CRIME DE DIFAMAÇÃO
DANO PSICOLÓGICO
CRÍTICA ACUTILANTE
DIREITO À INDIGNAÇÃO
Sumário

Fazer uma crítica exagerada, grosseira e contrária aos parâmetros da cortesia e da boa educação a um serviço público e, acessoriamente, a um seu profissional, num contexto entendido como de negação ilegítima de acesso a tratamentos essenciais à recuperação da saúde, como crítica que é, não é suficiente para mobilizar a tutela penal.
A exigência de proporcionalidade não deve chegar ao ponto de no âmbito da crítica acutilante a um serviço público, se vedar em absoluto a utilização de expressões, mesmo as laterais ou acessórias, sarcásticas ou acutilantes suscetíveis de causar incómodo ou mesmo dano (v.g. psicológico).

Texto Integral

Acordam, em conferência, os Juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I – Relatório

a. No 2.º Juízo (1) Local de Entroncamento, do Tribunal Judicial da comarca de Santarém, foi o presente distribuído como processo comum, da competência do tribunal singular.

No controlo liminar do processo, efetuado nos termos previstos no artigo 311.º do Código de Processo Penal (CPP), a Mm.a Juíza considerou que a acusação era manifestamente infundada, por os factos nela imputados à arguida não constituírem crime, pelo que a rejeitou (artigo 311.º, § 2.º, al. a) e § 3.º, al. d) CPP), e em sequência disso rejeitou também o pedido de indenização cível fundado na prática do respetivo ilícito.

b. Inconformado com essa decisão dela vem o Ministério Público recorrer, finalizando a respetiva motivação com as seguintes conclusões (transcrição):

«1. A Mm.a. Juiz a quo rejeitou a acusação, considerando-a manifestamente infundada, com fundamento em que os factos descritos na mesma à luz da jurisprudência maioritária do TEDH e da CEDH não integram um crime de difamação.

2. A acusação apenas pode considerar-se manifestamente infundada se, em face dos seus próprios termos, não tem condições de viabilidade, quando a factualidade em causa não consagra de forma inequívoca qualquer conduta tipificadora de um crime, juízo que tem de assentar numa constatação objetivamente inequívoca e incontroversa da inexistência de factos que sustentam a imputação efetuada.

3. Como decorrência do princípio do acusatório consagrado no artigo 32.º, n.º 5 do CRP a rejeição da acusação com fundamento na previsão da al. d) do n.° 3 do art.º 311.° não pode valer para os casos em que só o entendimento doutrinal ou jurisprudencial adotado, quando outro diverso se poderia colocar, sustentou a não qualificação dos factos como penalmente relevantes.

4. Tal não é manifestamente o caso, em que apenas através do recurso à interpretação dada às normas legais em referência (v.g., artigo 180.º do Código Penal, o direito à honra por contraposição com o direito à liberdade de expressão) e com recurso a jurisprudência e doutrina se concluiu pela falta de relevo jurídico penal da conduta descrita na acusação.

5. Ademais, a decisão de rejeição de acusação descontextualizou os factos, não apreciando os mesmos na sua globalidade.

6. Não é manifestamente infundada a acusação que imputou à arguida a prática de um crime de difamação agravada, por ter remetido de uma mensagem de correio eletrónico aos serviços onde o assistente presta serviço como médico, após este ter desaconselhado a marcação de sessão de fisioterapia à respetiva mãe com fundamento na situação pandémica, adjetivando a conduta deste como vergonhosa e afirmando que «deixa morrer só porque não nos queremos incomodar ou ter trabalho» e apelidando-o de «aprendiz de médico que só serve para passar receitas e mal».

7. De facto, ao imputar ao arguido, como médico de saúde pública, uma conduta de recusa de assistência ao doente, de se conformar com a sua morte, apenas por comodidade ou preguiça, além de ser, contrário à realidade, é indubitavelmente uma ofensa à sua honra profissional, indo muito além do direito de crítica admissível.

8. No despacho recorrido a Mm.a Juiz a quo, valorou de forma crítica a relevância jurídico penal dos factos, optando por considerar que não consubstanciam a prática do crime de difamação, quando na realidade não é inequívoca a sua falta de relevância jurídico penal.

9. Pelo que, tal decisão violou o disposto no artigo 311.º, n.º 2, al. a) e n.º 3, al d) do Código de Processo Penal, no artigo 180.º do Código Penal e no artigo 32.º, n.º 5 da CRP.

10. Consequentemente, deve o despacho recorrido ser revogado e ser substituído por outro que receba a acusação pública e designe data para julgamento.»

c) Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ministério Público junto desta instância emitiu entendimento no sentido da procedência do recurso.

d) Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP, a arguida veio manifestar a sua integral adesão aos fundamentos da decisão recorrida, que considera justa.

e) Teve lugar a conferência.

II – Fundamentação

1. Objeto do recurso O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (artigo 412.º, § 1.º CPP) (2). De acordo com as conclusões do recorrente, verificamos que a única questão aportada ao conhecimento desta instância de recurso é a de saber se a acusação deduzida pelo Ministério Público não é manifestamente infundada.

2. O despacho recorrido

A Mm.a Juíza a quem os autos foram distribuídos para julgamento na 1.º instância proferiu o seguinte despacho liminar (311.º CPP):

«(…)

REJEIÇÃO DA ACUSAÇÃO

Nos termos do disposto no artigo 311.º, n.ºs 1, 2, alínea a) e 3, alínea d), do Código de Processo Penal, recebidos os autos, o juiz pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer, devendo, nos casos em que não tenha havido instrução e considere a acusação manifestamente infundada, nomeadamente por os factos que dela constam não constituírem crime, rejeitar a acusação.

Analisada a acusação deduzida contra a Arguida, constata-se que o Ministério Público lhe imputa a prática de um crime de difamação agravada, p. e p. pelos artigos 180.º, n.º 1 e 184.º, por referência ao artigo 132.º, n.º 2, alínea l), todos do Código Penal.

De acordo com tais normativos legais, «Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias.», sendo que tais penas são elevadas de metade «nos seus limites mínimo e máximo se a vítima for uma das pessoas referidas na alínea l) do n.º 2 do artigo 132.º, no exercício das suas funções ou por causa delas, ou se o agente for funcionário e praticar o facto com grave abuso de autoridade.»

A conduta objetiva típica deste tipo criminal consiste na imputação de factos ou formulação de juízos sobre outra pessoa ou reprodução de tal imputação ou juízo que, em qualquer dos casos, sejam ofensivos da honra ou consideração do visado, e perante terceiro(s).

Por facto entende-se uma afirmação de realidade ou de existência e por juízo uma afirmação do valor acerca de determinada realidade ou pessoa.

Este crime, como o evidencia a respetiva inserção sistemática, visa a defesa do bem jurídico honra e consideração, entendendo-se como tal, numa conceção normativa-pessoal de honra, a pretensão de respeito que cada um tem, inerente à sua qualidade e dignidade de pessoa, por um lado, e à sua reputação exterior (enquanto opinião objetiva sobre as suas qualidades morais e sociais), por outro.

Segundo o ensinamento de BELEZA DOS SANTOS (in «Algumas considerações jurídicas sobre crimes de difamação e de injúria», apud Revista de Legislação e Jurisprudência, anos 92 e 95, página 164) «a honra é aquele mínimo de condições, especialmente de natureza moral, que são razoavelmente consideradas essenciais para que um indivíduo possa com legitimidade ter estima por si, pelo que é e vale». Por sua vez, a consideração será o património de bom nome, de crédito, de confiança que cada um adquire ao longo da sua vida, sendo, nestes moldes, o aspeto exterior da honra, já que provém do juízo em que cada um de nós é tido pelos outros. Será, então, o merecimento que a pessoa tem no meio social, a reputação, a boa fama, a estima, a dignidade objetiva, ou seja, a forma como cada sociedade vê cada pessoa.

A doutrina dominante adota uma conceção dual da honra, vista como um bem jurídico complexo que inclui quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exterior.

Assim, o que a norma incriminadora pela qual a Arguida vem acusada protege é a honra interior inerente à pessoa enquanto portadora de valores espirituais e morais e, para além disso, a valência deles decorrente, a sua reputação no seio da comunidade.

Como tem sido sublinhado pela Doutrina e Jurisprudência, a difamação não será punida em todos os casos em que funcione a denominada cláusula geral de adequação social (independentemente de se configurar a mesma como uma causa de justificação implícita ou como verdadeira causa de exclusão da tipicidade) – cf. Germano Marques da Silva, in «Direito Penal Português, Parte Geral, II, Teoria do Crime, Verbo, 2005, páginas 83 a 85.

Efetivamente, nem todo o comportamento incorreto de um indivíduo e nem todos os factos cuja imputação cause melindre ou desconforto ou corresponda a uma desconsideração pessoal, embaraço ou humilhação merecem tutela penal, havendo que distinguir indelicadeza, grosseria e falta de educação de verdadeiros ataques à honra, merecedores de tutela penal.

Nas palavras do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 04-11-2020 (disponível em www.dgsi.pt, processo n.º 2294/17.3T9VFR.P1) «… como é normal, entre os membros de uma comunidade há um certo grau de conflitualidade e animosidade, ocorrendo situações em que os cidadãos se podem expressar de forma deselegante ou indelicada, só devendo o direito intervir nas situações em que é atingido o núcleo essencial das qualidades morais inerentes à dignidade humana.»

Com efeito, atenta a natureza de ultima ratio do Direito Penal e os princípios de intervenção mínima, subsidiariedade e proporcionalidade que o conformam, o mesmo só deverá interferir na medida em que a ofensa aos bens jurídicos protegidos pela norma seja suficientemente gravosa para invocar o arsenal de reação próprio deste ramo do Direito, de acordo com o critério constitucional da «necessidade social» (cf. artigo 18.º, n.º 2, in fine, da Constituição).

Ademais, e em linha com esta asserção (que impõe já um exercício exigente e restritivo de integração da norma), sendo o bem jurídico protegido do foro pessoal e íntimo, o juízo de tipicidade não poderá depender do critério de cada um (nomeadamente da circunstância de o ofendido se ter ou não sentido lesado na sua honra pela afirmação ou imputação em causa), mas terá de ser aferido de acordo com o sentimento médio de honra da comunidade.

Nas palavras de BELEZA DOS SANTOS (op. cit. página 167, citado no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 09-10-2019, disponível em www.dgsi.pt, processo n.º 4161/16.9T9LSB-3), «aquilo que a generalidade das pessoas de um certo país e no ambiente em que se passaram os factos, não considera difamação ou injúria, não deverá dar lugar a uma sanção reprovadora, como é a pena. (...) Em conclusão: não deve considerar-se ofensivo da honra e consideração de outrem tudo aquilo que o queixoso entenda que o atinge, de certos pontos de vista, mas aquilo que razoavelmente, isto é, segundo a sã opinião da generalidade das pessoas de bem, deverá considerar-se ofensivo daqueles valores individuais e sociais. (...) O que pode ser ofensa ilícita em certo lugar, meio, época ou para certas pessoas, pode não o ser em outro lugar ou tempo.»

Ora, se é certo que a proteção (inclusive penal) da honra encontra fundamento constitucional no artigo 26.º da CRP (onde se reconhecem a todos os direitos, além do mais, ao desenvolvimento da personalidade, ao bom nome e reputação, à imagem e à reserva da intimidade da vida privada e família), não é menos exato que a liberdade de expressão, tantas vezes conflituante com a primeira na subsunção da realidade da vida aos tipos criminais previstos no capítulo VI do título I do Livro II do Código Penal, é igualmente garantida a todos os cidadãos nos artigos 37.º e 38.º da nossa Lei Fundamental, que consagram o direito de todos a exprimir e divulgar livremente o pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, a informarem e a serem informados, sem impedimento, nem discriminação, não podendo ser impedido ou limitado o exercício desse direito, por qualquer tipo ou forma de censura.

Hodiernamente, a resolução das situações de conflito entre estes dois direitos fundamentais com consagração constitucional já não é passível de ser resolvida simplesmente pela aplicação de um critério de concordância prática à luz do artigo 18.º, n.º 2, da CRP.

Com efeito, a adesão de Portugal a instrumentos internacionais que consagram a liberdade de expressão e de opinião (nomeadamente a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 10 de Dezembro de 1948, no seu artigo 19.º, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, aprovado, para ratificação, pela Lei nº 29/78, de 12 de Junho, no seu artigo 19.º e a Convenção Europeia dos Direitos Humanos - doravante abreviadamente designada por «CEDH» - no seu artigo 10.º) importa que, por força do disposto no artigo 8.º, n.º 2, da Constituição, se considerem as normas destes instrumentos, e, em particular da CEDH, pelo menos (e seguindo a doutrina maioritária), como direito infraconstitucional mas supralegal.

Logo, eventuais conflitos entre o direito à honra, por um lado, e a liberdade de expressão, por outro, não poderão deixar de ser resolvidos à luz do particular critério que é fornecido pela CEDH, instrumento internacional que, nas palavras do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 01-07-2014 (disponível em www.dgsi.pt, processo n.º 53/11.6TAEZ.E2), «… surge na ordem jurídica europeia no pós guerra como forma de obviar, precisamente, à continentalidade conflituosa centro europeia, com o que ela tradicionalmente tinha (tem?) de centralismo estatal e de abusos de direitos do cidadão frente a estados excessivamente fortes e com uma “natural” (histórica) incapacidade de reconhecer a importância de uma sociedade civil forte e não esmagada pela raison d´Etat ou grupos de interesses. Em suma, pretende-se mais Locke que Rousseau.»

Como decorre do teor dos n.ºs 1 e 2 do artigo 10.º da CEDH, neste instrumento internacional a relevância da liberdade de expressão, plasmada no n.º 1 da norma, é cimeira, admitindo-se restrições à mesma apenas nas concretas e limitadas situações elencadas no n.º 2.

Efetivamente, prevendo-se no artigo 10.º, n.º 1, da CEDH que «Qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber ou de transmitir informações ou ideias sem que possa haver ingerência de quaisquer autoridades públicas e sem considerações de fronteiras.», no n.º 2 admite-se que este direito sofra formalidades, condições, restrições ou sanções, previstas pela lei, desde que «constituam providências necessárias, numa sociedade democrática, para a segurança nacional, a integridade territorial ou a segurança pública, a defesa da ordem e a prevenção do crime, a proteção da saúde ou da moral, a proteção da honra ou dos direitos de outrem, para impedir a divulgação de informações confidenciais, ou para garantir a autoridade e a imparcialidade do poder judicial».

Como se conclui no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 01-07-2014 (acima já citado), «… numa sociedade actual moderna e saudavelmente respeitadora de direitos a liberdade de expressão não está ao mesmo nível da defesa da honra. Esta é um direito de cariz marcadamente individual. Aquele é um direito charneira na organização de uma sociedade que se auto-limita por direitos.».

A este propósito, e com base naquilo que a letra e a sistemática da CEDH já sugeriam, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (doravante abreviadamente designado por «TEDH») há muito que vem fazendo uma construção diversa do caminho que, em momento pretérito, foi seguido pela nossa jurisprudência nacional.

De facto, os Juízes de Estrasburgo têm entendido e consignado de forma consistente (e em múltiplas decisões que versaram sobre a interpretação do artigo 10.º e o conflito entre liberdade de expressão e de opinião e direito individual à honra) que, constituindo a liberdade de expressão um dos pilares fundamentais do Estado de Direito democrático e uma das condições primordiais do seu progresso e do desenvolvimento de cada pessoa e inexistindo sociedades democráticas sem pluralismo, tolerância e abertura de espírito, as exceções vertidas no n.º 2 do artigo 10.º devem ser interpretadas de modo restrito e devem corresponder a uma imperiosa necessidade social. Considera esta jurisprudência que a liberdade de expressão admite e impõe a aceitação, com alguns limites, de expressões ou outras manifestações que criticam, chocam, ofendem, exageram ou distorcem a realidade.

Paralelamente, o TEDH tem também sublinhado a necessidade ponderar o sentido das expressões, integrando-as no contexto em que surgiram e considerando que «mesmo os juízos de valor suscetíveis de reunirem indiscutivelmente apenas um conteúdo ofensivo, podem merecer a protecção da liberdade de expressão, desde que sejam dotados de uma base factual mínima e de uma explicação objectivamente compreensível de crítica sobre realidades objectivas, nomeadamente, prestações, desempenhos, realizações, trabalhos e obras, em assunto de interesse público ou em debate de natureza política.» (cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 09-10-2019, acima identificado).

Mais tem sido considerado pelo TEDH que os políticos e outras figuras públicas, com cargos públicos ou incumbidos de funções públicas, (incluindo assessores de políticos, juízes, diplomatas, funcionários públicos, funcionários contratados, dirigentes de entidades financiadas pelo erário público e mesmo familiares de políticos) pela sua exposição, pela discutibilidade das suas ideias e até pelo controle a que devem ser sujeitos, quer pela comunicação social, quer pelo cidadão comum, devem ser mais tolerantes a críticas do que os particulares, sendo admissível um maior grau de intensidade das críticas. (Neste ponto seguimos de perto a súmula do Tribunal da Relação de Lisboa, de 09-10-2019, disponível em www.dgsi.pt, processo n.º 4161/16.9T9LSB-3).

Ou seja, o TEDH não parte da tutela da honra para aquilatar da concordância prática da mesma com a liberdade de expressão e opinião, mas parte da liberdade de expressão e situa a honra como um fundamento para uma possível restrição à mesma. Este Tribunal Europeu parte da prevalência da liberdade de expressão, enquanto pilar da sociedade democrática, e situa a honra num segundo momento da aplicação da lei, designadamente criminal, daqui decorrendo, pois, que é esta a lógica da ponderação de valores que deverá ser decalcada em cada caso concreto onde as duas realidades se evidenciem como conflituantes.

Tal jurisprudência não poderá deixar de ser atendida, atenta a autoridade interpretativa da mesma e as consequências que a discrepância de uma decisão com aquele que é o entendimento do TEDH poderá ter ao nível da revisão da própria sentença, nos termos dos artigos 696.º, alínea f), do Código de Processo Civil e 449.º, n.º 1, alínea g), do Código de Processo Penal (cf. Henriques Gaspar in «A Influência do CEDH no diálogo inter-jurisdicional», apud Revista Julgar nº 7, página 49, citado no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 09-10-2019, acima já referido, e no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 13-07-2020, disponível em www.dgsi.pt, processo n.º 377/18.1T9BCL.G1).

Deste modo, e perante cada caso concreto em que se pondere se a liberdade de expressão deverá ser sacrificada para defesa da honra, caberá verificar se (i) tal restrição está prevista na lei (o que sucede nos crimes contra a honra, em que a sanção penal para a violação deste bem jurídico está legalmente tipificada) e (ii) se é uma providência necessária numa sociedade democrática (ou seja, se existe uma necessidade social imperiosa que justifique uma condenação).

Relativamente a este último requisito, a Jurisprudência do TEDH tem também entendido que o mesmo deverá ser concretizado em situações em que a lesão da honra tem repercussões sociais inaceitáveis, tais como nos incitamentos à violência ou ao ódio contra pessoas ou grupos ou apelos à intolerância.

A propósito da densificação desta exceção pela jurisprudência do TEDH, cumpre recordar a decisão Amorim Giestas e Jesus Costa Bordalo c. Portugal (3 de Abril2014, § 36), na qual se considerou que uma vez que o ordenamento jurídico português contém um remédio civil para a proteção da honra e reputação no artigo 70º do Código Civil, a aplicação de multas penais acrescidas de indemnização não se revelava necessária numa sociedade democrática.

Na senda das decisões do TEDH perfilhando o entendimento que se acaba de explanar, tem-se sedimentado na nossa doutrina e jurisprudência o entendimento segundo o qual a liberdade de expressão deverá ser ponderada logo ao nível do tipo-incriminador e não apenas em sede de causas de justificação, sendo atípica a crítica objetiva, mesmo que desacertada, sem razão, desadequada, e considerando-se que o «direito de crítica, com este sentido e alcance, não conhece limites quanto ao teor, à carga depreciativa e mesmo à violência das expressões utilizadas, isto é, não se exige do crítico, para tornar claro o seu ponto de vista, o meio menos gravoso, nem o cumprimento das exigências da proporcionalidade e da necessidade objectiva.», mesmo que atinjam a honra do visado, mas desde que a valoração crítica seja adequada aos pertinentes dados de facto.

Assim, «os comportamentos típicos ficarão reduzidos às “críticas caluniosas”, bem como outros juízos exclusivamente motivados pelo propósito de rebaixar e humilhar e os juízos negativos sobre o visado que não contenham ligação com a matéria em discussão, tendo sempre presente que uma coisa é criticar a obra, outra muito distinta é agredir pessoalmente o autor e dar expressão a uma desconsideração dirigida à sua pessoa.» (cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 09-10-2019, acima referido.)

*

Feitas estas (extensas, mas necessárias) considerações acerca dos elementos que deverão ser convocados para a interpretação dos tipos criminais contra a honra (em particular a difamação, quer na sua forma simples, quer na sua forma agravada), quedemo-nos agora sobre a acusação deduzida nestes autos.

Compulsado o teor da acusação e as expressões nela plasmadas que, em abstrato, seriam suscetíveis de ser consideradas ofensivas, verifica-se que no libelo acusatório se imputa à Arguida ter escrito, em email que, segundo o que dali consta, terá sido dirigido para o email da unidade de saúde familiar em que o Assistente desempenha a sua atividade de médico, expressões com dois destinatários diferentes.

De um lado, pode ler-se que a Arguida alegadamente escreveu:

«Indica-se à utente VERGONHOSAMENTE, que deverá esperar 4 ou 5 meses e depois tratase do assunto!

É VERGONHOSO e LAMENTÁVEL, a forma como essa unidade de saúde presta cuidados! Ainda que nos encontremos numa época de Pandemia nacional, pergunto: Deixa morrer só porque não nos queremos incomodar ou ter trabalho?!

(…)

Segundo, as directrizes da DGS os serviços de saúde continuam em funcionamento, ainda que restrito. Ou será que o Coronavírus 2019-nCo V, afetou já o cérebro das pessoas dessa unidade?!

(…)

Por IGNORÂNCIA desse serviço a utente não tem que piorar ou deixar agravar a situação por estupidez alheia!»

De outro lado, imputa-se à Arguida ter escrito

«(…) não vou estar a espera 4 ou 5 meses que esse aprendiz de médico, sim porque apenas serve para passar uma receitas e mal, se digne passar a fisioterapia.»

Ora, como se afigura evidente, caso o teor da acusação viesse a ser dado, todo ele, como provado, apenas esta última expressão seria suscetível de configurar um crime de difamação agravada na pessoa do Assistente, pois só esta expressão se poderia concluir, atento o contexto de envio de email descrito na acusação, como tendo-lhe sido pessoalmente dirigida.

Quanto às demais expressões, acima transcritas, nenhuma das mesmas é dirigida ao Assistente, mas antes ao Centro de Saúde em causa, a quem lá trabalha, ao sistema em geral, de forma indefinida, pelo que, sendo este um crime semipúblico que depende de queixa (cf. artigo 188.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), e tendo apenas o Assistente manifestado desejar procedimento criminal, apenas aquela expressão poderia ser, hipoteticamente, valorada para efeitos de subsunção ao tipo incriminador.

Sucede, porém, que, como resulta do que acima se disse acerca dos parâmetros de densificação da norma incriminadora do crime de difamação e sua necessária compatibilização com a liberdade de expressão, à luz da CEDH, da jurisprudência do TEDH, e dos mais recentes entendimentos da nossa doutrina e jurisprudência sobre esta matéria e que supra se plasmaram, o juízo de valor ali alegadamente tecido acerca do Assistente, pese embora rude e indelicado, não poderá ser considerado como criminalmente típico a ponto de merecer tutela penal.

Acresce que o contexto narrado pela acusação espelha uma situação de desagrado por parte da Arguida relativamente ao modo de funcionamento do serviço público de saúde em causa, no contexto de pandemia, pelo que integra, claramente, o direito de crítica nos moldes que acima se citaram.

Como se disse e reitera, a crítica em causa (na forma como é narrada) é exagerada, grosseira e contrária aos parâmetros da cortesia e boa educação, mas como crítica que é, tais características não são suficientes para trazer as expressões em causa para o limiar da tutela penal.

Sublinhe-se que estas considerações valem não só para as expressões diretamente dirigidas à pessoa do Assistente, como para as demais expressões plasmadas na acusação e que se dirigem ao Centro de Saúde e pessoas que lá trabalham, abstratamente considerados, e que acima se transcreveram.

Ademais, percorrendo os crivos do artigo 10.º, n.º 2, da CEDH que supra também se enunciaram, apesar de a situação em causa contar com uma norma incriminadora à qual poderia ser potencialmente reconduzida, a verdade é que não se considera que a restrição da liberdade de expressão para punição penal da conduta em causa vise ou permita alcançar uma necessidade social imperiosa, na medida em que o discurso narrado não é claramente um discurso de incitamento ao ódio fundado na intolerância ou à violência, o visado é alguém que presta serviço público (e que, como se disse, se mostra, por essa razão, exposto a um maior grau de crítica) e as expressões vertidas na acusação são alegadamente lançadas no contexto dessa mesma atividade e a ela se reportando, e não já dirigidas à pessoa do Assistente, fora da sua esfera profissional.

Em suma: para além das expressões vertidas na acusação não revestirem, mesmo à luz das normas legais internas, gravidade suficiente para serem consideradas como merecedoras de reação penal, a eventual condenação da Arguida por ter proferido as mesmas constituiria, à luz da CEDH e da jurisprudência do TEDH, uma ingerência injustificada na liberdade de expressão, de onde se conclui que o comportamento imputado à Arguida, tal como descrito na acusação, se afigura atípico, i.e., os factos da acusação não constituem crime.

*

Constatando o Tribunal que o teor do email imputado à Arguida não constitui crime, mormente de difamação, conclui-se que a acusação, independentemente da prova que possa ser produzida em audiência, jamais poderá merecer um juízo de procedência em julgamento, com o disposto no artigo 311.º, n.ºs 1, 2 alínea a) e 3 alínea d), do Código de Processo Penal.

(…)»

4. Apreciando

4.1 Do vício estrutural da acusação (manifestamente infundada)

Sustenta o recorrente que a acusação não é manifestamente infundada, porquanto:

a) Apenas pode considerar-se manifestamente infundada a acusação se, em face dos seus próprios termos, não tiver condições de viabilidade; quando a factualidade em causa não consagra de forma inequívoca qualquer conduta tipificadora de um crime;

b) Juízo esse que tem de assentar numa constatação objetivamente inequívoca e incontroversa da inexistência de factos que sustentem a imputação efetuada;

c) A decisão de rejeição de acusação descontextualizou os factos, não apreciando os mesmos na sua globalidade.

O recorrente não tem razão.

Em primeiro lugar: a decisão recorrida não descontextualizou os factos. Sendo, aliás, patente, o contrário disso, bastando ver o modo como o despacho recorrido circunscreveu a factualidade relevante e sobre ela se debruçou:

«Compulsado o teor da acusação e as expressões nela plasmadas que, em abstrato, seriam suscetíveis de ser consideradas ofensivas, verifica-se que no libelo acusatório se imputa à Arguida ter escrito, em email que, segundo o que dali consta, terá sido dirigido para o email da unidade de saúde familiar em que o Assistente desempenha a sua atividade de médico, expressões com dois destinatários diferentes.

De um lado, pode ler-se que a Arguida alegadamente escreveu:

“Indica-se à utente VERGONHOSAMENTE, que deverá esperar 4 ou 5 meses e depois tratase do assunto!

É VERGONHOSO e LAMENTÁVEL, a forma como essa unidade de saúde presta cuidados! Ainda que nos encontremos numa época de Pandemia nacional, pergunto: Deixa morrer só porque não nos queremos incomodar ou ter trabalho?!

(…)

Segundo, as directrizes da DGS os serviços de saúde continuam em funcionamento, ainda que restrito. Ou será que o Coronavírus 2019-nCo V, afetou já o cérebro das pessoas dessa unidade?!

(…)

Por IGNORÂNCIA desse serviço a utente não tem que piorar ou deixar agravar a situação por estupidez alheia!”

De outro lado, imputa-se à Arguida ter escrito

“(…) não vou estar a espera 4 ou 5 meses que esse aprendiz de médico, sim porque apenas serve para passar uma receitas e mal, se digne passar a fisioterapia.”

Ora, como se afigura evidente, caso o teor da acusação viesse a ser dado, todo ele, como provado, apenas esta última expressão seria suscetível de configurar um crime de difamação agravada na pessoa do Assistente, pois só esta expressão se poderia concluir, atento o contexto de envio de email descrito na acusação, como tendo-lhe sido pessoalmente dirigida.»

Quanto às demais expressões, acima transcritas, nenhuma das mesmas é dirigida ao Assistente, mas antes ao Centro de Saúde em causa, a quem lá trabalha, ao sistema em geral, de forma indefinida, pelo que, sendo este um crime semipúblico que depende de queixa (cf. artigo 188.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), e tendo apenas o Assistente manifestado desejar procedimento criminal, apenas aquela expressão poderia ser, hipoteticamente, valorada para efeitos de subsunção ao tipo incriminador.

Em segundo lugar: o vício que se apontou à acusação não foi a míngua de factos face à imputação do crime de difamação à arguida; mas antes, que a factualidade acusanda, podendo em abstrato constituir crime de difamação, ela própria é reveladora de que não há crime de difamação nem são integradores de qualquer outro ilícito penal.

Com efeito, é absolutamente inequívoco que os factos imputados à arguida não constituem crime, designadamente o de difamação, previsto no artigo 180.º, § 1.º (e por consequência também não a agravação prevista no artigo 184.º, por referência ao artigo 132.º, § 2.º, al. l), todos do Código Penal [CP]).

Vejamos sumariamente porquê.

Estatui o artigo 180.º, § 1.º CP, que:

«Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra e consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido (…)»

Dispondo, por seu turno, o artigo 182.º, do mesmo código, que:

«À difamação e à injúria verbais são equiparadas as feitas por escrito, gestos, imagens ou qualquer outro meio de expressão.»

O bem jurídico tutelado é aqui, consabidamente, a honra, valor que corresponde àquele mínimo de condições que razoavelmente são consideradas essenciais para que uma pessoa possa, com legitimidade, ter estima por si, pelo que é e vale. Rabindranah Capelo de Sousa entende que «a honra abrange desde logo a projeção do valor da dignidade humana, que é inata, ofertada pela natureza igualmente para todos os seres humanos, insuscetível de ser perdida por qualquer homem em qualquer circunstância (...) Em sentido amplo, inclui também o bom nome e reputação, enquanto sínteses do apreço social pelas qualidades determinantes da unicidade de cada indivíduo no plano moral, intelectual, sexual, familiar, profissional ou político.» (3)

Constitui, na verdade um valor da dimensão social e pessoal de cada um com referência à comunidade histórico-social em que se integra.

O bom-nome de uma pessoa corresponde ao bom conceito em que ela se acha tida no meio social em que vive ou exerce a sua atividade. E a sua reputação pessoal, bem assim como a sua imagem pública, correspondem ao merecimento que a pessoa tem no meio social que integra, isto é, a boa-fama, a estima, o prestígio de que goza e a forma como a sociedade a vê. A tutela constitucional deste bem jurídico consta logo do artigo 26.º, § 1.º da Constituição.

Os meios de execução do ilícito poderão ser os mais diversos (através da palavra falada, por escrito, por gestos, etc.).

Na componente objetiva do tipo de ilícito, o acento tónico está tanto na imputação de factos que possam ser ofensivos (ainda que meramente sob suspeita); como na formulação de juízos sobre uma pessoa.

No plano subjetivo basta o dolo genérico, i. e., a consciência por parte do agente de que a sua conduta pode ofender a honra e consideração de outrem.

De modo breve pode dizer-se que se distingue a imputação de factos da imputação de juízo(s), do seguinte modo: o facto, traduz-se numa afirmação de realidade ou de existência (aquilo que é ou que acontece), sendo, portanto, um dado real da experiência; enquanto que o juízo constitui uma apreciação sobre o valor acerca de determinada realidade, uma pessoa ou uma coisa.

No concernente às opiniões ou juízos sobre factos, que é o que no caso importa, quando suscetíveis de afetar a honra de terceiros, uma vez que a verdade deles é indemonstrável, a sua ilicitude e consequente punibilidade haverá de depender de um juízo de proporcionalidade relativamente ao fim visado, sendo-o quando se demonstre o exclusivo propósito de caluniar, de rebaixar, de amesquinhar ou de humilhar o outro.

«Ninguém desconhece que as formas mais destruidoras da honra e da consideração de outrem não são as que exprimem, de modo direto, factos ou juízos atentatórios da honra e da consideração. Qualquer aprendiz da maledicência e muito particularmente o senso comum sabem que a insinuação, as meias verdades, a suspeita, o inconclusivo são a maneira mais conseguida de ofender quem quer que seja.» (4)

O presente recurso reage a uma decisão judicial que, no essencial, considerou que os juízos tangenciais feitos pela arguida sobre o assistente, na mensagem que aquela dirigiu à Unidade de Saúde …, no …, não constituem crime de difamação, na medida em que se mostram contextualmente enquadrados e justificados pelo exercício legítimo da liberdade de expressão da arguida.

A liberdade de expressão, a que se referem os artigos 37.º da Constituição da República, 19.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, 19.º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, 10.º, n.º 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, constitui um dos pilares fundamentais de qualquer sociedade democrática, condição primordial do seu progresso, bem assim como da autonomia e realização individual. É conatural ao funcionamento de qualquer democracia, não se concebendo esta sem aquela.

O conflito entre a consideração (honra) do assistente, por um lado, e a liberdade de expressão da arguida, por outro, tal como vem colocado no despacho recorrido, afigura-se óbvio.

O pendor material que assume a liberdade de expressão da arguida, coincide, num plano circunstancial, com a ação concreta por ela empreendida, consistente numa legítima indignação e manifesto protesto cívico, feito através do escrito dirigido à Unidade de Saúde …, no ….

Ninguém deixará de reconhecer que o direito de uma pessoa a livremente se exprimir não é apenas um direito fundamental do respetivo portador, pois ele integra, sobretudo, o direito deste criticar outrem, nomeadamente os serviços públicos, que estão vocacionados para servir a comunidade e cada um dos seus integrantes.

É bem verdade que a certa altura do escrito a que nos vimos referindo o assistente é mencionado, mas afigura-se igualmente evidente que o alvo daquela comunicação não é a sua pessoa, mas antes o Estado e em particular a Unidade de Saúde …, do ….

A menção ao assistente é a seguinte: «…esse aprendiz de médico, sim porque apenas serve para passar uma receitas e mal, se digne passar a fisioterapia», é como que um parenteses no objeto da mensagem. Na globalidade do escrito reclamatório; na expressão da sua indignação por ver a sua mãe privada de aceder aos tratamentos de fisioterapia de que necessitava, aquela referência surge desnecessariamente ao correr da pena, disparando a arguida em todas as direções!

Claro que ao deixá-lo dito (escrito) isso causa desconforto ao assistente e é decerto fonte de mal-estar psicológico deste. O que não se segue é que tudo o que cause incómodo ou mesmo dano (psicológico, p. ex.) deva, sem mais, ser levado à conta de ilícito (e, menos ainda, criminalmente ilícito).

A exigência de proporcionalidade não deve chegar ao ponto de no âmbito da crítica acutilante a um serviço público, se vedar em absoluto a utilização de expressões, mesmo laterais ou acessórias, sarcásticas ou acutilantes (5), como é manifestamente o caso.

Dado este contexto, o que realmente importa é realizar uma ponderação entre o interesse prosseguido com a imputação e o grau de lesão infligido à honra e consideração do visado, tomando em consideração todas as circunstâncias do caso, como muito bem faz a decisão recorrida.

O que ressalta é, pois, que as afirmações da arguida no referido escrito, não se mostram totalmente destituídas de base fáctica. E havendo, como há, uma base fáctica que contextualiza o juízo deseducado e desonroso, feito no exercício da liberdade de expressão, o mesmo não é ilícito numa sociedade democrática et pour cause tolerante. Sobretudo porque tal juízo desonroso não constituiu o cerne nem o objetivo da comunicação eletrónica emitida, surgindo marginalmente.

Com aquela sua crítica «exagerada, grosseira e contrária aos parâmetros da cortesia e boa educação», como bem refere a decisão recorrida, a arguida não visou enxovalhar ou rebaixar o assistente, antes reclamar do que considerou ser um funcionamento deficiente de um Serviço de Saúde, que na prática impedia a recuperação de perda de força do braço e para alivio das dores suportadas da doente, sua mãe.

Seguro é que - como muito bem também refere a decisão recorrida - «como crítica que é, tais características não são suficientes para trazer as expressões em causa para o limiar da tutela penal.»

Afastada está, definitivamente, a responsabilização penal.

E é esta conclusão que revela a inconsistência da questão processual levantada pelo recorrente, de que o juiz não poderia impedir a acusação de seguir para julgamento!

Vejamos, sumariamente, porquê.

O direito processual penal é «verdadeiro direito constitucional aplicado, numa dupla dimensão: os fundamentos do direito processual penal são, simultaneamente, os alicerces constitucionais do Estado; e a concreta regulamentação de singulares problemas processuais deve ser conformada jurídico-constitucionalmente» (6). Sendo este, justamente, o substrato e o contexto do controlo liminar do processo, previsto no artigo 311.º, § 2.º CPP.

Dada a estrutura essencialmente acusatória do processo penal português, é a acusação que fixa o objeto do processo, delimitando o poder cognitivo do juiz. Donde, esta terá necessariamente de conter a descrição dos factos (sobre os quais incidirá a prova) necessários à integração dos elementos constitutivos do ilícito em referência, sem o que não poderá seguir para julgamento. O mesmo sucedendo, logicamente, se os factos não constituírem crime, conforme expressamente se refere na al. d) do § 3.º do artigo 311.º CPP.

Ora, os factos alinhados no libelo não constituem crime.

E, contrariamente ao referido pelo recorrente, não é necessário lançar mão da doutrina ou de jurisprudência mais ou menos marginais. Bastará interpretar as normas pertinentes (todas indicadas na decisão recorrida) e os princípios gerais da ciência jurídica.

Acresce que não há hoje controvérsia relevante, nem na doutrina nem na jurisprudência dos tribunais superiores sobre os parâmetros de que se lançou mão (na decisão recorrida) para assim concluir.

Caberá fazer uma referência final ao direito convencional (à Convenção Europeia dos Direitos do Homem) e às relações entre a jurisprudência do TEDH e os tribunais nacionais. Neste temário refere Henriques Gaspar o seguinte (7): «O sistema convencional de controlo está instituído num quadro de autonomia, sem continuidade processual direta entre as ordens judiciais nacionais e o TEDH; não existe recurso de decisões judiciais internas, nem partilha de decisões no processo com a instância europeia (…)

No que respeita (…) aos tribunais dos Estados que não sejam parte do litígio ou aos tribunais nacionais fora de um caso em que foi proferida a decisão, a relação não está diretamente estabelecida. A relação que exista poderá eventualmente ser enquadrada numa categoria de diálogo judicial “semivertical”, no sentido em que os tribunais de qualquer dos Estados membros estão também diretamente compreendidos no respeito pelos direitos fundamentais tal como são garantidos pela CEDH, ou seja, com o desenvolvimento e como são interpretados e aplicados pelo TEDH.

No entanto, não obstante os termos limitados da vinculação direta, as decisões do TEDH quando interpretam as disposições da CEDH devem ter uma “autoridade específica” que se impõe a todos os Estados por força da chamada autoridade de “chose interpreté”: o TEDH tem por função «clarificar, garantir e desenvolver» as normas da CEDH, contribuindo para assegurar o respeito pelos Estados dos compromissos que assumem pela vinculação convencional.

A interpretação pelo TEDH de normas convencionais deve ser considerada como integrando a própria CEDH. (…)

Os juízes nacionais estão, assim, vinculados à CEDH e em diálogo e cooperação com o TEDH. Vinculados porque, sobretudo em sistema monista, como é o português (artigo 8.º da Constituição), a CEDH, ratificada e publicada, constitui direito interno que deve, como tal, ser interpretada e aplicada, primando, nos termos constitucionais, sobre a lei interna. E vinculados também porque, ao interpretarem e aplicarem a CEDH como primeiros juízes convencionais (ou juízes convencionais de primeira linha), devem considerar as referências metodológicas e interpretativas e a jurisprudência do TEDH, enquanto instância própria de regulação convencional.»

A CEDH é direito interno, como se deixou referido, e o TEDH vem vincando os limites à liberdade de expressão, com base na norma excecional prevista no § 2.º do artigo 10.º da CEDH, expressando-o nos casos em que justamente as ofensas são gratuitas, desproporcionadas ou em que inexiste correspondência com o interesse geral ou a necessidade de escrutínio público.

Em suma:

- a acusação remetida a juízo reporta-se inequivocamente a factos que não têm relevância criminal, o que constitui vício estrutural da mesma: é «manifestamente infundada» (artigo 311.º, § 3.º, al. d) CPP).

Termos em que deverá manter-se integralmente o douto despacho recorrido.

III - Dispositivo

Destarte e por todo o exposto decidimos:

a) negar provimento ao recurso e, em consequência, manter a douta decisão recorrida;

b) Sem custas.

Évora, 22 de fevereiro de 2022

J. F. Moreira das Neves (relator)

José Proença da Costa

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1 A utilização da expressão ordinal (1.º Juízo, 2.º Juízo, etc.) por referência ao nomen juris do Juízo tem o condão de não desrespeitar a lei nem gerar qualquer confusão, mantendo uma terminologia «amigável», conhecida (estabelecida) e sobretudo ajustada à saudável distinção entre o órgão e o seu titular, sendo por isso preferível (artigos 81.º LOSJ e 12.º RLOSJ).

2 Cf. acórdão do STJ n.º 7/95, de 19/10/1995 (Fixação de Jurisprudência), publicado no DR, I-A, de 28/12/1995.

3 Rabindranath Capelo de Sousa, A Constituição e os Direitos de Personalidade – Estudos sobre a Constituição II, p. 93.

4 José de Faria e Costa, Comentário Conimbricense ao Código Penal, tomo I, Coimbra Editora, pp. 612.

5 Quanto à legitimidade dos comentários sarcásticos e até da utilização de obscenidades, veja-se em especial, Paulo Videira Henriques, Os «excessos de linguagem» na Imprensa”, Estudos de Direito da Comunicação, Facultade de Direito – Universidade de Coimbra, 2002, pp. 222 e 223. Também Francisco Teixeira da Mota, A Liberdade de Expressão em Tribunal, Ensaios da Fundação, Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2013

6 Claus Roxin, Strafverfahrensrecht, München, 1987, pp. 9, apud Maria João Antunes, Direito Penal, Direito Processual Penal e Direito da Execução das Sanções Privativas da Liberdade e Jurisprudência Constitucional, JULGAR, n.º 21, 2013, pp, 103.

7 A influência da CEDH no diálogo interjurisdicional, JULGAR, n.º 7 (2009), pp. 38/40.