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CRIME DE PERSEGUIÇÃO
CRIME DE IMPORTUNAÇÃO SEXUAL
CONCURSO EFECTIVO
Sumário
I – O crime de perseguição e o crime de importunação sexual na vertente de “formulação de propostas de teor sexual” foram introduzidos no Código Penal, pela Lei nº 83/2015 de 5 de agosto, dando cumprimento aos artigos 34.º e 40º da Convenção de Istambul, respetivamente. II – No crime de perseguição o bem jurídico protegido é a liberdade individual de ação ou decisão de outra pessoa, na vertente da autodeterminação, enquanto que no crime de importunação sexual o bem jurídico protegido é a liberdade sexual de outra pessoa. III – São crimes distintos, não existindo um sentido jurídico-social de ilicitude material dominante na prática pelo arguido do crime de perseguição que venha a conter nele os crimes de importunação sexual, também por ele praticados, existindo deste modo, uma situação de concurso real de crimes.
Texto Integral
Acordam, em conferência, os Juízes que integram a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães.
I – Relatório
Decisão recorrida
No âmbito do Processo Comum (Tribunal Coletivo) nº 1173/20.1JABRG, do Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo – Juízo Central Criminal de Viana do Castelo, foi proferida no dia 29 de setembro de 2021, o seguinte acórdão, cuja parte decisória se transcreve:
“Por todo o previamente exposto, o Tribunal decide: A) Condenar o arguido J. G. como autor imediato, na forma consumada, de um crime de incêndio, florestal, p. e p. pelo artigo 274.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de prisão; B) Condenar o arguido J. G. como autor imediato, na forma consumada, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos art.ºs 203.º, n.º 1, e 204.º, n.º 1, al. b), do Código Penal, na pena de 10 (dez) meses de prisão; C) Condenar o arguido J. G. como autor imediato, na forma consumada, de dois crimes de perseguição, p. e p. pelo art.º 154.º-A, n.º 1, nas penas de 10 (dez) meses de prisão (para o crime cometido entre 16.06.2019 e 08.07.2020) e 1 (um) ano e 2 (dois) meses de prisão (para o crime cometido após 08.07.2020); D) Absolver o arguido J. G. da prática de três crimes de perseguição agravada; E) Absolver o arguido J. G. da prática de um crime de ameaça, p. e p. pelo art.º 153.º, n.º 1, do Código Penal; F) Condenar o arguido J. G. como autor imediato, na forma consumada, de cinco crimes de importunação sexual, p. e p. pelo art.º 170.º do Código Penal, nas penas de 3 (três) meses de prisão para cada um dos quatro crimes cometidos na pessoa de M. M., e 4 (quatro) meses de prisão para o crime cometido na pessoa de T. F.; G) Condenar o arguido J. G. como autor imediato, na forma consumada, de dois crimes de coacção agravada, na forma tentada, p. e p. pelos art.ºs 154.º, n.ºs 1 e 2, e 155.º, n.º1, al. b), do Código Penal, nas penas de 8 (oito) meses de prisão para cada um deles; H) Absolver o arguido J. G. da prática de um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo art.º 171.º, n.º 3, do Código Penal; I) Condenar o arguido J. G., em cúmulo jurídico das penas referidas em A), B), C), F) e G), na pena única de 3 (três) anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 5 (cinco) anos, sujeita às seguintes regras de conduta: (i) moderar o consumo de bebidas alcoólicas; (ii) não contactar com os ofendidos M. M., T. F., R. G. e G. A.; e (iii) não se aproximar dos mesmos ofendidos; J) Condenar o arguido J. G. na pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, prevista no art.º 69.º-B, n.º 2, do Código Penal, por um período de 5 (cinco) anos; K) Condenar o arguido J. G. na pena acessória única de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, prevista no art.º 69.º-C, n.º 2, do Código Penal, por um período de 5 (cinco) anos. L) Declarar perdida a favor do Estado a vantagem auferida pelo arguido J. G. com a prática do facto ilícito referido em B), que se fixa em 200,00 € (duzentos euros), condenando-se aquele no pagamento do respectivo valor; M) Ordenar a recolha de vestígios biológicos destinados a análise de ADN ao arguido J. G., nos termos do disposto no art.º 8.º, n.º 2, da Lei n.º 5/2008, de 12 de Fevereiro; N) Condenar o arguido J. G. no pagamento das custas criminais, bem como dos demais encargos legais, nos termos do art.º 513.º, n.ºs 1, 2 e 3, do C.P.P., fixando-se a taxa de justiça criminal, em 2 UC, de acordo com o disposto no art.º 8.º, n.º 9, e Tabela III do Regulamento das Custas Processuais”.
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Recurso apresentado
Inconformado com tal decisão, o arguido J. G. veio interpor o presente recurso no qual pede a revogação do acórdão recorrido na parte em que o condena por quatro crimes de importunação sexual na pessoa de M. M., condenando-o por dois e absolvendo dos outros dois crimes e, em consequência, alterar a pena única, condenando o arguido na pena de 2 anos e oito meses de prisão, suspensa nos mesmos termos previstos no acórdão recorrido.
Após o motivar, apresentou as seguintes conclusões que se reproduzem:
“1ª – O recorrente não concorda com a decisão do tribunal a quo em condená-lo pelos dois crimes de importunação sexual, relativos aos factos referidos nos pontos A.4, A.18 e A.19 do elenco dos factos provados. 2ª – O tribunal recorrido condenou, igualmente, o arguido em dois crimes de perseguição, com base nos factos constantes dos pontos A.4, A.5, A.18, A.19 e A.20; apesar dos factos mencionados no ponto A.5 constituíssem, prima facie, um crime de ameaça, pois entendeu que não se tratava tanto de uma ameaça, mas antes de mais uma parte do crime de perseguição. 3ª – E nisto decidiu bem. 4ª – Mas, incorrendo em erro, o mesmo não decidiu quanto aos crimes de importunação sexual, relativos aos factos dos pontos A.4, A.18 e A.19. 5ª – Este concurso de crimes é apenas aparente, pois, ao praticar todos estes factos, aqui em análise, a intenção final do arguido era encetar contactos de natureza sexual e eventualmente iniciar uma relação amorosa – com a ofendida M. M.. 6ª – De facto, o crime de perseguição, por regra, terá, na sua base, uma motivação sexual, afectiva ou romântica; devendo considerar-se que os factos de importunação sexual, praticados no âmbito da perseguição com tal motivação, como parte integrante dessa perseguição. 7ª – Os factos que o tribunal utiliza para condenar o arguido pelos dois crimes de importunação sexual em causa, fazem parte daqueles crimes de perseguição e são praticados com o mesmo objectivo final - não há que dissecá-los desses crimes de perseguição, para se concluir pela condenação nos crimes de importunação sexual. 8ª – Assim, condenado o arguido pelos crimes de perseguição, não deverá ser condenado, pelos mesmos factos, nos crimes de importunação sexual, sob pena de ofensa do princípio non bis in idem. 9ª – Por isso, o recorrente deverá ser absolvido de dois crimes de importunação sexual. 10ª – Tal terá, como consequência, a alteração da pena única, em cúmulo jurídico, em que foi condenado; passando a mesma a condenar em 2 anos e oito meses, suspensa nas mesmas condições já previstas no acórdão recorrido”.
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Resposta ao recurso por parte do Ministério Público.
Na primeira instância, a Magistrada do Ministério Público, notificada da admissão do recurso apresentado pelo arguido, apresentou resposta na qual defende que o Acórdão recorrido não merece qualquer censura, formulando as seguintes conclusões que se reproduzem:
“1. De acordo com o preceituado no artigo 30º, nº1 do CP: “O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efetivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.” 2. “IV - Havendo violação de vários bens jurídicos pela atividade do agente, haverá sempre pluralidade de crimes, ainda que exista uma só resolução criminosa (a não ser que as normas concorrentes se excluam mutuamente). É este basicamente o critério vertido no nº 1 do art. 30.º do CP, segundo a lição de Eduardo Correia. (sublinhado e negrito nossos). Ac. STJ 24-04-2019, Relator: Maia Costa, in www.dgsi.pt . 3. O crime de “perseguição” tem como elementos constitutivos: A ação do agente, consubstanciada na perseguição ou assédio da vítima, por qualquer meio (direto ou indireto); A adequação da ação a provocar na vítima medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação; A reiteração da ação. 4. Exige-se ainda o dolo do agente, em qualquer das suas modalidades. 5. Na exposição de motivos do projecto de lei nº.647/XII que deu origem ao corpo do art.º 154º-A do Código Penal, definiu-se a perseguição, ou “stalking”, como “um padrão de comportamentos persistentes, que se traduz em formas diversas de comunicação, contacto, vigilância e monitorização de uma pessoa-alvo”. 6. O bem jurídico protegido pela incriminação é “a paz jurídica da pessoa perseguida, a ausência absoluta de qualquer forma de medo ou inquietação”. Jörg Kinzig, citado em Código Penal com notas e comentários, Miguez Garcia e J. M. Castela Rio, ou, segundo Paulo Pinto de Albuquerque, in CCPP, é “a liberdade de decisão e ação de outra pessoa”. 7. O bem jurídico protegido com a incriminação prevista no artigo 170º do CP é a liberdade sexual de outra pessoa, numa dupla dimensão: na dimensão negativa, significando genericamente a liberdade de não suportar condutas que agridam ou constranjam a esfera sexual da pessoa; e na dimensão positiva, como liberdade de escolher, de acordo com a sua vontade, os atos sexuais que lhe são dirigidos, bem como o seu parceiro sexual. 8. O tipo subjetivo admite qualquer forma de dolo. 9. “A formulação de proposta de teor sexual inclui palavras ou sons exprimidos ou comunicados pelo agente, tais como piadas, questões, considerações, exprimidas oralmente ou por escrito, bem como expressões ou comunicações do agente que não envolvam palavras ou sons, como por exemplo, expressões faciais, movimentos com as mãos ou símbolos.” Paulo Pinto de Albuquerque, in CCP. 10. No caso dos autos, pode concluir-se, então, da análise do Acórdão recorrido, que o Tribunal A Quo autonomizou, no âmbito da conduta persecutória do arguido, as expressões: quero dormir contigo”, “quero ir-te ao cu”, “quero-te dar umas palmadas nas nádegas”, “como estamos de pinanço?”, “hoje merecias duas sem tirar fora” e “se passas aqui novamente vestida assim vou ter de te violar”, porquanto as mesmas integram-se no conceito de “formulação de propostas de teor sexual”, ao contrário das demais expressões ali descritas. 11. Encontramo-nos perante factos diversos e autonomizáveis. 12. O entendimento de que existe concurso aparente entre crime de perseguição e crime de importunação sexual redundaria na desproteção absoluta do bem jurídico- liberdade sexual. 13. O crime de importunação sexual encontra-se, pois, em concurso efetivo com o crime de perseguição, pelo que não há, no Acórdão recorrido, violação do Princípio Ne bis In Idem”.
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Tramitação subsequente
Neste Tribunal da Relação de Guimarães, o processo foi com vista ao Ministério Público, tendo o Exmº. Senhor Procurador-Geral Adjunto, elaborado douto parecer, no qual aderiu às judiciosas “considerações expostas na resposta ao recurso apresentada pela Exma. Procuradora da República que refuta de forma criteriosa e clarividente os argumentos do recurso do arguido”, defendendo que estamos perante um concurso efetivo de crimes e que bem andou o Tribunal a quo ao autonomizar os crimes de importunação sexual relativamente aos crimes de perseguição de que foi vítima a ofendida M. M., sendo assim de parecer que o recurso do arguido não merece provimento.
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Foi cumprido o disposto no artigo 417º nº2 do CPP não tendo sido apresentada qualquer resposta.
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Após ter sido efetuado exame preliminar, foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.
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II – Fundamentação.
Cumpre apreciar o objeto do recurso.
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas essas questões, as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente dos vícios previstos no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal (1).
As questões que se colocam à apreciação deste tribunal são as seguintes:
I – Concurso aparente e violação do princípio ne bis in idem.
II – Redução da pena única aplicada para 2 anos e oito meses de prisão, suspensa na execução nos mesmos termos fixados pelo tribunal “a quo”.
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É a seguinte a matéria de facto dada como provada pelo tribunal “a quo”, na parte que releva para a decisão:
“A.3. A ofendida M. M. enviuvou a ..-06-2019 e, desde então, querendo iniciar com ela um relacionamento de namoro, o arguido passou a assediá-la permanentemente, praticamente todos os dias, até ter sido detido para primeiro interrogatório judicial e, depois disso, desde meados de Agosto de 2020 até Janeiro de 2021. A.4. Desde data não apurada, que se situa após o falecimento do marido da ofendida M. M. até ao primeiro interrogatório judicial, em 08-07-2020, praticamente todos os dias, o arguido aguardou a passagem de M. M. e dirigiu-se-lhe dizendo, entre outras expressões equivalentes não concretamente apuradas: “tás toda boa, miss! Onde vais?”, “vaidosa”, “Quero dormir contigo”, “Quero ir-te ao cu”, “Quero-te dar umas palmadas nas nádegas”. A.5. Em data não concretamente apurada, entre Fevereiro e Abril de 2020, quando a ofendida se encontrava a depositar o lixo no contentor público de resíduos, o arguido dirigiu-se a M. M. quando esta se encontrava junto da sua mãe e disse-lhe “...assim levais todas. Não me custa nada. Levais todas”. A.18. No entanto, desde data não apurada de meados de Agosto de 2020 até, pelo menos, 11 de Janeiro de 2021, praticamente todos os dias, o arguido aguardou e procurou a ofendida M. M. junto à residência de ambos e dirigiu-se-lhe dizendo, entre outras expressões equivalentes: “Estás toureira!”, “Como estamos de pinanço?”, “Vaidosa!”, “Já vens satisfeita do trabalho!”, “Já pinaste tudo hoje?”. A.19. No dia 23 de Agosto de 2020, pelas 19:30 horas, quando M. M. se dirigia a casa de uma sua vizinha para proceder a arrumos, o arguido surgiu-lhe no caminho, abeirou-se dela e disse-lhe “Estás jeitosa”, “hoje merecias duas sem tirar fora”, “se passas aqui novamente vestida assim vou ter de te violar”. A.20. Em meados de Setembro, quando a ofendida M. M. regressava dos terrenos onde ocorreu o incêndio supra narrado, o arguido J. G. surgiu-lhe no caminho, em local próximo das suas residências, colocou-se à sua frente, barrando-lhe a passagem, só o tendo logrado fazer porque, achando-se munida de um guarda-chuva, brandiu-o no ar, abrindo passagem”.
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Antes de mais há que fazer um breve enquadramento jurídico dos crimes de perseguição e de importunação sexual, pelos quais o arguido foi condenado.
O crime de perseguição previsto no artigo 154º-A do Código Penal, introduzido pela Lei nº 83/2015, de 5 de agosto (2), prevê no seu nº 1 que “Quem, de modo reiterado, perseguir ou assediar outra pessoa, por qualquer meio, direta ou indiretamente, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até 3 anos ou pena de multa, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal”.
Numa perspetiva de fenomenologia social, o stalking é uma forma de violência interpessoal alicerçada num padrão de comportamento desdobrado em múltiplas condutas de diferentes espécies ou concretizado em vários atos da mesma natureza, mas que têm de comum entre si, corresponderem a uma campanha de assédio, de vigilância, de tentativas de contacto e comunicação, de invasão da privacidade, de monitorização da vida e de indução, na vítima, de sentimentos de medo, de perigo emitente, de revolta, de impotência e ansiedade, adotado de forma reiterada e mais ou menos persistente.
Salienta Lígia Prudêncio Teixeira (3) “(…) Na atualidade, há uma noção mais ao menos generalizada e comum de stalking, que podemos identificar como sendo um padrão de comportamentos reiterados de assédio persistente levados a cabo pelo stalker contra a vítima, consistindo em intromissões na vida privada desta última contra a sua vontade, podendo revestir variadíssimas táticas de perseguição, desde as formas mais tradicionais de comunicação como telefonemas e mensagens até comportamentos altamente intrusivos na esfera privada da vítima, que variam entre esperas à porta da sua habitação ou do seu local de trabalho e presença em lugares socialmente frequentados por esta, entre outros»).
São também estes os elementos caracterizadores do crime de perseguição, tal como se encontra tipificado no artigo 154º - A do Código Penal, cujo bem jurídico protegido é a liberdade individual de ação ou decisão de outra pessoa, na vertente da autodeterminação.
Como se refere no acórdão deste Tribunal da Relação de Guimarães de 11 de fevereiro de 2019, procº. 1128/16.0PBGMR.G1, (4) “a conduta punida pode ser levada a cabo por qualquer meio, directa ou indirectamente, embora seja necessária a reiteração da conduta, uma vez que a respectiva ratio reside na protecção da liberdade de autodeterminação individual, sem prejuízo de reflexamente tutelar outros bens jurídicos como a salvaguarda da privacidade/intimidade – e doloso, do ponto de vista subjectivo, o que significa que o agente tem que ter vontade e consciência de estar a praticar o facto tido como ilícito e punido penalmente”.
Paulo Pinto de Albuquerque (5) entende estarmos perante um crime de perigo abstrato-concreto adiantando que “não é necessário que o destinatário tenha efetivamente ficado com medo ou inquieto ou inibido na sua liberdade de determinação. Basta que o ato tivesse essa potencialidade”.
Em sentido contrário, Bárbara Fernandes Rito dos Santos (6), considerando-o crime de perigo abstrato justificando a sua opção referindo que “permitir-se-á punir, de imediato, pela prática deste comportamento potencialmente perigoso, com a simples prova de perseguição, independentemente de a vítima ter ou não sofrido danos”.
No que concerne ao elemento subjetivo, este tipo de crime dolo, este tipo só pode ser cometido dolosamente, podendo o dolo revestir qualquer uma das modalidades (direto, necessário e eventual) previstas no artigo 14º do Código Penal.
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Relativamente ao crime de importunação sexual o mesmo encontra-se previsto
No artigo 170º do Código Penal com a seguinte redação “Quem importunar outra pessoa, praticando perante ela atos de carácter exibicionista, formulando propostas de teor sexual ou constrangendo-a a contacto de natureza sexual, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”.
Como salienta Paulo Pinto de Albuquerque (7) “A disposição prevê três crimes distintos: o crime de ato de carácter exibicionista, o crime de formulação de propostas de teor sexual e o crime de contacto de natureza sexual”.
O crime de “formulação de propostas de teor sexual” foi introduzido, à semelhança do já referido quanto ao crime de perseguição, pela Lei 83/2015, de 5/08 e visou dar cumprimento ao artigo 40º da Convenção de Istambul (8).
O bem jurídico protegido é a liberdade sexual de outra pessoa, e enquadra-se num crime de perigo concreto (quanto ao grau de lesão do bem jurídico protegido) e de resultado (quanto à forma de consumação do ataque ao objecto da acção).
Refere Pinto de Albuquerque (9) que “a formulação de propostas de teor sexual inclui palavras ou sons exprimidos ou comunicados pelo agente, tais como piadas, questões, considerações, exprimidas oralmente ou por escrito, bem como expressões ou comunicações do agente que não envolvam palavras ou sons, como por exemplo, expressões faciais, movimentos com as mãos ou símbolos”.
Como bem refere o Acórdão deste Tribunal da Relação de Guimarães de 23 de novembro de 2020, procº 1700/17.1IPBBRG.G1 “O crime de "importunação sexual" previsto no artigo 170º do Código Penal visa proteger a liberdade sexual de outra pessoa, numa dupla dimensão: negativa, significando genericamente a liberdade de não suportar condutas que agridam ou constranjam a esfera sexual da pessoa, e positiva, como liberdade de interagir sexualmente sem restrições.”
No caso em apreço, estão em causa as seguintes expressões dirigidas pelo recorrente à M. M.: A.4 “quero dormir contigo”, “quero ir-te ao cu”, “quero-te dar umas palmadas nas nádegas”, A.18 “como estamos de pinanço?” e A.19 “hoje merecias duas sem tirar fora” e “se passas aqui novamente vestida assim vou ter de te violar”, que não restam dúvidas enquadrarem este tipo de ilícito de importunação sexual.
Voltando à questão do concurso efetivo ou aparente destes crimes, preceitua o artigo 30º nº1 do Código Penal que “O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente”.
Entende o recorrente que os factos que o tribunal utiliza para condenar o arguido pelos crimes de importunação sexual relativos aos factos dos pontos A.4, A.18 e A.19, fazem parte dos crimes de perseguição e são praticados com o mesmo objectivo final – encetar contactos de natureza sexual e eventualmente iniciar uma relação amorosa com a ofendida M. M..
Assim, sendo o arguido condenado pelos crimes de perseguição, não deveria, na sua tese ser condenado, pelos mesmos factos, nos crimes de importunação sexual, sob pena de ofensa do princípio non bis in idem., devendo ser absolvido de dois crimes de importunação sexual.
Como tem vindo a ser maioritariamente considerado é teleológico, e não meramente lógico-subsuntivo, o critério legalmente adotado para a determinação do concurso efetivo de crimes, sendo assim o critério a atender para delimitar os casos de concurso real das situações em que, não obstante a pluralidade de tipos de crimes eventualmente preenchidos, não existe efetivo concurso efetivo de crimes, tal como sucede nos casos de concurso impróprio.
Para tanto há que interpretar se os factos se encontrem entre si numa relação de inclusão material e traduzam por isso um “comportamento ilícito global” apenas subsumível ao tipo absolutamente dominante, preponderante ou principal.
Como ensina Figueiredo Dias (10) “O “crime” por cada unidade ou pluralidade se pergunta é o facto punível e, por conseguinte, uma violação de bens jurídico-penais que integra um tipo legal ao caso efetivamente aplicável. A essência de uma tal violação não reside pois nem por um lado na mera “ação”, nem por outro na norma ou no tipo legal que integra aquela ação: reside no substrato de vida dotado de um sentido negativo de valor jurídico-penal, reside – numa palavra que vimos usando e progressivamente concretizando ao longo de este exposição sistemática – no ilícito típico: é a unidade ou pluralidade de sentidos de ilicitude típica, existente no comportamento global do agente submetido à cognição do tribunal, que decide em definitivo da unidade ou pluralidade de factos puníveis e, nesta aceção, de crimes” (…) Se, face às normas concreta e efetivamente aplicáveis, vários tipos legais se encontrarem preenchidos pelo comportamento global haverá concurso, mas não necessariamente concurso efetivou ou puro. Este pode não existir se se verificar que à pluralidade de normas efetivamente aplicáveis corresponde apesar dela, um sentido jurídico-social de ilicitude material dominante, verificando-se então um concurso aparente ou impuro.
Como bem salienta a Magistrada do Ministério Público na sua douta resposta ao recurso “Efetivamente, e pese embora proferidas nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar que as demais constantes de A4, A18 e A19, (integrantes do crime de perseguição), as supra referidas expressões integram-se no conceito de “formulação de propostas de teor sexual”, ao contrário das demais expressões ali descritas. Pelo exposto, e ao contrário do alegado pelo recorrente, encontramo-nos perante factos diversos e autonomizáveis” (…) mais adiantando que “o entendimento de que existe concurso aparente entre crime de perseguição e crime de importunação sexual redundaria na desproteção absoluta do bem jurídico- liberdade sexual”.
Também nós entendemos que no caso sub judice, não existe um sentido jurídico-social de ilicitude material dominante na prática pelo arguido do crime de perseguição que venha a conter nele os crimes de importunação sexual, também por ele praticados e que não se pode considerar integrarem aquele, sendo meras expressões de equivalente valor.
Aliás ambos os referidos crimes de perseguição e de importunação sexual na vertente da “formulação de propostas de teor sexual” foram, como acima se referiu introduzidas no Código Penal pela mesma Lei 83/2015 de 5 de agosto, visando dar cumprimento à Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres, adotada pelo Comité de Ministros do Conselho da Europa, conhecida - Convenção de Istambul, estando aí previstas em dois artigos distintos, o que reforça a ideia de se tratarem de preceitos diferentes, de igual dignidade jurídica.
Paulo Pinto de Albuquerque (11) também defende que “o crime de importunação sexual está numa relação de concurso efetivo com os crimes contra a liberdade pessoal”.
Diga-se para finalizar, que atentas as regras da normalidade da vida, a utilização de expressões como “quero dormir contigo”, “quero ir-te ao cu”, “quero-te dar umas palmadas nas nádegas”, “como estamos de pinanço?” “hoje merecias duas sem tirar fora” e “se passas aqui novamente vestida assim vou ter de te violar”, não são propriamente as utilizadas por quem, como alega o recorrente, pretendia iniciar uma relação amorosa com a ofendida M. M..
Conclui-se assim estarmos perante um concurso efetivo de crimes, como considerou o acórdão recorrido, não havendo consequentemente qualquer violação do principio do “Ne bis in idem”, que postula nomeadamente que ninguém pode ser julgado mais de uma vez pelo mesmo delito, o que não sucedeu como se constata.
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No que concerne à diminuição da medida concreta da pena, a mesma dependia, face ao recurso apresentado, que se considerasse que o arguido deveria ser absolvido da prática de dois crimes de importunação sexual, por se encontrarem numa relação de concurso aparente com os crimes de perseguição pelos quais foi também condenado.
Não sendo esse o entendimento deste Tribunal de recurso, mantém-se então a pena aplicada.
III – Decisão.
Face ao exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar totalmente improcedente o recurso interposto pelo arguido e em consequência, confirmam o douto acórdão recorrido.
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Custas pelo recorrente, fixando-se em 3 UC a taxa de justiça - artigos 513.º, n.ºs. 1 e 3, do C.P.P. e 8.º, n.º 9, do R.C.P. e Tabela III anexa.
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Notifique.
Guimarães, 7 de fevereiro de 2022.
(Decisão elaborada com recurso a meios informáticos e integralmente revista por ambos os subscritores, que assinam digitalmente)
Pedro Freitas Pinto (Relator)
Fátima Sanches (Adjunta)
1. Neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal”, 3ª Edição Atualizada, Universidade Católica Editora, 2009, anot. 3 ao art. 402º, págs. 1027/1028; Acórdão de Fixação de Jurisprudência do S.T.J. nº 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR, Série I-A, de 28/12/1995.,
2. De harmonia com o artigo 34º da Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres, adotada pelo Comité de Ministros do Conselho da Europa, conhecida por Convenção de Istambul.
3. “O Crime de Stalking,”, Dissertação de Mestrado, Faculdade de Direito, Escola do Porto, 2017, Universidade Católica Portuguesa, p. 5, consultável in http://repositorio.ucp.pt.
4. publicado in www.dgsi.pt
5. Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, 4ª edição, pág. 663.
6. “STALKING: Parâmetros de tipificação e o bem-jurídico da integridade psíquica”, Almedina Editora, 2017.
7. Obra citada, pág. 733.
8. O qual dispõe “As Partes tomarão as medidas legislativas ou outras necessárias para assegurar que qualquer conduta indesejada verbal, não-verbal ou física, de carácter sexual, tendo como objectivo violar a dignidade de uma pessoa, em particular quando esta conduta cria um ambiente intimidante, hostil, degradante, humilhante ou ofensivo, seja objecto de sanções penais ou outras sanções legais”.
9. obra citada pág. 734
10. Direito Penal Parte Geral. Questões fundamentais à doutrina geral do crime. Tomo I. 3ª edição. Coimbra Editora, 2019. p. 1149
11. Obra citada, pág. 737.