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JULGADO DE PAZ
AUSÊNCIA EM PARTE INCERTA DO CITANDO
CITAÇÃO
NULIDADE
DEFENSOR OFICIOSO
Sumário
I.– Nas ações declarativas intentadas nos julgados de paz, constatada a ausência em parte incerta do citando, deve ser citado em sua representação o Ministério Público junto do tribunal judicial territorialmente competente, nos termos do disposto no art. 21º, nº 1, do Código de Processo Civil, aplicável subsidiariamente por via do art. 63º da Lei nº 78/2001, de 13/07 (entretanto alterada pela Lei nº 54/2013, de 31/07).
II.– Não figurando o Ministério Público como autor, é destituída de base legal a citação do ausente na pessoa de defensor oficioso, ocorrendo nessas circunstâncias a falta de citação para a ação declarativa (art. 188º, nº 1, al. a), do Código de Processo Civil), com a consequente nulidade do todo o processado posterior ao requerimento inicial (art. 187º, al. a) do Código de Processo Civil).
III.– A falta de citação e a inexistência de título executivo constituem fundamentos de oposição à execução nos termos do art. 729º, als. a), e d), do Código de Processo Civil e determinam a procedência da oposição com a consequente extinção da execução.
Texto Integral
Acordam os Juízes da 8ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa
I.–Relatório
M.F.C., executada na execução que corre termos sob o nº 3164/20.3T8OER e que lhe é movida por S.F.C., veio deduzir oposição à execução mediante embargos, alegando, para tanto, e em síntese: I.–Por Exceção: Inexigibilidade da Obrigação / Falta de Pressuposto processual
- A execução alicerça-se na decisão proferida pelo julgado de paz de Cascais no âmbito do processo n.º 81/2019-P, que condenou a ali ré, aqui executada, designadamente e para além do mais, ao pagamento da quantia monetária que constitui a quantia exequenda;
- A executada, ora opoente, não foi chamada ao dito processo para exercer a sua defesa, a primeira vez que foi confrontada com a pretensão da exequente, foi na data de citação para o processo de execução;
- Ao longo do processo que correu termos nos julgados de paz foram preteridas formalidades essenciais prescritas na lei, das quais resultaram prejuízos para a defesa da ora executada, a qual não teve conhecimento da citação nessa ação e se viu impedida de comparecer nas sessões que aí tiveram lugar, bem como de ser notificada para contestar essa ação, sendo que, por via disso, foram julgados como provados todos os factos alegados na petição que nela foi deduzida e a ora executada condenada em conformidade, o que viola direitos constitucionalmente garantidos, designadamente, pelo artigo 20º da Constituição da República Portuguesa, constituindo nulidade nos termos previstos no art. 191º, nº 1, do Código de Processo Civil;
II.–Por impugnação
- A embargante deve à exequente a quantia de € 4.081,10, devendo ser-lhe reconhecido crédito, apenas, nesse montante.
Termina, pedindo sejam recebidos os embargos e que, em consequência: a)-Seja julgada procedente por provada a oposição mediante embargos; b)-Seja julgada procedente por provada a inexigibilidade da obrigação / falta de pressuposto processual por não ter havido citação da executada no âmbito do processo n.º 81/2019-P, que correu termos nos julgados de paz de Cascais; c)-Não sejam considerados os juros de mora sobre € 11.511,84 por não ser essa a quantia devida pela executada; d)-Seja a ação executiva julgada parcialmente procedente por não por provada e, em decorrência, ser a oponente e executada parcialmente absolvida do pedido; e)-Sendo igualmente reconhecido o efeito suspensivo sobre a execução com dispensa de prestação de caução – artigo 733.º n.º 1, alínea c) do CPC; f)-A não ser assim deve a ação ser considerada improcedente, por não provada e a executada absolvida do pedido.
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Os embargos foram recebidos liminarmente e a exequente notificada para os contestar, o que fez, dizendo, em síntese:
- A embargante foi citada para a ação que correu termos no julgado de paz, em cumprimento do que dispõe a Lei n.º 78/2001, de 13 de julho;
- Frustradas as tentativas de citação, nomeadamente, por contato pessoal, e não admitindo a lei dos julgados de paz citação edital, prosseguiram os autos com a citação na pessoa da Sr.ª Dra. SC..., que foi nomeada como patrona oficiosa para defender os interesses da embargante, mostrando-se esta devidamente citada na pessoa daquela;
- A sentença proferida mostra-se, assim, válida, constituindo título executivo;
- No demais, impugna o alegado pela embargante, concluindo que o valor em dívida é aquele que vem peticionado.
Termina, pedindo sejam os embargos julgados improcedentes, por não provados, prosseguindo a execução para o ressarcimento da embargada.
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Findos os articulados, foi proferida a seguinte sentença:
“A presente execução para pagamento de quantia certa foi instaurada em 14-X-20 por S.F.C. contra M.F.C. – sendo apresentado como título executivo a cópia de uma “Decisão condenatória julgado de paz” (de 7-X-20).
Por despacho de 6-I-21 foram liminarmente admitidos os embargos deduzidos pela executada – tendo a exequente deduzido contestação.
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Tendo em conta as regras dos artigos 732º/2, 593º/1, 591º/1d) e 595º/1 do CPC, dispensa-se a realização da audiência prévia.
O Tribunal é competente em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia – e não há nulidades que invalidem todo o processado.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão devidamente representadas - fixando-se o valor da causa em 11.511,84€.
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A embargante excepciona falta de citação no processo declarativo (CPC 729º/d)) – verificando-se, na certidão do Julgado de Paz de Cascais (junta em 27-V-21), que: a “carta de citação” não foi reclamada; foi enviada “carta- convite para citação presencial”; a carta de citação enviada em 27-VI-19 não foi recebida; em 6-IX-19 “foi proferido Despacho de ausente em parte incerta e solicitado à Ordem dos Advogados a respetiva nomeação de defensor Oficioso”; a carta de citação foi enviada à Defensora oficiosa em 30-IX-19, e recebida em 3-X-19.
Dispõe o artigo 45º da Lei 78/01 de 13-VII que “1– Caso o demandado não esteja presente aquando da apresentação do requerimento, a secretaria deve citá-lo (…). (…)”, e, o artigo 46º, que “1– As citações e notificações podem ser efectuadas por via postal, podendo, em alternativa, ser feitas pessoalmente, pelo funcionário. 2– Não se admite a citação edital. (…).” – acrescentando o nº 2 do artigo 58º que “Quando o demandado, tendo sido regularmente citado, não comparecer, não apresentar contestação escrita nem justificar a falta no prazo de três dias, consideram-se confessados os factos articulados pelo autor.”.
Analisadas as regras supra, verifica-se não existir qualquer fundamento legal para considerar realizada a citação na pessoa de uma “defensora oficiosa” – cuja nomeação também não se encontra prevista.
Tem, assim, razão a embargante: não foi citada para a acção declarativa – o que significa que a sentença apresentada não pode valer como título executivo.
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Decisão
Pelo exposto, julgam-se os embargos procedentes, e declara-se extinta a execução.
Custas pela embargada.
Registe e notifique.”
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Inconformada com esta decisão, dela recorre agora a exequente/embargada, apresentado as seguintes conclusões:
“I.–Vem o ora Recorrente interpor recurso da sentença proferida pelo Tribunal a quo versando, o mesmo, sobre a matéria de direito, que foi incorretamente aplicado; II.–No entendimento da ora Recorrente, ficou demonstrado que o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 45º e 46º da Lei n.º 78/2001, de 13 de julho, 236º e 21º do CPC ex vi artigo 63º da LJP, ao considerar que não existiu fundamento legal para a citação da Recorrida na pessoa da Defensora Oficiosa nomeada, declarando, em consequência, a extinção da execução por inexistência de título executivo; III.–O Tribunal a quo não atendeu às especificidades do processo declarativo que correu termos nos Julgados de Paz de Cascais; IV.–Ignorando os princípios orientadores daqueles Tribunais, V.–Bem como os normativos relativos à citação e representação dos ausentes naqueles processos; VI.–O Tribunal a quo não interpretou adequadamente a necessidade de nomeação e intervenção do Defensor Oficioso nomeado pela Ordem dos Advogados, posição análogo à do Ministério Público para a presentação dos ausentes; VII.–As diligências de citação realizadas pelo Julgado de Paz de Cascais não foram também devidamente apreciadas pelo Tribunal a quo, VIII.–Bem como a postura e fuga da aqui Recorrida à citação, mesmo após o contacto telefónico que recebeu do Julgado de Paz; IX.–Mal andou o Tribunal a quo, ao considerar que não existe qualquer fundamento legal para os procedimentos de citação levados a cabo pelo julgado de Paz; X.–O disposto nos artigos 45º e 46º da Lei n.º 78/2001, de 13 de julho, 236º e 21º do CPC ex vi artigo 63º da LJP foram assim amplamente violados na interpretação realizada pelo Tribunal a quo; XI.–Submete-se, desta forma, o presente à apreciação dos Venerandos Senhores Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de Lisboa relativamente ao erro de julgamento sobre a matéria de direito.
Termos em que, balizado o objeto do recurso e atentos os fundamentos do mesmo, deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que determine a validade da citação da ora Recorrida e ordene o prosseguimento normal dos autos de execução, em especial dos embargos apensos.”
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A executada/embargante contra-alegou e formulou as seguintes conclusões:
“I.–A decisão do Tribunal a Quo encontra-se correta e bem fundamentada, de facto, II.–A Sentença ora recorrida, oferece, de forma sucinta os seus considerandos para concluir que a Apelada não foi citada para a acção declarativa e, consequentemente, que a Sentença apresentada não pode valer como título executivo. III.–O Tribunal a Quo Aprecia, de forma sucinta, as diversas diligências realizadas pelo Julgado de Paz no sentido de proceder à citação da Apelada, e, IV.–Pôde verificar que foram preteridas formalidades essenciais prescritas na lei que constituem nulidades, pois que tal omissão influi claramente no exame e decisão da causa; V.–Formalidades que foram claramente preteridas pelos Julgados de Paz de Cascais, das quais resultaram prejuízos para a defesa da ora Apelada e se viu impedida de comparecer nas sessões que aí tiveram lugar, bem como de ser notificada para contestar essa acção, sendo que, VI.–Por via disso, foram julgados como provados todos os factos alegados na petição que nela foi deduzida e a ora Apelada condenada em conformidade. VII.–Do n.º 1 do artigo 45º, do n.º 1 do artigo 46º, e do n.º 2 do artigo 58º, todos da LJP não se retira a possibilidade de citação de um demandado na pessoa de um defensor oficioso. VIII.–Não decorre da letra da lei um mínimo de correspondência verbal quanto a essa possibilidade. IX.–Se o legislador quisesse que fosse admissível o recurso ao defensor oficioso para citação do demandado ausente, tê-lo-ia dito de uma forma expressa e sem rodeios. X.–Das duas uma: ou se estabelecia a regra em que se admite o recurso à figura do defensor oficioso para citação do demandado ausente, ou não, o que claramente é o caso da LJP. XI.–A solução consagrada coloca em causa os princípios do dispositivo (artigo 3º n.ºs 1 e 2 do CPC) na sua manifestação enquanto princípio da controvérsia, e, XII.–O princípio do contraditório, os quais deverão ser conciliados com o da proibição da indefesa, com o princípio da celeridade processual, e ainda com os princípios da segurança e da paz jurídica, que, XIII. São valores e princípios de igual relevância e constitucionalmente protegidos. XIV.–Assim sendo, não faz sentido o recurso à figura do defensor oficioso para citação do demandado ausente. XV.–Não sendo admitida a citação edital do demandado nos Julgados de Paz entende-se como tal apenas e só a citação por contacto pessoal de funcionário ou por carta registada por aviso de receção, XVI.–Podendo a citação ser efetuada em pessoa diversa do citando nos casos especiais previstos no artigo 233º n.º 4 do CPC, e na pessoa do mandatário constituído pelo citado, com poderes especiais para receber a citação. XVII.–O artigo 21º do CPC não prevê a possibilidade do demandado ausente ser representado por defensor oficioso, pelo que não existe fundamento legal para o recurso a esta figura nos Julgados de Paz. XVIII.–A interpretação realizada pela Apelante não encontra qualquer respaldo na lei e bem assim, XIX.–Resulta da lei, e de forma clara que não existe qualquer fundamento legal para considerar realizada a citação na pessoa de uma “defensora oficiosa”. XX.–As teses apresentadas supra representam a doutrina generalizada, e bem assim são as que melhor se coadunam com uma interpretação actualista, sistemática e teleológica da LJP. XXI.–Nestes termos, a Sentença recorrida não merece qualquer reparo face à técnica evidenciada, devendo negar-se provimento ao recurso, e, em consequência, XXII.–Confirmar-se in totum a Sentença recorrida.
Termos em que as alegações de recurso da Apelada devem ser declaradas como totalmente improcedentes e por consequência deve ser mantida in totum a Sentença do Tribunal a quo.”
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O recurso foi admitido neste tribunal e mostrando-se cumpridos os vistos legais, cabe apreciar e decidir.
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II.–Objeto do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das partes, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. arts. 635º, nº 4, 639º, nº 1, e 662º, nº 2, todos do Código de Processo Civil), sendo que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (cf. art.º 5º, nº3 do mesmo Código).
No caso cumpre decidir se em ação intentada em julgado de paz ocorre falta de citação nas circunstâncias em que o citando, ausente em parte incerta, é citado na pessoa do defensor oficioso nomeado para receber a citação e o representar.
III.–Fundamentação de Facto
Para além dos factos supra descritos, está também demonstrado que:
- Em 14 de outubro de 2020, S.F.C. intentou ação executiva contra M.F.C., que corre termos sob o nº 3164/20.3T8OER, no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste – Oeiras – Juízo Execução – Juiz 1, apresentando como título executivo sentença proferida no processo nº 81/2019-JP, do julgado de paz de Cascais, em que figurou como demandante a primeira (ora exequente), e como demandada a segunda (ora executada), na qual se decidiu, “No dever de administrar justiça, nos termos dos arts. 60º, 61 da LJP e art. 152º CPC e com os fundamentos expostos, de facto e de direito, julgo a ação procedente por provada, e, em consequência, condeno a Demandada a pagar à Demandante a quantia de € 10.842,85, acrescida de juros de mora até integral pagamento.” (cf. requerimento executivo que deu início à execução).
Da certidão emitida pelo julgado de paz de Cascais (Ofício entrado no processo de embargos em 27 de maio de 2021, sob a referência 18904358), consta, além do mais, a seguinte informação:
- “A 06 de maio de 2019 foi notificada a Autoridade Tributária a fim de informar de nova morada ou confirmar a já existente (…). Apesar do domicilio fiscal da demandada ser idêntico ao fornecido no TI enviou-se, novamente, Carta de Citação em 27 de junho 2019, cuja informação dos CTT foi “Mudou-se” (…).
Dado no documento fornecido pela AT estar a informação do contato telefónico da demandada a Jurista titular do processo entrou em contato com a mesma. Mesmo assim a Carta de Citação não foi levantada nem se apresentou para Citação presencial no Julgado de Paz (…).
IV.–Fundamentação de Direito
Os julgados de paz integram as categorias de tribunais previstas no art. 209º da CRP (cf. nº 2).
São órgãos de soberania (art. 110º, nº 1, CRP) com competência para administrar a justiça em nome do povo (art. 202º, nº 1 CRP), incumbindo-lhes, entre outros, assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos (art. 202º, nº 2, CRP); são independentesi (art. 203º CRP) e as suas decisões são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer outras autoridades (art. 205º, nº 2 CRP).
A Lei nº 78/2001, de 13/07, entretanto alterada pela Lei nº 54/2013, de 31/07 (a que doravante pertencem as disposições legais indicadas sem outra referência expressa), regulamenta a competência, organização e o funcionamento dos julgados de paz e a tramitação dos processos da sua competência.
A competência dos julgados de paz é exclusiva a ações declarativas (art. 6º, nº 1) em que se suscitem questões respeitantes às matérias estritamente elencadas no art. 9º e cujo valor não exceda € 15.000,00.
A criação dos julgados de paz visou a composição dos litígios por acordo das partes (cf. art. 2º, nº 1, relevando, também, entre outros o disposto nos arts. 8º, nº 1, 49º, 50º, 51º, e 57º) e os procedimentos que foram concebidos para alcançar tal desiderato são orientados por princípios de simplicidade, adequação, informalidade, oralidade e absoluta economia processual (cf. art. 2º, nº 2).
O requerimento inicia-se pela apresentação do requerimento na secretaria do julgado de paz (art. 43º, nº 1) e se o demandado estiver presente nesse momento pode apresentar contestação de imediato (art. 43º, nº 4); não estando presente, há lugar à sua citação para os termos do processo.
A citação (cf. art. 219º, nº 1, Código Processo Civil) visa dar conhecimento à outra parte da existência do processo, “(…) é o acto pelo qual se dá conhecimento ao réu de que foi proposta contra ele determinada ação e se chama ao processo para se defender (…).
Trata-se do acto que, em obediência ao princípio do contraditório (solenemente proclamado na parte final do nº 1 do art. 3.º), visa fechar o ciclo constitutivo da relação processual.”[1]
O princípio do contraditório é um dos princípios estruturantes do processo civil, emergindo do disposto no art. 20º, nºs 1 e 4, da CRP, que consagra o direito de acesso de todos os cidadãos ao Direito e aos tribunais, para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, bem como o direito a um processo equitativo.
No Código de Processo Civil encontramo-lo previsto no art. 3º:
“1- O tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a ação pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição. 2- Só nos casos excecionais previstos na lei se podem tomar providências contra determinada pessoa sem que esta seja previamente ouvida. 3- O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem. (…)”.
Em ordem a assegurar o cabal exercício do contraditório a lei adjetiva trata habitualmente de regular, detalhadamente, o modo de realização da citação.
No âmbito dos processos que correm termos nos julgados de paz, dispõe o art. 45º: “Citação do demandado 1-Caso o demandado não esteja presente aquando da apresentação do requerimento, a secretaria deve citá-lo para que este tome conhecimento de que contra si foi instaurado um processo, enviando-lhe cópia do requerimento do demandante. 2- Da citação devem constar a data da sessão de pré-mediação, o prazo para apresentação da contestação e as cominações em que incorre no caso de revelia.”
E o art. 46º: “Formas de citação e notificação 1-As citações e notificações podem ser efetuadas por via postal, podendo, em alternativa, ser feitas pessoalmente, pelo funcionário. 2-Não se admite a citação edital. 3-As notificações podem ser efetuadas pessoalmente, por telefone, telecópia ou via postal e podem ser dirigidas para o domicílio ou, se for do conhecimento da secretaria, para o local de trabalho do demandado. 4-Não há lugar à expedição de cartas rogatórias e precatórias.”
A questão que se coloca nos autos é saber como proceder no caso de se frustrarem as tentativas de citação por via postal ou pessoal, através de funcionário (no caso e como decorre da factualidade apurada, considerou-se que a citação por qualquer uma dessas vias resultou frustrada), visto que a mesma lei consagra explicitamente que não há lugar à citação edital.
A intervenção e a comparência pessoal das partes, neste tipo de processos, assume uma importância fulcral considerando o objetivo de resolução dos litígios pela via consensual.
Poderia, assim, equacionar-se a possibilidade de o processo não poder prosseguir naqueles tribunais quando resultasse frustrada a citação, ou, então, que o decurso da tramitação da ação depois de constatada a ausência do citando ficasse dependente de informação fornecida pelo demandante com vista à efetivação da citação, reconhecendo-se, porém, que esta solução não se compatibilizaria com as finalidades de celeridade subjacentes a este tipo de ações.
E não foi essa, efetivamente, a intenção do legislador pois como se depreende do disposto nos arts. 13º, nº 2[2], e art. 60º, nº 3[3], é admitida a prossecução de processo contra ausentes.
Deste modo, perante uma situação de ausência do demandado, cabe aferir sobre o modo de o ter como representado na ação, de molde a ficar cabalmente assegurado o direito ao contraditório.
Dispõe o art. 63.º: “Direito subsidiário “É subsidiariamente aplicável, no que não seja incompatível com a presente lei e no respeito pelos princípios gerais do processo nos julgados de paz, o disposto no Código de Processo Civil, com exceção das normas respeitantes ao compromisso arbitral, bem como à reconvenção, à réplica e aos articulados supervenientes.”
É, pois, inequívoco, que o regime das citações previsto no Código de Processo Civil, naquilo que não seja incompatível com a sobredita lei, nem com os princípios gerais do processo nos julgados de paz, deve ser convocado para ultrapassar o impasse criado com a frustração da citação por uma das vias já mencionadas.
E no caso dos autos, frustrada a citação, e como se alcança da matéria de facto supra elencada e em cumprimento do disposto no art. 236º, daquele Código[4], foram realizadas diligências junto da Autoridade Tributária e Aduaneira com vista à obtenção de informação sobre o paradeiro da demandada e que vieram revelar-se infrutíferas com vista à sua citação.
Foi, então, declarada a situação de ausência da demandada.
Como se disse, nos processos que correm pelos julgados de paz, não há lugar à citação edital.
E a questão coloca-se, então, em saber como efetivar nesses processos a representação dos ausentes.
O Sr. Conselheiro Cardona Ferreira[5], apresenta-nos soluções para a questão, defendendo: “Mas, se não puder haver citação postal, nem por funcionário? Sem citação, penso que se ofenderia, conscientemente, o sagrado direito de defesa, com violação do artigo 20.º da Constituição da República. Parece só haver uma solução: é a passagem ao alcance do artigo 15º do Código Processo Civil”, “mutatis mutandis” e, porque não há Ministério Público junto dos Julgado de Paz, o Juiz de Paz designar, nessa extrema hipótese, defensor oficioso a citar.”; e ainda, “Portanto, o primeiro segmento do nº 1 do artigo 38º deve ser cumprido como possível ou com os próprios ou como representantes, se necessário e viável. (…) se a citação pessoal ou quase-pessoal não foi possível, feita a citação em Defensor oficioso, a revelia, se existir, será sempre inoperante, como é elementarmente lógico e resulta do nº 1 do art. 567º do CPC, ex vi do art. 63 desta lei e, hoje, da decisiva nova redação do nº 2 do art. 58º”[6].
Salvo o devido respeito, não concordamos com esta solução, que não encontra respaldo no Código de Processo Civil nem em qualquer outra fonte de direito convocável.
A Lei n.º 68/2019, de 27 de agosto, que aprovou o (novo) Estatuto do Ministério Público, consagra no seu art. 2º, além do mais, que o Ministério Público defende os interesses que a lei determinar, resultando ainda do ar. 4º, nº 1, al. b), da mesma lei, que lhe compete, especialmente, representar entre outros os ausentes em parte incerta.
Esta competência mostra-se acolhida no art. 21º, do Código de Processo Civil, que sob a epígrafe “Defesa do ausente e do incapaz pelo Ministério Público”, dispõe o seguinte: “1- Se o ausente ou o incapaz, ou os seus representantes, não deduzirem oposição, ou se o ausente não comparecer a tempo de a deduzir, incumbe ao Ministério Público a defesa deles, para o que é citado, através do sistema de informação de suporte à atividade dos tribunais, nos termos definidos na portaria prevista no n.º 2 do artigo 132.º, presumindo-se a citação efetuada no terceiro dia posterior ao do seu envio, correndo novamente o prazo para a contestação. 2- Quando o Ministério Público represente o autor, é nomeado defensor oficioso. 3- Cessa a representação do Ministério Público ou do defensor oficioso logo que o ausente ou o seu procurador compareça ou logo que seja constituído mandatário judicial do ausente ou do incapaz.”
Deste modo, declarada a situação de ausência do réu/demandado é citado o Ministério Público a quem compete a sua representação.
A representação de ausente por defensor oficioso só está prevista quando o Ministério Público represente o autor.
Por outro lado, o Código de Processo Civil só admite a citação do réu na pessoa de advogado quando estejam reunidos os pressupostos a que se reporta o nº 5, do seu art. 225º, ou seja, quando a pessoa a citar tenha constituído mandatário com poderes especiais para receber a citação, mediante procuração passada há menos de quatro anos.
Fora destas situações, a lei não prevê a citação do citando na pessoa de advogado ou de defensor oficioso, sendo que caso o legislador tivesse querido esta solução para o caso particular das ações que são intentadas e correm termos nos julgados de paz, não deixaria de a ter consagrado expressamente.
Deste modo, concretizada uma citação de ausente na pessoa de defensor oficioso nos casos em que o Ministério Público não figura como autor, terá a mesma de considerar-se inexistente, porque desprovida de base legal.
Os referidos princípios orientadores da simplicidade, adequação, informalidade e absoluta economia processual não podem redundar em atropelos e violação de direitos estruturantes, como o direito ao contraditório, tanto mais que o ordenamento jurídico dá resposta a situações como a dos autos.
Assim, tendo por base o regime subsidiariamente aplicável, e conjugando-o, ainda, com a referida Lei n.º 68/2019, de 27 de agosto, da qual emerge a competência do Ministério Público para representar os ausentes, sem que restrinja tal competência a qualquer tipo de tribunais, constatada a ausência do citando deve o Ministério Público ser citado em sua representação nos termos previstos no art. 21º do Código de Processo Civil, não relevando a circunstância de não existir Magistrado do Ministério Público junto dos julgados de paz, pois tal circunstância também não obsta a que o Ministério Público seja notificado das decisões finais ali proferidas, nos termos previstos no já citado nº 3, do art. 60º, e para que relativamente às mesmas possa exercer a função de controle a que se refere o art. 4º, nº 1, al. j), e nº 3 da Lei 68/2019, entendendo-se, ainda, que deve atender-se para efeitos de citação, ao critério territorial previsto no mesmo art. 60º, nº 3, e assim, citar-se o Ministério Público junto do tribunal judicial territorialmente competente.
Em razão do exposto, e tendo em consideração os factos e o direito enunciados, temos de concluir que a demandada não foi citada na ação declarativa que correu termos no julgado de paz de Cascais, pois o ato de citação que era devido foi completamente omitido (cf. art. 188º, nº 1, al. a), do Código de Processo Civil).
Consequentemente, e nos termos previstos no art. 187º, al. a), do mesmo Código, é nulo todo o processado posterior ao requerimento inicial, constituindo a falta de citação fundamento de oposição à execução nos termos do artigo 729º, al. d), do Código de Processo Civil.
Sendo nulo todo o processado após a apresentação do requerimento no julgado de paz, é nula a decisão final e consequentemente inexistente o título executivo apresentado à execução (cf. arts. 10º, nº 5, e 729º, al. a) do Código de Processo Civil).
Assim, é de manter a decisão recorrida.
Decisão:
Na sequência do exposto e pelos fundamentos indicados, acordam os Juízes da 8ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente a apelação e manter a sentença recorrida.
Custas pelo apelante.
Notifique.
Lisboa, 17/2/2022
Cristina da Conceição Pires Lourenço Ferreira de Almeida Teresa Prazeres Pais
[1]Antunes Varela, J. Miguel Bezerra, Sampaio e Nora, “Manual de processo Civil”, 2ª Edição, pág. 266. [2]“2 - Se, porém, o demandado não tiver residência habitual ou for incerto ou ausente, é demandado no julgado de paz do domicílio do demandante”. [3]“3 - Nos processos em que sejam partes incapazes, incertos e ausentes, a sentença é notificada ao Ministério Público junto do tribunal judicial territorialmente competente” [4]“1- Quando seja impossível a realização da citação por o citando estar ausente em parte incerta, a secretaria diligencia obter informação sobre o último paradeiro ou residência conhecida junto de quaisquer entidades ou serviços, designadamente, mediante prévio despacho judicial, nas bases de dados dos serviços de identificação civil, da segurança social, da Autoridade Tributária e Aduaneira e do Instituto da Mobilidade e dos Transportes Terrestres e, quando o juiz o considere absolutamente indispensável para decidir da realização da citação edital, junto das autoridades policiais”. [5]In “Julgados de Paz – Organização, Competência e Funcionamento”, Coimbra Editora, pág. 64. [6]“Julgados de Paz, Organização, Competência e Funcionamento”, 4ª Edição Revista a Atualizada, Comemoração dos 500 anos do “Regimento dos Concertadores de Demandas de 1519”.