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RESPONSABILIDADE MÉDICA
Sumário
1. A responsabilidade civil emergente da realização de acto médico, ainda que se prove a inexistência de erro ou má prática médica, pode radicar-se na violação do dever de informação do paciente relativamente aos riscos e aos danos eventualmente decorrentes da realização do acto médico, o que constituiria conduta ilícita. 2. Tal consentimento informado pode ser prestado por escrito ou oralmente, atento o disposto no art.º 48.º, n.º 1 do Código Deontológico dos Médicos. Sumário a que alude o art.º 663.º, n.º 7 do CPC
Texto Integral
Acordam na Secção Cível (2ª Secção) do Tribunal da Relação de Lisboa:
I – RELATÓRIO
“W”, intentou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra:
1.º - “X. Lda.” (Casa de Saúde do “X1”), [doravante “X. Lda.”];
2.º - “Y” [médico e Director Clínico da “X. Lda.”];
3.º - “Z” [médico e clínico exercendo funções na área de imagiologia na “X. Lda.”, doravante “Z”].
Peticionou o A. a condenação solidária dos Réus a pagarem-lhe “a quantia global de 30 294,66€ (trinta mil duzentos e noventa e quatro euros e sessenta e seis cêntimos) acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação até integral pagamento, e ainda o que se vier a apurar em execução de sentença”.
Para tal alegou, em síntese, que, após indicação da sua médica de família, foi realizar um exame de colonoscopia, de rotina, nas instalações da ré “X. Lda.”, o qual foi realizado pelo réu “Z”. Durante esse exame, terá sofrido uma perfuração do intestino, o que lhe causou danos físicos e psicológicos, para além de patrimoniais.
Regularmente citados, os réus “X. Lda.” e “Y” apresentaram contestação, na qual invocaram a sua ilegitimidade processual, uma vez que apenas cederam as suas instalações para que uma terceira entidade – “H. Lda.” – com o devido licenciamento para esse efeito, aí realizasse exames no âmbito da especialidade médica em causa. Assim, nem a 1.ª Ré nem o 2.º Réu, seu director clínico, foram responsáveis pela realização do exame médico de colonoscopia ao Autor. Por fim, impugnaram a maior parte dos factos alegados em sede de petição inicial, por desconhecimento sem obrigação de conhecer e deduziram incidente de intervenção principal provocada da referida entidade.
Regularmente citado, o réu “Z” apresentou contestação em que impugnou grande parte dos factos alegados em sede de petição inicial, confirmou que foi o médico responsável pela realização do exame médico de colonoscopia ao Autor e alegou que fê-lo observando e cumprindo todas as exigências técnicas e todos os deveres de cuidado que a arte médica lhe impunha. Por fim, alegou que, por contrato de seguro, transferiu a sua responsabilidade civil profissional para a AGEAS Portugal – Companhia de Seguros, S.A., pelo que requereu a intervenção principal provocada desta.
Após contraditório, foi admitida a intervenção principal provocada, enquanto Rés, de:
4.º - AGEAS Portugal, Companhia de Seguros, S.A. [doravante AGEAS];
5.º - “H. Lda.” [doravante “H. Lda.”].
Regularmente citada, a interveniente AGEAS apresentou contestação em que confirmou a celebração de contrato de seguro com o réu “Z”, com um capital seguro de €150.000,00. No mais, aderiu à contestação apresentada pelo réu “Z”.
Regularmente citada, a interveniente “H. Lda.” apresentou contestação, em que aderiu à contestação apresentada pelo réu “Z” e impugnou a matéria alegada pela ré “X. Lda” por considerar que os utentes que se dirigiam à “X.1” (nome do local onde foi realizado o exame) contratavam com a ré “X. Lda.” e não com a ré “H. Lda.”, sendo a primeira a proprietária dos equipamentos e consumíveis e a responsável pelo pagamento aos profissionais de saúde, para além de ser responsável pela facturação aos utentes, excepto quando a entidade comparticipante era a ARS, situação em que a facturação era feita pela ré “H. Lda.”, por ser esta a titular da convenção respectiva.
Foi realizada audiência prévia:
. O Autor declarou desistir do pedido quanto ao réu “Y”, desistência essa homologada por sentença, com custas nessa parte pelo Autor em percentagem a fixar a final;
. Após contraditório, foi julgada improcedente a excepção dilatória de ilegitimidade processual invocada pela ré “X. Lda.”;
. Foi determinado o aperfeiçoamento da petição inicial, no sentido do Autor melhor esclarecer a forma como foi agendada a colonoscopia (com quem contactou, de que forma, …) e os factos relativos à actuação do 3.º Réu que terão dado origem ao alegado “rasgão”;
. As partes declararam considerar assente a transferência de responsabilidade civil conforme o contrato de seguro existente entre o 3º e 4ª Réus, nos termos constantes dos documentos juntos a fls. 46, 47 e 91 dos autos;
. Foram fixados o valor da causa, o objecto do processo e os temas de prova.
Após instrução (concretamente a realização de prova pericial), procedeu-se à audiência de julgamento com observância de todas as formalidades legais.
Foi proferida sentença, onde, a final, se decidiu julgar a acção totalmente improcedente e, em consequência, absolveram-se os Réus e Intervenientes dos pedidos formulados pelo Autor.
Inconformado com tal decisão veio o A. recorrer da sentença, tendo apresentado as suas alegações, nas quais verteu as seguintes conclusões: «1. O presente recurso assenta na propositura de uma acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum, intentada pelo Autor, ora Recorrente, “W”, peticionando a condenação solidária da Ré “X. Lda.”, do Réu “Y” e do Réu “Z”, no pagamento da quantia global de 30 294,66€ (trinta mil duzentos e noventa e quatro euros e sessenta e seis cêntimos), 30 000,00€ por danos morais e o restante por danos patrimoniais, quantia essa acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação até integral pagamento, e ainda o que se viesse a apurar em execução de sentença. 2. O Tribunal a quo veio a decidir pela improcedência total do pedido do Autor e é desta decisão que agora se recorre. 3. O Autor/recorrente nasceu em 19 de Outubro de 1949, e, em razão da idade, a médica de família prescreveu a realização uma colonoscopiade rotina. 4. O Réu/recorrido, Doutor “Z”, procedeu à referida colonoscopia, assessorado pelo anestesista, Dr. “F”, e pela enfermeira “G”, tendo detectado posteriormente que havia ocorrido uma perfuração iatrogénica do cólon. 5. A responsabilidade civil por acto médico traduz a obrigação de reparar o dano que uma pessoa ou entidade causa a outrem. 6. A responsabilidade civil médica pode ter origem em incumprimento de contratos – responsabilidade civil contratual - de negócios jurídicos unilaterais ou da lei, como pode também ter origem na violação de direitos absolutos ou na prática de certos actos, que, embora lícitos, são porventura suscetíveis de causar prejuízo a outrem – responsabilidade civil extracontratual. 7. A jurisprudência tem exemplos de decisões justas e equitativas em que os lesados são ressarcidos do dano, sem necessidade de fazer prova da culpa do agente causador da lesão. 8. No âmbito da responsabilidade médica, a prova é difícil (senão impossível) quando cabe ao lesado porquanto esta dificuldade acrescida resulta de se conseguir provar em tribunal se o paciente foi tratado pelo médico de acordo com as melhores práticas da ciência e da técnica (as denominadas leges artis), e se o facto danoso teve origem na não prestação dos melhores cuidados de saúde ou se teve origem em eventual evolução natural de patologia de que o paciente padeceria. 9. Aliás, á luz das premissas enunciadas, dificilmente se entende o papel das seguradoras, para as quais os profissionais de saúde (como em outras áreas da nossa sociedade) transferem a sua responsabilidade civil. 10. Segundo o próprio Réu, Dr. “Z”, havia alternativas à colonoscopia clássica (como a colonoscopia virtual ou TAC colonoscópico, não invasivo), e depreende-se daí que as eventuais condicionantes relatadas no processo clínico do paciente não foram tidas em conta. 11. In casu, havendo exames de diagnóstico para detectar eventuais patologias ou quando estas são detectadas tardiamente, estamos em face de um nexo de causalidade adequado para responsabilizar o(s) profissional(ais) de saúde pelos eventuais danos que possam causar nasaúde do paciente. 12. O facto de o paciente ter dado o seu consentimento formal para a realização de determinadas intervenções ou tratamentos médico-cirúrgicos não exclui nem reduz a responsabilidade dos médicos ou de outros profissionais de saúde legalmente habilitados que os pratiquem. 13. Porém, o consentimento informado, devidamente documentado e assinado, nunca apareceu nem se mostra junto aos autos. 14. Ora, a intervenção médico-cirúrgica, sem consentimento informado, é violadora das leges artis consagradas no Código Deontológico Médico, e daí, forçoso é concluir que, violando o médico as leges artis, estamos perante factos suficientemente graves merecedores da tutela do direito. 15. Acredita-se assim que a douta sentença recorrida interpretou e aplicou mal os artºs 342º, nº 1, 496º, nºs 1 e 2, 799º, nº 1, e 1156º e seguintes, todos do Código Civil. Nestes termos, deve ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, ser revogada a douta decisão recorrida, e substituída por outra que se coadune com o que aqui se expõe, assim se fazendo JUSTIÇA.»
O Réu, “Z”, apresentou contra-alegações nas quais verteu as seguintes conclusões: «A. Recorrendo sobre matéria de direito, o Recorrente não cumpre cabalmente o ónus de alegação e de formulação de conclusões, não indicando, nem no corpo das alegações, nem nas conclusões que extraiu, o sentido com que as normas constitutivas do fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas, em violação do disposto no artigo 639.º, n.º 2, alínea b) do Código de Processo Civil, o que implica ficar vazado de conteúdo o enunciado da conclusão 15, ante a sua deficiência e os enunciados das conclusões 6 e 8, ante a sua obscuridade. B. Se sobre o Recorrente não impendesse o ónus da alegação e da prova da falta de destreza e distracção do Recorrido “Z”, como parece pretender a tese enunciada na sua conclusão 7, sempre o Recorrido “Z” lograria afastar a presunção de culpabilidade que sobre si impendia, por provar, como provou, que teve durante o exame a postura e o desempenho normais, não tendo actuado em nada de forma diferente do que era habitual nele ou noutros colegas gastroenterologistas, o que implicaria não poder afirmar-se a existência do pressuposto elementar da responsabilidade civil. C. Resulta da prova pericial produzida que a existência de um risco de perfuração de 1/1000 não permite afastar a possibilidade de a mesma ter resultado de um evento fortuito, relacionado apenas com os mecanismos biológicos do Recorrente e totalmente alheio à actuação do Recorrente “Z”, conclusão que não pode ser afastada e que surge e se mantém nos autos independentemente de o Recorrente estar, ou não, onerado com a alegação e a prova da falta de destreza e distração do Recorrido, o que em qualquer caso implica não poder afirmar-se a existência de nexo de causalidade. D. O Recorrente invoca que “Segundo o próprio Réu, Dr. “Z”, havia alternativas à colonoscopia clássica (como a colonoscopia virtual ou TAC colonoscópico, não invasivo) (...)”, no entanto não funda na prova produzida, particularmente no suporte magnetofónico da prova gravada, produzida na audiência de discussão e julgamento e documentada nas respectivas actas, a passagem ou passagens que imponham decisão conforme com a narrativa que invoca o que implica que, não tendo observado o regime processual relativo à impugnação da matéria de facto previsto no artigo 640.º, n.º 1, alíneas a) e b) do Código de Processo Civil, não pode o recurso ser conhecido nessa parte. E. O Recorrente invoca que “Porém, o consentimento informado, devidamente documentado e assinado, nunca apareceu nem se mostra junto aos autos.”, querendo com a narração antecedente significar – o que decorre do contexto interpretativo e da conclusão extraída subsequentemente – que inexistiu consentimento informado sem, no entanto, observar a disciplina relativa à impugnação da matéria de facto, não invocando, como lhe competia, caso quisesse ver modificada a decisão de facto proferida, a omissão no elenco dos factos julgados provados, da narração contida no enunciado da sua conclusão 13, o que implica que, não tendo observado o regime processual relativo à impugnação da matéria de facto previsto no artigo 640.º, n.º 1, alíneas a) e b) do Código de Processo Civil, não pode o recurso ser conhecido nessa parte. F. Não tendo impugnado os factos provados sob os pontos 2, 3 e 4, que afirmam inequivocamente a existência e o conteúdo do termo de consentimento informado, o Recorrente não pode pretender extrair efeitos exclusivamente dependentes da procedência da impugnação factual, o que implica que os enunciados das conclusões 13 e 14 são insusceptíveis de configurar questão a conhecer no presente recurso. G. A douta, brilhante e muito bem fundamentada sentença recorrida é autoexplicativa e suporta cabalmente o escrutínio dos seus destinatários, impondo-se por si mesma no firmamento jurídico pelo que, tendo o Tribunal a quo conhecido de todas as questões de que não podia deixar de conhecer, estando a matéria de facto julgada de acordo com as regras distributivas do ónus da prova, mostrando-se fundamentada, de facto e de direito, em obediência à lei do processo civil e por não ter sido objecto de impugnação especificada, deve manter-se nos seus precisos termos, o que se requer. NESTES TERMOS, E DEMAIS DE DIREITO QUE VOSSAS EXCELÊNCIAS JUSTA E PERFEITAMENTE SE DIGNAREM SUPRIR-NOS, DEVERÁ SER NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO, ASSIM SE FAZENDO JUSTIÇA!»
A interveniente Ageas aderiu, às contra-alegações apresentadas pelo R. “Z”.
II - São as conclusões da alegação de recurso, no seu confronto com a decisão recorrida, que determinam o âmbito da apelação, salvo quanto a questões de conhecimento oficioso que possam ser decididas com base nos elementos constantes do processo. Assim, face ao teor das conclusões de recurso as questões que se colocam são as seguintes:
A – Da impugnação da matéria de facto – Inexistência do consentimento informado
B - Da ressarcibilidade do dano por responsabilidade civil médica na ausência da prova de culpa por parte do médico
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III – Fundamentos
1. De facto
O Tribunal de 1ª instância julgou provados os seguintes factos:
1. Em razão da sua idade, a médica de família do Autor prescreveu-lhe a realização de uma colonoscopia.
2. O Autor, enquanto utente do Serviço Nacional de Saúde (adiante SNS), solicitou a realização do exame aos funcionários presentes na “X.1”, sita na Rua (…).
3. Os funcionários indicaram ao Autor o dia e hora para realização do mesmo e entregaram-lhe documentos dos quais constavam a descrição dos procedimentos a efectuar antes da realização do exame e um termo de consentimento de realização do exame.
4. Do termo de consentimento de realização do exame constava a advertência de que havia risco de complicações no decurso do exame, designadamente, o risco de ocorrência de perfuração iatrogénica, na probabilidade de 1/1000.
5. Antes de se submeter à colonoscopia, o Autor subscreveu o termo de consentimento de realização do exame.
6. O réu “Z” é médico, com a especialidade de gastroenterologia.
7. A colonoscopia foi realizada pelo réu “Z” no dia 16/07/2015, acompanhado pelo médico anestesista “F” e pela enfermeira “G”.
8. Durante a realização do exame médico, ocorreu uma perfuração iatrogénica do cólon.
9. Ao retirar o colonoscópio, após realizar o exame, o réu “Z” visualizou gordura visceral no interior do intestino do Autor.
10. O réu “Z” chamou o INEM e contactou telefonicamente o Centro Hospitalar (…), EPE (adiante CH(…)) informando o Chefe de Banco que iria remeter um doente com um quadro de perfuração iatrogénica do cólon.
11. O réu “Z” elaborou um relatório médico, onde descreveu a realização do exame e a complicação que havia detectado aquando da extracção do colonoscópio.
12. O relatório médico foi entregue aos profissionais que tripulavam a viatura de emergência médica.
13. O Autor foi transportado pelo INEM para o serviço de urgência do CH(…).
14. Na madrugada de 17/07/2015, o Autor foi submetido a uma cirurgia, com corte do intestino (cirurgia de Hartman).
15. Depois da cirurgia, o Autor passou a depender de sacos de colostomia.
16. No dia 23/07/2015, o Autor teve alta clínica do CH(…).
17. O médico que realizou a operação no CH(…) estimou em três meses o tempo necessário para que fosse realizada nova intervenção cirúrgica de reposição do intestino.
18. Em consequência da utilização dos sacos de colostomia, o Autor sofreu desconforto físico e dores.
19. Em consequência da utilização dos sacos de colostomia, o Autor sentiu-se constrangido, com vergonha e perda de auto-estima.
20. Em 19/10/2016, o Autor foi submetido a cirurgia de reposição do intestino, no CH(…).
21. Em 26/10/2016, o Autor teve alta clínica do CH(…).
22. Entre 23/07//2015 e 19/10/2016, para aquisição dos sacos de colostomia, o Autor despendeu a quantia de €91,83.
23. Para conseguir a disponibilização dos sacos ao referido preço, o Autor teve de se tornar sócio da Liga dos Amigos do Hospital (…), pagando uma quota anual de €20,00, num total de €40,00.
24. Em consequência dos factos, o Autor sofreu de prisão de ventre e cólicas.
25. Para atenuar a prisão de ventre e cólicas, o Autor toma medicação.
26. O Autor despendeu a quantia de €19,60 em medicamentos para atenuar a prisão de ventre e cólicas.
27. A ré “X” tem como escopo social a prestação de serviços médicos de imagiologia.
28. As instalações da ré “X” situam-se na “X1”.
29. A interveniente “H. Lda” obteve da Autoridade Reguladora de Saúde (ARS) uma licença de funcionamento para “clínicas ou consultórios médicos”.
30. À data dos factos, encontrava-se afixada nas instalações da “X1” certidão de registo, emitida pela Entidade Reguladora de Saúde, em nome da interveniente “H. Lda.”, atestando que a mesma estava inscrita como prestadora de cuidados de saúde desde 17/04/2014, tendo o seu estabelecimento na Rua (…).
31. Desde 15/12/2014, encontrava-se em vigor uma convenção entre a interveniente “H. Lda.” e a Administração Regional de Saúde de (…), no âmbito da qual a primeira prestaria serviços de Endoscopia Gastrenterológica a utentes do SNS, na Rua (…), sendo director técnico o médico com essa especialidade Dr. “I”
32. O recebimento das credenciais do SNS e o agendamento da data de realização dos exames de gastroenterologia eram realizados por funcionários administrativos da ré “X Lda.”, após disponibilização da agenda pelos médicos e enfermeiros da área de gastroenterologia.
33. A facturação dos exames ao SNS (sendo esse o caso) era feito pelos funcionários administrativos da ré “X Lda.” em nome da interveniente “H Lda.”.
34. Os equipamentos técnicos utilizados para a realização de serviços de gastroenterologia na área da endoscopia eram da interveniente “H Lda.”.
35. Os consumíveis utilizados para a realização de serviços de gastroenterologia na área da endoscopia eram encomendados pelos funcionários administrativos, por ordem do representante legal da interveniente “H. Lda.” ou dos médicos e enfermeiros que prestavam serviços de gastroenterologia.
36. Com o acordo da ré “X. Lda.” e da interveniente “H. Lda.”, os médicos e enfermeiros que prestavam serviços de gastroenterologia eram pagos pela ré “X. Lda.”.
37. A partir de data não concretamente apurada, os médicos e enfermeiros que prestavam serviços de gastroenterologia passaram a ser pagos pela interveniente “H. Lda.”.
38. Entre a interveniente AGEAS e o réu “Z” foi celebrado um contrato de seguro, nos termos do qual encontrava-se transferida para a primeira a responsabilidade civil extracontratual do segundo pela prática da sua actividade médica, até ao limite de €150.000,00.
O Tribunal de 1ª instância não considerou provados os seguintes factos:
i. A perfuração do intestino foi detectada posteriormente à realização do exame.
ii. Aquando da realização da colonoscopia, o réu “Z” actuou com distracção e falta de destreza.
iii. O termo de consentimento subscrito pelo Autor encontra-se na posse da ré “X. Lda.”.
iv. O réu “Z” disse ao Autor que iria fazer os possíveis para que a cirurgia de reposição do intestino fosse realizada num prazo de três meses.
v. Em consequência da utilização dos sacos de colostomia, o Autor reduziu as suas saídas de casa e a convivência com amigos e familiares.
vi. No dia 28/07/2015, a ré “X. Lda.” e o réu “Z” comprometeram-se a disponibilizar gratuitamente os sacos de colostomia.
vii. No dia 28/07/2015, a ré “X. Lda.” e o réu “Z” comprometeram-se a elaborar e entregar ao Autor o relatório médico relativo ao exame de colonoscopia.
viii. No dia 06/08/2015, o genro do Autor deslocou-se às instalações da “X1” para levantar o relatório médico relativo ao exame de colonoscopia.
ix. No dia 06/08/2015, o genro do Autor foi informado que o relatório médico não estaria concluído.
x. Em consequência da prisão de ventre e cólicas, o Autor despendeu a quantia de €162,83 em medicamentos.
xi. Em consequência da utilização prolongada dos sacos de coslostomia, o Autor tem uns altos abdominais laterais e aguarda cirurgia.
xii. A ré “X. Lda.” prestava serviços de gastroenterologia na área da endoscopia.
xiii. O réu “Z”, o médico anestesista “F” e a enfermeira “G” constavam da ficha técnica da interveniente “H. Lda.”.
xiv. Os equipamentos e consumíveis utilizados para a realização de serviços de gastroenterologia na área da endoscopia eram da ré “X. Lda.”.
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2. De direito
Apreciemos agora as questões suscitadas pelo Apelante.
A – Da impugnação da matéria de facto – Inexistência do consentimento informado
Da leitura das conclusões de recurso – as quais balizam o âmbito da apelação (art.º 639.º, n.º 1, do CPC) – afigura-se-nos que o recorrente pretenderá impugnar a matéria de facto no que concerne à questão que se prende com a eventual inexistência do consentimento informado.
Convirá, antes de mais, ver o que a lei nos diz quanto ao formalismo processual indispensável para que a matéria de facto dada como provada e como não provada em 1.ª instância, possa ser reapreciada em sede de 2.ª instância.
Com efeito, nos termos do disposto no art.º 640º, nº 1, al. a), do CPC, «quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados». De igual forma, atenta a alínea c) desse mesmo n.º 1, deverá indicar «a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.»
Tal deverá ser feito constar, obrigatoriamente, sob pena de rejeição, das conclusões, pois que são estas que definem o objecto do recurso.
Como refere Abrantes Geraldes[[1]], há lugar à rejeição (total ou parcial, conforme os casos) do recurso, quando falte, nas conclusões, a indicação dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados, sendo que a especificação, nas conclusões, dos pontos de facto a que respeita a impugnação serve para delimitar o objecto do recurso.
Como se concluiu no Ac. do STJ de 19-02-2015[[2]]:
«1. Para efeitos do disposto nos artigos 640.º, n.º 1 e 2, e 662.º, n.º 1, do CPC, importa distinguir, por um lado, o que constitui requisito formal do ónus de impugnação da decisão de facto, cuja inobservância impede que se entre no conhecimento do objecto do recurso; por outro, o que se inscreve no domínio da reapreciação daquela decisão mediante reavaliação da prova convocada. 2. A exigência da especificação dos concretos pontos de facto que se pretendem impugnar com as conclusões sobre a decisão a proferir nesse domínio tem por função delimitar o objeto do recurso sobre a impugnação da decisão de facto.»
No mesmo sentido, exarou-se no Ac. do STJ de 27-10-2016[[3]]: «1 – Sendo as conclusões não apenas a súmula dos fundamentos aduzidos nas alegações stricto sensu, mas também e sobretudo as definidoras do objeto do recurso e balizadoras do âmbito do conhecimento do tribunal, no caso de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente indicar nelas os concretos pontos de facto cuja alteração se pretende e o sentido e termos dessa alteração. 2 – Omitindo o recorrente a indicação referida no número anterior o recurso deve ser rejeitado nessa parte, não havendo lugar ao prévio convite ao aperfeiçoamento.»
No mesmo sentido se pronunciou o Ac. do STJ de 16-05-2018[[4]]: «I. (…) II - Por menor exigência formal que se adote relativamente ao cumprimento dos ónus do art. 640º do CPC e em especial dos estabelecidos nas suas alíneas a) e c) do nº 1, sempre se imporá que seja feito de forma a não obrigar o tribunal ad quem a substituir-se ao recorrente na concretização do objeto do recurso.» Em tais situações não há lugar a despacho de aperfeiçoamento, como se exarou no citado Acórdão de 27-10-2016, ou, também, no Ac. da STJ de 25-05-2018[[5]]: «V - A interpretação da expressão “sob pena de rejeição” consagrada no art. 640.º, n.º 1, do CPC, relacionada com a circunstância de o recorrente beneficiar já de um prazo suplementar de 10 dias, acrescido ao prazo normal do recurso de 30 dias, no caso de impugnar a decisão da matéria de facto com base na prova gravada (art. 638.º, n.os 1 e 7, do CPC), inculca a ideia que o desrespeito do cumprimento do respectivo ónus é sancionado com imediata rejeição do recurso, não havendo, neste particular, espaço para qualquer convite intercalar ao aperfeiçoamento.»
Ora, no caso em apreço, verifica-se que o apelante não cumpre adequadamente o ónus a que se mostrava obrigado, no sentido de referir com clareza qual/quais o/s artigo/s que pretende que seja/m reapreciado/s por este tribunal de recurso, afigurando-se-nos, porém, podermos concluir que pretenderá que o/ ponto/s 3, 4 e 5 o sejam. Certo é, porém, que não concretiza a forma como pretenderia que tal alteração ou eliminação operasse.
Tal bastaria para que se não conhecesse deste recurso sobre a matéria de facto (art.º 640.º, n.º 1, do CPC).
Sucede, porém, e para que dúvidas não fiquem, que a existência física de tal documento no seio do processo é algo que se mostra irrelevante para a presente acção, sendo certo que o próprio A. não nega, antes reconhece expressamente nas suas alegações, que terá prestado esse consentimento.
Com efeito refere o recorrente em tal peça processual (fls. 8): «(…). Cumpre esclarecer que o Autor (ora recorrente) não sustentou a respectiva causa de pedir na violação do dever de informação e na violação do dever de recolha de consentimento informado, porquanto confiou que a “X1”, designação pela qual conhecia o estabelecimento clínico dos autos, apresentaria tal documento aquando da respectiva contestação ou em articulado próprio, o que afinal não fez. O Autor (ora recorrente) desconhecia, nem tinha obrigação de conhecer, que havia uma “guerra surda” entre empresas do ramo da imagiologia médica, no caso concreto, que conduziu a que o consentimento informado, devidamente assinado pelo paciente, sequer aparecesse em juízo, embora todos os outros relatórios clínicos não tivessem sido extraviados, o que se afigura, no mínimo, estranho. (…).»
Ora, tendo sido prestado tal consentimento, para mais, reconhecidamente assinado pelo A. (o que até não se revelava obrigatório, atento o disposto no art.º 48.º, n.º 1 do Regulamento n.º 14/2009, de 13 de Janeiro – Código Deontológico dos Médicos), dúvidas não nos ficam de que esses pontos de facto sempre seriam de manter nos termos em que se mostram redigidos.
Do que se deixa dito, há assim que concluir que a impugnação da matéria de facto terá de improceder.
B – Da ressarcibilidade do dano por responsabilidade civil médica na ausência da prova de culpa por parte do médico.
Sustenta o recorrente que não se tendo provado a existência de culpa por parte do R. “Z”, ainda assim deveria ser arbitrada indemnização, posto que a jurisprudência tem vindo a decidir nesse sentido.
Sucede, porém, que contrariamente ao que é referido pelo apelante a inexistência de responsabilidade civil por parte do Réu “Z” derivou, desde logo, não só da constatação de inexistência de culpa sua na produção do evento, mas, antes, da não detecção de conduta ilícita - «(…) não tendo o Autor logrado provar qualquer defeito/desconformidade do serviço médico prestado (em sede de responsabilidade extracontratual, equivalente à ilicitude), por falta de verificação do pressuposto básico de responsabilidade civil, terão os terão os Réus de ser absolvidos da indemnização peticionada» - posição que também perfilhamos, o que desde logo prejudica a apreciação da questão da culpa, ou da sua inexistência.
Com efeito convirá ter presente que não se logrou provar que a conduta do Réu tenha assentado em más práticas, como resulta expresso do facto não provado ii) e da inexistência de qualquer facto provado que o revele.
Como se refere no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21-02-2011[[6]] não logrando «… a A. demonstrar a ilicitude da intervenção dos RR, em qualquer das suas vertentes, seja por acção, seja por omissão, não se provando a inadequação dos métodos e meios utilizados para debelar a situação nem que os RR tivessem assegurado à A o pleno êxito dessa intervenção, ao que acresce que os danos sobrevindos são, até, compatíveis com este tipo de intervenção e não se devem apenas ao acto praticado», não deverá responsabilizar-se o Réu.
Saliente-se ainda que o apelante entende que a conduta ilícita do Réu se traduziria também na violação do dever de informação e da obtenção do consentimento informado por parte do A./apelante.
Ora, quanto a este aspecto há que referir que resultou provado (e tal facto não surtiu alterado, como vimos supra) que o A./ora apelante foi devidamente informado das possíveis consequências do exame a que se submeteu [pontos 4. e 5.dos factos provados: “Do termo de consentimento de realização do exame constava a advertência de que havia risco de complicações no decurso do exame, designadamente, o risco de ocorrência de perfuração iatrogénica, na probabilidade de 1/1000” (ponto 4.) e “Antes de se submeter à colonoscopia, o Autor subscreveu o termo de consentimento de realização do exame” (ponto 5.)].
Tais factos mostram-se devidamente comprovados, sendo certo que se revela irrelevante que o documento se encontre junto ao processo, ou não; relevante é que ele tenha existido, melhor, que tenha existido o consentimento, sendo certo que o 48.º, n.º 1 do Regulamento n.º 14/2009, de 13 de Janeiro – Código Deontológico dos Médicos [(inserido no TÍTULO II (O médico ao serviço do doente) do CAPÍTULO I (Qualidade dos cuidados médicos)] estipula que o consentimento pode ser tanto oral como escrito (salvo casos especiais, nos quais não se inclui o exame em apreço).
Há assim que concluir que afastada a ilicitude da intervenção e não se verificando todos os pressupostos integradores da obrigação de indemnizar, que se impõem cumulativos, não pode ser tutelada a pretensão do recorrente, o que implica a improcedência da apelação.
IV – DECISÃO
Nesta conformidade, os juízes desembargadores que integram este colectivo, acordam em julgar a apelação improcedente, assim mantendo a sentença recorrida.
Custas pelo apelante, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficie.
Lisboa, 10-02-2022
José Maria Sousa Pinto
João Vaz Gomes
Jorge Leal
_______________________________________________________ [1]“Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 4ª edição, Almedina, Coimbra, 2017, p. 158. [2] Rel. Tomé Gomes, Proc. nº 299/05.6TBMGD.P2.S1, publicado em www.dgsi.pt [3] Rel. Ribeiro Cardoso, Proc. nº 110/08.6TTGDM.P2.S1, publicado em www.dgsi.pt [4] Relator Ribeiro Cardoso, Proc. 2833/16.7T8VFX.L1.S1, publicado em www.dgsi.pt [5] Rel. Fernanda Isabel Pereira, Proc. 4386/07.8TVLSB.L1.S1, publicado em www.dgsi.pt [6] P.º n.º 10527/07.8TBMAI.P1, relatora, Ana Paula Carvalho, disponível em www.dgsi.pt