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CRIME DE HOMICIDIO QUALIFICADO
MEIO INSIDIOSO
MOTIVO TORPE
MOTIVO FÚTIL
ESPECIAL CENSURABILIDADE
PLURIOCASIONALIDADE
Sumário
I – Quando a lei fala em meio insidioso não quer necessariamente abarcar os instrumentos habituais de agressão tais como o pau, o ferro, a faca, a navalha e a pistola, ainda que manejados de surpresa, mas sim aludir às hipóteses de utilização de meios ou expedientes com relevante carga de perfídia e meios particularmente perigosos e que, não pondo em risco o agente, tornam impossível ou difícil a defesa da vítima. II – Não se tendo provado qual o objeto cortante utilizado pelo arguido, e não tendo este atingido a vítima de forma traiçoeira, ou imprevisível, limitando a sua capacidade de defesa, mas antes no âmbito de uma contenda física propiciada pela própria vítima, é imperioso concluir pela impossibilidade de qualificação do crime de homicídio por recurso à agravante “meio insidioso”. III - Tendo-se apurado que o motivo da atuação do arguido é substancialmente potenciado pela insistência e confronto provocados pela malograda vítima, e perante agressões físicas mútuas, num local ermo e em inferioridade, não pode dizer-se que o mesmo tenha atuado por motivo torpe ou fútil. IV – A jurisprudência também não se afasta desse entendimento ao considerar como motivo fútil não tanto aquele que tem pouco valor ou importância, mas o que é notoriamente desproporcionado ou inadequado aos olhos do homem médio, denotando o agente egoísmo, intolerância, prepotência e mesquinhez, sendo, pois, fútil o motivo frívolo, leviano, o que revela uma inteira desproporção entre o motivo e a reação homicida. V – Atenta a dinâmica do sucedido, conforme esta foi representada pelo arguido, no contexto de uma discussão que envolveu confronto físico, é patente não ter resultado provado que o mesmo tenha revelado qualquer especial censurabilidade ou perversidade suscetíveis de justificar qualquer qualificação. VI – Considerando a quantidade, a dependência e a proximidade dos crimes em apreço, bem como a ausência de antecedentes criminais, estamos no âmbito da mera pluriocasionalidade, sem relevantes reflexos a nível da personalidade do arguido.
Texto Integral
Proc. n.5009/20.5JAPRT.P1
Relator: Paulo Emanuel Teixeira Abreu Costa
Adjunto: Nuno Pires Salpico
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto
I. Relatório
No âmbito do Processo Comum Singular, a correr termos no Juízo Central Criminal de Penafiel Juiz 4-Comarca do Porto-Este, foi proferida decisão segundo a qual se decidiu:
a) Absolver o arguido AA da prática do crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelos art.ºs 2.º, n.º 1, al. ax), 3.º, n.ºs 1 e 2, al. e) e 86.º, n.º 1, al. d) do Regime Jurídico das Armas e Munições, de que vinha acusado;
b) Absolver o arguido AA da prática de um crime de coação agravada, p. e p. pelo art.º 154.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, al. a), todos do C. Penal, de que vinha acusado;
c) Condenar o arguido AA da prática, como autor material, de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos art.ºs 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, als. e) e i) do C. Penal, na pena de 16 (dezasseis) anos e 6 (seis) meses de prisão;
d) Condenar o arguido AA da prática, como autor material, de um crime de coação simples, na forma tentada, p. e p. pelos art.ºs 154.º, n.º 1, 23º, n.º 2 e 73º, n.º 1, todos do C. Penal, na pena de 4 (quatro) meses de prisão;
e) Condenar o arguido AA da prática, como autor material, de um crime de dano simples, p. e p. pelo art.º 212.º, n.º 1 do C. Penal, na pena de 4 (quatro) meses de prisão;
f) Condenar o arguido AA da prática, como autor material, de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art.º 143.º, n.º 1 do C. Penal, na pena de 6 (seis) meses de prisão;
g) Em cúmulo jurídico das penas identificadas em c), d), e) e f), condenar o arguido AA na pena única de 17 (dezassete) anos e 2 (dois) meses de prisão;
h) Condenar o arguido nas custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) UC.
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Mais decide o presente Tribunal Coletivo:
i) Nos termos dos art.ºs 191.º a 196.º, 202.º, n.º 1, al. a) e 204.º, als. a), b) e c), todos do C. P. Penal, manter a medida de coação de prisão preventiva em que se encontra o arguido AA.
j) Não arbitrar indemnização a favor das vítimas BB e CC.
l) Levantar a apreensão e determinar a devolução ao arguido dos seguintes objetos: um par calças de ganga, uma camisola, um par de sapatilhas, uma bolsa de cintura/tiracolo, uma mira telescópica e um telemóvel da marca Huawei, melhor ids. a fls. 84/5.
m) Determinar a cessação do estatuto de vítima a BB e CC, nos termos do art.º 24.º, n.º 2 da Lei n.º 130/2015, de 04.09.
n) Determinar a recolha de amostras biológicas ao arguido AA, para inserção na base de perfis de ADN, nos termos dos artºs. 8.º, n.º 2 e 18.º, n.º 3 da Lei n.º 5/2008, de 12.02, na redação dada pela Lei n.º 90/2017, de 22.08, a qual será efetuada após trânsito em julgado.”
Inconformado, o arguido AAinterpôs recurso, invocando as seguintes conclusões da sua motivação (transcrição):
“1 – O arguido, ora Recorrente não se conformando com a decisão que o condenou pela prática de um crime de homicídio qualificado, nos termos do disposto nos artigos 131.º, 132.º, nº.s 1 e 2, als. c) e d), todos do Código Penal, dele vem interpor o presente recurso com fundamento em erro de julgamento e de Direito pela incorrecta aplicação do Direito aos factos, pugnando pela subsequente alteração da qualificação jurídica do tipo de crime em causa, com consequências na determinação da medida da pena concretamente aplicável, conforme normas jurídicas que seguidamente se indicam para os devidos efeitos previstos no artigo 412.º do CPP.
2 – Entende o Recorrente que o Tribunal a quo pecou por ter descurado o apuramento do (real) motivo que terá determinado a prática do crime, assente numa apreciação e valoração erradas da prova, considerando, assim, indevidamente como provados os pontos 7, 22 e 23 da matéria de facto provada.
3 – Conjugando a logicidade do percurso de formação da convicção, tomado este na globalidade da acção infractora, tendo por horizonte a plausibilidade da factualidade sequencial, de molde a não deixar dúvidas razoáveis sobre o tipo de crime em causa, com a análise da prova documental e testemunhal, podemos concluir com segurança que não ficou provado que o arguido tenha actuado por um motivo fútil ou de forma insidiosa, id est, sem que nada o fizesse prever.
4 – Provado que o propósito subjacente à deslocação da vítima e da testemunha DD (DD1) consistia numa pretensa transacção de produto estupefaciente a crédito (“fiada”), carece de especial atenção o facto de esta mesma testemunha, consumidora de produtos estupefacientes, ter reconhecido que o negócio assim configurado é absolutamente estranho e anómalo, conclusão esta que as regras da experiência comum suportam inequivocamente!
5 – Também não vai de encontro às regras do normal acontecer alguém, perante a recusa em vender fiado por parte do arguido, tentar convencer, pela força, o arguido do contrário.
6 – Convencimento este que, por sua vez, está intrinsecamente ligado ao início de uma discussão verbal e confronto físico entre os intervenientes (arguido e vítima), provocado pela saída do veículo e consequente interpelação do arguido por parte do Sr. EE!
7 – A vítima optou por sair do veículo que conduzia, discutindo e confrontando fisicamente o arguido! (cfr. motivação da decisão: “A testemunha DD confirma ainda que a troca de palavras originou confronto físico entre o arguido e EE, com “um empurrão para cada e uma facada”.”).
8 – Tal propósito ou desígnio apenas se coaduna com a intenção de concretização do aludido negócio através da força/coacção física! O que sucedeu…como bem reconhece o Tribunal a quo na motivação da matéria de facto.
9 – Não obstante, o Tribunal não fez constar da matéria de facto provada o confronto físico mantido entre estes intervenientes, facto este essencial para a apreciação global da conduta do arguido no âmbito do juízo ex ante que se impunha ao Tribunal.
10 – Tal apreciação revela-se absolutamente fundamental à configuração do “pedaço de vida” que lhe competia reproduzir!
11 – Não estamos perante uma acção do arguido, mas antes perante uma reacção a uma interpelação por motivos, no mínimo, dúbios, e que envolveram confronto físico entre as partes!
12 – Ao não transparecer na matéria de facto provada o confronto físico entre ambos, errou o Tribunal a quo, pois é este confronto que subjaz, que despoleta o “golpe” sequente…não uma discussão “caprichosa” entre dois indivíduos!
13 – Posto isto, não podia o Tribunal a quo dar como provado que o arguido actuou “sem aviso prévio, de forma traiçoeira e repentina” – ponto 22 –, uma vez que o contexto em que surge o “golpe” é originado pelo confronto físico provocado pela vítima EE, que decide sair do veículo e confrontar verbal e fisicamente o arguido na tentativa de concretizar o aludido negócio de “venda fiada”!
14 – O mesmo juízo merecerá o ponto 23 dos factos dados como provados, pois não foi (somente) uma discussão a respeito de uma transacção de droga (cujos contornos são, no mínimo, dúbios) que
motivou a reacção do arguido, mas sim a insistência e interpelação, com recurso a violência (confronto físico), por parte da vítima que motivaram a mesma! Este é o motivo do crime!
15 – Na esteira da propugnada impugnação da matéria de facto, acrescente-se que o verdadeiro desígnio dos indivíduos, interpretando a factualidade considerada provada à luz das regras do normal acontecer, era apenas uma: ROUBAR O ARGUIDO!…
16 – Esta é, nomeadamente, a convicção constante do relatório final da Polícia Judiciária, constante de fls. 254 e ss. (em especial fls. 261), e corroborada em julgamento pelo Inspector da Polícia Judiciária FF (cfr. Gravação 20210916144845_3754245_3995012, Depoimento Inspector FF, testemunha: minuto 7:39 a 7:59).
17 – Também a testemunha GG (cfr. Gravação 20210906110849_3754245_3995012, Depoimento GG, testemunha: minuto 1:44 a 2:35), confirma o aludido contexto, explicando que o arguido se encontrava muito agitado e a “a falar mais alto”, exclamando que o estavam a roubar, sendo certo que à luz das regras da experiência comum outra conclusão não poderia ser alcançada pelo que andou mal o Tribunal a quo.
18 – Assim sendo, deverão V/ Exa.s modificar a matéria de facto considerada provada, e, por consequência, fazer constar do ponto 7 dos factos provados o confronto físico mantido ente a vítima e o arguido, que motivou o crime sequente, e ainda, julgar os pontos 22 e 23 como não provados, porque contrários à prova produzida.
DO ERRO NA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA DA MATÉRIA DADA COMO PROVADA
19 – O Tribunal a quo fez constar da motivação que o arguido não quis, nem previu, como consequência necessária da sua conduta, a morte da malograda vítima (vide ponto 9 e 10 dos factos não provados), pelo que, afastada a intenção de matar, é bem mais consonante com a prática da vida e com a dinâmica dos factos tal como vêm provados, com a existência de confronto físico, e ainda pelo facto de ter sido desferido um só golpe, a qualificação do tipo de crime de acordo com a
intenção de ofender, e consequentemente o enquadramento jurídico daqueles no dispositivo legal que a confina à ofensa da integridade física (artigo 144.° e 147.º do Código Penal).
20 – Ou, quando muito, e se assim não se entender, qualificar a prática do agente como integrativa do homicídio simples (artigo 131.° do Código Penal).
21 – Não obstante, o Tribunal a quo decidiu, ainda assim, condenar o arguido pela prática, como autor material, de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º, n.º 1 e 2, alíneas e) e i) do Código Penal, na pena de 16 (dezasseis) anos e 6 (seis) meses de prisão.
22 – Sucede que, de facto, o arguido não quis, nem previu, o resultado da sua conduta, isto é, o arguido não teve qualquer intenção de matar a vítima EE, pelo que resulta inverificada a especial censurabilidade ou perversidade da conduta da agente.
23 – Tal conclusão é reforçada caso venha a ser procedente o recurso em sede de matéria de facto provada, nos termos supra peticionados, que se impõe – porque assente em elementos objectivos que o próprio Tribunal a quo ponderou na sua motivação, mas não fez reflectir no elenco dos factos provados.
24 – Pois, como vimos, o Tribunal concluiu que “A testemunha DD confirma ainda que a troca de palavras originou confronto físico entre o arguido e EE, com “um empurrão para cada e uma facada”.”, logo, é forçoso inferir que o arguido tem, não uma acção, mas uma reacção no âmbito de uma discussão provocada pela vítima, que decide sair do veículo e confrontar verbal e fisicamente o arguido.
25 – Ficou assente que a discussão é provocada/iniciada não pelo arguido, mas pela insistência da vítima na realização de uma transacção de produto estupefaciente “fiado”.
26 – Só depois de a vítima ter saído do veículo e confrontado o arguido, por sua própria iniciativa, é que se gerou uma discussão que, além de troca de palavras, envolveu ainda confronto físico entre ambos (“um empurrão para cada e uma facada”).
27 – Neste conspecto, não podia o douto Tribunal ter relegado para “segundo plano” a contenda física iniciada pela vítima.
28 – Ao fazê-lo, prejudica sobremaneira o arguido, dando a entender que este agiu apenas com base numa discussão (frugal) sobre uma transacção ilícita, e não com intenção de se defender (ou de repelir uma agressão) no âmbito de um confronto físico – que, esclareça-se, não iniciou!
29 – Assim sendo, incorreu o Tribunal a quo em erro de julgamento quanto à qualificação jurídica, dado que a conduta do arguido nos moldes aventados configura a prática de um crime de ofensa à integridade física grave, agravada pelo resultado morte, p. e p. pelos artigos 144.º e 147.º do Código Penal.
Caso assim não seja entendido,
30 – Tendo-se apurado que o motivo da actuação do arguido é (substancialmente) potenciado pela insistência e confronto provocados pela malograda vítima, e perante agressões físicas mútuas, num local ermo e em inferioridade, não pode dizer-se que o arguido tenha actuado por motivo torpe ou fútil (alínea e)).
31 – O facto de ter o arguido desferido um único golpe, com um objecto não identificado, mas com lâmina, num contexto de discussão com agressões mútuas, também não é de considerar que este tenha actuado de forma inesperada ou súbita, sem que a vítima tivesse sequer desconfiado dos seus intentos.
32 – Saliente-se que a jurisprudência citada pelo douto Tribunal a quo para sustentar o enquadramento da actuação do arguido no exemplo- padrão contido na alínea i) – “meio insidioso” – não vai no sentido, e muito menos tem o alcance, de justificar a citada qualificação.
33 – No caso sub judice, não se tendo provado qual o objecto cortante utilizado pelo arguido, é imperioso concluir pela impossibilidade de qualificação do crime de homicídio por recurso à agravante prevista na alínea i), dado que:
1) O objecto, não tendo sido identificado, pelas características que não resultaram apuradas, não pode ser considerado meio insidioso; e
2) O arguido não atinge a vítima de forma traiçoeira, mas antes no âmbito de uma contenda física propiciada pela própria vítima.
34 – In casu, temos ainda que a forma mitigada de dolo considerada provada pelo Tribunal a quo é absolutamente incompatível com um tipo especial de culpa para efeitos de qualificação, pelo que claudicou o Tribunal na determinação da norma aplicável ao caso em concreto.
35 – Assim, atenta a dinâmica do sucedido, conforme esta foi representada pelo arguido, no contexto de uma discussão que envolveu confronto físico, é patente não ter resultado provado que o arguido tenha revelado qualquer especial censurabilidade ou perversidade susceptíveis de justificar aquela qualificação.
36 – Analisadas as circunstâncias fácticas consideradas provadas pelo Tribunal, apenas podemos considerar, no limite, a subsunção da conduta do arguido ao crime de homicídio simples, p. e p. pelo artigo 131.º do Código Penal, cuja moldura penal (abstracta) vai dos 8 aos 16 anos de prisão.
37 – Ao dar como provado que o arguido não quis, nem previu, a morte da vítima EE, tendo actuado a título de dolo eventual, deveria o Tribunal a quo ter afastado, perante o circunstancialismo considerado provado, a qualificação do crime pelo qual vinha acusado – o que foi, nomeadamente, avançado em sede de alegações pelo Digníssimo Procurador da República –, e não o fazendo interpretou erradamente o preceito legal sub judice.
38 – Assim sendo, deverá a presente decisão ser revogada e substituída por outra que condene o arguido pela prática de um crime de ofensa à integridade física grave, agravada pelo resultado, nos termos do disposto no artigo 144.º e 147.º do Código Penal!
39 – Ou, em ultima ratio, deverá a presente decisão ser revogada e substituída por outra que condene o arguido pela prática de um crime de homicídio simples, p. e p. pelo artigo 131.º do Código Penal.
DA MEDIDA DA PENA
40 – O dolo foi (meramente) eventual, num contexto de confronto físico entre o arguido e a vítima, em circunstâncias dúbias, que segundo a representação do arguido se prendiam com um roubo por parte da vítima, circunstância esta que adquire essencial importância e que tem um peso muito significativo na graduação e atenuação da pena.
41 – O arguido não tem antecedentes criminais e mostra-se socialmente inserido, pois vivia com a companheira e mantinha hábitos de trabalho, é pessoa habitualmente pacífica, cordata, nunca tendo tido quezílias.
42 – Tudo ponderado, na procedência do recurso quanto à matéria de facto provada, e bem assim, da alteração da qualificação jurídica da factualidade em causa, deverá o arguido ser condenado:
1) Pela prática de um crime de ofensa à integridade física grave, agravada pelo resultado morte, numa pena próxima do seu limite mínimo;
Ou, em ultima ratio,
2) Pela prática de um crime de homicídio simples, numa pena igualmente próxima do seu limite mínimo.
Ainda sem prescindir,
43 – E por mera cautela de patrocínio, atentas as circunstâncias atenuantes que resultaram provadas, e salvo o devido respeito por diversa opinião, a pena em concreto aplicada ao arguido, pela prática do crime de homicídio qualificado mostra-se excessiva, demasiado severa e desproporcionada, porquanto 16 (dezasseis) anos e 6 (seis) meses de prisão, em nada contribuem para a ressocialização do arguido em sociedade, e excede a medida da culpa, atendendo que este
actuou com mero dolo eventual, pelo que, na improcedência do recurso, sempre deverá a pena concretamente aplicada ao arguido ser substancialmente reduzida para o mínimo legalmente previsto de 12 (doze) anos de prisão.
Assim sendo,
44 – O Tribunal a quo incorreu em violação das normas constantes da Constituição da República Portuguesa (artigos 20.°, n.º 1, 32.°, n.º 1, 2 e 5 e 18.°), errou na aplicação das normas dos artigos 131.° e 132.° do Código Penal, e ainda na interpretação e aplicação do disposto nos artigos 40.°, n.º 1 e 2, 71.° e 72.°, todos do Código Penal, as quais deveriam ter sido aplicadas de forma a fazer incidir sobre o caso concreto as respectivas atenuantes, com vista à aplicação da mais adequada, proporcionada e, por consequência, justa pena!
NESTES TERMOS, E NOS MELHORES DE DIREITO, QUE V/ EXA.S MUI DOUTAMENTE IRÃO SUPRIR, DEVE SER DADO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO, TUDO COM AS LEGAIS CONSEQUÊNCIAS, DESIGNADAMENTE, DEVE A
DECISÃO CONDENATÓRIA SER SUBSTITUÍDA POR OUTRA QUE:
I) MODIFIQUE A MATÉRIA DE FACTO PROVADA NOS TERMOS SUPRA PETICIONADOS;
II) ALTERE A QUALIFICAÇÃO JURÍDICA DOS FACTOS, CONDENANDO O ARGUIDO:
1) PELA PRÁTICA DE UM CRIME DE OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA GRAVE, AGRAVADA PELO RESULTADO MORTE, NUMA PENA PRÓXIMA DO SEU LIMITE MÍNIMO;
OU, EM ULTIMA RATIO,
2) PELA PRÁTICA DE UM CRIME DE HOMICÍDIO SIMPLES, NUMA PENA IGUALMENTE PRÓXIMA DO SEU LIMITE MÍNIMO.
III) POR MERA CAUTELA DE PATROCÍNIO, NA (EVENTUAL) IMPROCEDÊNCIA DO RECURSO, SEMPRE DEVERÁ A PENA CONCRETAMENTE APLICADA AO ARGUIDO SER SUBSTANCIALMENTE REDUZIDA PARA O MÍNIMO LEGALMENTE PREVISTO DE 12 (DOZE) ANOS DE PRISÃO, PORQUANTO ATENDENDO A QUE ESTE ACTUOU COM MERO DOLO EVENTUAL, A PENA CONCRETAMENTE APLICADA SE REVELA EXCESSIVA, INJUSTA E DESPROPORCIONAL, EXCEDENDO A MEDIDA DA CULPA. »
As assistentes responderam e concluíram:
“a) Discorda o arguido da resposta dada pelo Tribunal recorrido à matéria de facto não provada, nos pontos 7, 22 e 23 pugnando que deviam ter sido dados como não provados e o ponto 3 dos factos não provados, deveria ter sido provado:
b) 7- Como EE continuasse a insistir naquela pretensão e não acatasse as ordens para sair dali, o arguido, sem que nada o fizesse prever e num gesto repentino, empunhou um instrumento cortante, cujas caraterísticas não se lograram apurar e, com esse instrumento, desferiu um golpe no peito de EE, numa trajetória de frente para trás, ligeiramente de cima para baixo e da esquerda para a direita, atingindo e perfurando-lhe o tórax acima da aréola do mamilo esquerdo;
22- O arguido atuou sem aviso prévio, de forma traiçoeira e repentina, usando um instrumento que dissimulara e cujas capacidades letais e de impossibilidade de defesa para a vítima bem conhecia; 23- O arguido sabia que a discussão mantida com a vítima a respeito de uma transação de droga e para que a mesma saísse do local eram motivos irrisórios e insignificantes face à vida daquele e que jamais poderiam justificar a sua ação;
c) Defende o arguido que o Tribunal não apurou o motivo que levou o arguido à prática do crime de homicídio.
d) Entende que não ficou provado que o arguido tenha atuado por motivo fútil ou de forma insidiosa e sem que nada o fizesse prever.
e) Para tanto alega que a vítima por tentar comprar produto estupefacientes a “Fiado” e perante a recusa do arguido a vítima ter saído do carro e entrado em discussão e confronto físico, sendo este o motivo e que o mesmo não é fútil.
f) Com o devido respeito, recorrendo a regras da normalidade, vê-se a desproporção entre o valor vida e a discussão de uma transação de droga o que espelha uma especial censurabilidade e perversidade na exacta medida em que constitui "motivo claramente desproporcionado, inadequado face à génese do crime e ao modo de execução, que torna este incompreensível para a generalidade das pessoas, que não pode razoavelmente explicar (e muito menos justificar) o crime, revelando o facto, inteiramente desproporcionado, repudiado pelo homem médio, profunda insensibilidade e inconsideração pela vida humana, insensibilidade moral traduzida na brutal malvadez do agente".
Vejamos.
g) No caso vertente, resultou provado que houve uma discussão relativa a uma transação de produtos estupefacientes que origina a que o arguido, sem que nada o fizesse prever e num gesto repentino, atinja mortalmente EE com um instrumento cortante e que o arguido sabia que a discussão mantida com a vítima a respeito de uma transação de droga e para que a mesma saísse do local eram motivos irrisórios e insignificantes face à vida daquele e que jamais poderiam justificar a sua ação.
h) No quadro contextual descrito, analisado pelo cidadão médio, revela uma desproporcionalidade entre o motivo que despoleta o crime, verificando-se uma completa ausência de lógica na atuação do arguido.
i) Assim, temos por verificada uma atuação por motivo torpe, subsumível à al. e) do n.º 2 do art.º 132.º do C. Penal, suscetível de agravação da culpa, pois que é especialmente censurável que o arguido se tenha movido, naquelas circunstâncias concretas, pelos motivos descritos.
j) Já quanto aos factos constantes de 22, isto é o arguido atuou sem aviso prévio, de forma traiçoeira e repentina, usando um instrumento que dissimulara e cujas capacidades letais e de impossibilidade de defesa para a vítima bem conhecia;
k) Tal facto decorre da análise conjunta de toda a atuação do arguido e do depoimento da testemunha DD, que refere que EE não “levava nada” e que o arguido “quando dá o empurrão não tinha nada nas mãos”, o que recorrendo a regras de experiência comum, permite concluir por uma atuação repentina e traiçoeira, impossibilitando a própria defesa da vítima.
l) De facto, no presente caso apurou-se que o arguido, sem que nada o fizesse prever e num gesto repentino, empunhou um instrumento cortante, cujas caraterísticas não se lograram apurar e, com esse instrumento, desferiu um golpe no peito de EE, numa trajetória de frente para trás, ligeiramente de cima para baixo e da esquerda para a direita, atingindo e perfurando-lhe o tórax acima da aréola do mamilo esquerdo, o que provocou a sua morte.
m) Mais se provou que o arguido atuou sem aviso prévio, de forma traiçoeira e repentina, usando um instrumento que dissimulara e cujas capacidades letais e de impossibilidade de defesa para a vítima bem conhecia.
n) Assim, o arguido não faz qualquer “aviso” sobre o objeto de que vem munido, não o exibe em momento anterior perante ninguém e faz uso do mesmo quando tenta afastar EE do local, que, assim, fica necessariamente impedido de se defender deste instrumento, que lhe surge de repente, de forma traiçoeira, sendo atingido no tórax, o que provocou a sua morte.
o) Temos, como tal, por verificada uma atuação do arguido com utilização de meio insidioso, subsumível à al. i) do n.º 2 do art.º 132.º do C. Penal, suscetível de agravação da culpa, pois que é especialmente censurável e perverso que o arguido se tenha movido, naquelas circunstâncias concretas, com o uso de tal meio.
p) De facto, não há como não considerar especialmente censurável e perverso, o modo de atuação do arguido, ao atingir a vítima com um objeto cortante que trazia consigo, atingindo-a de forma traiçoeira, sem lhe permitir qualquer possibilidade de defesa.
q) Assim, a conduta do arguido preenche as qualificativas previstas nas als. e) e i) do n.º 2 do art.º 132.º do C. Penal, sendo a primeira considerada para qualificar o crime de homicídio, por mais grave, atento o modo de atuação do arguido e a segundo considerada na medida concreta da pena.
r) Aqui chegados, dúvidas não restam que também não existe no douto acórdão recorrido erro de qualificação Jurídica.
s) Alega o recorrente que não teve intenção de matar a vítima, pretendendo que seja alterada a qualificação para ofensas à integridade física grave, agravada pelo resultado morte.
t) Da análise dos factos provados relativos à conduta perpetrada na pessoa de EE temos que o arguido, sem que nada o fizesse prever e num gesto repentino, empunhou um instrumento cortante e, com esse instrumento, desferiu um golpe no peito de EE, causando lesões que foram causa direta e necessária da sua morte.
u) Também se apurou que o arguido, depois de ter ido a casa buscar uma espingarda pressão de ar e regressa ao local onde EE estava estendido no chão, gritou com o mesmo para se levantar e não se fingir de morto, tendo-lhe desferido um pontapé na cabeça.
v) Ora, se a zona do corpo de EE atingida pelo arguido nos permite concluir, analisando o próprio relatório de autópsia, que a mesma era idónea a provocar-lhe a morte, uma vez que aloja órgãos vitais e ao perfurar essa zona podia causar, como causou, lesões suscetíveis de determinar a morte daquele, o facto de o arguido ter insistido, em momento posterior, para EE se levantar e não se fingir de morto, recorrendo a regras de experiência comum, leva-nos a concluir que o arguido apenas previu a possibilidade de lhe tirar a vida e que se conformou com esse resultado, bem sabendo que tal conduta era proibida e punida por lei.
w) Quanto a essa previsibilidade e conformação do resultado, desde logo porque o arguido quis atingir com o objeto cortante a vítima na zona que atingiu, o que resulta do depoimento da testemunha DD e pela zona do corpo de EE atingida, que aloja órgão vitais, o arguido teria, pelo menos, que prever que ao atuar dessa forma lhe provocaria a morte, resultado com que se conformou com esse resultado, bem sabendo que tal conduta era proibida e punida por lei.
x) Quanto à medida da pena, como o Tribunal justificou e bem, as necessidades de prevenção geral são elevadas, sendo que os crimes contras as pessoas e contra o património assumem proporções alarmantes na nossa sociedade, face ao enorme incremento verificado nos últimos anos.
y) Quanto às necessidades de prevenção especial, apesar de o arguido não possuir antecedentes criminais, não interiorizou a ilicitude da sua conduta, uma vez que nunca a assumiu.
z) o arguido atuou de forma dolosa, em todos os crimes.
aa) o grau de ilicitude dos factos e da culpa, que é elevadíssimo, considerando o modo de atuação do arguido na sua globalidade.
bb) Os fins ou motivos que norteiam a atuação do arguido e que são transversais a toda a sua atuação, revelam uma personalidade impulsiva, sem autocontrole.
cc) Quanto ao crime de homicídio qualificado temos que considerar como agravante o meio insidioso, isto é, uma atuação sem aviso prévio, de forma traiçoeira e repentina, usando um instrumento que dissimulara e cujas capacidades letais e de impossibilidade de defesa para a vítima bem conhecia.
dd) O comportamento posterior aos factos, manifestado na total ausência de interiorização do desvalor das suas condutas, uma vez que nunca assumiu os factos, fugindo do local, tentando ludibriar os elementos policiais com telefonemas e mantendo-se em fuga até ser detido.
ee) Também em julgamento não assumiu as condutas criminosas, não apresentando sequer qualquer versão quanto ao homicídio, apenas o negando.
ff) Face ao exposto o tribunal a quo não violou qualquer disposição legal, aplicando corretamente o direito aos factos corretamente julgados.”
O Ministério Público respondeu ao recurso:
“1.O que resultou provado não foi a existência de um “confronto físico entre a vítima e o arguido”, pelo menos com esta singeleza, ou com esta abrangência. Ou sequer que tenha sido a vítima a iniciar tal “confronto físico”.
2. O que se provou foi muito mais específico: arguido e vítima, em momento prévio à “facada” desferiram-se, mutuamente um empurrão.
3. Tal, salvo melhor opinião, é de todo irrelevante para a solução de direito, nomeadamente para a integração da conduta do arguido nas alíneas e) e i) do nº 2 do art. 132º do Código Penal.
4. Resultou provado que é uma discussão relativa a uma transação de produtos estupefacientes que origina a que o arguido, sem que nada o fizesse prever e num gesto repentino, atinja mortalmente EE com um instrumento cortante e que o arguido sabia que a discussão mantida com a vítima a respeito de uma transação de droga e para que a mesma saísse do local eram motivos irrisórios e insignificantes face à vida daquele e que jamais poderiam justificar a sua ação.
5. A troca mútua de um único empurrão (recorde-se que é o único acto que o arguido admitiu) é insusceptível de descaracterizar o contexto e a motivação em que surge a insidiosa agressão com o instrumento de natureza cortante.
6. A alegada insuficiência da matéria de facto – repete-se, apenas que a vítima e o arguido se desferiram mutuamente um único empurrão – é irrelevante para a solução de direito.
7. Não é susceptível de demonstrar que o golpe desferido não tenha sido sem aviso prévio, de forma traiçoeira e repentina, o facto de ter ocorrido uma discussão e mesmo um mútuo empurrão.
8. Há uma gritante desproporcionalidade entre o motivo que despoleta a acção e a execução do crime ocorre sem que nada o faça prever – sem qualquer anúncio e sem a exibição de qualquer instrumento, ou sequer que a vítima se tenha apercebido do início da agressão.
9. Não logra o arguido demonstrar, por um lado que a inserção do texto por que pugna no ponto 7 da matéria de facto seja fundamental para a solução de direito, e por outro lado, que a prova produzida imponha sinal contrário ao dos factos julgados provados nos pontos 22 e 23.
10. O que resultou da prova (que se entende irrelevante para a solução de direito) foi que o arguido e a vítima se desferiram, mutuamente, um único empurrão.
11. Resulta que o golpe do arguido visou uma zona que alberga zonas vitais que, atingidas, podem causar a morte, como veio a acontecer
12. O arguido teria, pelo menos, que prever que ao atuar dessa forma lhe provocaria a morte, resultado com que se conformou, caso contrário teria atuado de outra forma, possibilidade que dependia da sua vontade.
13. Resulta provado que o arguido agiu com dolo eventual.
14. Qualquer tipo de ilícito doloso, exige sempre ser integrado por uma “decisão”, não necessariamente por uma “intenção”, isto é, no que ao dolo eventual concerne, que o agente preveja o resultado da sua decisão de actuar daquela forma, e que se conforme com tal resultado.
15. A zona atingida (que é do conhecimento geral que alberga órgãos vitais essenciais à vida) com um objecto de natureza cortante, que também é do conhecimento geral que é susceptível de causar graves lesões na zona atingida, leva à conclusão necessária que o arguido ao actuar da forma como actuou previu que lhe poderia provocar a morte.
16. No que concerne ao motivo torpe ou fútil o Tribunal teve em atenção que o contacto existente entre a vítima e o arguido (empurrão e “facada”, de seguida) foi provocado por uma transacção ilícita e uma discussão para que aquele saísse do local.
17. O Tribunal considerou que existe uma desproporcionalidade entre o motivo que despoleta o crime, verificando-se uma completa ausência de lógica na actuação do arguido
18. No contexto retratado na matéria de facto, e tendo em atenção a profunda censurabilidade dirigida pela comunidade ao tráfico de estupefacientes, potenciador de inúmeros ilícitos contra as pessoas e contra o património, uma discussão relacionada com a cedência de estupefacientes como geradora de um crime de um crime de homicídio, é uma motivação repugnante e baixa, logo, susceptível de integrar a qualificativa, “motivo torpe”.
19. O arguido, sem que nada o fizesse prever, perante uma vítima que se encontrava desarmada, acompanhada, é certo de outra pessoa, mas que permaneceu no interior do veículo automóvel em que se fizeram transportar ao local, e sem que fosse aparente o instrumento cortante usado (permitindo à vitima, de alguma forma a fuga, defender-se ou encetar a fuga), desferiu um golpe numa zona do corpo que, quando atingida, desde logo torna difícil qualquer recção defensiva perante um segundo, eventual, golpe.
20. Visando a zona atingida, a intenção não pode ser outra que não “colocar fora de combate” o visado, o que, salvo o devido respeito, não pode deixar de se considerar como uma agressão traiçoeira e covarde.
21. A conduta do arguido é integradora do crime de homicídio, com dolo eventual, e qualificado pelo motivo torpe e pela forma insidiosa de actuação.
22. Se uma das qualificativas verificadas é considerada na agravação do crime, a outra qualificativa, necessariamente há-de ser levada em linha de conta na medida da pena, elevando-a, necessariamente acima do mínimo.
23. São elevadas as necessidades de prevenção geral, tendo em conta o mais elevado valor comunitariamente considerado, violado pelo arguido, relacionado, ainda para mais, ainda que de forma acessória, com o flagelo do tráfico de estupefacientes, que degrada e desumaniza, e que é visto como um factor potenciador de crimes, nomeadamente contra o património.
24. O arguido assumiu uma postura de completa negação deste crime, não procurando sequer fornecer qualquer explicação para o sucedido, e tentando ludibriar as autoridades policiais a respeito da sua localização, após se ter colocado em fuga – desligando-se, assim, da “sorte” da vítima.
25. O Tribunal ponderou a pena de forma justa, equilibrada e proporcional à culpa, às necessidades de prevenção especial e às necessidades de prevenção geral, respeitando os critérios previstos nos arts. 40º, 70º e 71º do Código Penal.
26. Tendo em atenção que se entende que as questões levantadas deverão ser julgadas improcedentes, e a ponderação do “ilícito global” e da personalidade do agente vertida nos factos, nos parece equilibrada, não nos merece qualquer censura a pena única de 17 anos e 2 meses de prisão “
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Neste Tribunal da Relação do Porto, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer onde acolheu a posição do M.P. a quo na resposta ao recurso, pugnando igualmente pela respetiva improcedência.
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Foi cumprido o disposto no art. 417º, n º2º do CPP.
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É do seguinte teor o elenco dos factos provados e não provados e respetiva motivação constantes da decisão recorrida (transcrição):
« Factos provados
Com relevo para a decisão da causa, resultaram provados os seguintes factos:
1- No dia 15 de novembro de 2020, cerca das 20.30 horas, a solicitação do seu amigo EE, DD contactou com HH e pediu-lhe que indagasse junto do arguido se o mesmo possuía produto estupefaciente, nomeadamente cocaína, que lhes pudesse vender;
2- Poucos minutos volvidos, depois de contactar telefonicamente com o arguido, HH transmitiu a DD que o arguido estava disponível para efetuar a referida transação e que, para o efeito, ele e EE deveriam dirigir-se até um pequeno largo na Rua … em …, Paredes, situado a cerca de 60 metros da residência do arguido, sita na Rua …, n.º .., …, Paredes, onde este os aguardaria;
3- Nessa sequência, cerca das 21.30 horas, EE e DD deslocaram-se no automóvel deste último, da marca Fiat, matrícula ..-..-FJ, conduzido pelo primeiro, até ao mencionado largo da Rua …, onde tinham à sua espera o arguido, conforme acordado;
4- EE estacionou a viatura no referido largo junto a uma viela em rampa que dá acesso à residência do arguido, abriu o vidro da porta do condutor e, dirigindo-se ao arguido, pediu-lhe para lhe dar “uma pedra!”, ao que este retorquiu “e o dinheiro?!”;
5- Por não ter dinheiro, EE solicitou ao arguido que lhe vendesse o estupefaciente “fiado”, que depois lhe pagava, pedido que o arguido recusou;
6- Na tentativa de convencer o arguido a entregar-lhe o estupefaciente, EE saiu do veículo e dirigiu-se àquele, logo se gerando uma discussão entre ambos, pois EE insistia em realizar a transação nos ditos moldes e o arguido, repetidamente, negava-se a tal, ao mesmo tempo que ordenava a EE para se ir embora do local;
7- Como EE continuasse a insistir naquela pretensão e não acatasse as ordens para sair dali, o arguido, sem que nada o fizesse prever e num gesto repentino, empunhou um instrumento cortante, cujas caraterísticas não se lograram apurar e, com esse instrumento, desferiu um golpe no peito de EE, numa trajetória de frente para trás, ligeiramente de cima para baixo e da esquerda para a direita, atingindo e perfurando-lhe o tórax acima da aréola do mamilo esquerdo;
8- De imediato, EE levou a mão ao peito, caminhou alguns metros e tombou, inconsciente, numa zona de terra, a poucos metros do veículo de DD;
9- Apercebendo-se do sucedido, DD, que ficara no interior do veículo, saiu deste e foi em direção a EE;
10- Logo após desferir o aludido golpe mortal, o arguido dirigiu-se à respetiva habitação, de onde regressou, instantes depois, acompanhado do irmão II e munido de uma espingarda de ar comprimido que, com o objetivo de obrigar DD a abandonar o local, empunhou e disparou por várias vezes;
11- Simultaneamente, de forma intercalada com os disparos efetuados, o arguido ainda arremessou algumas pedras da calçada (paralelepípedos em granito) na direção do veículo de DD, tendo algumas delas acertado e amolgado a porta do condutor e o tejadilho do Fiat;
12- Com DD escondido atrás de um outro veículo automóvel que ali se encontrava aparcado, o arguido dirigiu-se até junto de EE, que continuava no solo sem esboçar qualquer reação e, apontando-lhe a espingarda, gritou com o mesmo para se levantar e para não se fingir de morto, tendo-lhe desferido um pontapé na cabeça;
13- De seguida, o arguido desferiu uma pancada na cabeça de DD com a coronha da espingarda que empunhava;
14- Alertados pelos gritos, GG e JJ, moradores nas proximidades, acorreram ao local, tendo a primeira chamando as autoridades e os bombeiros ao local;
15- Posto isto, o arguido dirigiu-se à sua residência e daí colocou-se em fuga para parte incerta;
16- Cerca das 23.00 horas, o arguido dirigiu-se até à residência de KK, na Rua …, em …, a quem relatou a sua versão do sucedido e pediu um casaco, fugindo na direção do monte e levando consigo o telemóvel com o número ………;
17- Durante o período de tempo em que esteve fugido o arguido contactou com as autoridades policiais em duas ocasiões distintas, fazendo crer que se pretendia entregar, o que não se verificou, tendo inclusive se colocado em fuga quando, no dia 16.11.2020, foi detetado pelas autoridades policiais e lhe foi dada ordem de paragem;
18- Não obstante as diligências encetadas pelas autoridades policiais visando localizar e deter o arguido, tal somente se concretizou no dia 17.11.2020, pelas 10.40 horas, no interior da respetiva residência;
19- Como consequência direta e necessária do golpe que lhe foi desferido pelo arguido com o objeto cortante, EE veio a sofrer:
- Ao nível do habito externo do tórax, solução de continuidade (ferida) com 2 por 0,8 cm de maiores dimensões, localizada no hemitórax esquerdo, superiormente ao mamilo, a 3 cm deste, estando a 20 cm a cerca de 45º do acrómio, a 17 cm a cerca de 45º do manúbrio esternal e a 12 cm da linha média a cerca de 180º; - Ao nível do hábito interno do tórax: nas paredes, infiltração sanguínea do tecido celular subcutâneo, grande peitoral e do músculo intercostal do 4º espaço intercostal esquerdo, subjacentes à lesão traumática descrita superiormente ao mamilo, e infiltração sanguínea dos tecidos moles subjacentes às restantes lesões traumáticas descritas; no pericárdio e cavidade pericárdica, laceração com infiltração sanguínea adjacente nos folhetos parietal e visceral anteriores do pericárdio, em concordância com a lesão traumática descrita, superiormente ao mamilo esquerdo, com vestígios de sangue e cerca de 200 gramas de coágulos (hemopericárdio); no coração, solução de continuidade (ferida), transversal, com aproximadamente 2 cm, no ápice cardíaco, atingindo o septo e estendendo-se para a face anterior do ventrículo esquerdo; a solução de continuidade acima descrita prolonga-se para o endocárdio das áreas atingidas, não atingindo a parede posterior, havendo infiltração sanguínea associada;
20- Tais lesões foram causa direta e necessária de choque hipovolémico e da subsequente morte de EE;
21- Ao desferir um golpe no tórax de EE com o instrumento cortante, cujas caraterísticas não se lograram apurar, o arguido previu a possibilidade de tirar a vida a EE, uma vez que a zona do corpo atingida aloja órgãos vitais e que usando o referido instrumento para a perfurar, podia causar, como causou, lesões suscetíveis de determinar a morte daquele, conformando-se com esse resultado, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei;
22- O arguido atuou sem aviso prévio, de forma traiçoeira e repentina, usando um instrumento que dissimulara e cujas capacidades letais e de impossibilidade de defesa para a vítima bem conhecia;
23- O arguido sabia que a discussão mantida com a vítima a respeito de uma transação de droga e para que a mesma saísse do local eram motivos irrisórios e insignificantes face à vida daquele e que jamais poderiam justificar a sua ação;
24- Ao munir-se de uma espingarda de ar comprimido e com ela efetuar disparos, o arguido agiu com o propósito conseguido de criar medo em DD, fazendo-o crer que ia ser ofendido no seu corpo, assim como de o limitar na sua liberdade de ação e de determinação, por forma a que este cumprisse a ordem que lhe tinha sido dada para sair do local dos factos, o que este não fez;
25- Ao atingir e amolgar o veículo de DD, o arguido sabia perfeitamente que tal veículo não lhe pertencia, não se coibindo de o danificar pelo modo descrito, agindo sem autorização e contra a vontade daquele;
26- O arguido conhecia bem as características do objeto que usou para golpear o ofendido, tendo-o detido e usado sem razão ou justificação;
27- Como causa direta e necessária da agressão sofrida (coronhada), DD sofreu dores, assim como lesões cuja extensão não foi possível determinar em termos médico-legais, tendo o arguido atingido DD com o propósito conseguido de o maltratar fisicamente, bem sabendo que da mesma resultariam, como resultaram, pelo menos, dores para aquele;
28- Nas descritas condutas 10., 11. e 13., o arguido agiu deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que essas condutas eram proibidas e punidas por lei;
29- O processo de crescimento do arguido decorreu junto do agregado de origem, composto pelos progenitores e sete descendentes. A dinâmica familiar foi marcada pela problemática etílica do progenitor, que, quando alcoolizado, se tornava agressivo com os elementos do agregado. O progenitor era marceneiro e a progenitora doméstica, cabendo a esta o cuidado e educação dos descendentes;
30- O arguido manteve-se sempre integrado no agregado familiar de origem, tendo, entretanto, os seus pais já falecido;
31- O arguido não revelou interesse pela formação escolar, que abandonou sem concluir o 2.º ciclo, tendo iniciado atividade laboral de imediato, primeiro com o pai e depois na construção civil. No exercício da sua atividade profissional trabalhou em vários países europeus, obteve carta de manobrador de gruas, função que considera gratificante e bem remunerada;
32- O arguido iniciou o consumo de estupefacientes durante o período em que cumpriu o serviço militar, tendo evoluído para o consumo de substâncias de maior poder aditivo na sequência da rutura de uma relação afetiva;
33- Nunca efetuou acompanhamento clinico especializado, mas realizou algumas tentativas de desintoxicação em ambiente familiar, sem que tenha obtido sucesso;
34- A data dos factos, o arguido vivia em Paredes com um seu irmão, II e o agregado constituído deste, na residência que foi dos progenitores;
35- A nível laboral, o arguido encontrava-se a trabalhar na Córsega, como manobrador de gruas, auferindo um salário médio de € 4.000,00/mês;
36- Na sequência de um problema de saúde regressou a Portugal em agosto do ano transato, também para gozar férias e não regressou aquele país, permanecendo na cidade de Paredes para tratamento;
37- No meio residencial de origem o arguido é conhecido e projeta uma imagem negativa, associada à ausência de hábitos de trabalho e frequência de locais e pares conotados com o consumo e tráfico de estupefacientes;
38- O arguido deu entrada no EP… a 18.11.2020 na situação de preventivo à ordem do presente processo. Em ambiente penitenciário o arguido tem apresentado uma postura de respeito face ao normativo institucional e adaptada no relacionamento com os funcionários e os pares;
39- Atualmente está integrado no programa de substituição opiácea com cloridrato de metadona, com supervisão dos serviços clínicos do estabelecimento prisional, numa tentativa de debelar a sua problemática aditiva, que atualmente reconhece ter impacto negativo no seu percurso vivencial;
40- O arguido manifesta dificuldade em projetar o futuro, pretendendo, quando em liberdade, voltar a emigrar;
41- Em meio prisional recebe visitas ocasionais dos irmãos, sendo estes que suportam as suas despesas;
42- Ao arguido não lhe são conhecidos antecedentes criminais.
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Factos não provados
Com pertinência para a decisão da causa não resultaram provados quaisquer outros factos, nomeadamente que:
1- O objeto que o arguido empunhou e com o qual desferiu um golpe no peito de EE fosse uma navalha de ponta e mola, que acionou o mecanismo automático da mesma, fazendo assim sair do respetivo cabo, de cor preta, uma lâmina monocortante com um comprimento superior a 10 centímetros, com bordo interno anguloso e externo rombo;
2- O arguido disparou a espingarda de ar comprimido com o objetivo de obrigar EE a abandonar o local;
3- O arguido disparou na direção do DD, ao mesmo tempo que vociferava “ou ides embora ou vou matar os dois, é só ladrões!”;
4- O arguido arremessou algumas pedras na direção de DD;
5- Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 12 dos factos provados, o arguido tenha apontado a espingarda à cabeça de EE e dito “ele merecia é que lhe desse um tiro na cabeça”;
6- DD empurrou o arguido para o impedir de dar um pontapé em EE;
7- O arguido tenha repetido a conduta descrita em 12. dos factos provados mais que uma vez;
8- O arguido agiu com o propósito de tirar a vida a EE, o que quis;
9- O arguido previu, como consequência necessária da sua conduta, que viesse a causar a morte a EE;
10- O arguido sabia que não podia deter, possuir e usar o objeto que usou para golpear EE.
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Convicção do tribunal
O tribunal formou a sua convicção com base na prova pericial e documental junta aos autos, nomeadamente (pericial) relatório de exame pericial de fls. 243 e segs., relatório de exame pericial de biologia de fls. 248 a 250, relatório de exame pericial de genética e biologia forense de fls. 253 e segs., relatório de autópsia médico-legal de fls. 269 e segs. e relatório de Anatomia Patológica Forense de fls. 275, (documental) auto de inspeção judiciária de fls. 14 a 46, verificação de óbito de fls. 52/3, fichas de identificação civil de fls. 55 e 57, auto de apreensão de fls. 71, auto de diligência de fls. 81, auto de busca e apreensão de fls. 84 e segs., exame a telemóvel de fls. 155, auto de leitura de disco de DVD de fls. 172 a 200, documento de fls. 292 a 294, certificado de registo criminal de fls. 295 e relatório social de fls. 369 e segs., conjugada com as declarações do arguido e depoimentos das testemunhas prestados em audiência de julgamento, tudo analisado de forma crítica e em conjugação com regras de experiência comum e as mais elementares regras de prova previstas no nosso ordenamento jurídico.
Assim, para formar a sua convicção, o Tribunal considerou desde logo as declarações do arguido na parte em que confirmou que, no dia 15.11.2020, cerca das 20,30 horas, foi contactado telefonicamente por um “colega”, para marcar um encontro, em que compareceram, passados alguns minutos, a cerca de 100 metros de sua casa, num Fiat …, dois indivíduos, tendo entrado em confronto físico com um deles, com empurrões mútuos que levaram à queda desse indivíduo ao chão onde permaneceu. O arguido admite ainda ter ido buscar a casa uma espingarda pressão de ar, chamado o irmão II, se dirigido ao local, admitindo ter feito pelo menos um disparo com a “pressão de ar” e atirado duas pedras em direção ao carro, tendo uma delas se “esmigalhado” e saltado para o carro. Também admitiu ter fugido do local e se ter dirigido à residência de KK, pedir um casaco, fugido em direção ao monte e levado consigo o telemóvel.
No mais, o arguido negou os factos, nomeadamente que o encontro não visava qualquer transação de produto estupefaciente, apesar de ter na sua posse “um pacote de branca” e “uma barra de castanha”, não ter na sua posse qualquer “navalha” e atingido o corpo de DD com qualquer objeto.
Nesta parte as declarações do arguido não foram consideradas, por contrárias aos demais elementos probatórios, nomeadamente ao depoimento da testemunha DD, única testemunha presencial no primeiro momento em que se verifica o confronto físico entre o arguido e a vítima EE, conforme admitido pelo próprio arguido, que confirma a sua presença no local.
Essencial foi, por isso, o seu depoimento, que, de forma bastante precisa, descreveu os factos tal como estes se provaram.
De facto, a testemunha DD que referiu conhecer quer a vítima quer o arguido, descreveu toda a ocorrência, desde o telefonema para o HH agendar um encontro com o arguido para aquisição de produto estupefaciente até ao local combinado, onde ocorreram os factos.
A testemunha confirma que EE pediu uma pedra ao arguido, que não tinha dinheiro, tendo dito que pagava depois, o que originou uma troca de palavras, levando EE a sair do carro, para continuar a discutir com o arguido.
De acordo com a testemunha e contrariando a versão do arguido, este conhecia EE, até porque a discussão versava também sobre a falta de pagamento de uma compra de produto estupefaciente anterior.
A testemunha DD confirma ainda que a troca de palavras originou confronto físico entre o arguido e EE, com “um empurrão para cada e uma facada”.
Neste ponto, a testemunha também contraria a versão do arguido, referindo que ninguém bateu contra a porta do veículo.
A testemunha DD descreve de forma perentória, sem qualquer hesitação, a forma como o arguido atingiu EE com um objeto que tinha uma lamina, referindo que viu o “gesto”, descrevendo-o e simulando-o em julgamento, referindo “vê a mão a dirigir-se em direção ao peito do EE”, “mão fechada a segurar algum objeto” e “mão na lateral do peito do EE”.
Apenas não logrou descreveu, com certeza absoluta, as caraterísticas do objeto, o que é normal, uma vez que era de noite e o golpe foi repentino e o arguido não tinha o objeto cortante na mão no início da discussão, tendo surpreendo a vítima EE de forma repentina após os empurrões mútuos. No entanto, refere que “dá para ver que tem lamina”, ainda que não se aperceba se “é grande ou pequena”, tendo visto a lâmina no momento em que faz o gesto para o peito. A testemunha, na descrição que faz em julgamento, coloca-se dentro do veículo, mas debruçado, o que nos leva a concluir, atenta a posição descrita, que tinha perfeita visibilidade para ver a lâmina e o movimento a atingir o tórax da vítima EE. Aliás, neste ponto a testemunha foi questionada pelos diversos intervenientes processuais sobre o objeto e sobre o gesto do arguido, mantendo sempre a mesma versão, referindo não ter visto o cabo ou detetar o tipo de faca, uma vez que, conforme referimos, o golpe foi repentino, dado que quando deu o empurrão “não tinha nada nas mãos”.
A credibilidade do depoimento da testemunha é ainda comprovada pelas fotografias juntas a fls. 23 a 25, onde se vê o local do corpo em que foi atingido EE, em conformidade com a descrição feita pela testemunha DD e o relatório de autópsia, em que se identifica o local em que foi atingida a vítima, as lesões provocadas, compatíveis com objeto cortante.
Aliás, na descrição dos factos feita pelo arguido, não é dada qualquer justificação para o ocorrido, isto é, a morte de EE, sendo certo que o mesmo refere apenas um empurrão, que bateu contra a porta e caiu no chão, não apresentando qualquer versão que sustente as lesões constantes do relatório de autópsia, que levaram à morte de EE.
A testemunha DD confirmou ainda que EE levou a mão ao peito, recuou e caiu, a poucos metros do veículo, tendo saído do veículo e ido em sua direção, chamou-o por três vezes e que o mesmo não respondia e tinha a camisola e as mãos com sangue.
Mais confirmou que o arguido fugiu do local, aparecendo novamente, com o irmão II e uma espingarda pressão de ar, que disparou em cima por três vezes, atirou paralelos que atingiram o seu veículo, amolgando a porta e o tejadilho.
A testemunha confirmou ainda que o arguido se dirigiu até junto de EE, que se mantinha no chão, no mesmo local onde tinha caído, sem se mexer e que lhe apontou a espingarda à cabeça e disse “não te faças de morto”. Nesse momento, também se encontrava no local o “JJ”, a “GG”, a mãe da “GG” e o irmão do arguido.
Tal presença no local é confirmada pelas testemunhas GG, JJ e II, inquiridas em audiência de julgamento.
Por fim, a testemunha DD referiu que o arguido, de segunda vez, lhe disse que “ia ter o troco” e deu-lhe uma pancada na nuca, junto à orelha, da parte de trás com a arma.
Quanto às testemunhas atrás referidas e que surgem no local num segundo momento, importa considerar dos seus depoimentos que a testemunha GG referiu ter ouvido berros, reconhecendo a voz do arguido, seu primo e do DD, não tendo nesse momento saído de casa. Mais tarde deslocou-se ao local e vê a vítima estendida no chão, a sangrar na zona do peito, tendo chamado os bombeiros e a GNR. Após, apareceu o arguido a dizer, à mãe da testemunha, “ele está-se a fingir de morto”, dando-lhe um pontapé na cabeça.
A testemunha JJ, que também ouviu “berros”, disse ter visto o arguido em cima a efetuar disparos, quando saiu de casa e, já no local, ter visto o arguido a dirigir-se “ao rapaz” que estava no chão e dizer “não te faças de morto” e dar-lhe um pontapé na cabeça.
A testemunha II, irmão do arguido, referiu que quando chegou o “senhor” estava no chão”, tendo tirado o carro do DD do local, a pedido deste.
Assim, com base em tais elementos probatórios e dando credibilidade ao depoimento da testemunha DD quanto à primeira ocorrência, entre o arguido e EE e ao depoimento deste e das testemunhas GG e JJ, quanto ao segundo momento em que o arguido regressa ao local, o tribunal deu por provados os factos constantes de 1 a 14 dos factos provados, neles se considerando também as declarações do arguido na parte em que os admitiu.
Já os factos não provados relativos à ocorrência, constantes de 1 a 7 dos factos não provados, resultaram da ausência ou insuficiência de prova que sobre os mesmos incidiu ou por contrários aos elementos probatórios supra referidos.
Assim, conforme supra explanamos, apesar de a testemunha DD falar, num primeiro momento, numa “facada” e, num segundo momento, ter a perceção que o arguido tem uma faca na mão, o mesmo, conforme referiu, não logrou ver o cabo ou o cumprimento da lamina, apenas vê a lamina, pelo que, não tendo tal objeto sido apreendido, não foi possível apurar as suas caraterísticas, o tribunal considerou não provado tratar-se de uma navalha de ponta e mola e as caraterísticas, nomeadamente comprimento, descritas na acusação e provado tratar-se de um objeto cortante, de caraterísticas não concretamente apuradas.
Como EE tinha sido atingido mortalmente pelo arguido e estava caído no chão, sem reação, o tribunal deu por não provado que o arguido tenha efetuado os disparos com o objetivo de obrigar EE a abandonar o local.
Nenhuma testemunha confirma que o arguido vociferou “ou ides embora ou vou matar os dois, é só ladrões!”, quando efetuou os disparos, o mesmo acontecendo com as pedras arremessadas em direção de DD, razão pela qual se deram por não provados tais factos.
A própria testemunha DD apenas confirmou que o arguido apontou a arma de “chumbos” a EE, não se referindo à cabeça e que não ouviu dizer que “ele merecia é que lhe desse um tiro na cabeça”, motivo pelo qual tal facto foi dado por não provado.
A testemunha DD ou sequer o arguido ou as testemunhas GG, JJ, II, referiram que o primeiro empurrou o arguido para o impedir de dar um pontapé em EE, pelo que tal facto também foi dado como não provado.
Por fim, a testemunha DD apenas referiu que o arguido disse “não te faças de morto” uma vez, pelo que o tribunal deu por não provado que o arguido tenha repetido a conduta descrita em 12. dos factos provados mais que uma vez.
Quanto à fuga do arguido e ter-se dirigido à residência de KK, são factos admitidos pelo próprio arguido e confirmados pela testemunha KK, que disse que o arguido lhe contou a sua versão dos factos. A testemunha FF, inspetor da PJ, confirmou os contactos tidos com o arguido quando este estava em fuga, do arguido com a GNR de … e a respetiva detenção, em função do auto elaborado a fls. 81/2, considerando, nesses termos, provados os factos constantes de 15 a 18.
Com base no relatório de autópsia de fls. 269 e segs., o tribunal deu por provadas as lesões sofridas por EE, que foram causa direta e necessária da sua morte, constantes de 19 e 20 dos factos provados.
Quanto à intenção em praticar os factos, conhecimento pelo arguido da proibição da sua prática, resulta desde logo de regras de experiência comum face às concretas condutas do arguido que se provaram.
No entanto, neste ponto temos situações diversas que se apuraram, pelo que importa analisar a convicção do tribunal de forma individualizada.
Importa desde logo referir que, a não ser por confissão, o que não aconteceu no vertente caso, a formação da vontade interna do agente tem de se extrair dos seus comportamentos exteriores que resultaram provados, isto é, dos “factos objetivos” dados por provados, conjugando-os com regras da normalidade e em função da valoração do “homem comum”.
Da análise dos factos provados relativos à conduta perpetrada na pessoa de EE temos que o arguido, sem que nada o fizesse prever e num gesto repentino, empunhou um instrumento cortante, cujas caraterísticas não se lograram apurar e, com esse instrumento, desferiu um golpe no peito de EE, numa trajetória de frente para trás, ligeiramente de cima para baixo e da esquerda para a direita, atingindo e perfurando-lhe o tórax acima da aréola do mamilo esquerdo.
Como consequência desse golpe, EE sofreu lesões, que foram causa direta e necessária da sua morte.
Também se apurou que o arguido, depois de ter ido a casa buscar uma espingarda pressão de ar e regressa ao local onde EE estava estendido no chão, gritou com o mesmo para se levantar e não se fingir de morto, tendo-lhe desferido um pontapé na cabeça.
Ora, se a zona do corpo de EE atingida pelo arguido nos permite concluir, analisando o próprio relatório de autópsia, que a mesma era idónea a provocar-lhe a morte, uma vez que aloja órgãos vitais e ao perfurar essa zona podia causar, como causou, lesões suscetíveis de determinar a morte daquele, o facto de o arguido ter insistido, em momento posterior, para EE se levantar e não se fingir de morto, recorrendo a regras de experiência comum, leva-nos a concluir que o arguido apenas previu a possibilidade de lhe tirar a vida e que se conformou com esse resultado, bem sabendo que tal conduta era proibida e punida por lei.
Quanto a essa previsibilidade e conformação do resultado, desde logo porque o arguido quis atingir com o objeto cortante a vítima na zona que atingiu, o que resulta do depoimento da testemunha DD, nos termos sobreditos e pela zona do corpo de EE atingida, que aloja órgão vitais, o arguido teria, pelo menos, que prever que ao atuar dessa forma lhe provocaria a morte, resultado com que se conformou, caso contrário teria atuado de outra forma, possibilidade que dependia da sua vontade.
No entanto, o mesmo já não acontece quanto ao propósito inicial de lhe tirar a vida, o que quis, quando o arguido atinge EE com o objeto cortante, ou sequer que previu, como consequência necessária da sua conduta, que viesse a causar a morte a EE.
De facto, a existência de uma discussão inicial em que o arguido, de forma repentina, atinge a vítima com um objeto cortante, conjugada com o facto de ter abandonado o local e, quando regressado, se ter dirigido à vítima e dito “não te faças de morto”, não nos permite concluir que o propósito inicial do arguido seria matar EE ou previsse, como consequência necessária da sua conduta, a morte deste.
Assim, analisando todo o contexto em que decorreu a conduta do arguido, relativa a EE, conclui-se da forma exposta, dando o tribunal como provado o facto constante de 21 dos factos provados e não provados os factos constantes de 8 e 9 dessa factualidade.
Já quanto aos factos constantes de 22 e 23, decorrem mais uma vez da análise conjunta de toda a atuação do arguido e do depoimento da testemunha DD, que refere que EE não “levava nada” e que o arguido “quando dá o empurrão não tinha nada nas mãos”, o que recorrendo a regras de experiência comum, nos permite concluir por uma atuação repentina e traiçoeira, impossibilitando a própria defesa da vítima.
Recorrendo a regras da normalidade, vê-se a desproporção entre o valor vida e a discussão de uma transação, com agravante de que tal transação assentava em produtos ilícitos – droga -.
Já quanto à restante conduta perpetrada o arguido, analisados os factos que objetivamente se provaram, nomeadamente o concreto modo de atuação e meios utilizados em cada uma das situações, é forçoso concluir, recorrendo a regras de experiência comum, quanto à intenção do arguido em praticar os factos e conhecimento da sua proibição, que o arguido atuou com intuito de conseguido de criar medo em DD, fazendo-o crer que ia ser ofendido no seu corpo, assim como de o limitar na sua liberdade de ação e de determinação, por forma a que este cumprisse a ordem que lhe tinha sido dada para sair do local dos factos, o que resulta do próprio meio utilizado, uma espingarda e disparos efetuados, o mesmo acontecendo ao amolgar o veículo de DD, em que usou paralelos, aptos para o efeito e ao agredir DD, com a coronha da espingarda, tendo, assim, agido deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que essas condutas proibidas e punidas por lei.
Também resultou provado que o arguido conhecia bem as características do objeto que usou para golpear o ofendido, tendo-o detido e usado sem razão ou justificação, o que resulta do facto de o mesmo o ter na sua posse naquele momento, sendo que o arguido não apresenta justificação para a sua posse, que aliás nega.
No entanto, conforme referimos, não foi possível apurar as caraterísticas do objeto cortante, motivo pelo qual o tribunal deu por não provado que sabia que não podia deter, usar ou possuir esse instrumento.
Assim, resultaram provados os factos constantes de 24 a 28 da factualidade provada e não provado o facto constante de 10 dos não provados.
Quanto às condições pessoais, sociais e económicas do arguido, o tribunal teve em consideração o relatório social junto a fls. 369 e segs. dos autos e considerou o certificado de registo criminal de fls. 295, quanto à ausência de antecedentes criminais do arguido.»
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II. Apreciando e decidindo: Questões a decidir no recurso
É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objeto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso[1].
As questões que o recorrente coloca à apreciação deste Tribunal de recurso são as seguintes:
1.Entende o Recorrente que o Tribunal a quo pecou por ter descurado o apuramento do (real) motivo que terá determinado a prática do crime, assente numa apreciação e valoração erradas da prova, considerando, assim, indevidamente como provados os pontos 7, 22 e 23 da matéria de facto provada.
2. Conjugando a logicidade do percurso de formação da convicção, tomado este na globalidade da ação infratora, tendo por horizonte a plausibilidade da factualidade sequencial, de molde a não deixar dúvidas razoáveis sobre o tipo de crime em causa, com a análise da prova documental e testemunhal, não ficou provado que o arguido tenha atuado por um motivo fútil ou de forma insidiosa, id est, sem que nada o fizesse prever.
3. O Tribunal a quo fez constar da motivação que o arguido não quis, nem previu, como consequência necessária da sua conduta, a morte da malograda vítima (vide ponto 9 e 10 dos factos não provados), pelo que, afastada a intenção de matar, é bem mais consonante com a prática da vida e com a dinâmica dos factos tal como vêm provados, com a existência de confronto físico, e ainda pelo facto de ter sido desferido um só golpe, a qualificação do tipo de crime de acordo com a intenção de ofender, e consequentemente o enquadramento jurídico daqueles no dispositivo legal que a confina à ofensa da integridade física (artigo 144.° e 147.º do Código Penal).
4. Ou, quando muito, e se assim não se entender, qualificar a prática do agente como integrativa do homicídio simples (artigo 131.° do Código Penal).
5.Sucede que, de facto, o arguido não quis, nem previu, o resultado da sua conduta, isto é, o arguido não teve qualquer intenção de matar a vítima EE, pelo que resulta inverificada a especial censurabilidade ou perversidade da conduta da agente.
6. A pena em concreto aplicada ao arguido, pela prática do crime de homicídio qualificado mostra-se excessiva, demasiado severa e desproporcionada, porquanto 16 (dezasseis) anos e 6 (seis) meses de prisão, em nada contribuem para a ressocialização do arguido em sociedade, e excede a medida da culpa, atendendo que este actuou com mero dolo eventual, pelo que, na improcedência do recurso, sempre deverá a pena concretamente aplicada ao arguido ser substancialmente reduzida para o mínimo legalmente previsto de 12 (doze) anos de prisão.
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Vejamos.
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Da análise da motivação e conclusões do recurso indicia-se que o recorrente pretende a reapreciação da prova produzida em julgamento e considera que alguns factos terão sido considerados assentes com base em erro de julgamento e errada valoração da prova.
O art. 412º nº3 do CPP dispõe: «Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto. O recorrente deve especificar: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) As provas que devem ser renovadas.»
Acrescenta-se no seu n.º 4 que «Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do nº2 do art. 364, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.»
Os tribunais da Relação conhecem de facto e de direito nos termos do disposto no art. 428 do CPP.
O modelo de recurso em processo penal português não é o da repetição do julgamento, mas da sindicância do juízo decisório da matéria de facto efetuado pela primeira instância, no sentido de verificar-se se houve ou não erro de julgamento na apreciação/valoração das provas.
A impugnação da matéria de facto há de traduzir-se, pois, na indicação dos pontos incorretamente julgados e na indicação das provas que impõem decisão diversa da recorrida, isto é, das razões da discordância que não corroboram o raciocínio lógico-analítico que formou a convicção do tribunal.
Ora, no caso concreto em análise o recorrente embora especifique os pontos concretos em que acha que o tribunal decidiu não indica as provas que, no seu entender, impõem decisão diversa ou que contrariem o senso comum e as regras da experiência.
Relativamente ao enquadramento da defesa do arguido na figura da impugnação ampla da matéria de facto não podemos de deixar de dar razão aos respondentes, já que o recorrente não respeitou com o rigor necessário as obrigações estabelecidas no nº 3, do art. 412º do Código de Processo Penal, a propósito das regras relativas ao instituto processual em causa, no que diz respeito ao ponto 7 dos factos provados.
Na verdade, verificamos que o recorrente se limitou a indicar isoladamente o facto 7 que deveria ser alterado, não transcrevendo nenhuma passagem gravada.
O arguido não indicou, de modo concreto e especificado, a relação entre aquele facto impugnado e a concreta prova (ou falta dela) que, na sua perspetiva, impunha a não comprovação do mesmo, nem mencionou, depois, as concretas passagens de depoimentos ou declarações que sustentam a prova/não prova dos factos postos em crise ou aquelas que consubstanciam a insuficiência do seu teor para a prova dos factos que nelas se basearam [cfr. alíneas a) e b) do nº 3, do art. 412º do Código de Processo Penal, e, ainda, o nº 4 deste mesmo artigo].
Contudo não deixou de invocar o testemunho em que se baseia, descrevendo o que ele disse, sustentando-se igualmente na motivação da própria decisão, afirmando que não teve respaldo na matéria de facto dada por provada.
Não podendo a análise desta questão ser considerada pelo prisma do erro do julgamento pode-se, todavia, analisar do prisma de um eventual vício do art. 410º, n º 2 do CPP.
Ora, da prova produzida em sede de audiência resulta inequívoco que o propósito subjacente à deslocação da vítima e da testemunha DD (DD1) se relacionou com uma pretensa transação de produto estupefaciente.
Transação esta que os indivíduos pretendiam realizar a crédito, isto é, “fiado”!
A vítima, perante a recusa em vender fiado por parte do arguido, tentou convencer o arguido do contrário em moldes agressivos.
Convencimento este que está intrinsecamente ligado ao início de uma discussão verbal e confronto físico entre os intervenientes (arguido e vítima), provocado pela saída do veículo e consequente interpelação do arguido por parte do Sr. EE!
Perante a recusa em “vender fiado” por parte do arguido, o Sr. EE optou por sair do veículo que conduzia, discutindo e confrontando fisicamente o arguido! (cfr. motivação da decisão: “A testemunha DD confirma ainda que a troca de palavras originou confronto físico entre o arguido e EE, com “um empurrão para cada e uma facada”.).
Tal propósito apenas se coaduna com a intenção de concretização do aludido negócio através da força/coação física! O que sucedeu como bem reconhece o Tribunal a quo na motivação da matéria de facto.
Não obstante, o Tribunal não fez constar da matéria de facto provada o confronto físico mantido entre estes intervenientes, facto este essencial para a apreciação global da conduta do arguido no âmbito do juízo ex ante que se impunha ao Tribunal, pelo incorreu na prática do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto dada por provada, o qual é de conhecimento oficioso, art. 410, n º 2, al. a) do CPP.
Ao considerar apenas provada a existência de uma discussão, em que, por um lado, o arguido solicitava que os indivíduos abandonassem o local, e por outro, a vítima insistia na concretização da “venda fiada”, o Tribunal reconduz a atitude do arguido a uma ação inesperada e imprevisível.
Mas não foi isso que sucedeu, como reconhece o próprio julgador na sua motivação.
Não estamos perante uma ação do arguido, mas antes perante uma reação a uma interpelação e que envolveram confronto físico entre as partes.
Ao não transparecer na matéria de facto provada o confronto físico entre ambos, errou o Tribunal a quo, pois é este confronto que subjaz, que despoleta o “golpe” subsequente…não uma mera discussão “caprichosa” entre dois indivíduos.
Ora, este momento de confronto físico e ainda para mais da iniciativa da vítima é absolutamente necessário para se formular um juízo seguro de condenação e se determinar a natureza e medida da sansão, permitindo fundamentar uma solução de direito correta, legal e justa. A sua não consideração na matéria de facto provada não constitui acervo atual de elementos necessários, inclusivamente de ordem típica, que consubstancie o necessário e suficiente para se chegar à conclusão condenatória a que se chegou.
Posto isto, não podia o Tribunal a quo dar como provado que o arguido atuou “sem aviso prévio, de forma traiçoeira e repentina” – ponto 22 –, uma vez que o contexto em que surge o “golpe” é originado pelo confronto físico provocado pela vítima EE, que decide sair do veículo e confrontar verbal e fisicamente o arguido na tentativa de concretizar o aludido negócio de “venda fiada”!
O mesmo juízo merecerá o ponto 23 dos factos dados como provados, pois não foi (somente) uma discussão a respeito de uma transação de droga (cujos contornos são, no mínimo, dúbios) que motivou a reação do arguido, mas sim a insistência e interpelação, com recurso a violência (confronto físico), por parte da vítima que motivaram a mesma.
Como concluiu o Tribunal a quo, não resultou provado que o arguido tenha previsto e/ou querido a morte do Sr. EE.
Tal conclusão é retirada quer do contexto anterior ao facto referencial, nomeadamente pela discussão e confronto físico entre arguido e vítima, quer pelo comportamento posterior do arguido, nomeadamente o facto de ter fugido em direção a casa, com medo, munindo-se de uma espingarda de ar comprimido, como admitiu, procurando defender-se, e tentando demover os indivíduos dos seus reais intentos, fazendo-os abandonar o local, muito próximo à sua habitação.
Tendo presente o disposto no art. 431º,al.a) do CPP é possível modificar a decisão de facto fixada pelo tribunal, com recurso ao próprio texto da decisão tendo presente o teor da motivação. “Assim, para formar a sua convicção, o Tribunal considerou desde logo as declarações do arguido na parte em que confirmou que, no dia 15.11.2020, cerca das 20,30 horas, foi contactado telefonicamente por um “colega”, para marcar um encontro, em que compareceram, passados alguns minutos, a cerca de 100 metros de sua casa, num Fiat …, dois indivíduos, tendo entrado em confronto físico com um deles, com empurrões mútuos que levaram à queda desse indivíduo ao chão onde permaneceu. O arguido admite ainda ter ido buscar a casa uma espingarda pressão de ar, chamado o irmão II, se dirigido ao local, admitindo ter feito pelo menos um disparo com a “pressão de ar” e atirado duas pedras em direção ao carro, tendo uma delas se “esmigalhado” e saltado para o carro. Também admitiu ter fugido do local e se ter dirigido à residência de KK, pedir um casaco, fugido em direção ao monte e levado consigo o telemóvel. No mais, o arguido negou os factos, nomeadamente que o encontro não visava qualquer transação de produto estupefaciente, apesar de ter na sua posse “um pacote de branca” e “uma barra de castanha”, não ter na sua posse qualquer “navalha” e atingido o corpo de EE com qualquer objeto. Nesta parte as declarações do arguido não foram consideradas, por contrárias aos demais elementos probatórios, nomeadamente ao depoimento da testemunha DD, única testemunha presencial no primeiro momento em que se verifica o confronto físico entre o arguido e a vítima EE, conforme admitido pelo próprio arguido, que confirma a sua presença no local. Essencial foi, por isso, o seu depoimento, que, de forma bastante precisa, descreveu os factos tal como estes se provaram De facto, a testemunha DD que referiu conhecer quer a vítima quer o arguido, descreveu toda a ocorrência, desde o telefonema para o HH agendar um encontro com o arguido para aquisição de produto estupefaciente até ao local combinado, onde ocorreram os factos. A testemunha confirma que EE pediu uma pedra ao arguido, que não tinha dinheiro, tendo dito que pagava depois, o que originou uma troca de palavras, levando EE a sair do carro, para continuar a discutir com o arguido. De acordo com a testemunha e contrariando a versão do arguido, este conhecia EE, até porque a discussão versava também sobre a falta de pagamento de uma compra de produto estupefaciente anterior. A testemunha DD confirma ainda que a troca de palavras originou confronto físico entre o arguido e EE, com “um empurrão para cada e uma facada”.
Assim sendo, deverá alterar-se a matéria de facto considerada provada, e, por consequência, fazer constar do ponto 7 dos factos provados o seguinte:
“7- Como EE continuasse a insistir naquela pretensão e não acatasse as ordens para sair dali, o arguido, no seguimento do confronto físico mantido entre ambos com um empurrão para cada, empunhou um instrumento cortante, cujas caraterísticas não se lograram apurar e, com esse instrumento, desferiu um golpe no peito de EE, numa trajetória de frente para trás, ligeiramente de cima para baixo e da esquerda para a direita, atingindo e perfurando-lhe o tórax acima da aréola do mamilo esquerdo;”.
Por consequência, no ponto 22 na parte em que se afirma que o arguido atuou sem aviso prévio, de forma traiçoeira e repentina deve ser dado como não provado.
Relativamente ao ponto 23 “23- O arguido sabia que a discussão mantida com a vítima a respeito de uma transação de droga e para que a mesma saísse do local eram motivos irrisórios e insignificantes face à vida daquele e que jamais poderiam justificar a sua ação.” tendo presente o suprarreferido e também por conter matéria conclusiva deve ser dado como não provado.
Por fim, ainda a respeito da matéria fáctica, afirma o recorrente que relevando a prova testemunhal produzida, mormente, o depoimento da testemunha GG, deverá ser considerado provado que o arguido vociferou “ou ides embora ou vou matar os dois, é só ladrões!”.
Para tal refere que o verdadeiro desígnio dos indivíduos, interpretando a factualidade considerada provada à luz das regras do normal acontecer, era apenas uma: ROUBAR O ARGUIDO!…
E que apenas assim se consegue explicar a decisão de sair do veículo por parte do Sr. EE e a insistência em concretizar a sobredita transação nos moldes aventados (“venda fiada”).
Esta seria, nomeadamente, a convicção constante do relatório final da Polícia Judiciária, constante de fls. 254 e ss. (em especial fls. 261), e corroborada em julgamento pelo Inspetor da Polícia Judiciária FF, cfr. Gravação 20210916144845_3754245_3995012 (Depoimento Inspector FF, testemunha):
7:39 – Defensor Arguido: Ficou convicto que isto seria para outra finalidade…nomeadamente para roubar o arguido ou não?
7:45 – Inspetor FF: Pela forma como é descrito pela testemunha nomeadamente o amigo da vítima que estava com ele…ehhhh…ele quando sai do carro, ele diz que é para o convencer a vender “fiado”, eu deduzo daqui que…
7:58 – Defensor Arguido: De acordo com aquilo que é a sua experiência?
7:59 – Inspetor FF: Seria para roubar o que ele tivesse…
Também a testemunha GG (transcrição infra), confirma o aludido contexto, sendo certo que à luz das regras da experiência comum outra conclusão não poderia ser alcançada pelo Tribunal a quo.
Ouvida a prova, tudo não passa, como o recorrente dá a entender, de uma opinião não sustentada E opiniões não são factos.
Pelo que o ponto 3 dos factos considerados não provados foi DEVIDAMENTE
DADO COMO NÃO PROVADO.
O Tribunal a quo afirmou que “Nenhuma testemunha confirma que o arguido vociferou “ou ides embora ou vou matar os dois, é só ladrões!” e isto é um facto.
E muito embora a testemunha GG tivesse afirmado que o arguido se encontrava muito agitado e a “a falar mais alto”, afirmando que o estavam a roubar.
Gravação 20210906110849_3754245_3995012 (Depoimento GG, testemunha):
1:44 – GG: “Comecei a ouvir berros, gritos, o meu primo estava a dizer àquelas duas pessoas que foram lá, tava a dizer que iam para o roubar”
2:30 – MP: Reconheceu alguma das vozes?
2:31 - GG: Sim, o meu primo.
2:34 – MP: O seu primo AA.
2:35 - GG: Sim, era o que estava a falar mais alto, ele tava a dizer e não sei quê vieram…vieste-me aqui para roubar e ouvi também o…não sei como se chama…nós demos-lhe um apelido…o DD1 pronto…que é uma testemunha…”
Os depoimentos transcritos não logram demonstrar que a intenção da vítima fosse roubar o arguido. Por um lado, do depoimento do Sr. Inspetor apenas se colhe que se trata de uma opinião baseada na sua experiência profissional, sendo certo que não assistiu a qualquer facto. Porém, nada mais se pode colher, mormente que no caso sub judice, fosse essa a situação. Do depoimento transcrito da testemunha apenas se colhe que ouviu o arguido, em voz alta, afirmar que a vítima e a testemunha vinham para o roubar. Sem que tenha visto o que quer que fosse. E mesmo na hipótese de o arguido estar convencido que vítima e testemunha vinham para o roubar, a expressão em causa não foi ouvida em tribunal e a mero facto do arguido ter dito que “iam para o roubar”, não que dizer que assim fosse, pois pode ter interpretado como tal por a vítima ter pedido fiado e querer ter forçado a isso.
Pelo que, não se IMPÕE a alteração do sentido do decidido, quanto ao ponto 3 dos factos não provados nem pelos depoimentos das testemunhas inquiridas nem pelo relatório da PJ que não constitui meio de prova.
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Do alegado não preenchimento dos elementos típicos do crime qualificado de homicídio à luz da factualidade dada como provada.
Encontra-se o arguido acusado da prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos art.s 131º, n.º 1, e 132º, n.ºs 1 e 2, al.s e) e i), ambos do Código Penal. 1.1 – Aquele primeiro preceito pune “quem matar outra pessoa”. O homicídio é a morte de um ser humano, causada por outro ser humano. Neste crime, o mais grave de todos, o bem jurídico protegido é a vida humana, enquanto supremo valor de entre aqueles que justificam a tutela do direito, assim arvorado desde sempre e em quase todas as civilizações.
Tal proteção não é feita apenas enquanto bem do indivíduo, mas ainda como bem da coletividade e do Estado. Numa ordem lógica, o primeiro dos bens é exatamente o da vida, tendo o homicídio a primazia entre os crimes mais graves. Conforme dispõe o art. 3º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, e é também consagrado no art. 24º da nossa Constituição, “a vida humana é inviolável”.
O crime em apreço é composto pelos seguintes elementos essenciais: - os sujeitos; - a conduta; - o evento; - e o nexo de causalidade.
Sujeito ativo do crime pode ser qualquer pessoa singular e sujeito passivo é o homem, enquanto vivo (pessoa humana já completamente nascida e com vida).
Pela conduta entende-se a ação ou a omissão pela qual o agente provoca a morte de alguém. Matar é suprimir a vida humana, quer através de uma ação – utilização de um meio idóneo para produzir diretamente a morte – quer se consubstancie numa omissão – falta de atuação capaz de evitar o efeito letal.
A conduta tem de ser dirigida ao resultado ou evento (a morte de alguém), pelo que se exige a existência de dolo, em qualquer das suas modalidades (direto, necessário ou eventual).
Quanto ao nexo de causalidade, exige-se que entre a conduta do agente e o resultado da mesma exista um elo de ligação que permita afirmar que a morte resultou diretamente da ação do agente.
Em síntese, diremos que comete o crime de homicídio aquele que, sendo uma pessoa imputável e sem que exista uma causa de justificação do facto ou de exclusão da culpa ou da ilicitude, provoca intencionalmente a morte de outrem.
Segundo o arguido, o Tribunal a quo fez constar da motivação que o arguido não quis, nem previu, como consequência necessária da sua conduta, a morte da malograda vítima (vide ponto 9 e 10 dos factos não provados), pelo que, afastada a intenção de matar, é bem mais consonante com a prática da vida e com a dinâmica dos factos tal como vêm provados, com a existência de confronto físico, e ainda pelo facto de ter sido desferido um só golpe, a qualificação do tipo de crime de acordo com a intenção de ofender, e consequentemente o enquadramento jurídico daqueles no dispositivo legal que a confina à ofensa da integridade física (artigo 144.° e 147.º do Código Penal).
Ou seja, pugna o arguido pela prova da intenção de ofender a integridade física e não da prova que o arguido tenha previsto a possibilidade de causar a morte da vítima e se tenha conformado com tal resultado. Estriba a sua convicção, por um lado, na pugnada alteração da matéria de facto, e por outro lado no facto de ter havido um único golpe.
Não podemos concordar.
Na verdade, o que resultou da prova foi que o arguido e a vítima se desferiram, mutuamente, um único empurrão. E que o golpe do arguido visou uma zona que alberga zonas vitais que, atingidas, podem causar a morte, como veio a acontecer. Sufraga-se, por completo o entendimento do Tribunal quando afirma, na motivação da matéria de facto, “Quanto a essa previsibilidade e conformação do resultado, desde logo porque o arguido quis atingir com o objeto cortante a vítima na zona que atingiu, o que resulta do depoimento da testemunha DD, nos termos sobreditos e pela zona do corpo de EE atingida, que aloja órgão vitais, o arguido teria, pelo menos, que prever que ao atuar dessa forma lhe provocaria a morte, resultado com que se conformou, caso contrário teria atuado de outra forma, possibilidade que dependia da sua vontade.”
Cremos, antes de mais que resulta provado que o arguido agiu com dolo eventual, como resulta do ponto 21 da matéria de facto provada: 21- Ao desferir um golpe no tórax de EE com o instrumento cortante, cujas caraterísticas não se lograram apurar, o arguido previu a possibilidade de tirar a vida a EE, uma vez que a zona do corpo atingida aloja órgãos vitais e que usando o referido instrumento para a perfurar, podia causar, como causou, lesões suscetíveis de determinar a morte daquele, conformando-se com esse resultado, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei;
Nos termos do ponto 8 e 9 da matéria de facto não provada, resulta que foi julgado não provado que o arguido tenha agido com dolo direto ou com dolo necessário.
Começando pela “intenção de matar” fundamenta o Tribunal da seguinte forma: Ora, se a zona do corpo de EE atingida pelo arguido nos permite concluir, analisando o próprio relatório de autópsia, que a mesma era idónea a provocar-lhe a morte, uma vez que aloja órgãos vitais e ao perfurar essa zona podia causar, como causou, lesões suscetíveis de determinar a morte daquele, o facto de o arguido ter insistido, em momento posterior, para EE se levantar e não se fingir de morto, recorrendo a regras de experiência comum, leva-nos a concluir que o arguido apenas previu a possibilidade de lhe tirar a vida e que se conformou com esse resultado, bem sabendo que tal conduta era proibida e punida por lei. Quanto a essa previsibilidade e conformação do resultado, desde logo porque o arguido quis atingir com o objeto cortante a vítima na zona que atingiu, o que resulta do depoimento da testemunha DD, nos termos sobreditos e pela zona do corpo de EE atingida, que aloja órgão vitais, o arguido teria, pelo menos, que prever que ao atuar dessa forma lhe provocaria a morte, resultado com que se conformou, caso contrário teria atuado de outra forma, possibilidade que dependia da sua vontade.
Na verdade, qualquer tipo de ilícito doloso, exige sempre ser integrado por uma “decisão”, não necessariamente por uma “intenção”, isto é, no que ao dolo eventual concerne, que o agente preveja o resultado da sua decisão de atuar daquela forma, e que se conforme com tal resultado.
Cremos, manifestamente que pelas razões expostas no douto acórdão – a zona atingida – que é do conhecimento geral que alberga órgãos vitais essenciais à vida – com um objeto de natureza cortante, que também é do conhecimento geral que é suscetível de causar graves lesões na zona atingida, leva à conclusão necessária que o arguido ao atuar da forma como atuou previu que lhe poderia provocar a morte.
Cometeu, pois, um crime de homicídio.
Pugna o arguido pela “desqualificação”, na medida em que:
Entende que o motivo da atuação do arguido é substancialmente potenciado pela insistência e confronto provocados pela vítima e perante agressões físicas mútuas, num local ermo e em inferioridade, pelo que não se pode dizer que tenha atuado por motivo torpe ou fútil; e que,
Pelo facto de ter desferido um único golpe, com um objeto de natureza cortante, num contexto de discussão com agressões mútuas, não é de considerar que tenha atuado de forma inesperada ou súbita, sem que a vítima tivesse sequer desconfiado dos seus intentos.
Para que se possa falar de “homicídio qualificado” é necessário que da atuação do agente se retire um especial tipo de culpa, que na expressão do art. 132º do Código Penal, se revele uma especial censurabilidade ou perversidade.
Preenchidos os elementos objetivos do crime de homicídio, importa verificar se se mostram preenchidas as als. e) e i) do nº 2 do art. 132º do Código Penal, pelas quais foi o arguido condenado.
O sinal distintivo da qualificação do homicídio é a especial censurabilidade ou perversidade da conduta do agente. O termo “especial” significa que a conduta há de revelar algo que transcenda a censurabilidade inerente a um crime de homicídio, para além da já invulgar perversidade que revela aquele que matou um ser humano.
Nas palavras de Teresa Serra, revelam especial censurabilidade as circunstâncias que refletem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores. A especial censurabilidade refere-se, assim, às componentes da culpa relativas ao facto, isto é, funda-se naquelas circunstâncias que podem revelar um maior grau de culpa como consequência de um maior grau de ilicitude.
Como se refere no Comentário Conimbricense do Código Penal, a lei pretende imputar à especial censurabilidade aquelas condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refração, ao nível da atitude do agente, de formas de realização do facto especialmente desvaliosas, e à especial perversidade aquelas em que o especial juízo de culpa se fundamenta diretamente na documentação no facto de qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas. A especial perversidade supõe, assim, uma atitude profundamente rejeitável no sentido de ter sido determinada e constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade, que revelam um egoísmo abominável. O acento tónico ou componente da culpa refere-se aqui ao agente.
As circunstâncias enumeradas no n.º 2 do art. 132º, suscetíveis de revelar esse “algo de especial”, são meros indícios, indicadores ou referenciais que poderão ser afastados ante condutas que, embora identificando-se com as mesmas, não revelam, contudo, a exigida especial perversidade ou censurabilidade. Tal poderá suceder por ocorrerem circunstâncias extraordinárias que destaquem claramente a sua ilicitude ou culpa do exemplo padrão (a que não se reconduzem circunstâncias como o bom comportamento anterior, a confissão, o arrependimento, o ressarcimento do dano, etc., que são circunstâncias atenuantes gerais). Do mesmo modo, outras circunstâncias não previstas, mas substancialmente análogas, refletidas no facto ou na personalidade do agente, poderão assumir tal relevância aos olhos do julgador, por revelarem uma especial censurabilidade ou perversidade.
Significa isto que as circunstâncias qualificativas não constituem elementos do tipo legal do crime, mas sim da culpa. Subjacente à especial censurabilidade e perversidade está um maior grau de culpa que o agente manifesta e que motiva a agravação da culpa, a qual tem, assim, a ver com a maior desconformidade que a personalidade manifestada no facto possui em relação à desconformidade, já de si grande, subjacente à prática de um homicídio simples. Todavia, não é pelo facto de se verificar em concreto uma qualquer das circunstâncias referidas nos exemplos padrão ou noutras substancialmente análogas que fica preenchido o tipo, deduzindo-se daquelas a especial censurabilidade ou perversidade; é preciso que, autonomamente, o intérprete se certifique de que, da ocorrência de qualquer daquelas circunstâncias resultou em concreto a especial censurabilidade ou perversidade. Como inversamente, não será um maior desvalor da atitude do agente ou da personalidade documentada no facto que dará origem ao preenchimento do tipo de culpa agravado, sendo necessário que essa atitude ou aspetos da personalidade mais desvaliosos se concretizem em qualquer dos exemplos padrão ou em qualquer circunstância substancialmente análoga. Ver Ac RP in www dgsi de 17/12/2014 Pedro Vaz Pato – Relator.
O reconhecido mérito da ampla jurisprudência e doutrina citadas na decisão objeto do presente recurso, não permite, salvo melhor opinião, solidificar o percurso judicativo-decisório do Tribunal no que concerne à qualificação da atuação do arguido como integrando a prática de um crime de homicídio qualificado.
Tal percurso resulta, desde logo, inquinado ao atribuir a uma (mera) discussão a agressão que culminou com a morte da vítima.
Como vimos supra, a discussão é provocada/iniciada não pelo arguido, mas pela insistência da vítima na realização de uma transação de produto estupefaciente “fiado”.
De acordo com a matéria de facto dada por provada, o arguido recusou-se a “fiar” e pediu que os indivíduos abandonassem o local, pedido a que estes não acederam.
Sucede que, só depois de a vítima ter saído do veículo e confrontado o arguido, por sua própria iniciativa, é que se gerou uma discussão que, além de troca de palavras, envolveu ainda confronto físico entre ambos (“um empurrão para cada e uma facada”).
Neste conspecto, não podia o douto Tribunal ter relegado para “segundo plano” a contenda física iniciada pela vítima.
Ao fazê-lo, prejudica sobremaneira o arguido, dando a entender que este agiu apenas com base numa discussão (frugal) sobre uma transação ilícita, e não com intenção de se defender ou de repelir uma agressão no âmbito de um confronto físico – que não iniciou.
Acresce que o arguido desferiu um único golpe.
Pelo que, tal facto não poderia deixar de ser tido em consideração pelo Tribunal a quo.
Mais, o arguido após o confronto físico, dirigiu-se à sua habitação onde se muniu de uma espingarda de ar comprimido com o objetivo de obrigar a vítima EE e a testemunha DD a abandonar o local.
Como resultou provado, o arguido não se apercebeu da gravidade do golpe infligido, tanto que “o arguido dirigiu-se até junto de EE, que continuava no solo sem esboçar qualquer reação e, apontando-lhe a espingarda, gritou com o mesmo para se levantar e para não se fingir de morto, tendo-lhe desferido um pontapé na cabeça” – ponto 12 dos factos provados.
Tendo-se apurado que o motivo da atuação do arguido é (substancialmente) potenciado pela insistência e confronto provocados pela malograda vítima, e perante agressões físicas mútuas, num local ermo e em inferioridade, não pode dizer-se que o arguido tenha atuado por motivo torpe ou fútil (alínea e).
Pelo facto de ter o arguido desferido um único golpe, com um objeto não identificado, mas com lâmina, num contexto de discussão com agressões mútuas, também não é de considerar que este tenha atuado de forma inesperada ou súbita, sem que a vítima tivesse sequer desconfiado dos seus intentos.
Saliente-se, neste ensejo, que a jurisprudência citada pelo douto Tribunal a quo para sustentar o enquadramento da atuação do arguido no exemplo-padrão contido na alínea i) – “meio insidioso” – não vai no sentido, e muito menos tem o alcance, de justificar a citada qualificação.
Como bem refere a jurisprudência citada (vide Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Processo n.º 00P2843, do Conselheiro Relator PIRES SALPICO, de 17/01/2001): “Relativamente ao ponto que agora nos ocupa, SILVIO RANIERI, na doutrina jurídica italiana, ensina: "Meio insidioso é o que se emprega com engano ou cujo uso ou poder mortífero se encontra oculto". (Ver "MANUAL DE DERECHO PENAL", Tomo V, PARTE ESPECIAL, pág.38, trad. castelhana, Bogotá, 1986). Por seu turno, GIUSEPPE MAGGIORE, com a sua proficiência de grande penalista, escreve: "Meio insidioso" é o que não somente pela sua natureza enganosa, mas também pela maneira fraudulenta como se emprega, surpreende a vítima, tornando-lhe impossível ou difícil a defesa. Tais seriam uma armadilha ; o carregar algum objeto com corrente de alta tensão, fazendo com que a vítima o toque. O fazer experimentar uma arma de fogo cuja explosão, por dano do mecanismo, se volta contra quem a usa" (in "DERECHO PENAL", PARTE ESPECIAL, vol. IV, pág. 298, trad. castelhana, Bogotá, 1986). De igual sorte, FRANCESCO ANTOLISEI, comentando a agravante qualificativa do homicídio prevista no art. 577, nº 2, do Código Penal Italiano, de "o facto haver sido cometido por meio de substância venenosa" ou "con un altro mezzo insidioso", referindo-se à emboscada e a outras formas da moderna delinquência, indica, de modo exemplificativo, como "meios insidiosos", "a sabotagem do motor de um automóvel ou de um avião, o carregar um objecto com corrente eléctrica de alta tensão et similia". (Ver "MANUALE DI DIRITTO PENALE", PARTE SPECIALE, I, pág. 52, 12ª ed., Milano, 1996). Dos ensinamentos da moderna doutrina dos mais ilustres penalistas, parece poder concluir-se que "meios insidiosos" são os que se empregam de forma enganosa ou fraudulenta, e cujo poder mortífero se encontra oculto, surpreendendo a vítima, tornando-se extremamente difícil ou impossível a defesa. Ora, um canivete, como o que foi utilizado pelo arguido, é um objeto de uso corrente, que muitas pessoas trazem consigo, nos bolsos do vestuário, mas que, como arma branca, que também é, pode ser utilizado, frequentemente, como arma letal de agressão, sem que, a todas as luzes, possa integrar-se no conceito jurídico-penal de "meio insidioso". Assim, consideramos como não verificada a circunstância agravante qualificativa mencionada na alínea f), do n.º 2, do art. 132º do Cód. Penal de 1995, pelo que não pode manter-se, neste ponto, a douta decisão recorrida.”.
No caso sub judice, não se tendo provado qual o objeto cortante utilizado pelo arguido, é imperioso concluir pela impossibilidade de qualificação do crime de homicídio por recurso à agravante prevista na alínea i), dado que:
1) O objeto cortante, não tendo sido identificado, pelas características que não resultaram apuradas, não pode ser considerado meio insidioso; e
2) O arguido não atinge a vítima de forma traiçoeira, ou imprevisível, limitando a sua capacidade de defesa, mas antes no âmbito de uma contenda física propiciada pela própria vítima.
Quando a lei fala em meio insidioso não quer necessariamente abarcar os instrumentos habituais de agressão tais como o pau, o ferro, a faca, a navalha, a pistola, etc, ainda que manejados de surpresa, mas sim aludir às hipóteses de utilização de meios ou expedientes com relevante carga de perfídia e meios particularmente perigosos e que não pondo em risco o agente, do mesmo passo tornam impossível ou difícil a defesa da vitima, Ac STJ de 13. 10.l93, BMJ 430, p. 248 e 11.01.95, BMJ, 443. P-55.
Posto isto,
In casu, temos ainda que a forma mitigada de dolo considerada provada pelo Tribunal a quo implica cautelas acrescidas com um tipo especial de culpa para efeitos de qualificação.
Como bem salienta a decisão revidenda “Assim, para que se possa falar de homicídio qualificado é necessário que a conduta do agente revele um especial tipo de culpa, que revele uma especial censurabilidade ou perversidade, sendo os exemplos-padrão referidos nas alíneas do n.º 2 meramente exemplificativos e de funcionamento não automático, já que só qualificam o crime se a conduta criminosa for especialmente censurável ou perversa.”.
De facto,
“I - Se já não é fácil compatibilizar o dolo eventual com a especial censurabilidade ou perversidade do agente, muito mais difícil parece ser essa conjugação quando a especial censurabilidade não advém de uma qualquer circunstância facilmente objectivável (v.g., o uso de uma arma com um grande poder destruidor), mas da própria formação de vontade do agente (que decide usar o objecto de agressão de modo inesperado e súbito, para que a vítima não desconfie, mas com dolo eventual quanto ao resultado).” - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Processo n.º 06P3770, do Conselheiro Relator SANTOS CARVALHO, de 23/11/2006. Ou seja, não se tendo provado o dolo direto ou necessário quanto à intenção de matar, mas apenas o dolo eventual, não se verifica uma especial censurabilidade que se possa reconduzir ao crime de homicídio qualificado.
“IV - Se a agravação preconizada pelo art. 132.° pressupõe uma forma superior de culpa» (isto é, uma culpa especialmente grave), dificilmente se compatibilizará um mero dolo eventual com uma culpa agravada: «A concepção legal do dolo eventual incompatibiliza-se com as formas superiores de culpa» (Margarida Silva Pereira, Textos, Direito Penal II, Os Homicídios, II, AAFDL, 1998). V - É que o art. 132.° não é um tipo de ilícito mas um tipo de culpa, razão por que (mesmo) «quando se verifiquem no comportamento as circunstâncias das alíneas qualificadoras, tem de pôr-se em guarda o intérprete/aplicador: pode ter sido o agente especialmente censurável ou perverso; caso contrário, a moldura que se lhe aplica é a do art. 131.°», mas «a prova da maior censurabilidade ou perversidade terá sempre de fazer-se de acordo com o princípio da culpa» (a. e ob. cits.). VI - Partindo-se - como sempre sucede em matéria de dolo - «da situação como ela foi representada pelo agente», haverá que «perguntar se a situação, tal como foi representada, corresponde a um exemplo padrão (ou a uma situação substancialmente análoga) e, em caso afirmativo, se se comprova uma especial censurabilidade ou perversidade do agente» (Comentário, I, p. 43).” - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Processo n.º 03P1671
Assim, atenta a dinâmica do sucedido, conforme esta foi representada pelo arguido, no contexto de uma discussão que envolveu confronto físico, é patente não ter resultado provado que o arguido tenha revelado qualquer especial censurabilidade ou perversidade suscetíveis de justificar qualquer qualificação.
Por outro lado, a grande maioria dos homicídios é sempre desproporcional face ao motivo que a despoleta e não se pode correr o risco de tudo se considerar fútil ou traiçoeiro, nem mesmo quando tal ocorre no submundo criminal conectado com o tráfico de estupefacientes, pelo que mesmo no contexto retratado na matéria de facto, e tendo em atenção a profunda censurabilidade dirigida pela comunidade ao tráfico de estupefacientes, potenciador de inúmeros ilícitos contra as pessoas e contra o património, uma discussão relacionada com a cedência de estupefacientes como geradora de um crime de um crime de homicídio, nem sempre pode ser considerada como tendo uma motivação repugnante e baixa, logo, suscetível de integrar a qualificativa, “motivo torpe”, tudo dependendo do contexto apurado.
Motivo fútil é o que não é ou nem sequer chega a ser motivo. Cf. Ac.STJ de 06.06.90, BMJ 398, 269, de tal forma que o facto surge como produto de um profundo desprezo pelo valor da vida humana, o que não é manifestamente o caso dos autos, como acima se expressou.
Motivo torpe é o motivo infame, indecoroso, repugnante, baixo, sórdido, ignóbil, asqueroso, profundamente imoral, que repugna à generalidade das pessoas.
Por seu lado, a doutrina tem atribuído ao motivo fútil o alcance de uma razão incompreensível para a generalidade das pessoas, que não tem relevo, que é insignificante, gratuito, frívolo, sem valor, que não pode razoavelmente explicar (e muito menos justificar) o crime, revelando o facto, inteiramente desproporcionado e repudiado pelo homem médio, uma profunda insensibilidade e inconsideração pela vida humana, um egoísmo intolerante, prepotente e mesquinho.
E a jurisprudência também não se afasta desse entendimento, ao considerar como motivo fútil não tanto aquele que tem pouco valor ou importância, mas o que é notoriamente desproporcionado ou inadequado aos olhos do homem médio, denotando o agente egoísmo, intolerância, prepotência e mesquinhez. É, pois, fútil o motivo frívolo, leviano, o que revela uma inteira desproporção entre o motivo e a reação homicida.
Para além da desproporção notória, deve acrescer a insensibilidade moral, que tem a sua manifestação mais alta na brutal malvadez ou na insignificância ou frivolidade desproporcionada com a reação homicida. Ac STJ de 7.12.99, BMJ, 492, p.168.
Embora nos crimes de homicídio haja sempre ou quase sempre uma certa desproporção entre o motivo e o resultado, no caso de motivo fútil essa desproporção é mais chocante, advindo um evento completamente distinto daquele que o cidadão comum esperaria.
No caso dos autos, a conduta do arguido ao matar insere-se no contexto de um desentendimento gerado entre ambos nas circunstâncias supradescritas.
Independentemente do mesmo ter ocorrido em contexto marginal de consumo/tráfico de droga, o certo é que a existência desse conflito, a sua natureza, dimensão e situação envolvente, retiram à conduta do arguido as características que permitiriam considerar que foi determinada por um motivo torpe ou fútil.
Não se questionando que a motivação para o comportamento do arguido, ao matar, foi bastante censurável e desproporcionada à situação, o certo é que, naquele contexto global em que se inseriu, tal motivação não revela características que a façam considerar como tendo sido torpe ou fútil, sem prejuízo, claro está, ser isso ponderado na determinação da pena concreta.
Analisadas as circunstâncias fácticas consideradas provadas pelo Tribunal, apenas podemos considerar a subsunção da conduta do arguido ao crime de homicídio simples, p. e p. pelo artigo 131.º do Código Penal, cuja moldura penal (abstrata) vai dos 8 aos 16 anos de prisão.
Da pena concreta.
Na determinação da medida concreta da pena impõe-se ao julgador que tenha em consideração o disposto em três normas fundamentais nesta matéria, os arts. 40.º, 70.º e 71.º do CPenal.
Dispõe o primeiro dos indicados preceitos, com a epígrafe “Finalidades das penas e das medidas de segurança”, que:
«1 - A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
2 - Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.
3 - A medida de segurança só pode ser aplicada se for proporcionada à gravidade do facto e à perigosidade do agente.»
Tendo presente estas finalidades, deve o julgador de seguida, na operação de escolha da pena, ter em atenção a regra ínsita no art. 70.º do CPenal, segundo o qual:
«Se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.»
Por fim, especifica a terceira das indicadas normas (art. 71.º do CPenal) que na determinação da medida concreta da pena deve o julgador ter em atenção que:
«1 - A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
2 - Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente:
a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
b) A intensidade do dolo ou da negligência;
c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;
f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
3 - Na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena.»
Nas palavras sempre atuais de Figueiredo Dias[2], «A exigência legal de que a medida da pena seja encontrada pelo juiz em função da culpa e da prevenção é absolutamente compreensível e justificável. Através do requisito de que sejam levadas em conta as exigências da prevenção, dá-se lugar à necessidade comunitária da punição do caso concreto e, consequentemente, à realização in casu das finalidades da pena. Através do requisito de que seja tomada em consideração a culpa do agente, dá-se tradução à exigência de que a vertente pessoal do crime – ligada ao mandamento incondicional de respeito pela eminente dignidade da pessoa do agente – limite de forma inultrapassável as exigências de prevenção.»
Para além destas indicações é preciso não perder de vista que «A necessidade, proporcionalidade e adequação são princípios orientadores que devem presidir à determinação da pena aplicável à violação de um bem jurídico fundamental.»[3]
A medida concreta da pena tem, pois, de ser fixada de modo a permitir a satisfação das exigências de prevenção geral, salvaguardando as expectativas da comunidade na validade e manutenção/reforço da norma violada – o que constitui o seu limite mínimo, abaixo do qual não estão a ser cumpridas as finalidades da punição –, embora sem ultrapassar a medida da culpa – que funciona como limite máximo da medida da sanção, sob pena de ser posta em causa a dignidade da pessoa do delinquente –, devendo a concretização da pena, a fixar entre tais limites mínimo e máximo, corresponder ao necessário e suficiente para a reintegração do agente, aí sendo realizado o juízo de ponderação das exigências de prevenção especial.
São estes parâmetros de concretização da pena que é aplicada ao arguido condenado que devem estar explicitados na sentença, permitindo aos destinatários da mesma acompanhar o percurso decisório do julgador na 1.ª Instância.
Tendo presente a desqualificação do crime de homicídio, impõe-se alterar a pena concreta que foi aplicada tendo em consideração a moldura penal para o crime de homicídio simples p. e p. pelo art. 131º do Código Penal.
O crime de homicídio simples é punível em abstrato com pena de prisão de 8 a 16 anos (art. 131º).
Importa, agora, retirar da matéria de facto provada os fatores relevantes para a determinação das penas concretas, procedendo à sua valoração à luz dos vetores da culpa e da prevenção.
O grau de ilicitude é acentuado em relação ao crime de homicídio, pois que foi violado o bem primeiro e mais elevado da tutela jurídica (a vida).
O modo de execução dos factos relativos ao crime de homicídio também é bastante censurável. Logo após um empurrão mútuo, subitamente, sem pré-aviso, o arguido saca de um objeto perfurante com lâmina e espeta-o na zona do coração da vitima, surpreendendo-a e retirando-lhe qualquer hipótese de reação.
O dolo revestiu a forma mais atenuada (eventual), o que contribui para de alguma forma atenuas o grau de culpa.
No que respeita aos sentimentos manifestados no cometimento do crime, destaca-se a ostensiva indiferença pela vida humana e a postura impetuosa do arguido.
A motivação para a conduta do arguido, ainda que achasse que ia ser roubado revela uma desproporção face ao mal do crime e, consequentemente, um código de valores individuais que se afasta dos padrões éticos socialmente aceitáveis.
Em termos de conduta posterior merece particular censura o facto de o arguido se ter posto em fuga.
E não logrou o arguido demonstrar auto censura nem arrependimento, face à sua postura em tribunal perante os factos evidentes com que foi confrontado, colaborando pouquíssimo para a descoberta da verdade, não sem antes ainda ter tentado a sua desresponsabilização.
A essa atitude não pode ser atribuído um particular efeito atenuante.
Em termos de comportamento no Estabelecimento Prisional, o arguido mantém uma conduta adequada e colaborante, com envolvimento em atividades formativas levadas a cabo no meio prisional e mantendo-se ocupado.
Quanto às suas condições pessoais, é de modesta condição sócio cultural, possuindo apenas o 1º ciclo de escolaridade.
Com imagem negativa no seu meio social e com ausência de hábitos de trabalho e conotado com a frequência de locais associados ao consumo e tráfico de estupefacientes, está atualmente integrado no programa de substituição opiácea no E.P.
Atento o tipo de crimes e a forma da sua execução, são acutilantes as exigências de prevenção geral que se fazem sentir, ligadas à satisfação do interesse público de defesa da sociedade que, pela natureza e gravidade dos factos, sente uma necessidade acrescida de ver restabelecida a confiança nas normas infringidas.
Ainda que as necessidades de prevenção especial sofram alguma atenuação por força da ausência de antecedentes criminais.
Tudo ponderado, afiguram-se-nos adequada a seguinte pena:
- Pelo crime de homicídio simples: 14 anos e seis meses de prisão.
Tendo presente que o arguido também foi condenado por mais três crimes, os quais não foram contestados, impõe-se efetuar o cúmulo jurídico destas penas parcelares, deverão ser ponderados em conjunto a gravidade dos factos e a personalidade do agente, ou seja, procedendo a uma avaliação da gravidade global do comportamento delituoso do agente (art. 77º do Código Penal).
Para tal, importa obter uma visão conjunta dos factos, a relação existente entre eles e o seu contexto, a sua maior ou menor autonomia, a frequência e a forma de comissão dos delitos, bem como a diversidade ou igualdade dos bens jurídicos violados e a natureza e gravidade dos crimes cometidos. Por seu lado, na avaliação (unitária) da personalidade do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos, particularmente o número de infrações cometidas, a sua perduração no tempo e a dependência de vida em relação à atividade desenvolvida é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo uma carreira criminosa), ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade, sendo que só no primeiro caso e já não no segundo se poderá atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante. Importante será também atender aos motivos e objetivos do agente no denominador comum dos ilícitos praticados e a eventuais estados de dependência. De igual forma, haverá que analisar o efeito previsível que a pena terá sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização), ponderando os seus antecedentes criminais e a sua personalidade expressa nos factos. Em suma, deve ser perscrutada a existência de um processo de socialização ou de repúdio pelas normas de identificação e inserção social. Em termos de prevenção geral, haverá que averiguar o significado do conjunto dos atos praticados em termos de perturbação da paz e da segurança dos cidadãos.
Estão em causa quatro crimes. O crime de homicídio simples, o crime de coação simples na forma tentada, o crime de dano simples e o crime de ofensa à integridade física simples. E embora tenham sido violados bens jurídicos distintos, os ilícitos ocorreram no mesmo circunstancialismo e contexto, estando intimamente conexionados, sendo o de homicídio de maior gravidade.
Por seu lado, considerando a quantidade, a dependência e a proximidade dos crimes em apreço, bem como a ausência de antecedentes criminais, estamos no âmbito da mera pluriocasionalidade, sem relevantes reflexos a nível da personalidade do arguido.
Com efeito, no conjunto dos factos praticados pelo arguido destaca-se claramente a conduta integradora do crime de homicídio, sendo ela que essencialmente dá a medida da gravidade global desses factos.
Considerando estes elementos, numa moldura abstrata de 14 anos e 6 meses a 15 anos e 08 meses, afigura-se-nos justa a pena única de 15 anos de prisão.
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III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os Juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo arguido AA e, em consequência alterar a matéria fáctica no ponto 7 e no ponto 22 e eliminando o ponto 23 nos termos supradescritos.
Em consequência decide-se desqualificar o crime de homicídio para simples.
Condenar-se o arguido na pena de 14 anos e seis meses de prisão pela prática do crime de homicídio simples.
Em cúmulo jurídico das penas aplicadas ao arguido neste acórdão e no acórdão a quo identificadas nas als. d), e) e f), condenar o arguido na pena única de 15 anos (quinze) anos de prisão, mantendo-se quanto ao demais o decidido na 1ª instância.
Sem custas a cargo do arguido (arts. 513.º, n.º 1, do CPPenal).
SUMÁRIO (redigido a partir do elaborado pelo relator):
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Porto, 19 de janeiro de 2022
(Texto elaborado e integralmente revisto pelo relator)
Paulo Costa
Nuno Pires Salpico
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[1] É o que resulta do disposto nos arts. 412.º e 417.º do CPPenal. Neste sentido, entre muitos outros, acórdãos do STJ de 29-01-2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB.S1 - 5.ª Secção, e de 30-06-2016, Proc. n.º 370/13.0PEVFX.L1.S1 - 5.ª Secção. [2] Direito Penal Português, Parte Geral II, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas/Editorial Notícias, 1993, pág. 215. [3] Acórdão do STJ de 22-11-2017, Proc. n.º 731/15.0JABRG.G1.S1 - 3.ª secção, acessível inwww.stj.pt Jurisprudência/Acórdãos/Sumários de Acórdãos).