EXECUÇÃO
PERSONALIDADE JURÍDICA
SOCIEDADE COMERCIAL
Sumário

I – A personalidade jurídica e judiciária das sociedades cessa com a sua extinção a qual ocorre com o registo do encerramento da liquidação.
II – A falta de personalidade judiciária obsta a que a sociedade extinta requeira em juízo a sua habilitação.
(Sumário do Relator)

Texto Integral

Proc. nº 665/17.4T8MMV.E1

Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora:

I – Relatório
1. (…), Unipessoal, Lda., com sede na Rua (…), n.º 16, 2.º, esq., Damaia, Amadora, instaurou contra (…), com morada na Rua (…), 22, 3.º, esq., em Lisboa e (…), com morada na Rua de (…), 12, Vimieiro, Arraiolos, execução baseada em decisão judicial, para pagamento da quantia de € 28.346,26.

2. Depois de efetuada a penhora, foi proferido o seguinte despacho:
“O Tribunal é competente em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia.

O processo é o próprio e está isento de nulidades que o invalidem.

Da exceção de falta de personalidade jurídica da Exequente

Compulsados os autos, mormente da certidão do registo comercial da sociedade exequente que se encontra junta no Apenso A (embargos de executado), decorre que foi registada a dissolução e encerramento da liquidação da sociedade exequente e que, por sua vez, foi registado o cancelamento da matrícula.

De facto, analisada certidão de registo comercial da exequente junta aos autos resulta da mesma que a exequente se encontra com a matrícula cancelada. Resulta, ainda, que a Exequente esteve desde 03.10.2012 em dissolução com nomeação de liquidatário (AP. 2/20121003), pelo prazo de 12 meses, sendo que, em 18.04.2016, foi averbada a liquidação administrativa (AV. 1 OF. 20160418), que veio a culminar com o registo do encerramento da liquidação em 01.08.2016 (AP. 13/20160801).

Ora, o requerimento executivo que deu origem ao presente processo foi instaurado em juízo em 02.05.2017, pelo que nesta data já a Exequente tinha sido liquidada administrativamente e encontrava-se com a matrícula cancelada.

Vejamos:

A sociedade dissolvida entra imediatamente em liquidação, sendo que a sociedade em liquidação mantém a sua personalidade jurídica – artigo 146.º, n.º s 1 e 2, do CSC.

Por outro lado, e salvo cláusula do contrato de sociedade ou deliberação em contrário, os membros da administração da sociedade passam a ser liquidatários desta a partir do momento em que ela se considere dissolvida – artigo 151.º, n.º 1, do CSC.

Finda a liquidação, os liquidatários devem requerer o registo do encerramento da liquidação – artigo 160.º, n.º 1, do CSC.

A sociedade considera-se extinta, mesmo entre os sócios e sem prejuízo do disposto nos artigos 162.º a 164.º, pelo registo do encerramento da liquidação.

No caso dos autos, o registo do encerramento da liquidação da Ré data de 01.08.2016, pelo que desde essa data que tal sociedade se encontra extinta. Com a efetivação do registo de encerramento da liquidação a sociedade considera-se extinta e, uma vez extinta a sociedade, cessa a sua personalidade jurídica e judiciária.

Efetivamente, com a extinção da sociedade, deixa de existir a pessoa coletiva, que perde a sua personalidade jurídica e judiciária, mas as relações jurídicas de que a sociedade era titular não se extinguem, como flui do disposto nos artigos 162.º, 163.º e 164.º do C.S.C..

Assim, no tocante às ações pendentes em que a sociedade seja parte, elas continuam após a extinção desta, que se considera substituída – sem que haja lugar à suspensão da instância, nem é necessária habilitação – pela generalidade dos sócios, representados pelos liquidatários – artigo 162.º do CSC.

Porém, a presente ação não pode ser considerada, para efeitos do disposto no artigo 162.º do CSC, como “ação pendente”, uma vez deu entrada em tribunal em 02-05.2017, sendo que o registo de dissolução e encerramento da liquidação da Exequente data de 01.08.2016. Ou seja, a sociedade Exequente foi extinta bem antes da interposição da presente ação em tribunal, sendo esta ação superveniente a tal extinção.

A Exequente achava-se extinta quando intentou a presente ação: o registo do encerramento da liquidação foi concretizado em 01.08.2016, e a presente ação foi instaurada em 02.05.2017.

Atento o exposto, conclui-se que, com o registo do encerramento da liquidação da sociedade exequente, esta se considera extinta e, com a sua extinção, a sociedade exequente perde a sua personalidade jurídica e judiciária.

Dispõe o artigo 11º do CPC que "a personalidade judiciária consiste na suscetibilidade de ser parte" e que "quem tiver personalidade jurídica tem igualmente personalidade judiciária".

O critério geral para determinar se certa entidade tem, ou não, personalidade judiciária, e pode ser parte em juízo, consiste em averiguar se ela tem, ou não, personalidade jurídica.

A personalidade jurídica ou capacidade de gozo de direitos é, antes de mais, apanágio dos indivíduos ou pessoas singulares (artigo 66.º do Código Civil), mas a lei reconhece-a também, quer às chamadas pessoas coletivas (associações ou fundações – artigo 158.º do Código Civil), quer às sociedades comerciais a partir do registo definitivo do contrato que as constitui (artigo 5.º do Código das Sociedades Comerciais), quer às pessoas coletivas públicas (Estado, autarquias locais, institutos públicos, etc.), pelo que todas estas entidades podem ser partes em juízo, visto a personalidade judiciária se apresentar como um corolário da personalidade jurídica.

A esta regra ou critério geral introduz, todavia, a lei processual algumas exceções, ampliando a concessão de personalidade judiciária a algumas entidades não dotadas de personalidade jurídica.

É o que se passa com os casos previstos nos artigos 12.º a 14.º do CPC.

A falta de personalidade judiciária de uma das partes é um vício insanável da relação jurídica processual, constituindo exceção dilatória que deve conduzir à absolvição da instância, sendo vedado ao juiz, em tal hipótese, pronunciar-se sobre o mérito do pedido (artigos 577.º, n.º 1, c), e 278.º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Civil).

Face a tudo o que fica dito, a sociedade exequente encontra-se desprovida de personalidade e capacidade judiciária e jurídica para ser considerada parte na presente ação judicial (artigo 160.º, n.º 2, do CSC).

Perante o exposto, deverão ser os executados absolvidos da instância, nos termos do artigo 278.º, n.º 1, al. c), do CPC.

De facto, uma sociedade comercial que se encontra extinta (como a exequente) não pode ser parte numa ação judicial.

Assim, e ao abrigo dos citados preceitos legais, importa julgar procedente a exceção de falta de personalidade jurídica da Exequente e, em consequência, decide-se absolver os executados da presente instância executiva.

Em conformidade, declara-se extinta a execução, sendo de imediato ordenado o levantamento das penhoras em curso e a entrega imediata aos executados das quantias indevidamente penhoradas nesta execução.”

3. A Exequente recorre desta decisão e conclui assim a motivação do recurso:
“1.ª) Não se conforma a recorrente com o douto Despacho do Tribunal a quo, que julgou procedente a exceção de falta de personalidade jurídica da Exequente e, em consequência, decidiu absolver os executados da presente instância executiva, pelo que, declarou extinta a execução.

2.ª) É verdade que com a extinção da sociedade cessa a sua personalidade jurídica e judiciária, à semelhança do que acontece com a morte de qualquer pessoa singular e a recorrente encontra-se extinta desde o dia 1 de Agosto de 2016, data em que foi realizado o registo do encerramento da liquidação, razão pela qual perdeu a sua personalidade judiciária.

Porém,

3.ª) No caso vertente, tem aplicação o disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 164.º do CSC, que prescrevem que: “1 - Verificando-se, depois de encerrada a liquidação e extinta a sociedade, a existência de bens não partilhados, compete aos liquidatários propor a partilha adicional pelos antigos sócios, reduzindo os bens a dinheiro, se não for acordada unanimemente a partilha em espécie. 2 - As ações para cobrança de créditos da sociedade abrangidos pelo disposto no número anterior podem ser propostas pelos liquidatários, que, para o efeito, são considerados representantes legais da generalidade dos sócios; qualquer destes pode, contudo, propor ação limitada ao seu interesse.

4.ª) Da leitura atenta que se faz das normas que resultam do artigo acabado de mencionar e da situação concreta sub judice surpreende-se que a questão a resolver se enquadra no âmbito do disposto no n.º 2, que se refere expressamente à cobrança de créditos que a sociedade liquidada e extinta ainda detém sobre terceiros (créditos estes que se devem enquadrar no conjunto dos “bens não partilhados” a que se refere o n.º 1).

5.ª) E este n.º 2 atribui competência e legitimidade para a propositura das ações de cobrança de créditos aos liquidatários, considerando-os representantes legais da generalidade dos sócios.

Porém,

6.ª) Este n.º 2 prevê, igualmente, que os sócios possam de per si, sem a intervenção do referido liquidatário, propor ação para o mesmo efeito, desde que limitem o pedido ao seu interesse.

7.ª) Ao contrário do afirmado no despacho em crise, não se trata aqui de distinguir entre legitimidade processual e representação em juízo, uma vez que a lei, de forma expressa, permite que o sócio pugne judicialmente pelo seu direito parcelar sem a intervenção do liquidatário.

8.ª) E, não obstante a morte civil da recorrente, detém um crédito contra os executados e que pode e deve ser perseguido pelo sócio único da sociedade liquidada e extinta.

9.ª) O sócio único deve ser habilitado, mediante incidente para o efeito no âmbito da ação executiva, para formular o pedido em seu nome pessoal, cabendo-lhe a si, por ser sócio único, a totalidade do direito de crédito reclamado aos executados, não havendo por isso dúvida que a ação está limitada ao seu interesse – que coincide com a totalidade do valor peticionado.

Isto é,

10.ª) O presente recurso visa demonstrar que o sócio único da recorrente é parte legítima para a presente ação (mediante incidente de habilitação) e, por isso que deve o despacho recorrido ser revogado e substituído por outra que decrete o prosseguimento dos autos;

De facto,

11.ª) Apesar da extinção da sociedade, que perde a sua personalidade jurídica e judiciária, as relações jurídicas de que a mesma era titular não se extinguem, como resulta claramente do disposto nos artigos 162.º, 163.º e 164.º do CSC.

12.ª) Não pode a presente situação ser vista de outro modo, sob pena de se coartar o direito dos sócios de uma sociedade extinta a reivindicar para si património da extinta sociedade;

13.ª) A questão nem poderá ser tratada de forma diferente, veja-se se os sócios são responsáveis pelas dívidas da sociedade em função do que recebem em partilha social, por maioria de razão deverão estes encabeçar os direitos de crédito ou outros de uma sociedade extinta, caso contrario estar-se-ia perante um património sem dono;

Assim sendo,

14.ª) A legitimidade processual, cfr. artigo 30.º do CPC, para a presente ação, tal como a mesma vem desenhada, assiste ao sócio único da sociedade, o Sr. (…), que pode agir em nome próprio e o pedido formulado está limitado ao seu interesse (mediante incidente para o efeito na pendência da ação executiva).

Termos em que, sempre com o mui douto suprimento de V. Exas., deverá o presente recurso ser julgado procedente, por provado, e em consequência, deverá ser revogado o douto despacho recorrido, e substituído por outra que determine o prosseguimento dos autos para que se proponha o competente incidente de habilitação do sócio único para ser parte em juízo.

Para tanto, pede deferimento.”

Respondeu o executado (…) por forma a defender a confirmação da decisão recorrida.
Admitido o recurso e observados os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II - Objeto do recurso
Considerando que o objeto dos recursos é delimitado pelas conclusões neles insertas, salvo as questões de conhecimento oficioso (artigos 635.º, n.º 4 e 608.º, n.º 2 e 663.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), que nos recursos se apreciam questões e não razões ou argumentos e que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido, importa decidir se o despacho recorrido deve ser substituído por outro que determine o prosseguimento dos autos para que se proponha o competente incidente de habilitação do sócio único para ser parte em juízo.

III. Fundamentação
1. Factos
Relevam os factos que resultam do relatório supra.

2. Direito

A decisão recorrida julgou procedente a exceção dilatória da falta de personalidade judiciária da Recorrente e absolveu os executados da instância por considerar, em síntese, que a Recorrente deixou de ter personalidade jurídica em 1/8/2016, data da sua extinção por efeito do registo do encerramento da liquidação e que, assim, à data da instauração da execução, 2/5/2017, carecia de personalidade judiciária, uma vez que esta só existe quando se verifica a primeira.

Fundamentou-se, de direito, no artigo 160.º, n.º 2, do Código das Sociedades Comerciais (CSC), segundo o qual a sociedade considera-se extinta, mesmo entre os sócios pelo registo do encerramento da liquidação e na previsão do artigo 11.º do Código de Processo Civil, de acordo com a qual tem personalidade judiciária quem tiver personalidade jurídica, numa palavra, a falta de personalidade judiciária da Recorrente, decorrente do registo do encerramento da liquidação, implica a falta de personalidade judiciária com a consequente insusceptibilidade de ser parte na causa.

Solução ajustada, a nosso ver, à lei e aos factos relevantes.

O recurso, aliás, não suscita qualquer erro na determinação das normas aplicadas pela decisão recorrida nem questiona a sua interpretação, pelo contrário, aprova ambas quando afirma como “verdade que com a extinção da sociedade cessa a sua personalidade jurídica e judiciária, à semelhança do que acontece com a morte de qualquer pessoa singular e a recorrente encontra-se extinta desde o dia 1 de Agosto de 2016, data em que foi realizado o registo do encerramento da liquidação, razão pela qual perdeu a sua personalidade” [cclª 2ª], mas considera que “assiste ao sócio único da sociedade, o Sr. (…), que pode agir em nome próprio e o pedido formulado está limitado ao seu interesse (mediante incidente para o efeito na pendência da ação executiva) [cclª 14.ª] e termina por concluir que a decisão recorrida deve ser revogada e substituída por outra que determine o prosseguimento dos autos para que se proponha o competente incidente de habilitação do sócio único para ser parte em juízo.

Em caso de ativo superveniente, designadamente nos casos em que depois de encerrada a liquidação e extinta a sociedade se verifica que existem créditos da sociedade que ainda se mostram por cobrar, os liquidatários em representação da generalidade dos sócios ou qualquer sócio no limite dos seus interesses, podem propor ações para cobrança de dívidas (artigo 164.º, nºs 1 e 2), o que significa que com a extinção da sociedade não se extinguem os créditos da sociedade extinta, os créditos continuam a existir e podem ser cobrados quer pelos liquidatários quer por algum dos sócios na medida do seu interesse.

A Recorrente está, assim, certa quanto considera que os sócios da sociedade extinta tem legitimidade para cobrar créditos que subsistam para além do encerramento da liquidação, o que não se compreende é que, apesar de conhecer este regime não o tenha observado na propositura da presente ação, ou seja, que sido ela sociedade extinta a intentar a ação quando sabia que a ação deveria ser proposta pelos seus liquidatários ou sócios, uma vez que, como também afirma e reconhece, não dispunha de personalidade jurídica e judiciária.

Falta de personalidade judiciária que obsta, parece-nos claro, a que seja ela sociedade a pedir a sua habilitação, uma vez que esta só pode promovida por quem tenha capacidade judiciária (partes sobrevivas ou sucessores – artigo 351.º CPC), ou seja, a Recorrente, enquanto sociedade extinta e, usando as suas palavras, “à semelhança do que acontece com a morte de qualquer pessoa singular” não pode, por falta de personalidade judiciária, pedir a sua própria habilitação.

Improcede o recurso, restando confirmar a decisão recorrida.

Sumário (da responsabilidade do relator – artigo 663.º, n.º 7, do CPC):

(…)


3. Custas
Vencido no recurso, incumbe à Recorrente o pagamento das custas (artigo 527.º, n.º 1, do CPC).

IV. Dispositivo:
Delibera-se, pelo exposto, na improcedência do recurso, em confirmar a sentença recorrida.
Custas a cargo da Recorrente.
Évora, 24/2/2022
Francisco Matos
José Manuel Tomé de Carvalho
Mário Branco Coelho