referido já se mostrou provado e foi eliminado dos factos no acórdão recorrido.
Improcede, assim, também esta questão.
2.3. Erro na apreciação do direito
2.3.1. Da formação do contrato
A recorrente começa por invocar que se mostra violado o disposto no art.º 232.º do Código Civil (CC), entendendo que o contrato não ficou concluído entre as partes, por não terem sido acertadas cláusulas essenciais.
Preceitua este normativo que: “O contrato não fica concluído enquanto as partes não houverem acordado em todas as cláusulas sobre as quais qualquer delas tenha julgado necessário o acordo.”
Segundo a regra estabelecida neste artigo, o contrato conclui-se “no momento em que as partes chegarem a acordo acerca de cada uma das questões que qualquer uma delas tenha suscitado e sobre as quais tenha considerado necessário o consenso.”
Por isso, “enquanto subsistir uma qualquer matéria sobre a qual uma das partes julgue necessário o acordo, o processo de contratação não está concluído”.[14]
Tudo se resume à aceitação, a qual constitui o “critério final para decidir da completude de uma proposta”.
E, segundo o citado art.º 232.º, «a proposta fica “fechada” quando a contraparte não suscite a necessidade de acordo sobre qualquer outro ponto».[15]
Também entendemos que o referido normativo apenas exige um critério subjectivo e unilateral para aferir da essencialidade das cláusulas contratuais, como se decidiu no acórdão deste Supremo Tribunal de 25-10-2012, Revista n.º 1312/07.8TBCBR.C1.S1, da 2.ª Secção[16].
Porém, para que se decida com base no citado normativo e no sentido em que a recorrente pugna, necessário se mostra que estivesse provado que a recorrente não aceitou alguma cláusula, o que no caso não se verifica. Na verdade, também aqui, a recorrente não logrou provar que houvesse alguma cláusula essencial do contrato com a qual não concordasse.
Não logrou a recorrente provar que acordou com a autora que a verificação poderia decorrer de forma unilateral, até ao momento final da revenda por parte da ré e que só nessa data, apurada a quantidade final de pêra rocha que esta tinha conseguido destinar ao mercado de frescos, seria feito o acerto de contas final. Entender-se desta forma, condicionava o pagamento da fruta fornecida à sua efectiva revenda pela ré e que desonerava a ré do ónus de alegar e provar que a fruta fornecida padecia de defeito.
Entendemos, assim, que não se verificou qualquer violação deste normativo.
2.3.2. Da interpretação da declaração negocial
Quanto à questão da interpretação da declaração negocial, suscitada nas conclusões supra transcritas, designadamente n.ºs 32 a 36, cumpre dizer o seguinte, servindo-nos do acórdão deste Supremo Tribunal, de 08-04-2021, Revista n.º 453/14.0TBVRS.L1.S1[17], que aqui se transcreve:
«É, porém, jurisprudência pacífica deste Supremo Tribunal de Justiça que a interpretação de declarações negociais só constitui matéria de direito quando o sentido da declaração deva ser determinado segundo o critério do nº 1, do art. 236º, do CC, ou surja a questão de saber se foi respeitado o art. 238º, do mesmo Código, estando-lhe vedado o apuramento da vontade real das partes por constituir matéria de facto, da exclusiva competência das instâncias[18].
Como se sabe, o nº 1, do art. 236º, do CC consagra a denominada doutrina da impressão do destinatário, segundo a qual o sentido juridicamente relevante com que deve valer uma declaração negocial há de corresponder àquele que lhe seria dado por um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, que, conhecendo as circunstâncias que este concretamente conhecia, atribuiria à declaração, agindo com capacidade e diligência médias (cfr., entre muitos outros, o recente acórdão do STJ de 12.1.2021, proc. nº 1939/15.4T8CSC.L1.S1, www.dgsi.pt).
Nesta tarefa interpretativa, partindo embora do elemento literal, há que convocar outros elementos ou circunstâncias que ajudem a precisar o sentido (decisivo) da declaração, designadamente “circunstâncias de tempo, lugar e outras, que precederam a sua celebração ou são contemporâneas desta, bem como as negociações respectivas, a finalidade prática visada pelas partes, o próprio tipo negocial (…)"[19], bem como "os termos do negócio, os interesses que nele estão em jogo (e a consideração de qual seja o seu mais razoável tratamento), a finalidade prosseguida (…).”[20].
Como, a propósito, sublinha Pais de Vasconcelos, “na interpretação deve ser procurado, não apenas o sentido das declarações negociais artificialmente isoladas do seu contexto negocial global, mas antes o discernir do sentido juridicamente relevante do complexo regulativo que é o negócio jurídico como um todo, como ação de autonomia privada, e como globalidade da matéria negociada ou contratada.”[21].
Por sua vez, António Menezes Cordeiro[22] afirma que o direito português consagra, no essencial, uma doutrina objetivista da interpretação, baseada na impressão do declaratário e mitigada, em termos negativos, pela possibilidade de imputar a declaração a interpretar a quem a tenha feito e pela regra falsa demonstrativo non nocet.
Tem sido, este, também, o entendimento perfilhado pela jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, podendo citar-se, entre outros, o Acórdão proferido em 19.1.2017, no proc. nº 1626/12, www.dgsi.pt, em que, invocando o princípio da interpretação sistemática e contextual, se considerou que o negócio deve ser visto no seu todo, considerando as expressões utilizadas no contexto e nas circunstâncias em que foram proferidas.”.
Ora, a apreciação sujeita ao crivo deste Supremo Tribunal, com base no art. 236.º do CC, uma vez que a apreciação da matéria de facto se mostra subtraída, é apenas aquela que resulta do n.º 1 deste normativo: “A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele.».
Mais uma vez acompanhamos o raciocínio expendido no acórdão recorrido, uma vez que os termos do acordo estabelecido, resultantes dos pontos 5 a 8, e bem assim as facturas que foram emitidas e pagas, bem como os factos provados sob os números 42 e 43, 47 e 48, 53 e 53 não permitem extrair outra conclusão que não a que o acórdão recorrido logrou chegar. Não ficou provado o acordo das partes no sentido de que a verificação poderia decorrer de forma unilateral, até ao momento final da revenda por parte da ré e que só nessa data, apurada a quantidade final de pêra rocha que esta tinha conseguido destinar ao mercado de frescos, seria feito o acerto de contas final.
Ficou provado sim que as partes acordaram o pagamento faseado e que a final seria efectuado o pagamento final. Seria muito oneroso para a autora/recorrida ficar sujeita a esta fiscalização unilateral da ré, por um período de tempo muito lato, que, no caso, se prolongou por mais de seis meses (cfr. art.º 236.º, n.º 1 do CC).
Entendemos, assim, que não se mostra possível extrair dos termos contratuais e bem assim das demais conversações entre as partes outra conclusão que não aquela a que o acórdão recorrido chegou.
2.3.3. Da compra e venda comercial
Tal como decidido no acórdão recorrido, estamos no âmbito de uma compra e venda comercial, nos termos conjugados dos art.ºs 2.º e 463.º do Código Comercial, uma vez que se trata de uma relação contratual entre duas sociedades comerciais, sendo que a adquirente dos produtos, a ré/recorrente, os destinava à revenda. Tem sido este o entendimento seguido no STJ, como resulta dos acórdãos de 01-07-2021, Revista n.º 3655/06.9TVLSB.L2.S1[23], de 05-05-2020, Revista n.º 2142/15.9T8CTB.C1.S2[24], e de 30-06-2020, Revista n.º 3007/16.2T8LRA.C1.S1[25].
Estamos, igualmente, perante a venda de uma coisa genérica, porquanto não foi individualizada, tendo apenas sido determinada quanto ao género e quantidade, X kilos de pêras rocha (cfr. neste sentido o Ac. do STJ de 30-06-2020, Revista n.º 3007/16.2T8LRA.C1.S1, já citado).
Porém, acordaram as partes que o preço a pagar pelo kg de pêra rocha iria variar consoante o calibre e demais características da pêra rocha entregue, sendo as pêras com diâmetro superior a 55 milímetros pelo preço de €0,350/Kg; as pêras com diâmetro entre 55 a 50 milímetros pelo preço de € 0,25/Kg e as pêras com diâmetro inferior a 50 milímetros, fruta com escopo para indústria, fruta podre, desidratada, a €0,00 (cfr. facto provado sob o ponto 6).
O acórdão recorrido entendeu que a pêra entregue que reunisse as características de diâmetro inferior a 50 milímetros, fruta com escopo para indústria, fruta podre, desidratada, o preço seria de €0,00, constituiria uma compra e venda defeituosa, nos termos do art.º 913.º do CC. Uma vez que a ré não logrou provar outras quantidades de pera nestas características, determinou o pagamento da quantia de € 39.454,28, acrescido de juros de mora, devidos desde a data da citação (ocorrida em 02/08/2019) vencidos e vincendos, calculados, à taxa legal aplicável aos créditos de que são titulares empresas comerciais, até integral e efectivo pagamento.
Invoca a recorrente que no caso de fruta para indústria, as partes não estabeleceram qualquer obrigação de devolução à Recorrida, apenas culminaram a existência da mesma com uma não remuneração, concluindo:
44) E essa não remuneração, não impõe que seja a mesma qualificada como produto defeituoso, para a conceção e previsão do quanto está estatuído no artigo 913º do Código Civil, nomeadamente, para efeitos do prazo de denúncia.
45) Impunha-se, sim, no âmbito do contrato celebrado, que a Recorrente informasse após o escoamento de toda a fruta, após devida calibragem e verificação de qualidade, as quantidades concretas de fruta que tinham calibres remuneráveis e que não tinham apresentado problemas fitossanitários que tivessem impedido a sua comercialização.
Tal como avançado na parte respeitante à reapreciação da matéria de facto, quer para efeitos de ónus da prova, quer agora para a apreciação dos direitos da autora, em face dos factos provados, torna-se irrelevante considerar a presente compra e venda como defeituosa.
Mais, entendemos, conforme explica a recorrente, que não se trata de uma compra e venda defeituosa, uma vez que as partes acordaram a remuneração da pêra com diâmetro inferior a 50 milímetros, fruta com escopo para indústria, fruta podre, desidratada, no montante de €0,00. Ou seja, acordaram, desde logo, que, por se tratar de uma venda de coisa genérica, que necessitava de prévia confirmação da qualidade pelas partes. Não logrou a ré, ora recorrente, provar algo mais para além do facto provado 31, após as referidas operações aritméticas, ficou com uma entrada líquida de 219 505 49 kg de pêra rocha entregue pela autora que transitou para a fase 2, denominada por calibragem.
Por se tratar de venda de coisa genérica, nos termos do art.º 918.º do CC, é determinada a aplicação das regras do não cumprimento das obrigações. Ora, por força do disposto no art.º 796.º, n.º 1, do CC, o perecimento ou deterioração da coisa corre por conta do adquirente, não tendo a ré logrado provar, para além do já referido, que houve outras quantidades de pêra rocha rejeitadas.
No que tange ao preço, invoca, ainda a recorrente a violação do disposto nos art.ºs 883.º e 885.º do CC.
Porém, sem razão. Na verdade, a questão do preço ficou provada no ponto 6 dos factos provados, pois que as partes acordaram quanto ao preço a pagar pela fruta, o que foi respeitado pelo acórdão recorrido. Mais uma vez, o que não resultou provado, em face da eliminação do ponto 49 dos factos provados, foi a quantidade de fruta apurada que pudesse ser valorada a € 0,30 ou a € 0,00.
Nada mais resultando provado quanto à existência efectiva de mais alguma quantidade de fruta que pudesse ser enquadrada na calibragem inferior a 0,50, podre, desidratada, para indústria ou madura, resta a quantia que resulta apurada dos factos provados respeitante a quantia entregue e não devolvida (facto 31), 219 505,49 kg, tendo a autora, em 21.05.2019, emitido a factura n.º ….19, no montante de €42.452,49 (quarenta e dois mil, quatrocentos e cinquenta e dois euros e quarenta e nove cêntimos). Nada há a censurar quanto às operações aritméticas levadas a cabo no acórdão recorrido.
Em face do exposto, uma vez que os contratos devem ser pontualmente cumpridos (cfr. art.º 406.º do CC), deverá manter-se a condenação da recorrente nos termos do acórdão recorrido.
2.3.4. Da restituição de coisa comodatada
Relativamente ao pedido reconvencional:
A ré, em sede de reconvenção, peticionou a condenação da autora a pagar-lhe a quantia de € 7 011,00, referente aos palotes que foram objecto de empréstimo à autora e não devolvidos à ré.
Em sede de 1.ª instância, foi considerado procedente o pedido reconvencional.
Porém, o acórdão recorrido entendeu que o pedido da ré é improcedente, pois que ao contrário do que considerou o tribunal recorrido, não cabia ao comodatário alegar e provar que a coisa emprestada existe para ser devolvida. Pelo contrário, ao comodante cabe o ónus de prova de que a coisa se pereceu ou se deteriorou por causa imputável ao comodatário (quer porque este poderia ter evitado a perda ou deterioração, violando assim o seu dever de guarda e conservação, quer porque permitiu a sua utilização para fim diverso ou por terceiro sem autorização do comodante), cabendo ao comodatário o ónus de prova de que esta deterioração sempre teria ocorrido independentemente de culpa sua.
Só nesse caso se constitui o comodatário no dever de indemnizar o proprietário do bem pelos prejuízos sofridos, cfr. decorre do disposto nos artºs 1043 e 1136 do C.C.
Assim se conclui que, não tendo o comodante alegado e provado que a coisa se deteriorou ou pereceu, caso em que seria devida “indemnização pecuniária, nos termos dos artigos 562.º e 566.º, n.º 1, todos do Código Civil”, apenas tem direito à sua restituição.
Para o que ora releva, ficaram provados os seguintes factos:
54. A pedido da autora, a ré entregou-lhe 60 palotes com as seguintes características: palotes, de plástico, de cor branca, com 12/1-61, com 4 pés, com capacidade para 270kg de pêra rocha, com os dizeres “Abrunhoeste”.
55. A autora não restituiu à ré os referidos palotes.
56. Em 15 de junho de 2018, a ré solicitou à autora que lhe restituísse o referido vasilhame (palotes).
57. Cada palote têm um custo de aquisição, de €95,00 (noventa e cinco euros), acrescido de IVA à taxa legal de 23%, por cada unidade, o que perfaz o valor global de €116,85 (cento e dezasseis euros e oitenta e cinco cêntimos), cada um.
Entende a recorrente que, por ter interpelado extrajudicialmente a autora para devolução dos palotes, o que a autora não fez, mostra-se possível a condenação em valor pecuniário.
Em face dos factos provados, podemos qualificar a relação estabelecida entre as partes como um contrato de comodato, previsto nos art.ºs 1129.º e ss. do CC, uma vez que a ré entregou à autora, a seu pedido, 60 palotes.
É obrigação do comodatário restituir a coisa findo o contrato (cfr. art.º 1135.º, al. h), do CC). Quando não foi convencionado o prazo para restituição, deverá o comodatário entregar a coisa ao comodante assim que lhe seja exigida (cfr. art.º 1137.º, n.º 2, do CC).
Nos autos, ficou provado que a ré solicitou à autora, em 15-06-2018, que os referidos palotes fossem devolvidos, o que a autora não satisfez.
O pedido de restituição é o pedido natural no contrato de comodato, ou seja, a restituição da coisa comodatada.
Só se mostra possível a indemnização em dinheiro, em substituição da restituição da coisa, nos termos do art.º 1136.º do CC, quando já não se mostre possível essa restituição, seja por perda ou deterioração da coisa, o que nem sequer foi alegado pela ré.
Este princípio mostra-se consagrado noutras normas do CC, como sejam os arts. 1043.º e 566.º.
Ainda que sobre matéria distinta, no Ac. do STJ de 05-12-2019, Revista n.º 2667/17.1T8GMR.G1.S1[26], afirma-se expressamente que “A condenação no pagamento de uma indemnização deve ser deixada apenas para os casos em que o direito subjetivo não possa ser reintegrado de modo natural mediante a entrega dos próprios bens de que o interessado se considera proprietário (art. 566.º, n.º 1, do CC).”.
Dúvidas não restam que, também, quanto a esta parte não merece censura o acórdão recorrido.
Assim, as normas indicadas no recurso de revista não se mostram violadas, não podendo proceder a pretensão da recorrente.
Sumário:
1. Está fora das atribuições do STJ, enquanto Tribunal de revista, sindicar o modo como a Relação reapreciou os meios de prova sujeitos a livre apreciação ou fez uso de presunções legais, fora dos limites do art.º 674.º, n.º 3, do CPC.
2. O Supremo só pode censurar o acervo factual operado pelas instâncias quando esteja em causa a violação de regras de direito probatório material, ou seja, das normas que regulam o ónus da prova, bem como a admissibilidade e a força probatória dos diversos meios de prova.
3. O ónus da prova de coisa defeituosa incumbe ao comprador.
4. A interpretação de declarações negociais só constitui matéria de direito quando o sentido da declaração deva ser determinado segundo o critério do n.º 1 do art.º 236.º do CC ou surja a questão de saber se foi respeitado o art.º 238.º, do mesmo Código, estando vedado ao STJ o apuramento da vontade real das partes por constituir matéria de facto, da exclusiva competência das instâncias.
5. O n.º 1 do art.º 236.º do CC consagra a denominada teoria da impressão do destinatário, segundo a qual o sentido juridicamente relevante com que deve valer uma declaração negocial há-de corresponder àquele que lhe seria dado por um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, que, conhecendo as circunstâncias que este concretamente conhecia, atribuiria à declaração, agindo com capacidade e diligência médias.
6. Estamos perante a venda de uma coisa genérica, quando não foi individualizada, tendo apenas sido determinada quanto ao género e quantidade.
7. Tratando-se de venda de coisa genérica, nos termos do art.º 918.º do CC, é determinada a aplicação das regras do não cumprimento das obrigações, pelo que, por força do disposto no art.º 796.º, n.º 1, do mesmo Código, o perecimento ou deterioração da coisa corre por conta do adquirente.
8. Num contrato de comodato, só se mostra possível a indemnização em dinheiro, em substituição da restituição da coisa, nos termos do art.º 1136.º do CC, quando já não se mostre possível essa restituição, por perda ou deterioração da coisa.
III. Decisão
Por tudo o exposto, acorda-se em negar a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.
Lisboa, 2 de Fevereiro de 2022
Fernando Augusto Samões (Relator)
Maria João Vaz Tomé (1.ª Adjunta)
António José Moura de Magalhães (2.º Adjunto)
_______
[1] Do Tribunal Judicial da Comarca de ... – Juízo Local Cível do ... – Juiz 5.
[2] Relator: Juiz Conselheiro Fernando Samões
1.º Adjunto: Juíza Conselheira Maria João Vaz Tomé
2.º Adjunto: Juiz Conselheiro António Magalhães
[3] Cfr. Acórdão do STJ de 26/11/2019, Revista n.º 18079/16.1TBLSB.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt; nesta matéria, citando-se apenas as decisões mais recentes, vejam-se os Acórdãos do STJ de 4/2/2020, Revista n.º 3932/17.3T8BRG.G1.S1; de 5/2/2020, Revista n.º 13097/17.5T8LSB.L1.S1; de 11/2/2020, Revista n.º 5941/17.3T8CBR.C1.S1 e de 15/1/2020, Revista n.º 1350/14.4TBBRR.L2.S1, todos publicados em https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:STJ. Neste sentido, e para maiores desenvolvimentos, vide ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5.ª ed., Coimbra, Almedina, 2018, págs. 397 e segs..
[4] Texto integral disponível em http://www.dgsi.pt.
[5] Texto integral disponível em
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/33de8ce4d0fe383f802586ed00334fc1?OpenDocument.
[6] Texto integral disponível em
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/1b006ef5fe24f2f28025862d0054185f?OpenDocument.
[7] Texto integral disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/d40b3f308496182580258635006dee1f?OpenDocument.
[8] Cfr. neste sentido, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís F. Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, I, 2018, pág. 807.
[9] Texto integral disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/-/293BA381C56A918D80258147005B59AD.
[10] Texto integral disponível em http://www.dgsi.pt.
[11] Texto integral disponível em http://www.dgsi.pt.
[12] Texto disponível na íntegra em http://www.dgsi.pt.
[13] Com texto disponível na íntegra em http://www.dgsi.pt.
[14] Cfr. Pedro Pais de Vasconcelos e Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 9. Edição, 2019, Almedina, pág. 489.
[15] Cfr. António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, II – Parte Geral, 5.ª edição atualizada, 2021, Almedina, pág. 321.
[16] Não publicado.
[17] Texto integral disponível em http://www.dgsi.pt.
[18] Cf., entre outros, o acórdão do STJ, proferido em 30.11.2017, no processo 1150/06.0TBSTR.E1.S1, www.dgsi.pt.
[19] Cf. Prof. Luís A. Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, Vol. II, 2ª edição, Lex, 1996, págs. 349/350, e Teoria Geral do Direito Civil, II, Fontes, Conteúdo e Garantia da Relação Jurídica, 3ª edição, Universidade Católica Portuguesa, pág. 416/417.
[20] Cfr. Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Tomo I, 482 e segs.; Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, II, pág. 213 e Vaz Serra, RLJ, Ano 111, pág. 220.
[21] In Teoria Geral do Direito Civil, Vol. I, pág. 304.
[22] In Tratado de Direito Civil Português, Parte Geral, tomo I, Almedina, 2000, pág. 555.
[23] Texto integral disponível em http://www.dgsi.pt.
[24] Texto integral disponível em http://www.dgsi.pt.
[25] Ainda não publicado.
[26] Texto integral disponível em PDF.