INVENTÁRIO PARA SEPARAÇÃO DE MEAÇÕES
ACORDO DE DIVISÃO HOMOLOGADO POR SENTENÇA
CONTRATO PROMESSA DE PARTILHA DE BENS COMUNS
VALIDADE
PARTILHA DO QUINHÃO HEREDITÁRIO DO EX-MARIDO
Sumário

I - No recurso de um processo de inventário para separação de meações, a questão da validade e eficácia do acordo celebrado entre os cônjuges para partilhar os bens comuns é central e prévia. II - Se uma decisão de revisão, num processo sem oposição, e qualificado como simples, atribui efeitos em Portugal a uma decisão que decretou um divórcio e homologou o acordo de divisão de bens, ter-se-á de entender, que a mesma, incluiu esse acordo de divisão homologado por sentença.
III - Mesmo que assim não seja, esse acordo sempre seria qualificado como um negócio jurídico bilateral, o qual seria regulado, nos termos dos arts. 41 e 42 do CC pela lei visada pelas partes.
IV - Actualmente entre nós o contrato promessa de partilha de bens comuns é válido.
V - Uma parte que celebrou um acordo de partilha de bens comuns recebendo contrapartidas, bens e declarando que mais nada existe a partilhar não pode vir depois, exigir a partilha do quinhão hereditário do seu ex-marido pela morte dos pais deste.

Texto Integral

Processo:.619/20.3T8VCD.P2

Sumário:
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1. Relatório
Sob o nº 2…/18 do Cartório Notarial da … Drª AA , correu termos um inventário para separação de meações, no qual a Sra. BB exerce as funções de cabeça de casal.
Nesses autos foi proferida decisão em que excluiu da relação de bens o quinhão hereditário por óbito de CC (verba 2) e considerou que à partilha do quinhão hereditário por óbito de DD (verba 1) deve ser aplicado o artigo 1790º do Código Civil, na redação dada pelo Lei 61/2008, de 31 de outubro.
Não se conformando com a decisão, veio apresentar a impugnação judicial, nos termos previstos no art. 57º, nº 4 do RJPI.
O interessado apresentou alegações que não foram tempestivamente juntas aos autos, pelo que o tribunal a quo, proferiu uma decisão inicial[1] sem as poder ler.
Interposto recurso para este tribunal foi julgada procedente a invocada nulidade processual do procedimento e determinado que: “o tribunal em decisão sumária, julga procedente a nulidade suscitada e por via disso que a sentença proferida seja declarada nula e seja tramitado o processo, por forma a que, eventualmente sejam praticados actos e proferida uma nova decisão que aprecie e pondere o teor das questões e argumentos aduzidos pelo apelante no seu requerimento de 18.8.2020 que fosse proferida nova decisão.
Em 7.7.2021 foi proferida nova decisão, nos seguintes termos: decido conceder parcial provimento ao recurso instaurado por BB e, em consequência, anular a decisão da Exm.ª Notária na parte em que determinou a exclusão da relação de bens da verba n.º 1, no mais mantendo a decisão impugnada (com exclusão da verba 2).

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Inconformadas vieram ambas as partes recorrer, recursos esses que foram admitidos como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.

2.2. O apelante apresentou as seguintes conclusões
I. Da leitura da sentença de divórcio proferida a 4 de abril de 2014 pelo Supremo Tribunal da África do Sul, revista e confirmada pelo Tribunal da Relação de Coimbra, junta aos presentes autos, para o que releva, refere: “3.5 Todos os outros bens não especificados diretamente nesta cláusula 3 dos quais a Requerente e o Requerido estejam cada, atualmente respetivamente na sua posse permanecerão a sua propriedade livre e exclusiva e a posse desses bens serão considerados assim, como atribuídos a cada um deles. (…) 7. QUITAÇÃO INTEGRAL E DEFINITIVA E A SENTENÇA DO TRIBUNAL Este acordo constitui quitação integral e definitiva de todas as reivindicações eu qualquer das partes possa ter contra a outra, agora ou no futuro, e é acordado que no caso de uma Sentença de Divórcio ter sido decretada pelo acima Ilustre Tribunal, os termos e condições do presente Contrato serão incorporados no mesmo e formará uma parte integrante de tal ordem judicial da Sentença de Divórcio.”
II. Em caso de transacção, o Juiz deve verificar se o objecto estava na disponibilidade das partes e tinha idoneidade negocial, e ainda «a pertinência do objecto do negócio para o processo, isto é, a sua coincidência com o pedido deduzido, dado o acto processual pelo qual as partes fazem valer o negócio de auto-composição do litígio»; e também verifica a capacidade e legitimidade dos intervenientes (cfr. LEBRE DE FREITAS, JOÃO REDINHA E RUI PINTO, in Código de Processo Civil anotado, Vol 1º, pág. 533)
III. Ora, tendo sentença proferida a 4 de abril de 2014 pelo Supremo Tribunal da África do Sul, e revista e confirmada pelo Tribunal da Relação de Coimbra, podemos afirmar que a confirmação de uma sentença estrangeira, após revisão, traduz-se na atribuição pelo Estado do foro, dos efeitos que lhe cabem no Estado de origem, como acto jurisdicional, conforme rege o artigo 978, nº 1 do Código de Processo Civil.
IV. O que na referida sentença foi acordado e homologado, produz efeitos no nosso ordenamento jurídico, estando assim o Recorrente e a Recorrida obrigados ao seu cumprimento.
V. SEM PRESCINDIR, como refere e bem a Recorrida na sua impugnação da decisão sobre a reclamação da relação de bens, “os autos foram abertos a requerimento da cabeça de casal para partilha do património em Portugal do dissolvido casal constituído por ela e por EE ”.
VI. A partilha em crise nos presentes autos foi instaurada em Portugal, para partilha do alegado património no nosso país do Recorrente e da Recorrida, sendo certo que os dois outorgantes são nacionais portugueses à data do divórcio e da subsequente partilha, uma vez que adquiriram a nacionalidade portuguesa após o casamento e antes do divórcio.
VII. Como refere e bem a recorrida na sua impugnação da decisão sobre a reclamação da relação de bens, mostra-se documentalmente provado que “a cabeça de casal obteve a nacionalidade portuguesa do avô materno, em 01-03-1993” e “O requerido adquiriu também a nacionalidade portuguesa, em 28-05-1993.
VIII. O processo de partilha entre Recorrente e Recorrido é regulado pela Lei nacional portuguesa.
IX. Nos termos do artigo 1790º do Código Civil, na sua atual redação introduzida pela Lei 61/2008 de 31 de outubro, “Em caso de divórcio, nenhum dos cônjuges pode na partilha receber mais do que receberia se o casamento tivesse sido celebrado segundo o regime da comunhão de adquiridos”.
X. Segundo a nossa melhor Jurisprudência sobre esta matéria, nomeadamente o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido a 26/03/2019 pelo Conselheiro Fernando Samões: “1. O art.º 1790.º do Código Civil, na redacção da Lei n.º 61/2008, de 31 de Outubro, é aplicável a todos os casamentos celebrados segundo o regime da comunhão geral de bens, mesmo aos celebrados em data anterior à sua entrada em vigor (1/12/2008), desde que, neste caso, subsistam nessa data”. (Destaque nosso)
XI. É o caso do casamento do Recorrente e da Recorrida que se mantinha em 2008, sendo dissolvido apenas em 2014.
XII. Assim, estará em causa uma questão de aplicação da lei no tempo, a qual tem de ser solucionada com recurso ao disposto no art.º 12.º do Código Civil.
XIII. Nos termos da 2.ª parte do n.º 2 do art.º 12.º do Código Civil, a Lei n.º 61/2008 (nova lei), dispondo directamente sobre a situação de casado, abstraindo do casamento que fez nascer o estado de casado, abrange as relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor.
XIV. O regime por ela introduzido aplica-se aos casamentos celebrados antes da data da sua entrada em vigor (1/12/2008) e que nessa data ainda subsistam, isto é, não tenham sido dissolvidos, como sucede no caso dos autos em que o divórcio apenas já em plena vigência daquela lei.
XV. Segundo a interpretação que a nossa melhor Doutrina faz sobre esta matéria, nomeadamente o Dr. AUGUSTO LOPES CARDOSO, in Partilhas Judiciais, Vol. III, 6ª edição, Almedina, 2015, p. 326 e ss, a mens legis é a de as relações patrimoniais passarem a reger-se, obrigatoriamente, pelas regras da comunhão de adquiridos, nenhum dos cônjuges deve receber mais que o outro. Chegando mesmo a afirmar que “a eventual licitação em bens próprios do outro cônjuge é particularmente chocante” (Destaque nosso)
XVI. A sentença recorrida violou entre outros o disposto no art. 1790º do Código Civil.

2.2. A apelante apresentou as seguintes conclusões
1ª – A Requerente não se pode conformar com a decisão de excluir da Relação de Bens a Verba 2 da Relação de Bens, no caso o quinhão hereditário por óbito de CC , mãe do Requerido. É que,
2ª – A mera referência ao processo nº “ 3…./2012 “ não quer necessariamente dizer que o processo de divórcio foi iniciado no Tribunal da África do Sul no ano de 2012. Pois que,
3ª - Não consta do processo o modo e os termos da numeração de processos judiciais na África do Sul, nem que o número do indicado processo significa que o mesmo deu entrada no tribunal no ano de 2012 ou que tem outro significado.
4ª – A prova de tal facto – que o processo foi instaurado no ano de 2012 - recaía sobre o Requerido (art.º 342º do CC), mas este nada provou no processo, nomeadamente através de certidão emitida pelo Tribunal que decretou o divórcio, pelo que a decisão sobre esta questão terá que ser decidida contra ele.
5ª – O Tribunal da Relação de Coimbra, que reviu e confirmou a sentença de divórcio na África do Sul, não confirmou que o processo tivesse dado entrada no ano de 2012, conforme comunicação de 20-07-2020, a fls. : “ … informo V. Ex.cia de que não consta dos nossos autos, supra indicados, a data de entrada em juízo da acção de divórcio cuja sentença aqui foi revista “.
6ª – Não estando assente a data de propositura da ação de divórcio, e não podendo ela ser intuída ou adivinhada, terá de relevar a data da sentença de divórcio, ou seja, 04.04.2014, como consta do Acórdão do TRC, que a reviu e confirmou.
7ª - Entendimento que, aliás, encontramos em outras decisões de tribunais superiores, nomeadamente no Acórdão de 02-07-2015, do Tribunal da Relação de Lisboa, pº 473/1999, IN WWW.DGSI.PT/JTRL): “ As relações patrimoniais do casal, decorrentes do regime de bens do casamento, cessam na data da sentença estrangeira que decretou o divórcio e não aquando da sua revisão e confirmação em Portugal “.
8ª - O presente inventário tem por causa a dissolução do casamento entre os interessados, por sentença proferida em 4 de abril de 2014, pelo Supremo Tribunal da África do Sul, Sentença essa que foi revista e confirmada em Portugal, em conformidade com o disposto nos artigos 978º e ss. do CPC,
9ª - Vigora em Portugal o princípio de que, uma sentença estrangeira, revista e confirmada, produz no nosso ordenamento jurídico os mesmos efeitos que lhe são atribuídos no sistema jurídico de origem (art.º 978º/1, do CPC).
10ª - Ora, para excluir a Verba 2 da Relação de Bens, a M.ma Juiz, depois de considerar (indevidamente) que o processo se iniciou no ano de 2012, referiu ao efeitos patrimoniais do divórcio a esse ano de 2012, como se fosse aplicável ao caso o nosso Código Civil (art.º 1789º - nas relações patrimoniais entre os cônjuges os efeitos do divórcio retroagem á data da propositura da acção).
11º- Entendimento que viola claramente a lei. É que,
12ª - Se a sentença estrangeira, revista e confirmada em Portugal produz no nosso ordenamento jurídico os mesmos efeitos patrimoniais que lhe são atribuídos no país de origem, em relação aos efeitos patrimoniais, o Tribunal não pode aplicar a lei portuguesa para definir esses efeitos, tem que aplicar a lei da África do Sul.
13ª - E se o Tribunal não tem esses elementos no processo, sempre deveria ter obtido essa informação do organismo competente, no caso o Gabinete de Documentação e Direito Comparado da Procuradoria-Geral da República, como o próprio Tribunal fez em relação ao regime de bens (ver comunicação de 23-07-2020, com a referência 41261010).
14ª - Tendo o casamento da Requerente e do Requerido sido celebrado ao abrigo do regime da comunhão geral de bens, pela lei da África do Sul, e sendo considerado comum todo o património do casal à data da sentença que decretou o divórcio,
15ª - E tendo a mãe do Requerido faleceu em 22 de janeiro de 2013, ou seja, em data anterior à sentença de divórcio,
16ª - Devem ser considerados bens comuns os direitos sobre os quinhões das heranças abertas por óbito dos pais do Requerido, incluindo o da mãe, a que se refere a Verba 2 da Relação de Bens apresentada no processo de inventário.
17ª - Pelo que, deve ser revogada a sentença recorrida, na parte em que exclui da Relação de Bens a Verba 2, devendo, como tal, o quinhão hereditário por morte de CC ser considerado bem comum do casal.
18ª – A sentença recorrida viola nomeadamente o disposto nos art.ºs 342º do CC e 978º do CPC
Veio ainda essa parte responder às alegações do apelante cujo teor se dá por reproduzido, o qual em suma, consiste:
Por um lado, não resulta dos factos provados qualquer facto sobre o acordo de divisão. Por outro, se o Requerido pretendia rever e confirmar decisão de tribunal da África do Sul referente a bens ou a partilha de bens com a cabeça de Casal, que, não existiu, então deveria ter pedido a confirmação e revisão dessa decisão no tribunal português competente; não o tendo feito, não pode aqui invocá-la.

3. questões a decidir são:
a) determinar qual o objecto da sentença de divórcio aplicável em Portugal e se o acordo de partilha homologado é, ou não, vinculativo para as partes.
b) averiguar depois, se as verbas nºs 1 e 2 da relação de bens devem ser mantidas ou excluídas.

4. Motivação de facto
1. BB e EE contraíram, entre si, casamento católico no dia 18.03.1979, em …, África do Sul.
2. O casamento aludido em 1 foi registado no competente assento sob o n.º … do ano de 1994, dele constando as menções de que os nubentes são residentes em África do Sul e que o casamento é celebrado “nos termos do n.º 2 do artigo 53 do Código Civil”.
3. EE nasceu em .. .. 1953, em …, África do Sul, filho de DD e de CC, naturais da Póvoa de Varzim, Portugal.
4. BB nasceu em .. .. 1959, em …, Moçambique, filha de FF e de GG, naturais, respetivamente, de … e ….
5. Por averbamento de 01.03.1993, fez-se constar do assento de nascimento da cabeça de casal que “o avô materno da registada é natural de Portimão”.
6. O casamento aludido em 1 foi dissolvido por sentença de 04.04.2014, transitada, proferida pelo Supremo Tribunal da África do Sul no âmbito do processo n.º 3…./2012.
7. A aludida sentença foi revista e confirmada por acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, transitado em julgado em 27.10.2016. cuja certidão foi junta e cujo restante teor se dá por reproduzido.
8. Nessa decisão foi decidido “concede-se a revisão e confirmação referente à sentença supra referida (…)”. No facto provado nº 2 fez-se menção da decisão referida em 6 com menção: “conforme fls. 12 a 37”.
9. DD e CC, pais do interessado EE, faleceram, respetivamente, em 21.07.1993 e 22.01.2013, na África do Sul.
10. No decurso do processo referido em 6) ambas as partes celebraram entre si um “acordo de liquidação”, nos termos do qual liquidaram “de forma total e definitiva” a propriedade comum (liquidando o ora apelante a quantia de 400 mil rands à apelada); todos os restantes bens de que as partes estejam na posse consideram-se propriedade livre e exclusiva atribuída a cada um deles.
11. Nesse acordo consta da cláusula 7 QUITAÇÃO INTEGRAL E DEFINITIVA E A SENTENÇA DO TRIBUNAL Este acordo constitui quitação integral e definitiva de todas as reivindicações eu qualquer das partes possa ter contra a outra, agora ou no futuro, e é acordado que no caso de uma Sentença de Divórcio ter sido decretada pelo acima Ilustre Tribunal, os termos e condições do presente Contrato serão incorporados no mesmo e formará uma parte integrante de tal ordem judicial da Sentença de Divórcio.

5. Motivação jurídica
Neste processo, a discussão jurídica incidiu até aqui na lei aplicável ao casamento celebrado entre as partes, concluindo-se que o mesmo seria regulado pela lei vigente na África do Sul.
De facto, nos termos do art. 53º, nº1 e 2, do CC as regras reguladoras do regime de bens nos casamentos são as constantes da lei nacional dos cônjuges. Se estes não tiverem a mesma nacionalidade, aplica-se a lei da sua residência habitual comum à data do casamento.[2]
Mas, o objecto desta acção é a partilha (ou não) dos bens do casal.
A partilha é o acto destinado a fazer cessar a indivisão de um património.
Ora, in casu sempre foi alegado pelo apelante que nada existe a partilhar porque ambas as partes já partilharam o seu património comum nos termos de um acordo homologado por sentença.
Logo, a questão de saber se o acordo celebrado pelas partes relativo à divisão dos seus bens comuns é válido e produz efeitos na ordem jurídica nacional é prévio e nuclear face às restantes questões suscitadas, sem que tenha sido apreciada.

2. Do objecto da sentença de revisão
Esse acordo, conforme resulta dos factos provados, foi efectuado no âmbito do processo de divórcio, tendo sido homologado pela sentença final, a qual, por seu turno, foi objecto de uma sentença de revisão.
Pretende, porém, a apelada que essa sentença não reviu a decisão na parte relativa ao acordo de divisão de bens, mas apenas quanto ao divórcio das partes.
Vejamos
É pacífico entre nós que a causa de pedir na acção de revisão de sentença estrangeira é um acto processual que corresponde à própria sentença proferida.
Por isso, “em face do nosso sistema a acção de revisão de sentença estrangeira, quer se trate de revisão meramente formal, quer de revisão de mérito, é uma acção de simples apreciação ou declaração. O tribunal nada mais faz do que verificar se a sentença estrangeira está em condições de produzir efeitos em Portugal[3]”.
E, mais recentemente João Gomes de Almeida[4], analisando esta situação, precisamente no divórcio, esclarece que a confirmação pode ser total ou parcial, pois, é através da decisão de confirmação da sentença estrangeira que esta pode produzir os seus efeitos em Portugal tal como produz no seu Estado de origem, pelo que (…) “a autorização da mudança na ordem jurídica (portuguesa) existente resulta da conjugação da decisão de confirmação com a decisão estrangeira (...)”.
Ou seja, será necessário interpretar a decisão de revisão para se perceber se esta limitou, ou não, os efeitos da decisão que decretou os divórcios dos apelantes.
As decisões, como qualquer acto jurídico são passíveis de ser interpretadas. O Código Civil português prevê precisamente uma norma sobre a interpretação dos actos que não sejam negócios jurídicos, estabelecendo no art. 295.º, que “aos actos jurídicos que não sejam negócios jurídicos são aplicáveis, na medida em que a analogia das situações o justifique, as disposições do capítulo precedente”.
A nossa doutrina que analisa esta questão[5], salienta que a interpretação da sentença deve ser realizada de acordo com sentido que um declaratário normal, colocado na posição real do declaratário tendo em conta o dispositivo final, a fundamentação, e inclusivamente a globalidade dos actos que precederam a decisão.
Como critérios operativos[6] utilizam-se:
a) A presunção de o julgador não ter decidido contra a lei.
b) Havendo dúvidas na interpretação do dispositivo da sentença, deve-se preferir a que seja mais conforme à fundamentação e aos limites da lide, em conformidade com o pedido formulado no processo;
c) deve interpretar-se a decisão judicial, de acordo com o principio do pedido (limitação).
d) E, por fim deve presumir-se o sentido da decisão interpretanda em conformidade com a jurisprudência dominante.
Ora, no caso presente vemos que a decisão da África do Sul integra dois elementos: que o casamento seja dissolvido e que o acordo (celebrado pelas partes) seja decretado com uma sentença do tribunal.
Ou seja, o objecto final dessa sentença foi a dissolução do casamento homologando o acordo de divisão de bens das partes.
Esse foi o objecto pedido. A decisão de revisão nacional faz referência a essa decisão, com esse conteúdo (na medida em que dá por reproduzida fls. 12 a 37).
Salienta a simplicidade da questão e a não oposição da parte contrária e, por fim, concede a “revisão quanto à sentença supra referida”.
Ou seja, do conjunto desses elementos ter-se-á de entender, seja pelo seu sentido literal, seja pelas remissões efectuada, que o objecto revisto foi a totalidade da decisão Sul Africana. Pois, se assim não fosse algo teria de ser escrito (e justificado) quanto à limitação de alguns dos seus efeitos.
Na verdade, nas palavras de Ferrer Correia[7], “reconhecer uma sentença estrangeira é atribuir-lhe no Estado do foro (Estado requerido, Estado ad quem) os efeitos que lhe competem segundo a lei do Estado onde foi proferida (Estado de origem), ou pelo menos alguns desses efeitos”. E, conforme é maioritário entre nós existe o princípio da estabilidade das relações jurídicas internacionais, nos termos do qual a regra é uma revisão meramente formal e não substancial.[8]
Por isso, a regra geral será a produção de todos efeitos da decisão na África do Sul excepto se algum deles violar a ordem pública nacional.
Deste modo, teremos de concluir que, ao contrário do que a apelante agora pretende, a decisão estrangeira foi revista e produziu efeitos jurídicos na ordem nacional quanto a todos os pontos do seu objecto, incluindo, pois, a homologação do acordo de partilha dos bens.
Ora, se assim for mais nenhum processo de partilha pode ser instaurado, pois, a apelada reconhece “já ter partilhado todos os bens comuns”.
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5.2. Da relevância do acordo celebrado pelas partes aquando do divórcio da África do Sul.
Mas, mesmo que assim não se entenda sempre a celebração desse acordo levaria ao mesmo resultado.
Com efeito, o mesmo constituiu um acordo particular, celebrado de forma escrita, por dois cidadãos adultos e patrocinados por mandatários, o qual foi posteriormente homologado por decisão judicial.
Nestes termos, se se entender que a sua homologação não produziu efeitos, sempre o mesmo constituiu um acordo escrito tendo por objecto a partilha de bens por efeito da dissolução do casamento.
A lei aplicável a esse acordo deve ser encontrada nos termos do art. 41[9], do CC sendo evidente que a lei tida em vista pelas partes foi a Sul Africana.
Ora, a validade dessa estipulação é tal que foi homologada por uma decisão do tribunal desse país, transitada em julgado e por isso vinculante entre as partes[10].
Deste modo, mesmo que a sentença não tivesse sido revista, sempre esse acordo seria válido e vinculante para ambas partes, obrigando a apelante a reconhecer, que declarou e aceitou, não ter jus a partilhar qualquer outro bem comum.
Por último, convirá esclarecer que tal acordo em nada viola as normas de ordem pública nacionais. Bastará, para isso recordar, a evolução que a nossa jurisprudência empreendeu quanto à validade dos acordos celebrados entre cônjuges para partilha futura dos bens[11]. Inicialmente esses acordos foram considerados nulos porque violariam o regime legal de bens[12], sendo actualmente considerados uma forma válida de efectuar a partilha futura dos bens comuns.[13]
Deste modo, e por este prisma, que até a apelante não põe em causa, teremos de considerar que as partes acordaram já em partilhar de forma válida e eficaz todos os seus bens comuns tendo até a apelada recebido uma quantia monetária, e várias outras vantagens, e declarado nada mais ter a receber.
Deste modo, não existe fundamento para a existência e tramitação do processo de inventário, nem do seu acervo pode fazer parte qualquer outro bem.
Pois, se a partilha é o único objetivo do inventário, se não existem bens a dividir este nunca deveria ter sido intentado.[14]

5.3. Face ao exposto julgam-se prejudicadas as restantes questões suscitadas, pois, já está determinado que todos os bens comuns foram partilhados de forma válida e eficaz por ambas as partes.

6. Deliberação
Pelo exposto, este tribunal julga o presente recurso do apelante integralmente procedente por provado e, por via disso, julgando prejudicadas todas as restantes questões suscitadas e assim totalmente improcedente o recurso da apelante/interessada.

Custas do recurso e da acção a cargo da apelada/apelante porque decaiu totalmente na sua pretensão.

Porto em 13.1.2021
Paulo Duarte Teixeira
Ana Vieira
Deolinda Varão
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[1] O tribunal a quo proferiu a seguinte decisão: decido conceder integral provimento ao recurso instaurado por BB e, em consequência, anular a decisão da Exm.ª Notária, na parte em que determinou a exclusão da relação de bens das verbas n.ºs 1 e 2.
[2] Nestes termos: AC da RL de 29.1.2009, Bruto da Costa, nº 9217/2008-8.
[3] Cfr. Maria José Capelo, A Sentença entre a Autoridade e a Prova, em busca de traços distintivos do caso julgado civil, reimpressão, Almedina, Coimbra, 2016, 149. E, entre outros, o Ac do STJ de 27.4.17, nº 93/16.9YRCBR.S1 (OLIVEIRA VASCONCELOS).
[4] O Divórcio em Direito Internacional Privado, Almedina, 2017. Pág. 644 e segs.
[5] Paula Costa E Silva, Acto e Processo - O Dogma da Irrelevância da Vontade na Interpretação e nos Vícios do Acto Postulativo, Coimbra, Coimbra Editora, 2003, págs. 64-65, pág. 415, pág. 381 e segs.. Em termos gerais Antunes Varela, anotação ao acórdão do STJ, de 29 de Maio de 1991, in: Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 124.º, n.º 3806, espec. pág. 152 e segs
[6] Cfr. Remédio Marques, Em torno da interpretação das decisões judiciais, Lusíada, Direito. Porto Nº. 7 e 8 (2013), pág. 75 e segs.
[7] O Reconhecimento das Sentenças Estrangeiras no Direito Brasileiro e no Direito Português”, “Temas de Direito Comercial e Direito Internacional Privado”, Almedina, 1989, pág.267.
[8] Por mais recente, Ac da RP de 8.3.2021, (Eugénia Cunha), 265/20.1YRPRT.
[9] O teor do artigo é: “As obrigações provenientes de negócio jurídico, assim como a própria substância dele, são reguladas pela lei que os respectivos sujeitos tiverem designado ou houverem tido em vista. 2. A designação ou referência das partes só pode, todavia, recair sobre lei cuja aplicabilidade corresponda a um interesse sério dos declarantes ou esteja em conexão com algum dos elementos do negócio jurídico atendíveis no domínio do direito internacional privado”. De notar que idêntico resultado seria aplicado com o critério supletivo que, em ultimo caso seria, o do local da celebração do acordo (art. 42 do CC).
[10] Ac do STJ de 6.4.2021, nº 5236/17.2T8CBR.C1.S1 (Fátima Gomes) que analisa as normas de comon law quanto ao património comum.
[11] Cfr. Cristina Dias, Alteração do estatuto patrimonial dos cônjuges e a Responsabilidade por Dívidas, 2017, Almedina, pág. 39 e segs e Guilherme de Oliveira, Anotação ao AC da RC de 28.11.1995, in RLJ, 3870, 254 disponível in http://www.guilhermedeoliveira.pt/resources/Sobre-o-contrato-promessa-de-partilha-de-bens-comuns.pdf
[12] A decisão no sentido da nulidade, cfr. Ac do STJ de 25/05/1999 (Afonso de Melo), nº JSTJ00037124.
[13] Entre outros o AC da RC de 21.4.2015 nº 288/13.7TBANS.C1 (Maria Simões): “O acordo de partilha a que se alude na parte final da al. a) do n.º 1 do art.º 1775.º do Código Civil e na al. b) do n.º 1 do art.º 272.º do CRC) tem, nos termos da lei, os mesmos efeitos previstos para outras formas de partilha, sendo homologado pela decisão que decreta o divórcio, que a titula (cf. n.ºs 4, 5 e 6 do art.º 272.º-A do mesmo diploma legal).A partilha efectuada na pendência do casamento, ainda que instaurado o processo de divórcio, seja ele consensual ou não, é sancionada com a nulidade, quer porque se considere que da sua realização resulta violação do princípio da imutabilidade fixado no art.º 1714.º, quer se entenda que a nulidade decorre da violação das disposições imperativas constantes dos artigos 1688.º, 1689.º e 2101.º. Os acordos de partilha referidos em I. encontram-se subtraídos à proibição legal porquanto, conforme se prevê no regime que vimos analisando, a partilha acordada fica sujeita à condição suspensiva, por imposição da própria lei, do divórcio vir a ser decretado, dependendo ainda da homologação pelo Sr. Conservador, não produzindo até lá quaisquer efeitos, tal como não os produzirá se a condição se não verificar”.
[14] Nestes termos: Ac da RL de 26.1.2017, nº 169/13.4TMFUN.L1-2 (Maria Mouro)