ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS DA ALEGAÇÃO
REJEIÇÃO DO RECURSO
Sumário

I - É exigível que das conclusões de recurso conste, no mínimo e de forma clara, quais os pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados, sob pena de rejeição de reapreciação da decisão de facto.
II - Na medida em que os recursos visam por via da modificação de decisão antes proferida, reapreciar a pretensão dos recorrentes por forma a validar o juízo de existência ou inexistência do direito reclamado, está vedado ao tribunal de recurso apreciar as questões novas antes não suscitadas nem apreciadas pelo tribunal a quo, nos termos do artigo 608º nº 2 do CPC, salvo se de conhecimento oficioso.
Consequentemente, não pode este tribunal de recurso reapreciar a prova produzida com vista a aquilatar se os factos novos alegados pela recorrente só agora no recurso e não no momento processual adequado foram cabalmente demonstrados.
III - Apurado que o A. efetuou transferência bancária para conta da R. por engano, carece aquela de causa justificativa, representando um enriquecimento do património da R. à custa do proporcional empobrecimento do património do primeiro para os fins previstos no artigo 473º do CC.

Texto Integral

Processo nº. 725/17.1T8VNG.P1
3ª Secção Cível
Relatora – Juíza Desembargadora M. Fátima Andrade
Adjunta - Juíza Desembargadora Eugénia Cunha
Adjunta - Juíza Desembargadora Fernanda Almeida
Tribunal de Origem do Recurso - Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Jz. Local Cível de V. Nova de Gaia
Apelante / AA…
Apelado/ BB…

Sumário (artigo 663º nº 7 do CPC):
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I- Relatório
BB… instaurou a presente ação declarativa sob a forma de processo comum contra AA…, peticionando pela procedência da ação a condenação da R. “a pagar ao Autor a quantia de €6.008,17, acrescida de €5,00, assim como de juros vencidos no montante de €714,40, e dos juros que calculados à taxa legal em vigor, se vençam desde a entrada em juízo da presente ação, até efetivo e integral pagamento da quantia a restituir.”

Para tanto e em suma alegou o autor ter efetuado uma transferência bancária para conta da R. por engano.
R. com a qual inexiste qualquer relação negocial ou pessoal que dê causa à transferência efetuada.
Pelo que a R. – que não devolveu a quantia por engano transferida, apesar de para tal interpelada – se enriqueceu na medida do montante de que se apropriou sem causa para tal.

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Não tendo sido possível a citação pessoal da R., foi a mesma citada editalmente e após citado o MºPº nos termos do artigo 21º do CPC, o qual não apresentou contestação.
Foi proferido despacho saneador, com dispensa de identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova.

Posteriormente a R. constituiu mandatário, cessando a sua representação pelo MºPº.
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Agendada e realizada audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença, nos seguintes termos: “julga-se a ação parcialmente procedente, por parcialmente provada, e decide-se condenar a Ré AA… no pagamento ao Autor BB… da quantia de 6.022,14€ (seis mil e vinte e dois euros e catorze cêntimos), acrescido de juros vencidos e vincendos, desde a citação da Ré até ao integral pagamento, à taxa legal em vigor, absolvendo a Ré do demais peticionado.”
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Do assim decidido, interpôs a R. recurso de apelação oferecendo alegações e formulando as seguintes
CONCLUSÕES
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Não se mostram apresentadas contra-alegações.
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O recurso foi admitido como de apelação, com subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo [efeito este confirmado já por este tribunal nos termos da decisão de 08/11/21].

Foram colhidos os vistos legais.
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II - FACTUALIDADE PROVADA.
(O tribunal a quo julgou provada a seguinte factualidade)
“1. O Autor é titular da conta bancária n.º …….., junto do CC…, sediada no Reino Unido;
2. Em 05 de Fevereiro de 2014, o Autor ao realizar uma transferência bancária da conta referida no ponto anterior, transferiu, por engano, o montante de £5.000 (cinco mil libras) para a conta bancária com o IBAN PT…………………..;
3. A Ré é titular da conta bancária com o IBAN PT…………………..;
4. O Autor jamais pretendeu transferir aquela quantia para a conta da Ré;
5. O Autor só se deu conta de que havia transferido a quantia supra referida para um IBAN que não correspondia ao do destinatário da transferência em causa, no ano seguinte, em Julho de 2015, ao verificar os gastos relativos ao ano anterior;
6. De forma a obter os dados do titular da conta para onde havia efetuado a transferência, o Autor efetuou uma nova transferência, desta feita de uma conta portuguesa, para o NIB que havia utilizado por engano, no montante de €5,00;
7. Através do talão gerado pela caixa multibanco obteve o nome da titular da conta bancária, que é o da Ré.
8. Posteriormente, o Autor utilizou o nome da Ré para efetuar uma pesquisa no Google.
9. Tal pesquisa permitiu-lhe encontrar um Edital de citação da Ré em processo cível e a identificação da sociedade comercial DD…, Lda., a que a Ré surge associada como sócia gerente, o que, por sua vez, lhe permitiu obter uma morada da Ré;
10. Na posse desta informação, o Autor, através da sua mandatária, em 17.07.2015, interpelou a Ré para que esta lhe devolvesse a referida quantia;
11. Não obstante tal interpelação, o certo é que a Ré não procedeu à restituição das £5.000 (cinco mil libras);
12. A taxa de câmbio aplicada à transferência foi de 0,830960 libras esterlinas por cada euro;
De entre os factos alegados, não foram provados mais factos, porquanto nada mais se apurou com relevo para a decisão da causa.”

III- Âmbito do recurso.
Delimitado como está o recurso pelas conclusões das alegações, sem prejuízo de e em relação às mesmas não estar o tribunal sujeito à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito nem limitado ao conhecimento das questões de que cumpra oficiosamente conhecer – vide artigos 5º n.º 3, 608º n.º 2, 635º n.ºs 3 e 4 e 639º n.ºs 1 e 3 do CPC – resulta serem questões a apreciar:
A) Erro na decisão de facto [vide conclusões (I) – I a XV];
Como questão prévia apreciação da observância dos ónus de impugnação que sobre a recorrente7 recaem, em especial o previsto no artigo 640º nº 1 do CPC.
B) Admissibilidade da junção do documento apresentado pela R., emitido pelo “CC…” e enviado por este ao autor, seu cliente [vide conclusões (ii) – I a VIII];
C) Erro na subsunção jurídica dos factos ao direito [vide conclusões §§ (…) I a XIII]
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Conhecendo.
A) Cumpre em primeiro lugar apreciar o erro de julgamento imputado à decisão de facto.
E nesta sede se a recorrente observou os ónus de impugnação que sobre si recaem.

Para a apreciação desta pretensão importa ter presente os seguintes pressupostos:
i- Estando em causa a impugnação da matéria de facto, obrigatoriamente e sob pena de rejeição deve o recorrente especificar (vide artigo 640º n.º 1 do CPC):
“a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados[1];
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas”.
No caso de prova gravada, incumbindo ainda ao recorrente [vide n.º 2 al. a) deste artigo 640º] “sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”.
Sendo ónus do mesmo apresentar a sua alegação e concluir de forma sintética pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão – artigo 639º n.º 1 do CPC - na certeza de que as conclusões têm a função de delimitar o objeto do recurso conforme se extrai do n.º 3 do artigo 635º do CPC.
Pelo que destas conclusões é exigível que das mesmas conste, no mínimo e de forma clara, quais os pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados, sob pena de rejeição da reapreciação da decisão de facto.
Podendo os demais requisitos serem extraídos do corpo alegatório.
Embora na jurisprudência se encontrem posições mais ou menos exigentes quanto aos elementos que das conclusões devem constar, este é um denominador mínimo comum a todas elas [fazendo uma resenha alargada desta temática vide Ac. TRG de 07/04/2016, nº de processo 4247/10.3TJVNF.G1; in www.dgsi.pt/jtrg; ainda Acs. STJ de 01/10/2015, nº de processo 824/11.3TTLRS.L1.S1; de 29/10/2015 nº de processo 233/09.4TBVNC.G1.S1; de 06/12/2016 nº de processo 437/11.0TBBGC.G1.S1; e de 27/09/2018 nº de processo 2611/12.2TBSTS.L1.S1, onde se afirma “Como decorre do artigo 640 supra citado o recorrente não satisfaz o ónus impugnatório quando omite a especificação dos pontos de facto que entende terem sido incorretamente julgados, uma vez que é essa indicação que delimita o objeto do recurso”, todos in www.dgsi.pt].
Tratamento diverso merece o vício imputado à decisão de facto com base em eventual vício de deficiência, obscuridade ou contradição da decisão proferida, que quando invocado e se procedente, ou mesmo conhecido oficiosamente, poderá implicar quando dos autos não constem todos os elementos necessários, a anulação da decisão de facto para suprimento de tais vícios ou ampliação da decisão de facto nos termos do artigo 662º nº 2 al. c) do CPC.
Estes últimos vícios não estão, como tal, sujeitos aos requisitos impugnativos prescritos no artigo 640º nº 1 do CPC “os quais só condicionam a admissibilidade da impugnação com fundamento em erro de julgamento dos juízos probatórios concretamente formulados”.
Requisitos impugnativos de admissibilidade da impugnação da decisão de facto com base em erro de julgamento que encontram o seu fundamento na garantia da “adequada inteligibilidade do objeto e alcance teleológico da pretensão recursória, de forma a proporcionar o contraditório esclarecido da contraparte e a circunscrever o perímetro do exercício do poder de cognição pelo tribunal de recurso”.[2]
ii- Na reapreciação da matéria de facto – vide nº 1 do artigo 662º do CPC - a modificação da decisão de facto é um dever para a Relação, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou a junção de documento superveniente impuser diversa decisão.
Cabendo ao tribunal da Relação formar a sua própria convicção mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou que se mostrem acessíveis.
Sem prejuízo de e quanto aos factos não objeto de impugnação, dever o tribunal de recurso sanar mesmo oficiosamente e quando para tal tenha todos os elementos, vícios de deficiência, obscuridade ou contradição da factualidade enunciada, tal como decorre do disposto no artigo 662º n.º 2 al. c) do CPC.
Assim e sem prejuízo das situações de conhecimento oficioso que impõem ao tribunal da Relação, perante a violação de normas imperativas, proceder a modificações na matéria de facto, estão estas dependentes da iniciativa da parte interessada tal como resulta deste citado artigo 640º do CPC.
Motivo por que e tal como refere António S. Geraldes in “Recursos no Novo Código do Processo Civil, 2ª ed. 2014, em anotação ao artigo 662º do CPC, p. 238 “à Relação não é exigido que, de motu próprio, se confronte com a generalidade dos meios de prova que estão sujeitos à livre apreciação e que, ao abrigo desse princípio, foram valorados pelo tribunal de 1ª instância, para deles extrair, como de se tratasse de um novo julgamento, uma decisão inteiramente nova. Pelo contrário, as modificações a operar devem respeitar em primeiro lugar o que o recorrente, no exercício do seu direito de impugnação da decisão de facto, indicou nas respetivas alegações que servem para circunscrever o objeto do recurso. Assim o determina o princípio do dispositivo (…)”.
Sobre a parte interessada na alteração da decisão de facto recai portanto o ónus de alegação e especificação dos concretos pontos de facto que pretende ver reapreciados; dos concretos meios de prova que impõem tal alteração e da decisão que a seu ver sobre os mesmos deve recair, sob pena de rejeição do recurso.
Tendo presente que o princípio da livre apreciação das provas continua a ser a base, nomeadamente quando em causa estão documentos sem valor probatório pleno; relatórios periciais; depoimentos das testemunhas e declarações de parte [vide art.os 341º. a 396º. do Código Civil (C.C.) e 607.º, n.os 4 e 5 e ainda 466.º, n.º 3 (quanto às declarações de parte) do C.P.C.], cabe ao tribunal da Relação formar a sua própria convicção mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou que se mostrem acessíveis. Fazendo ainda [vide António S. Geraldes in ob. cit., em anotação ao artigo 662º do CPC, págs. 229 e segs. que aqui seguimos como referência]:
- uso de presunções judiciais – “ilações que a lei ou julgador tira de um facto conhecido para afirmar um facto desconhecido” (vide artigo 349º do CC), sem prejuízo do disposto no artigo 351º do CC, enquanto mecanismo valorativo de outros meios de prova;
- ou extraindo de factos apurados presunções legais impostas pelas regras da experiência em conformidade com o disposto no artigo 607º n.º 4 última parte (aqui sem que possa contrariar outros factos não objeto de impugnação e considerados como provados pela 1ª instância);
- levando em consideração, sem dependência da iniciativa da parte, os factos admitidos por acordo, os provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito por força do disposto no artigo 607º n.º 4 do CPC (norma que define as regras de elaboração da sentença) ex vi artigo 663º do CPC (norma que define as regras de elaboração do Acórdão e que para o disposto nos artigos 607º a 612º do CPC remete, na parte aplicável).
Por fim de realçar que embora não exigida na formação da convicção do julgador uma certeza absoluta, por via de regra não alcançável, quanto à ocorrência dos factos que aprecia, é necessário que da análise conjugada da prova produzida e da compatibilização da matéria de facto adquirida, extraindo dos factos apurados as presunções impostas por lei ou por regras da experiência (vide artigo 607º nº 4 do CPC) se forme no espírito do julgador a convicção de que com muito elevado grau de probabilidade os factos em análise ocorreram.
Neste contexto e na dúvida acerca da realidade de um facto ou da repartição do ónus da prova, resolvendo o tribunal a mesma contra a parte à qual o facto aproveita, tal como decorre do disposto nos artigos 414º do CPC e 346º do C.C..
iii- Na medida em que os recursos visam, por via da modificação de decisão antes proferida reapreciar a pretensão dos recorrentes por forma a validar o juízo de existência ou inexistência do direito reclamado, temos de concluir que a reapreciação da matéria de facto está limitada ao efeito útil que da mesma possa provir para os autos, em função do objeto processual delineado pelas partes e assim já antes submetido a apreciação pelo tribunal a quo [vide neste sentido Acs. do TRG de 12/07/2016, nº de processo 59/12.8TBPCR.G1; e de 11/07/2017 nº de processo 5527/16.0T8GMR.G1 ambos in www.dgsi.pt/jtrg ].
iv- Pelos mesmos motivos, temos igualmente de concluir que as questões novas antes não suscitadas nem apreciadas pelo tribunal a quo nos termos do artigo 608º nº 2 do CPC, não podem pelo tribunal de recurso ser consideradas, salvo se de conhecimento oficioso [vide, entre outros, Ac. TRC de 14/01/14, nº de processo 154/12.3TBMGR.C1; Ac. TRP de 16/10/2017, nº de processo 379/16.2T8PVZ.P1; Ac. TRG de 08/11/2018 nº de processo 212/16.5T8PTL.G1; Ac. TRP de 10/02/2020, nº de processo 22441/16.1T8PRT-A.P1, todos in www.dgsi.pt].
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Tendo presentes estes considerandos e revertendo ao caso concreto, das conclusões de recurso não constam quais os pontos da decisão de facto concretas sobre os quais recai a crítica da recorrente imputando erro de julgamento. Ou ainda omissão de factos considerados relevantes.
Note-se que a recorrente identifica em sede factual o que considera (entende-se) deveria ter sido dado como provado – vide pontos I a IX do ponto (I).
Contudo todos estes factos corresponderão a uma versão da R. que a mesma oportunamente não aportou aos autos.
Com efeito e tal como consta do relatório supra, a R. não apresentou nos autos contestação. Autos nos quais interveio [após a sua citação edital] em momento processual posterior à prolação do despacho saneador.
Os factos mencionados nas conclusões de I a IX correspondem portanto ao que hipoteticamente constituiria a defesa da R. se oportunamente tivesse contestado
Tal como já supra referido, na medida em que os recursos visam por via da modificação de decisão antes proferida, reapreciar a pretensão dos recorrentes por forma a validar o juízo de existência ou inexistência do direito reclamado, está vedado ao tribunal de recurso apreciar as questões novas antes não suscitadas nem apreciadas pelo tribunal a quo, nos termos do artigo 608º nº 2 do CPC, salvo se de conhecimento oficioso.
O mesmo é dizer que não pode este tribunal de recurso reapreciar a prova produzida com vista a aquilatar se os factos novos alegados pela recorrente só agora no recurso e não no momento processual adequado foram cabalmente demonstrados[3]. Factos que enquanto matéria de exceção não são de conhecimento oficioso.
À recorrente incumbia, sim, promover por referência à factualidade alegada nos autos e alvo da prova produzida, a sua reapreciação com vista a demonstrar o erro de julgamento por parte do tribunal a quo.
Erro na apreciação da prova que na sua perspetiva conduziria à alteração da decisão de facto.
E para tanto impunha-se em primeiro lugar que de forma concreta e inequívoca identificasse quais os factos provados [já que não constam elencados factos não provados neste segmento decisório] que impugna e são objeto de reapreciação neste recurso.
A afirmação de que “O teor da douta sentença, no que concerne aos factos dados como provados, aglutinando por tal devir, a tese do autor, devem ser objeto de reversão total e absoluta, sendo por via desse efeito, preferida douta decisão superior, que sufrague a posição da ré, considerando toda a prova gravada, e devidamente posta em evidência, conjugando-a ainda, com o senso comum e a lógica das coisas, não esquecendo a experiência vivenciada do ser humano.” [conclusão XII do ponto (I)] não cumpre tal desiderato.

Neste sentido se decidiu, entre outros nos seguintes Acórdãos do nosso tribunal superior (in www.dgsi.pt):
- Ac. do STJ de 27.9.2018, nº de processo 2611/12.2TBSTS.L1.S1:
“I - Como decorre do art. 640.º do CPC o recorrente não satisfaz o ónus impugnatório quando omite a especificação dos pontos de facto que entende terem sido incorretamente julgados, uma vez que é essa indicação que delimita o objeto do recurso.”
- Ac. do STJ de 3.11.2020, nº de processo 294/08.3TBTND.C3.S1:
“II - Para efeitos do disposto nos arts. 640.º e 662.º, n.º 1, do CPC, de acordo com a abundante jurisprudência do STJ, importa distinguir, de um lado, entre as exigências da concretização dos pontos de facto incorretamente julgados (art. 640.º, n.º 1, al. a)), da especificação dos concretos meios probatórios convocados (art. 640.º, n.º 1, al. b)) e da indicação da decisão a proferir (art. 640.º, n.º 1, al. c)) - que têm por função delimitar o objeto do recurso e fundamentar a impugnação da decisão da matéria de facto - e, de outro lado, a exigência da indicação exata das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados (art. 640.º, n.º 2, al. a)) - que visa facilitar o acesso aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação. Enquanto a inobservância das primeiras (art. 640.º, n.º 1, als. a), b) e c)) implica a rejeição imediata do recurso na parte infirmada, o incumprimento ou o cumprimento deficiente da segunda (art. 640.º, n.º 2, al. a)) apenas acarreta a rejeição nos casos em que dificultem, gravemente, a análise pelo tribunal de recurso e/ou o exercício do contraditório pela outra parte.
III - Na apreciação da (in)observância dos ónus previstos no art. 640.º do CPC, há que levar em devida linha de conta que a impugnação da matéria de facto não se destina a reiterar um julgamento na sua totalidade, mas antes a corrigir determinados aspetos que o recorrente entenda não terem merecido um tratamento adequado por parte do tribunal a quo.
(…)
V - Se um dos fundamentos do recurso é o erro de julgamento da matéria de facto, compreende-se que o recorrente tenha de propor ou indicar o sentido correto da resposta, que na sua perspetiva, se impõe seja dada a tais pontos de facto impugnados - especificando quais dos factos impugnados considera não provados na totalidade ou provados parcialmente, restritiva ou explicativamente, explicitando-o claramente.”
- Ac. STJ de 26/05/2021, nº de processo 423/17.6T8BJA.L1.S1:
“deve ser rejeitada a impugnação da decisão de facto se e quando houver:
- falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados (arts. 640.º/1/a), 635.º/4 e 641.º/2/b) do CPC);
(…)
Efetivamente, sem prejuízo dos ónus a cargo do recorrente, impostos pelo art. 640.º do CPC, deverem ser apreciados com rigor – como consequência do princípio da autorresponsabilidade das partes – impedindo-se que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa manifestação genérica de inconformismo das partes, o certo é que há muito este STJ vem defendendo que há que compaginar o cumprimento dos ónus de alegação do art. 640.º com os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade e assim evitar, em tal apreciação, os efeitos dum excessivo formalismo[…].
É justamente por isto que se vem entendendo que o recorrente não tem que reproduzir exaustivamente nas conclusões da alegação de recurso o alegado no corpo da alegação, bastando que, nas conclusões, respeite o art. 639.º/1 do CPC, afirmando a sua pretensão no sentido da alteração da matéria de facto e concretizando os pontos que pretende ver alterados; desde que, como é evidente, previamente, no corpo da alegação, haja cumprido os demais ónus, especificando e apreciando criticamente os meios de prova produzidos, que, no seu entender, determinam uma decisão diversa e deixe expressa a decisão que, no seu entender, deve ser proferida.
Efetivamente, como é uniformemente referido pela jurisprudência deste STJ[…], são as conclusões que delimitam o objeto do recurso, segundo a regra geral que se extrai do art. 635.º do CPC, de modo que a indicação dos pontos de facto cuja modificação é pretendida pelo recorrente não poderá deixar de ser enunciada nas conclusões, até por, acrescenta-se, as conclusões confrontarem o recorrido com o ónus de contra-alegação, evitando dúvidas sobre o que realmente pretende o recorrente, e servirem ainda para delimitar o objeto do recurso (nos termos do referido art. 635.º do CPC).”
Em suma, atento o entendimento por nós expresso, conforme à reiterada corrente jurisprudencial vinda de citar, quanto ao ónus de enunciação que sobre a recorrente recaía - especificar de forma clara e concreta quais os pontos factuais cuja modificação era por si pretendida - é de concluir que a mesma não respeitou tal ónus com a consequente rejeição da reapreciação da decisão de facto com base neste fundamento.
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Rejeitada a reapreciação da decisão de facto com fundamento na não observância dos ónus de impugnação que sobre a recorrente recaíam, resulta prejudicada a apreciação da questão suscitada sobre a admissibilidade do documento emitido pelo CC… e elencada como questão B) objeto do recurso.
Com efeito, estando em causa documento cujo valor probatório para os factos julgados provados sempre seria sujeito à livre apreciação do tribunal, na conjugação dos demais elementos probatórios oferecidos aos autos, resulta inútil a apreciação da questão suscitada, atenta a prévia rejeição da reapreciação da decisão de facto.
Em conclusão, por inútil, fica prejudicado o conhecimento de tal questão.
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Do direito.
Em terceiro lugar cumpre apreciar se ocorreu errada subsunção jurídica dos factos ao direito.
A pretendida absolvição da R. do pedido, estava dependente claramente da por si pugnada alteração da decisão de facto.
Mantida na integra a decisão de facto na qual o tribunal a quo fundou a sua subsunção jurídica, não merece censura o decidido.
Na verdade e de acordo com os factos provados, o autor efetuou uma transferência bancária de conta da sua titularidade para conta titulada pela R..
Transferência que efetuou por engano, porquanto jamais pretendeu transferir para a R. tal quantia – 5 mil libras a que acresceram mais € 5,00 como forma de identificar o titular da conta para onde havia efetuado a primeira transferência por engano.
Estando na base da transferência bancária efetuada um engano, corresponde o valor recebido pela R. a um enriquecimento sem causa justificativa e à custa do património do autor.
Dispõe o art.º 473º do C.C. "1. Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustificadamente se locupletou.
2. A obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objeto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou".
Tem este instituto natureza subsidiária, conforme decorre do art.º 474º do C.C., ou seja “Não há lugar à restituição por enriquecimento, quando a lei facultar ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído, negar o direito à restituição ou atribuir outros efeitos ao enriquecimento.”
Apurado que o A. efetuou transferência bancária para conta da R. por engano, carece aquela de causa justificativa, representando um enriquecimento do património da R. à custa do proporcional empobrecimento do património do primeiro para os fins previstos no artigo 473º do CC.
Os valores transferidos devem assim ser restituídos ao autor, tal como o mesmo peticionou, sendo este o meio próprio para o autor obter tal pretensão fundada em erro ao mesmo imputável (vide artigo 474º do CC).
Em suma, nenhuma censura merece o decidido.
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IV. Decisão.
Pelo exposto, acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto em julgar totalmente improcedente o recurso interposto, consequentemente confirmando a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.

Porto, 2022-01-10
Fátima Andrade
Eugénia Cunha
Fernanda Almeida
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[1] Realce nosso.
[2] Cfr. Ac. STJ de 22/03/2018, nº de processo 290/12.6TCFUN.L1.S1, in www.dgsi.pt
[3] Cfr. neste sentido Ac. STJ de 15/09/2021, nº de processo 559/18.6T8VIS.C1.S1 in www.dgsi.pt