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REJEIÇÃO DA ACUSAÇÃO PARTICULAR
ACUSAÇÃO MANIFESTAMENTE INFUNDADA
CRIME DE DIFAMAÇÃO
ELEMENTOS SUBJECTIVOS DO TIPO
Sumário
I–Relativamente aos elementos subjectivos do crime, terá de ser expresso na acusação, uma fórmula em que se imputa ao agente o ter actuado de forma livre (isto é, podendo ele agir de modo diverso, em conformidade com o direito ou o dever ser jurídico), voluntária ou deliberadamente (querendo a realização do facto), conscientemente (isto é, tendo representado na sua consciência todas as circunstâncias do facto) e sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei (consciência da proibição como sinónimo de consciência da ilicitude);
II–Quando numa acusação particular esta é omissa quanto a um dos elementos subjetivos do tipo de crime que vem imputados à arguida, ou seja, que a arguida ao agir do modo descrito tinha conhecimento da ilicitude dos factos e que estes eram puníveis pela lei penal, a acusação terá de ser rejeitada, por ser manifestamente infundada.
Texto Integral
Acordam, em conferência, os Juízes que integram a 9.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I–RELATÓRIO
1.1.–A assistente veio interpor recurso do douto despacho do J4, do Juízo Local Criminal de Loures do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, que rejeitou, por manifestamente infundada, a acusação por ela deduzida contra AA pela prática de crimes de difamação, p. e p. pelo artigo 180.º, n.º 1, do Código Penal.
São as seguintes as conclusões da motivação do recurso:
“1ª-Decidiu o Tribunal “a quo”, proferir despacho de rejeição da acusação particular deduzida pela Assistente BB contra a arguida AA quanto à prática do crime de difamação, p. e p. pelo art. 180º, n.º 1, do C. Penal, por considerar que a mesma não refere a totalidade dos factos integradores do elemento subjectivo do tipo, padecendo, desse modo, da nulidade resultante do n.º 3 do art. 283º do C.P.Penal (aplicável por força do n.º 3 do art. 285º do mesmo diploma legal). 2.ª-Para o efeito, entendeu, o M.º Juiz “ a quo”, que “… o que sucede na acusação particular formulada é que o elemento subjectivo se mostra omisso, uma vez que ainda que se mostre enunciada a intenção, por parte do arguido de, com as descritas expressões, ofender a honra e consideração do assistente, ou seja, não se encontra descrito nenhum facto relativo à consciência da ilicitude”, considerando-a “manifestamente infundada”. 3ª-Salvo o devido respeito – que é muito -, não assiste qualquer razão ao Tribunal “a quo”, como resulta do teor da acusação particular deduzida a fls. …, que aqui se dá por integralmente reproduzida para os legais efeitos, uma vez que não se verifica “in casu”, a ausência de qualquer dos requisitos previstos no art.º 311.º do CPP que conduzam à rejeição da acusação por manifestamente infundada. 4ª-Veja-se, a este respeito, o entendimento defendido pelo Tribunal da Relação de Évora, no Acórdão proferido a 24-02-2015 (Processo nº 1548/13.2TAFAR.E1, disponível em www.dgsi.pt): “ (…) Apesar de a acusação particular não fazer qualquer referência à fórmula consagrada na praxis judiciária, “o arguido agiu deliberada livre e conscientemente, bem sabendo ser proibida por lei a sua conduta”, ou outra equivalente, a mesma não respeita ao tipo objetivo ou subjetivo, contrariamente ao que se refere no despacho recorrido, e relativamente aos crimes do chamado direito penal clássico, como sucede no caso presente, a mesma não tem que constar da acusação e da sentença por respeitar à imputabilidade e à consciência da ilicitude, de que cuja verificação positiva em cada caso não cumpre fazer prova, ainda que indireta, por estar a mesma implícita no preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos do tipo de ilícito. Na verdade, tal como decidimos em acórdão de 05.03.2013, proferido no processo 5689-11.2TDLSB.E1 (acessível em www.dgsi.pt) o “conhecimento da ilicitude” não integra o tipo, não se encontrando abrangido pelo dolo, respeitando antes à culpa. (…) Daí que a consciência da ilicitude enquanto facto psicológico de conteúdo positivo não tenha que ser alegada e provada em cada caso, pelo menos nos chamados “crimes em si” do direito penal clássico onde se insere o crime de injúria aqui em causa – tal como não tem que ser alegada a ilicitude do facto indiciada pelo preenchimento do tipo legal -, contrariamente ao que sucede com os factos que correspondem ao dolo e, eventualmente, a outros elementos subjetivos do tipo, sem prejuízo da alegação e prova dos factos integradores de eventual causa de justificação ou de exclusão da culpa, quando estejam em causa. (…) Também do ponto de vista processual esta perspetiva se confirma, em nosso ver, pois ao contrário da factualidade que integra os elementos do tipo legal, que deve constar necessariamente da acusação, conforme expresso no art.º 283º nº 3 al. b) do CPP, por imposição dos princípios do acusatório, do contraditório e da vinculação temática ao objeto do processo, estes princípios em nada são postos em causa com a falta de menção da apontada fórmula sacramental positiva (“o arguido agiu livre e conscientemente, bem sabendo ser proibida por lei a sua conduta”) ou equivalente. Na verdade, fora dos casos em que se discuta a realidade negativa correspondente, o tribunal não autonomiza o julgamento sobre factos que pudessem reconduzir-se a uma verificação positiva da imputabilidade e da consciência da ilicitude, pelo menos quando estão em causa crimes que integram o chamado direito penal clássico (…).” 5ª-A acusação particular deduzida pela Assistente tem todos os elementos necessários e imprescindíveis para assegurar a sujeição da Arguido a julgamento pelos factos constantes da mesma (prática do crime de difamação). 6ª-Da mesma consta que a Arguida teceu comentários acerca da pessoa e do comportamento da Assistente, perante terceiros, que bem sabia serem falsos, com o intuito de humilhar (fazer perder o orgulho e amor-próprio; fazer sentir inferior, desprezível ou sem valor - cfr. Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa) e de vexar (causar vergonha; fazer ficar envergonhado, constrangido ou magoado - cfr. Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa) a Assistente, tendo a sua conduta sido voluntária (deliberada, intencional, que decorre da livre vontade e que não está sujeita a imposições exteriores - cfr. Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa) e consciente, bem sabendo que aquelas afirmações eram susceptíveis de atingir a honra e a consideração da Assistente, o que veio a acontecer – veja-se, neste sentido, o teor dos arts. 31º, 32º, 33º, 34º, 35º, 36º e 37º da acusação particular, que aqui se dão por integralmente reproduzidos para os legais efeitos. 7ª-A fórmula “bem sabendo ser proibida por lei a sua conduta” – que não consta da acusação particular deduzida - não respeita ao tipo objetivo ou subjetivo, e relativamente aos crimes do chamado direito penal clássico, como sucede no caso concreto, a mesma não tem que constar da acusação por respeitar à consciência da ilicitude, de que cuja verificação positiva em cada caso não cumpre fazer prova, ainda que indireta, por estar a mesma implícita no preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos do tipo de ilícito. 8ª-Na acusação particular refere-se que a Arguida proferiu as expressões aí identificadas no intuito de humilhar e vexar a Assistente, bem sabendo que aquelas expressões eram susceptíveis de atingir a honra e consideração da Assistente, daí se retirando que a Arguida não só conhecia o potencial ofensivo e humilhante das expressões em causa, como também conhecia o desvalor das mesmas. 9ª-A decisão ora recorrida parte da ausência da afirmação da consciência da ilicitude através de uma fórmula vulgarmente utilizada na prática judiciária, ou seja, da falta de uma imputação expressa. 10ª-Todavia, os factos pertinentes estão contidos na acusação particular, não se verificando a omissão de qualquer dos requisitos previstos no nº 3 do art.º 283.º do CPPenal. 11ª-Ao tecer sobre a Assistente as afirmações e considerações constantes da acusação particular, que aqui se dão por integralmente reproduzidas para os legais efeitos, a Arguida quis ofender a honra e consideração da Assistente e tinha consciência da censurabilidade penal de tal conduta, pois com tal factualidade resulta integrada a correspondente componente subjectiva do tipo, ao nível da vontade e da representação do ilícito. 12ª-A acusação particular deduzida pela Assistente descreve factualidade temporal e espacialmente localizada, objectivamente lesiva da honra e consideração da Recorrente, aí se descrevendo com rigor as expressões ofensivas, as circunstâncias em que foram dirigidas à ora Recorrente, bem como qualifica a actuação da Arguida como voluntária e consciente. 13ª-A inexistência na acusação particular deduzida da expressão “bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei” não desencadeia de modo automático a impunibilidade da conduta de modo a justificar a rejeição da acusação. 14ª-Na situação descrita na acusação particular, estamos perante a prática doo crime de difamação, cuja ilicitude é de todos conhecida, segundo as regras da experiência e de convivência social, não sendo racional admitir a possibilidade de desconhecimento por parte da Arguida de que as expressões por si proferidas constituíam um comportamento censurável e proibido por lei. 15ª-Face ao exposto, conclui-se que a acusação particular, acompanhada pelo Ministério Publico nos termos em que o foi, deveria ter sido recebida, pois ela não é manifestamente infundada por omissão de elementos constitutivos do tipo, máxime a consciência da ilicitude criminal do facto. 16ª- A decisão de que se recorre violou o disposto nos arts. 311.º e 312.º do CPP, bem como o disposto no art.º 181.º n.º 1 do Código Penal, pelo que, com o devido respeito – que é muito – andou mal, o Tribunal “a quo”, ao proferir o despacho “sub judice”, que rejeitou a acusação particular deduzida pela Assistente, devendo, pois, ser, o mesmo, substituído por outro, que receba a acusação particular deduzida, tudo com as legais consequências.”
Pugna pela procedência do recurso e pela revogação do despacho recorrido que deve ser substituído por outro que receba a acusação deduzida pela assistente, com todas as legais consequências.
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1.2.–Notificado da interposição do recurso, o Ministério Público apresentou a respetiva resposta, extraindo da motivação as seguintes conclusões:
“Nos termos do disposto no artigo 282º, nº 3, do Código de Processo Penal, aplicável à acusação particular por força do n.º 3 do artigo 285.º, “A acusação contém, sob pena de nulidade: (…) b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada”. 2.-Desta disposição decorre que, quando está em causa a aplicação de uma pena, a acusação tem de conter a narração de factos que nos permitam concluir que o agente praticou um crime, ou seja, que praticou um facto típico, ilícito, culposo e punível. 3.-Não contendo a acusação particular factos relativos à consciência da ilicitude, não contém factos que nos permitam afirmar que o agente atuou com culpa e, consequentemente, não contém a narração de factos que nos permitam concluir que o agente praticou um crime, por faltar um dos seus elementos, a culpa. 4.-Tal falta não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal. 5.-Consequentemente, tal acusação deve ser rejeitada, por ser manifestamente infundada, nos termos do disposto nos artigos 311º, nº 2, alínea a), e nº 3, alínea d), do Código de Processo Penal. 6.-De acordo com o preceituado nos artigos 283º, nº 3, e 285º, nº 3, tal acusação, ao não conter a narração de todos os factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido, é nula. 7.-Para determinar os efeitos dessa nulidade, deveria ter-se aplicado o disposto no artigo 122º do Código de Processo Penal e, portanto, deveria ter-se considerado que a acusação particular era inválida, bem como toda a tramitação subsequente (“As nulidades tornam inválido o acto em que se verificarem, bem como os que dele dependerem e aquelas puderem afectar” – nº 1 do mencionado preceito legal), bem como, por tal ser possível, determinar-se que a assistente fosse notificada para apresentar nova acusação particular (“A declaração de nulidade determina quais os actos que passam a considerar-se inválidos e ordena, sempre que necessário e possível, a sua repetição - nº 2 do mencionado preceito legal), devolvendo-se os autos ao Ministério Público para o efeito. 8.- Ao ter arquivado os autos na sequência de acusação particular ter sido declarada nula, foi violado o disposto no artigo 122º do Código de Processo Penal.”
Pugna pelo provimento parcial do recurso.
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1.3.–Nesta Relação, a Exa. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da revogação do despacho recorrido e pugnando pela procedência do recurso.
1.4.–Cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não foi apresentada qualquer resposta.
Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
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II–FUNDAMENTAÇÃO 2.1.- Âmbito do recurso e questões a decidir
Dispõe o art.º 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
O objeto do recurso define-se, pois, pelas conclusões que o recorrente extraiu da motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como pacificamente decorre do art.º 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e, ainda, designadamente, em sintonia com a jurisprudência fixada pelo acórdão do Plenário da Secção Criminal do STJ n.º 7/95, de 19.10, in D.R. I-A Série de 28.12.1995 e com o acórdão do STJ de 12.09.2007, no proc. n.º 07P2583, in www.dgsi.pt.
Como bem esclarecem os Conselheiros Simas Santos e Leal-Henriques, «Se o recorrente não retoma nas conclusões, as questões que suscitou na motivação, o tribunal superior, como vem entendendo o STJ, só conhece das questões resumidas nas conclusões, por aplicação do disposto no art.º 684.º, n.º 3 do CPC. [art.º 635.º, n.º 4 do Novo C.P.C.]» (Código de Processo Penal anotado, 2.ª edição, Vol. II, p. 801).
Da conjugação das normas constantes dos art.ºs 368.º e 369.º, por remissão do art.º 424.º, n.º 2, todos do Código do Processo Penal, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objeto do recurso pela ordem seguinte:
Em primeiro lugar, das que obstem ao conhecimento do mérito da decisão;
Em segundo lugar, das questões referentes ao mérito da decisão, desde logo, as que se referem à matéria de facto, começando pelos vícios enumerados no art.º 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, a que se segue impugnação alargada, se deduzida, nos termos do art.º 412.º, do mesmo diploma;
Finalmente, as questões relativas à matéria de Direito.
Na sua resposta ao recurso, o Ministério Público, junto da primeira instância, embora concordando que a acusação particular deve ser rejeitada, por ser manifestamente infundada, entende que os autos deverão baixar aos serviços do Ministério Público e ali ser a assistente notificada para apresentar nova acusação particular.
Ora esta questão não pode ser apreciada por este tribunal superior uma vez que não faz parte do objeto do processo.
Sendo assim, a única questão que importa decidir é, de acordo com as conclusões extraídas da motivação do recurso da assistente, a de saber se deve, ou não, ser rejeitada, por manifestamente infundada, a acusação deduzida pela recorrente.
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2.2.–A decisão recorrida
É a seguinte a decisão impugnada:
“O Tribunal é competente. ** * Da acusação particular: A assistente BB deduziu acusação particular contra AA, imputando-lhe a prática de um crime de difamação, p. e p. pelos art.180º nº1 do Código Penal. O Ministério Público declarou acompanhar a acusação particular nos termos em que enunciou. Analisando. Dispõe o art. 311º do Código de Processo Penal: 1.- Recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer. 2.- Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido: a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada; b) De não aceitar a acusação do assistente ou do Ministério Público na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos, nos termos do nº1 do artigo 284º e do nº4 do artigo 285º, respectivamente. 3.- Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada: a) Quando não contenha a identificação do arguido; b) Quando não contenha a narração dos factos; c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou d) Se os factos não constituírem crime. Determina o art. 285º do Código de Processo Penal que, no caso de o inquérito ter por objecto um crime de natureza particular, como no caso sub judicie, compete ao assistente deduzir acusação, o que deverá ser feito nos termos previstos no art. 283º nºs 3 e 7 (nºs 1 e 3). Tal significa que a acusação, para que seja válida, terá de conter (para além de outros requisitos que aqui não relevam) a narração dos factos que fundamentem a aplicação de uma pena ao arguido (alínea b) do nº3 do art.283º do Código de Processo Penal). No caso em apreço e tendo em atenção que estamos perante a imputação de um crime de difamação, tal significa que a acusação terá de conter a descrição de factos que, a provarem-se, permitam concluir mostrem-se preenchidos os requisitos do tipo previsto nos arts.180º nº1 do Código Penal. Prescreve o art.180º nº1 do Código Penal que quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 240 dias. Neste ilícito o bem jurídico protegido é a honra, nas suas múltiplas cambiantes, pois que se trata de um bem jurídico complexo que inclui, quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exteriores. O elemento objectivo deste ilícito criminal é a imputação a outrem de factos ou a formulação sobre ela de juízo, ofensivos da honra ou consideração alheias. O elemento subjectivo consiste na enunciação factual de uma intenção de actuação ofensiva, uma vez que estamos perante um ilícito de natureza dolosa, mas que não exige dolo específico. Assim sendo, a acusação a formular terá de contemplar, para que se mostrem cumpridos os requisitos acima enunciados, todos estes elementos factuais. E o que sucede na acusação particular formulada é que o elemento subjectivo se mostra omisso, uma vez que ainda que se mostre enunciada a intenção, por parte do arguido de, com as descritas expressões, ofender a honra e consideração do assistente, ou seja, não se encontra descrito nenhum facto relativo à consciência da ilicitude. Como se decidiu no Ac do TRG de 19-06-2017 relatado pelo Exmo. Sr. Desembargador Jorge Bispo, in www.dgsi.pt, a alegação de que a arguida sabia que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal não é inócua e desnecessária, não passando de um protocolo ou fórmula pré-determinada acolhida pela prática judiciária, sem qualquer valor funcional. Ao contrário, a alegação da consciência da ilicitude, seja com a utilização daquela fórmula ou através da descrição mais objetiva desse facto da vida interior, corresponde à necessidade de descrever um dos elementos do tipo subjetivo, traduzido no dolo da culpa, (…). E ainda neste aresto se decidiu que na acusação deduzida nos autos, a assistente limita-se a alegar, em termos de factos relativos ao preenchimento dos elementos subjetivos, que ao dirigir-lhe as palavras "filha da puta" e "pretendia a arguida atingir a assistente na sua honra e consideração social, o que conseguiu". Esta articulação contém factos que integram o elemento volitivo do dolo (direto) e do elemento intelectual do dolo. Já em relação aos elementos integrantes da consciência da ilicitude (elemento emocional), habitualmente traduzido na expressão de que "o arguido atuou sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal", ou por qualquer outra que comporte o respetivo conteúdo, a acusação omite toda e qualquer referência. Concluindo-se, assim, que a acusação particular deduzida nos autos não contém a descrição dos factos integrantes da totalidade dos elementos subjetivos do tipo, necessária à verificação do crime imputado à arguida, e que, por outro lado, tais elementos em falta não poderão vir a ser aditados em julgamento, não restava outra solução ao Juiz a quo senão considerá-la como manifestamente infundada, por os factos nela descritos não constituírem crime, e, como tal, rejeitá-la ao abrigo do disposto nos artºs 283º, nº 3, b) e 311º, nºs 2, a), e nº 3, d) do CPP. Também no Ac. do TRP de 15-11-2017, relatado pelo Exmo. Sr Desembargador Pedro Vaz Pato, in www.dgsi.pt, se decidiu que “Com efeito, nos crimes dolosos, a verificação do tipo subjectivo de ilícito pressupõe o conhecimento e vontade de realização de um tipo legal de crime por parte do agente, ou seja, pressupõe que estejam presentes o elemento intelectual e o elemento volitivo. Mas além disso, o dolo exige o chamado elemento emocional. Na verdade, o dolo não se esgota no conhecimento e vontade de realização do tipo objectivo. É necessário, ainda, que àquele conhecimento e vontade, acresça um elemento emocional na caracterização da atitude pessoal do agente, exigida pelo tipo-de-culpa doloso. Por outras palavras: à afirmação do dolo não basta o conhecimento e vontade de realização do tipo, sendo preciso, igualmente, que esteja presente o conhecimento e a consciência, por parte do agente, do carácter ilícito da sua conduta. Assim, o elemento intelectual do dolo “só poderá ser afirmado quando o agente actue com todo o conhecimento indispensável para que a sua consciência ética se ponha e resolva correctamente o problema da ilicitude do seu comportamento”, isto é, quando o agente actue com conhecimento da factualidade típica. Já o elemento volitivo traduz a “vontade do agente dirigida à realização do tipo legal de crime”. Finalmente, o elemento emocional representa o “conhecimento ou consciência do carácter ilícito” da conduta, estando ligado, pois, ao chamado tipo de culpa doloso. Com efeito, este elemento emocional é dado “através da consciência da ilicitude” e “é um elemento integrante da forma de aparecimento mais perfeita do delito doloso”. Daí que só possa afirmar-se que o agente actuou dolosamente quando, nomeadamente, esteja assente que o mesmo actuou com conhecimento ou consciência do carácter ilícito e criminalmente punível da sua conduta. Em suma: o dolo só existirá quando o agente actue com conhecimento e vontade de realização do tipo-de-ilícito e com conhecimento ou consciência da ilicitude da sua actuação, ou seja, “sempre que o ilícito típico seja fundamentado por uma censurável posição da consciência-ética do agente perante o desvalor do facto, pressuposto que aquela se encontrava correcta e suficientemente orientada para esta” - cfr. Figueiredo Dias, ob. cit., pp. 199 a 204, e Pressupostos da Punição e Causas que Excluem a Ilicitude e a Culpa in “Jornadas de Direito Criminal”, Ed. do Centro de Estudos Judiciários, pp. 72 e 73. A acusação particular deduzida ao não referir a totalidade dos factos integradores do elemento subjectivo do tipo, é nula tal como prescreve o nº3 do art.283º do Código de Processo Penal (aplicável por força do nº3 do art. 285º do mesmo diploma legal). A nulidade, nos termos previstos no art.122º do Código de Processo Penal tem como consequência a invalidade do acto em que se verificou, que não se mostra passível de sanação, por a lei a não prever. E neste caso específico, a lei determina que a consequência jurídica de os factos constantes numa acusação serem insusceptíveis de integrarem um crime, como no caso sub judicie (pois que ainda que se provassem todos os factos articulados na acusação, os mesmos seriam insuficientes para condenar a arguida pela prática do crime que lhe é imputado na acusação particular, uma vez que faltaria sempre o elemento subjectivo), é a de tal acusação se ter de entender como manifestamente infundada (art. 311º nº3 al. d) do Código de Processo Penal) (neste sentido, cfr. Ac. do TRP de 01-06-2011 relatado pela Exma. Sra. Desembargadora Maria Margarida Almeida, consultado in www.dgsi.pt, que seguimos muito de perto). Pelo exposto, por manifestamente infundada, rejeito a acusação particular deduzida por BB contra AA*, e acompanhada pelo Ministério Público, no que respeita ao imputado crime de difamação, e em consequência, determino o arquivamento dos autos (arts.180º do Código Penal e 311º nº2 al.a) e nº3 al. d) do Código de Processo Penal). Custas a cargo da assistente fixando-se a taxa de justiça no mínimo (art.515º nº1 al. f) do Código de Processo Penal). Deposite. Notifique. * A assistente também deduziu pedido de indemnização civil. Ora, nos termos do artigo 71º do Código de Processo Penal “O pedido cível fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo…”. Face ao supra exposto, tendo tomado a posição de não recebimento da acusação particular deduzida pela assistente, não se verifica o requisito essencial para ser apreciado o pedido de indemnização cível, uma vez que, não serão apreciados os factos imputados à arguida.”
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2.3.–Apreciação do recurso
Como acima se deixou exposto, a questão a decidir consiste em saber se deve ou não, ser rejeitada, por manifestamente infundada, a acusação deduzida pela recorrente/assistente e, em caso afirmativo, se deve manter-se a decisão recorrida na parte em que ordena o arquivamento dos autos ou ordenar-se a remessa dos autos ao Ministério Público para que a assistente seja notificada para, querendo, apresentar nova acusação particular.
Vejamos.
Dispõe o art.º 285.º, do Código de Processo Penal: 1-Findo o inquérito, quando o procedimento depender de acusação particular, o Ministério Público notifica o assistente para que este deduza em dez dias, querendo, acusação particular.
E, após a acusação do assistente, o Ministério Público usa da faculdade do disposto no n.º 4, podendo:
- Aderir a essa acusação;
- Acusar, em peça autónoma, pelos mesmos factos ou por parte deles;
- Acusar por outros factos, desde que não constituam alteração substancial dos factos da acusação particular (podendo consequentemente alterar a qualificação jurídica dos mesmos);
- Não aderir à acusação particular.
A este propósito, afirma o Exmo. Conselheiro Maia Costa que “constitui alteração substancial dos factos o aditamento (…) de elementos típicos (por exemplo, os elementos típicos subjectivos), sem os quais os factos acusados pelo assistente não seriam puníveis” - anotação 7 ao artigo 285.º, Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2016. A acusação - por fixar o objeto do processo, em conformidade com a estrutura acusatória do processo penal, definida constitucionalmente – tem de ser absolutamente autónoma e completa, não podendo ficar dependente de outras peças processuais para esse efeito (ainda que constantes do mesmo requerimento) – acórdão do TRG, de 9.03.2020.
No caso concreto, a assistente deduziu acusação particular contra a arguida, imputando-lhe a prática de um crime de difamação, p. e p. pelo art.º 180.º, n.º 1. e 181º, n.º 1, ambos do Código Penal. Trata-se de um crime doloso.
E, na mesma acusação a assistente descreve o elemento subjetivo de tais ilícitos nos seguintes termos: 35º A arguida bem sabia ser falso tudo quanto afirmou a respeito da assistente, tendo conhecimento de que estava a difamar, falsamente, a assistente, prejudicando-a, enormemente na sua vida profissional e familiar. (…) 37º agindo de forma livre, consciente e deliberadamente, bem sabendo ser injurioso, difamatório e falso, tudo o que afirmou a seu respeito, ao dizer que tinha encontros com homens casados e que mantinha uma relação extraconjugal com o dito MS, e com o que beliscou, gravemente, a reputação, a dignidade, o carácter e o bom nome da assistente. (…) 41º Agiu, pois, a arguida de forma livre, consciente e deliberadamente, com a consciência de lesar a assistente na sua imagem, honra, dignidade e prestígio.
De acordo com o art.º 283.º, n.º 3, al. b), do Código de Processo Penal, aplicável à acusação particular ex vi do n.º 3 do art.º 285.º, a acusação contém, sob pena de nulidade, “a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;”.
E, se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o juiz pode rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada (art.º 311.º, n.º 2, al. a)), concretizando o n.º 3 do preceito, quais as situações em que a acusação pode ser considerada manifestamente infundada, a saber: a)- Quando não contenha a identificação do arguido; b)- Quando não contenha a narração dos factos; c)- Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou d)- Se os factos não constituírem crime.
Aquele conceito de acusação manifestamente infundada implica um juízo sobre o mérito de uma acusação que, formalmente válida, possa ser manifestamente desmerecedora do julgamento.
Discordando do despacho recorrido, entende a assistente/recorrente, em suma, que a sua alegação referente ao elemento subjetivo do crimes de que deduziu acusação, não constitui qualquer omissão do referido elemento subjetivo, uma vez que, e com referência ao momento volitivo (vontade de realização do tipo objetivo de ilícito) encontra-se totalmente preenchido, e mesmo que se equacionasse por mera cautela, haver uma deficiente narração quanto ao seu elemento intelectual (conhecimento do carácter ilícito da conduta), a mesma, tendo em conta o conjunto da restante factualidade narrada dos elementos subjetivos pode ser colmatada.
Os elementos objetivos constituem a materialidade do crime e, traduzem a ação, enquanto modificação do mundo exterior apreensível pelos sentidos; por sua vez, os elementos subjetivos traduzem a atitude interior do agente na sua relação com o facto material.
No caso vertente, entendeu a Mm.ª Juiz a quo que o elemento subjetivo do crime de difamação não estava completo, por falta de factos alusivos à consciência da ilicitude da arguida, integradores do elemento intelectual do dolo, daqui resultando, por consequência, que os factos descritos na acusação particular integradores do elemento volitivo do dolo e dos elementos objetivos do ilícito em causa, por si só, não constituem crime; por insuficiência de factos que permitissem a imputação de uma conduta ilícita à arguida.
Não é admissível a presunção do dolo com recurso à factualidade objetiva descrita na acusação; a lei exige a narração, ainda que sintética, dos factos - de todos os factos - que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, não se contentando, pois, com “subentendimentos” ou “factos implícitos” – acórdão do TRC, de 25.2.2015 –, estando vedado em julgamento o recurso ao disposto no art.º 358.º, do Código de Processo Penal.
Na verdade, esta foi uma questão que dividiu a jurisprudência, e que levou o Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão n.º 1/2015 (DR, I Série, de 27 de janeiro de 2015, p. 582 - 597) a fixar jurisprudência no sentido de que «A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do Código de Processo Penal.».
A estrutura do dolo abrange o elemento intelectual e o elemento volitivo, consistindo o primeiro “na representação pelo agente, no momento em que pratica a conduta, de todos os elementos ou circunstâncias constitutivas do tipo de ilícito objectivo” e, pressupondo o segundo “que o agente dirija a sua vontade ou, pelo menos, se conforme com a realização do facto típico” (Taipa de Carvalho, Direito Penal, Parte Geral, Questões Fundamentais, Teoria Geral do Crime, 2008, p. 321 e 325.).
Pode ler-se no referido acórdão do STJ n.º 1/2015: “o que tradicionalmente se engloba nos elementos subjectivos do crime, costuma ser expresso na acusação por uma fórmula em que se imputa ao agente o ter actuado de forma livre (isto é, podendo ele agir de modo diverso, em conformidade com o direito ou o dever - ser jurídico), voluntária ou deliberadamente (querendo a realização do facto), conscientemente (isto é, tendo representado na sua consciência todas as circunstâncias do facto) e sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei (consciência da proibição como sinónimo de consciência da ilicitude).”.
No caso dos autos, a acusação particular é omissa quanto a um dos elementos subjetivos do crime que vem imputados à arguida: que a arguida ao agir do modo descrito tinha conhecimento da ilicitude dos factos e que estes eram puníveis pela lei penal.
Em suma, concorda-se com a posição que foi seguida pela decisão recorrida, tanto mais que a mesma vai no sentido do decidido no acórdão de fixação de jurisprudência do STJ n.º 1/2015, pelo que bem andou o tribunal recorrido ao rejeitar a acusação particular deduzida pela assistente.
Improcede o recurso interposto pela assistente.
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III–DECISÃO
Nestes termos, acordam, em conferência, os Juízes que integram a 9.ª Secção desta Relação em negar provimento ao recurso e manter a decisão recorrida.
Custas a cargo da recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UCs (art.º 513.º, n.º 1, do Código de Processo Penal) e demais encargos legais.
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Lisboa, 17 fevereiro de 2022
(o presente acórdão foi elaborado pela relatora e integralmente revisto pelas suas signatárias – art.º 94.º, n.º 2, do Código de Processo Penal)
Maria José Cortes Caçador Maria do Rosário Martins