No artigo 49.º/3 CPP prevê-se que a queixa (relativamente a crime semipúblico ou particular) pode ser apresentada: pelo titular do direito; por mandatário judicial; ou por [outro] mandatário [mas neste caso apenas quando] munido de poderes especiais.
A diferenciação legal entre o mandatário judicial e o simples mandatário advém das características e especificidades próprias do mandato forense e da especial natureza e estatuto da profissão de advogado.
Pode desistir da queixa quem tem poderes para apresentá-la. Daí que, sendo esta apresentada por mandatário forense, este não carece de poderes especiais para tal efeito.
A decisão é recorrível, os recorrentes têm legitimidade e interesse em agir, sendo os recursos tempestivos e admitidos com o regime de subida e efeito próprios.
No exame preliminar constata-se a emergência de causa extintiva do procedimento criminal (artigo 417.º, § 6.º, al. c) CPP).
A natureza extraordinária das circunstâncias e, sobretudo, as suas inexoráveis consequências (extinção do procedimento criminal – adiante devidamente motivado), dispensam o prazo em curso para o contraditório previsto no artigo 417.º, § 2.º do CPP.
II – Relatório
1. Por despacho de 28/10/2021 da Mm.a Juíza do Juízo Local Criminal de Abrantes, do Tribunal Judicial da comarca de Santarém, na sequência de requerimentos e interpelações feitas pelo mandatário da ofendida, pelo representante da ofendida e defensores dos arguidos, na sessão da audiência de julgamento decorrida no dia 25/10/2021, decidiu-se o seguinte:
«Não se homologa a desistência de queixa, uma vez que a mesma entrou em momento posterior à leitura de sentença, cujo terminus ocorreu pelas 10h50m, conforme resulta da própria ata.
Notifique.»
2. Discordando de tal decisão, os arguidos interpuseram recursos, clamando ambos pela revogação do mesmo e homologação da desistência de queixa e consequente arquivamento dos autos, apresentando as seguintes conclusões:
2.a. Recurso de VN
«1) Foi a Arguida doutamente condenada por sentença lida em 25/20/2021, após no decurso da audiência o I. Mandatário da Queixosa ter declarado que a sua representada pretendia desistir da queixa e, desistência que a Arguida – aqui Recorrente – declarou aceitar;
2) Após o encerramento da discussão e julgamento, o Tribunal “a quo”, após ter consignado em despacho que a desistência poderia vir a ser apresentada até à leitura de sentença, decidiu, de imediato proceder à prolação da douta sentença;
3) No mesmo dia, a Queixosa remeteu – via citius, ref.ª 8130439 – desistência de queixa e juntou procuração com poderes especiais a favor do I. Advogado subscritor de tal requerimento, nos termos do artigo 116, n.º 2 do CP;
4) Também, no mesmo dia 25 de Outubro foi a douta sentença depositada;
5) O Tribunal a “a quo” no douto despacho de que ora se recorre entendeu não homologar a desistência. Decisão da qual se discorda e que leva ao presente recurso;
6) A leitura de sentença (1.º), desistência formal da queixa (2.º) e depósito da sentença (3.º) ocorreram todas no mesmo dia e pela ordem aqui escrita se encontram registadas na plataforma citius;
7) A desistência de queixa foi apresentada antes do depósito da sentença, logo, dentro do prazo a que se referem os artigos 116.º, n.º 2 do CP e 373.º do CPP;
8) Tendo a desistência de queixa sido apresentada no dia da leitura de sentença e registada na plataforma citius antes do depósito da sentença, deverá a mesma ser homologada, desde logo, fazendo jus ao princípio do processo penal que prescreve que em situações dúbias deverá prevalecer o entendimento que favoreça o arguido.
9) Devendo o douto despacho ora recorrido ser revogado e substituído por outro que admita o requerimento de desistência de queixa, homologue a mesma e revogue os efeitos da douta sentença proferida.
Nestes termos e nos melhores de Direito, apelando ao sempre mui douto suprimento de V.Exas. deverá o presente ser recebido e, acolhidas que sejam as razões expostas, deverá o douto despacho ora recorrido ser revogado e substituído por outro que admita o requerimento de desistência de queixa, homologue a mesma e revogue os efeitos da douta sentença proferida, com o que se alcançará a tão desejada JUSTIÇA!»
2.b. Recurso de VE
«1 - O despacho de rejeição do pedido de desistência de queixa proferida pelo Tribunal a quo é nulo, contagiando todos os actos posteriormente praticados;
2 - A Ofendida encontrava-se representada por mandatário judicial por si constituído, o qual não necessita de poderes especiais para exercer o direito de desistência de queixa em relação à sua representada;
3 – Consequentemente, deve ser validada a desistência da queixa, bem como a aceitação da mesma pelos Arguidos, ordenando-se o arquivamento dos autos;
4 – Caso se entenda de modo diferente já se encontra ratificada a desistência pela Queixosa, pelo que deve, igualmente, ordenar-se o posterior arquivamento dos autos;
5 – Sendo que, na hipótese de se defender a necessidade de procuração forense com poderes especiais, ainda assim incumbia ao Tribunal notificar o mandante nos termos e para os efeitos do artigo 48º do CPC, o que foi omitido, e se tiver o mesmo entendimento deve ser ordenado;
6 - Mostrando-se violado o disposto nos artigos 49º, nº 3 CPP e 48º CPC;
7 – Consequentemente deve admitir-se a desistência de queixa originariamente apresentada e a nulidade de todo o posteriormente processado, incluindo a sentença proferida, ordenando-se o arquivamento dos autos.»
3. O Ministério Público junto do Tribunal recorrido respondeu acompanhando o sentido das razões dos recorrentes, nos seguintes termos:
«(…) Ainda que se admita que podia ser discutida a interpretação do n.º 3 do artigo 49.º do Código de Processo Penal, no sentido de que a expressão “por mandatário judicial ou por mandatário munido de poderes especiais”, possa dizer respeito quer a mandatário judicial quer a mandatário (já que após a palavra judicial não consta uma vírgula), certo é que a procuração foi junta com requerimento antes do depósito da sentença.
Certo é que, após o encerramento da discussão e julgamento, o Tribunal a quo após ter consignado em ata que a desistência poderia vir a ser apresentada até à sentença, decidiu, de imediato proceder à prolação da douta sentença.
Ora, a sentença foi lida, de imediato a ofendida manifestou desistir da queixa formulada, juntando procuração forense com poderes especiais e só após teve lugar o depósito da sentença.
A desistência de queixa foi apresentada antes do depósito da sentença, logo, dentro do prazo a que aludem os artigos 116.º, n.º 2 do Código Penal e 373.º do Código de Processo Penal.
Tendo a desistência de queixa sido apresentada no dia da leitura de sentença e registada na plataforma citius antes do depósito da sentença, deverá a mesma ser homologada.»
4. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, os autos foram com vista ao Ministério Público, que em douto parecer refere:
«(…) o magistrado do Ministério Público junto do tribunal a quo - que manifesta opor-se a qualquer adiamento na audiência para o efeito afirma que a desistência de queixa poderia ser apresentada até ao depósito da sentença e na resposta ao recurso vem depois defender a homologação da referida desistência de queixa face à apresentação da procuração com poderes especiais antes do depósito da sentença.
Eis um processo judicial, em que de algo tão simples como a desistência de queixa se transforma numa cabala de justiça formal! (…)»
Acabando por concluir deste modo:
«Em nosso entender o recurso deverá ser julgado improcedente.
Mas não podemos deixar de entender que existindo uma pacificação social entre a ofendida e os arguidos e o tribunal dela conhecendo antes de ouvir a produção da prova, outras soluções seriam possíveis e em nosso entender, desejáveis.
É que tal ocorreu no início da segunda sessão do julgamento, ainda antes de grande parte da prova ser produzida. Se é verdade que a parte (ou as partes) também podia ter sido mais diligente também o tribunal opta aqui por “ímpeto punitivo” num crime semipúblico que não é gerador de pacificação social desejável.
Por outro, fica-nos a sensação que se criou aqui a crença de que a formalização da desistência de queixa ainda poderia vir a ser apresentada no processo até à leitura de sentença e que, logo após, (e ainda antes das alegações das partes) a Mm Juiz refere que o tribunal está preparado para proferir sentença.
É claro que a celeridade processual é necessária e as partes podiam ter tido uma conduta mais diligente e assertiva, mas não partilhamos esta formula de administração de justiça aplicada pelo tribunal…»
III - FUNDAMENTAÇÃO
A. Da desistência de queixa, sua aceitação e sequente ilegitimidade para a ação penal
O presente processo respeita ao julgamento dos dois arguidos, que aqui são recorrentes, acusados que foram da prática, em coautoria, de um crime de furto, previsto no artigo 203.º, § 1.º do Código Penal (CP).
O crime de furto tem natureza semipública, pelo que o Estado só está legitimado a persegui-lo se o titular do respetivo direito de queixa a apresentar dentro dos prazos previstos na lei; e a mantiver (enquanto dela não desistir). É o que resulta da conjugação do disposto no artigo 113.º CP, com o preceituado nos artigos 49.º, § 1.º e 52.º, § 2.º ex vi 48.º CPP.
Sucede que na audiência de julgamento o ilustre mandatário da ofendida declarou desistir da queixa oportunamente apresentada contra os arguidos, tendo estes declarado aceitá-la.
Perante estes factos a Mm.a Juíza considerou (despacho em ata):
«Considerando a procuração de fls. 66 e 67, a qual não confere nem ao mandatário aqui presente nem à procuradora que hoje se fez comparecer nesta diligência que permita a desistência de queixa, não pode o Tribunal neste momento considerar a mesma válida e eficaz por falta de poderes para o ato.
Não subscreve o entendimento do Ministério Público que o compasso de espera para eventual chegada de documento pertinente que ateste a desistência de queixa aqui verbalizada, porquanto o mesmo é apenas aplicável, no entendimento da aqui signatária, na eventual descriminalização do crime pelo qual os arguidos vinham acusados ou eventual alteração de medidas de penas.
A desistência é um ato voluntário do queixoso e apenas carece da aceitação do arguido.
Como bem sublinhou o M.º P.º a desistência de queixa já poderia ter ocorrido há muito, se os arguidos estavam preocupados com a sua eventual condenação e quanto ao arguido V a eventual aplicação de uma pena de prisão efetiva atento o seu passado criminal.
É de lamentar que os Ilustres causídicos aqui presentes, que já estão em contacto desde o passado dia 21-10-2021, apresentarem nesta altura para uma desistência de queixa, uns sem poderes e outros com a preocupação da condenação do arguido que representam.
É consabido que este tipo de condutas são socialmente inaceitáveis pelo cidadão comum que cada vez tem uma pior imagem da justiça, pelo que este tipo de situações são de evitar.
Em face do exposto e sem prejuízo de que a desistência de queixa pode ser efetuada até prolação da sentença, a verdade é que este Tribunal e em obediência ao art.º 373.º, n.º1 do CPP, desde já adianta que está em condições de proferir de imediato a leitura de sentença.»
A seguir foi perguntado ao Ministério Público e aos advogados se queriam requerer algo relativamente à prova documental e, nada tendo sido requerido, foi dada a palavra para alegações finais, primeiro ao Ministério Público, depois aos ilustres causídicos; e depois aos arguidos para acrescentarem o que lhes aprouvesse. Logo se seguindo a «leitura da sentença (…) em voz alta»!
Importa deixar brevemente dito que quando o legislador estabelece a necessidade de apresentação (e manutenção) de queixa dos ofendidos relativamente a determinados ilícitos criminais, concede uma margem significativa de autocomposição de interesses aos envolvidos, sem deixar nenhuma margem de discricionariedade ao julgador relativamente à tutela dos valores tutelados pela incriminação. E ainda, que constitui princípio fundamental imanente numa sociedade democrática que o processo é equitativo. É isso mesmo que afirma a Constituição da República no artigo 20.º, § 4.º, mas também a Convenção Europeia dos Direitos do Homem (artigo 6.º) e a Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia (47.º), todos sob inspiração do artigo 10.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem.
O princípio do processo equitativo (1) significa, entre o muito mais, que o tribunal, a mais do dever de lealdade processual, tem também a obrigação de atender, com equilíbrio, ao que lhe é suscitado pelas partes e ir ao encontro da melhor composição possível do litígio, de acordo com os valores plasmados na Constituição e na lei, sendo ilegítimos quaisquer juízos morais alheios àqueles.
Considerando, como considerou o tribunal recorrido, não estar reunida uma formalidade (concessão de poderes especiais aos mandatários para desistir da queixa), deveria, então, proporcionar a tais intervenientes, a possibilidade de a realizar, fixando prazo, conforme estritamente decorre da lei (artigo 48.º CPC, aplicável ao processo penal ex vi artigo 4.º CPP).
Deveras o tribunal recorrido equivocou-se quanto aos requisitos formais, quando afirmou que a vontade da titular do direito de queixa não estava devidamente expressa quando apresentada por mandatário judicial «sem poderes especiais»!
Vejamos porquê.
Dispõe-se no § 3.º do artigo 49.º CPP que:
«A queixa pode ser apresentada pelo titular do direito respetivo, por mandatário judicial ou por mandatário munido de poderes especiais».
Deste retábulo decorre que a queixa pode ser apresentada: pelo titular do direito; por mandatário judicial; ou por [outro] mandatário [mas neste caso apenas quando] munido de poderes especiais.
Ora, pode desistir da queixa quem tem poderes para a apresentar - como parece óbvio.
Pois bem. Daquela norma resulta então que a queixa poderia ter sido apresentada pelo titular do direito (diretamente pelos representantes legais de AF, S. A.); por mandatário judicial; ou por [outro] mandatário [mas apenas neste caso] munido de poderes especiais. O que igualmente significa que a desistência da queixa pode ser feita nos mesmos termos.
A diferenciação feita entre mandatário judicial e simples mandatário nada tem de estranho, em razão das características e especificidades do mandato forense e da especial natureza e estatuto da profissão de advogado.
Logo, quando a declaração de desistência foi apresentada em audiência pelo mandatário judicial da ofendida, aquela não carecia de qualquer outra formalidade.
Não havia, pois, qualquer razão para a não homologação imediata da desistência de queixa, sendo o entendimento seguido pelo tribunal recorrido desconforme ao direito.
Mas adotando-o, como adotou, então o tribunal teria, consequentemente, de fixar prazo para cumprimento da tal formalidade que considerou estar em falta, por ser esse o procedimento prevenido na lei (artigo 48.º, § 2.º CPC, ex vi artigo 4.º CPP). O que igualmente não o fez!
Mas maior dificuldade de compreensão do iter seguido pelo tribunal a quo advém da imediata «leitura da sentença», pois tal modo de proceder inviabilizava a consabida pretensão dos sujeitos de autocomposição dos respetivos interesses!
Ora, essa autocomposição, a mais de formalmente prevista na lei (através da natureza semipública do ilícito em causa), corresponde aos valores que a comunidade politicamente organizada claramente preconiza para certa classe de crimes (vd. supra referências constitucional e convencionais ao «processo equitativo»).
É a essa dificuldade de compreensão que também alude o Ministério Público junto deste Tribunal de recurso quando (muito bem) referiu no seu parecer: «Eis um processo judicial, em que de algo tão simples como a desistência de queixa se transforma numa cabala de justiça formal!»
Breve: não se homologou (como se deveria) a desistência de queixa. Sendo certo que depois da manifestação nesse sentido por banda da ofendida e aceitação pelos arguidos, nos termos sobreditos, sem nenhum sinal de comprometimento da liberdade dos declarantes, ficou falha a legitimidade do Ministério Público para promover o procedimento criminal e a do tribunal para julgar a causa.
E é por via dessa ilegitimidade que a sentença proferida não encontra já objeto nem sujeitos (artigo 51.º, § 3.º CPP).
Os recursos são, pois, integralmente procedentes.
IV - DISPOSITIVO
Destarte e por todo o exposto, na integral procedência dos recursos, decide-se:
a) Revogar o despacho recorrido.
b) Declarar válida a desistência de queixa, a qual se homologa.
c) Declarar inválidos todos os atos posteriores às declarações de desistência (da ofendida) e aceitação (pelos arguidos).
d) Declarar, ainda (e em conformidade), extinto o procedimento criminal.
e) Sem custas.
Notifique-se.
Évora, 28 de fevereiro de 2022
J. F. Moreira das Neves
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1 Ver, p. ex., por todos: acórdão TEDH, de 8/12/2009, Previti vs. Itália.