I- O acidente de viação sofrido, no dia 05 de janeiro de 2017, pelo autor /sinistrado de cidadania romena, ocorrido na Alemanha, quando seguia como ocupante numa viatura pesada de transporte de mercadorias ao serviço da sua entidade empregadora portuguesa, trata-se, simultaneamente, de um acidente de trabalho.
II- O acidente em causa tem conexão com ordenamentos jurídicos distintos, uma vez que o autor é trabalhador de cidadania romena ao serviço de um empresa portuguesa, com a qual celebrou, em Portugal, um contrato de trabalho, reside em Espanha e o acidente correu na Alemanha, impõe-se, por isso, de forma a determinar qual a lei material aplicável ao caso, que se recorra ao Regulamento (CE) n.º 593/2008, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de Junho de 2008, sobre a Lei aplicável às obrigações contratuais (Roma I),
III- A obrigação da celebração do contrato de seguro de responsabilidade civil emergente do acidente de trabalho decorre diretamente do contrato de trabalho, sendo este um dever principal do empregador no âmbito da relação laboral, pois uma das obrigações que para o empregador emerge do contrato de trabalho é a de prevenção dos riscos e doenças profissionais e de indemnização dos prejuízos emergentes de acidente de trabalho, cf. artigo 127.º, n.º 1, al. g), do Código do Trabalho, sendo obrigado a transferir a responsabilidade pela reparação dos danos emergentes de acidente de trabalho para entidades legalmente autorizadas a realizar este seguro, nos termos do artigo 283.º, n.º 5, do Código do Trabalho.
IV- Face ao disposto no artigo 8.º do referido Regulamento, a lei material a aplicar na resolução do acidente a que se reportam os autos, sendo a portuguesa, será a que regula a matéria dos acidentes de trabalho, ou seja, a Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro, LAT.
V- Não residindo o sinistrado de cidadania romena, em Portugal, mas tratando-se de um cidadão de Estado-membro da União Europeia, não configura um entendimento compatível com a Constituição da República Portuguesa, a interpretação do artigo 6.º, n.º 1 da LAT, segundo a qual um trabalhador estrangeiro não residente em Portugal sinistrado no estrangeiro ao serviço de empresa portuguesa não se encontra abrangido por aquela lei e, consequentemente, não tem direito às prestações nela previstas.
Recurso de revista
Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça.
I. Relatório
AA instaurou a presente ação especial emergente de acidente de trabalho, contra a Companhia de Seguros Allianz Portugal, S.A., pedindo que se reconheça o acidente que sofreu em 05 de janeiro de 2017, como sendo acidente de trabalho à luz do art.º 6 da LAT, e, em consequência, seja a Ré condenada no pagamento de pensão anual e vitalícia, no subsídio de elevada incapacidade e no pagamento da quantia de € 852,48 a título de despesas de deslocação.
Alegou que reside em ..., embora a sua residência profissional esteja situada em Portugal, na sede da sua entidade empregadora, sendo que o art.º 6 da LAT deve ser entendido de forma abrangente, incluindo não apenas a residência permanente, mas também a residência ocasional e profissional. Exerce a profissão de ... em serviço internacional e o seu principal local de trabalho era em território português, embora com deslocações temporárias ao estrangeiro.
No dia 05 de janeiro de 2017, quando ao serviço da sua entidade empregadora, sofreu um acidente de viação na ..., do qual lhe resultou fratura da coluna lombar, sendo que em virtude das lesões sofridas, padece de sequelas fixadas em exame médico singular, designadamente fratura de L3, com artrodese L2-L4 e afetação do plexo lombar esquerdo, com hiposestesia na face anterior da coxa esquerda.
À data do acidente auferia a retribuição anual de €14.583,32, a sua entidade empregadora tinha transferida para a Ré a responsabilidade emergente de acidentes de trabalho, por contrato de seguro, titulado pela apólice n.º ...82
A Ré contestou, alegando que aceita a existência do acidente de viação ocorrido na ..., bem como a existência do contrato de seguro de acidente de trabalho titulado pela apólice n.º ...82 celebrado com a entidade empregadora do autor, pela retribuição anual no valor de € 14.583,32. Todavia, ao acidente dos autos não é aplicável a Lei n.º 98/2009 de 04 de setembro, porquanto, aquando da sua ocorrência, o Autor que não tem nacionalidade ..., não residia em Portugal, nem aqui exercia a sua atividade, não sendo, aplicáveis os artigos 5º e 6º da mencionada Lei. Com efeito, o Autor residia permanentemente em ... e aí exercia a sua atividade, posto que aí iniciava e terminava as viagens ao serviço da sua entidade empregadora, sendo aí que se situava o seu domicílio profissional.
Concluiu no sentido da improcedência da ação, devendo ser absolvida do pedido.
Realizou-se a audiência de julgamento, tendo o Tribunal da 1ª instância proferido sentença com a seguinte decisão: «Por tudo quanto se deixou exposto, o tribunal julga a ação procedente e, reconhecendo como acidente de trabalho o acidente sofrido pelo autor, condena a ré no pagamento (ao autor): a) da pensão anual e vitalícia de € 7.729,16 (sete mil setecentos e vinte e nove euros e dezasseis cêntimos), com efeitos a partir de 29 de Setembro de 2017, atualizada, a partir de 1 de Janeiro de 2018, para o valor de € 7.868,28 (sete mil oitocentos e sessenta e oito euros e vinte e oito cêntimos) e atualizada, a partir de 1 de Janeiro de 2019, para o valor de € 7.994,14 (sete mil novecentos e noventa e quatro euros e catorze cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde o vencimento de cada uma das prestações da pensão em falta até efetivo e integral pagamento;
b) a quantia de € 4.143,24 (quatro mil cento e quarenta e três euros e vinte e quatro cêntimos), a título de subsídio por elevada incapacidade, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde 29 de setembro de 2017 até efetivo e integral pagamento; c) a quantia de € 847,44 (oitocentos e quarenta e sete euros e quarenta e quatro cêntimos) a título de despesas de deslocação. Fixa-se à ação o valor de € 101.574,26 (cento e um mil quinhentos e setenta e quatro euros e vinte e seis cêntimos).
A Ré, inconformada interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação ... que, por acórdão datado de 24 de junho de 2020, proferiu a seguinte decisão:
«Em conformidade com o exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmar (com distinto fundamento) a sentença recorrida.»
A Ré, de novo inconformada, interpôs o presente recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, apresentando alegações, onde formula as seguintes Conclusões:
1. Vem a presente revista interposta do douto acórdão de fls. , que considerou que o sinistrado tem direito às prestações decorrentes da lei nacional, confirmando, embora com diverso fundamento, a sentença proferida na primeira instância que julgou que ao acidente sofrido pelo autor é aplicável a lei portuguesa e que, por se verificarem os requisitos da sua qualificação como de trabalho, o autor tem direito às prestações previstas, para a sua reparação, na Lei 98/2009, de 4 de Setembro (LAT), condenando, em consequência e face aos factos provados, a ora recorrente no pagamento ao autor das prestações, em espécie e em dinheiro previstas nessa lei.
2. Salvo o devido respeito, essa decisão deve ser revogada, por enfermar de erro de interpretação e aplicação da lei aos factos, ao considerar ter o autor direito às prestações previstas na LAT.
3. Dos presentes autos, e com interesse para a discussão dos fundamentos da revista, resulta demonstrado, designadamente, que o autor é estrangeiro, residia em ... na altura do acidente (como ainda hoje reside) e sofreu um acidente de viação na ... quando seguia como ocupante numa viatura pesada, estando ao serviço da sua entidade empregadora.
4. Não se questionando, como nunca se questionou, que a lei aplicável aos pedidos formulados na presente ação é a lei material portuguesa, mais precisamente a Lei 98/2009, de 4 de Setembro (LAT), conclui-se que o acidente sofrido pelo autor deve ser qualificado como acidente de trabalho, por se mostrarem preenchidos os requisitos para tal, uma vez que o acidente ocorreu em execução do contrato de trabalho do autor e que lhe produziu lesão corporal de que resultou redução na sua capacidade de trabalho e de ganho (art.º 8 da LAT).
5. Mas, apesar de considerar o acidente dos autos como acidente de trabalho, a lei portuguesa aplicável não confere ao autor o direito às prestações previstas nessa mesma lei (art.6º, n.º 1 da LAT).
6. Com efeito, e como se conclui também na douta sentença proferida na primeira instância e no douto acórdão recorrido, está afastada a aplicação ao caso dos autos – de forma definitiva, uma vez que a sentença proferida em primeira instância a afastou, sem que qualquer das partes reagisse contra esse afastamento – da previsão do art.º 5-1 da LAT – que dispõe que o trabalhador estrangeiro que exerça a atividade em Portugal é, para efeitos dessa lei, equiparado ao trabalhador português, mas apenas no que respeita a acidentes de trabalho ocorridos em Portugal, o que não é o caso dos autos – posto que o autor é estrangeiro e “que é evidente que o autor não exerce atividade em Portugal, pelo menos não de forma estável e permanente como parece pressupor o preceito em análise”.
7. Face ao afastamento da possibilidade de reparação deste acidente com base no art. 5º da LAT, resta averiguar em que medida é aplicável ao acidente dos autos o disposto no art.º 6 da LAT, que dispõe que o “trabalhador português e o trabalhador estrangeiro residente em Portugal sinistrados em acidente de trabalho no estrangeiro ao serviço de empresa portuguesa têm direito às prestações previstas na presente lei, salvo se a legislação do Estado onde ocorreu o acidente lhes reconhecer o direito à reparação, caso em que o trabalhador pode optar por qualquer dos regimes”.
8. Ora, da leitura desse normativo parece resultar que o acidente sofrido pelo autor não é reparável face à lei portuguesa, como, aliás, se refere também na douta sentença proferida na primeira instância: “O art.6.º, ns.º 1 e 2, da LAT, pressupõe, no que ao trabalhador estrangeiro respeita, que estejam reunidos os seguintes requisitos para que o acidente, ocorrido no estrangeiro, seja reparável à luz da lei portuguesa: (i) que o trabalhador estrangeiro resida em Portugal; (ii) que esteja ao serviço de empresa portuguesa; (iii) que opte pela aplicação da lei portuguesa, sendo que, na ausência de opção expressa, será esta a aplicável.
No presente caso, é linear que a empresa ao serviço da qual o autor sofreu o acidente é portuguesa, do mesmo passo que o autor, conforme emerge da posição processual assumida, optou pela sua aplicação. Contudo, o autor não reside em Portugal (alínea E), dos factos provados), pelo que, assim vistos os requisitos supra enunciados, seríamos levados a crer não ser o acidente reparável à luz da lei portuguesa”.
9. No entanto, para afastar a aplicação deste art.6º da LAT – que, na sua previsão exclui a possibilidade de o autor da presente ação ter direito às prestações previstas na LAT –, quer a douta sentença proferida na primeira instância, quer o douto acórdão de que ora se recorre, configuraram essa norma como uma “norma de conflitos unilateral de fonte interna” que, como tal e “face ao disposto no art. 8º-4 da Constituição da República Portuguesa terá de ceder em relação a norma de conflito de fonte europeia”, por o acidente em causa nos autos ter conexão com ordenamentos jurídicos diferentes.
10. E, partindo desta qualificação como norma de conflitos da disposição contida no art. 6º da LAT, a douta sentença proferida na primeira instância recorreu ao “Regulamento (CE) n.º 593/2008, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de Junho de 2008, sobre a lei aplicável às obrigações contratuais (Roma I), Regulamento esse que, face ao disposto no art.º 8.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, é aplicável na ordem jurídica interna e tem primazia sobre as normas nacionais…”
11. Para assim concluir que “Ante o exposto e à luz dos considerandos enunciados, a lei material que rege o presente litígio não pode deixar de ser a lei material portuguesa”.
12. E desta conclusão extraiu não ser aplicável o art.º 6º da LAT e decidiu ter o autor direito às prestações nela previstas para reparação de acidentes de trabalho.
13. Já no douto acórdão de que se recorre, mantendo a qualificação do art.º 6º da LAT como norma de conflitos, se entendeu não ser aplicável o Regulamento (CE) n.º 593/2008, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de Junho de 2008, sobre a lei aplicável às obrigações contratuais (Roma I), a que aquela sentença recorrera, mas sim o Regulamento (CE) nº 864/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Julho de 2007, por se estar na presença de “um conflito de leis numa situação relativa a obrigações extracontratuais em matéria civil, especificamente, um conflito sobre qual a lei aplicável a um dano decorrente de responsabilidade fundada no risco” e não de “uma obrigação contratual em matéria civil ou comercial que implique um conflito de leis”.
14. Pela aplicação do art.º 4 - nº 3 deste Regulamento, o douto acórdão recorrido concluiu que a lei portuguesa era a aplicável ao acidente dos autos e que, em consequência, “o sinistrado tem direito às prestações decorrentes da lei nacional”.
15. Ou seja, embora com diferente fundamentação, ambas as decisões declararam que o sinistrado tem direito a receber as prestações previstas na LAT, por o artigo 6º desta lei ser uma norma de conflitos e ceder perante os Regulamentos comunitários que regulam os conflitos de leis aplicáveis a uma determinada situação.
16. Ora, uma norma de conflitos não pretende regular diretamente as relações privadas internacionais: limita-se a indicar as ordens jurídicas estaduais que hão de reger essas relações.
17. A norma de conflitos limita-se a indicar qual a lei material que vai dirimir um litígio, quando há mais do que uma lei que se arroga o direito de o fazer, mas não regula, ela mesma, esse litígio.
18. No caso dos autos, não existe, nem nunca existiu, qualquer discussão quanto à lei material que deve regular o litígio que se pretende dirimir, estando todos de acordo em que deve ser a lei portuguesa a fazê-lo.
19. E o art.º 6, da LAT não é uma norma de conflitos interna, limita-se a determinar quem, e em que condições, pode ser ressarcido dos danos causados por acidente de trabalho e ter direito às prestações previstas nessa LAT.
20. Não há, pois, qualquer razão para fazer intervir qualquer um dos Regulamentos (CE) a que recorreram as decisões proferidas em ambas as instâncias.
21. Nem faz qualquer sentido, salvo o devido respeito, que da argumentação aduzida para concluir pela aplicação da lei portuguesa, concretamente a Lei 98/2009, de 4 de Setembro, por força da aplicação da disciplina do Regulamento (CE) n.º 593/2008, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de Junho de 2008, ou do Regulamento (CE) nº 864/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Julho de 2007, se venha a extrair a conclusão de que não só se aplica a lei portuguesa, como se altera essa lei material portuguesa, “eliminando” a disposição taxativa dela constante quanto aos sujeitos que têm direito às prestações nela previstas, excluindo do seu art.º 6º-1 a expressão “residente em Portugal” para assim poder abranger o autor.
22. Até porque, como se referiu, os referidos Regulamentos se destinam a dirimir conflitos de leis pertencentes a ordens jurídicas estaduais diferentes e, no caso dos autos, não há qualquer lei estrangeira que conflitua com a Lei 98/2009, de 4 de Setembro, pelo que, em rigor, não há que chamar à colação quer o Regulamento (CE) n.º 593/2008, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de Junho de 2008, quer o Regulamento (CE) nº 864/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Julho de 2007.
23. Mas, mesmo que algum desses Regulamentos fosse aplicável ao caso dos autos, nunca teria a virtualidade de alterar a Lei 98/2009, de 4 de Setembro, limitando-se a determinar ser esta a lei aplicável.
24. Assim, tendo em conta a concreta, e inalterada, redação do art.º 6-1 da LAT, o autor não tem direito às prestações previstas nesta lei para reparação de acidentes de trabalho, uma vez que está provado que o autor, apesar de estar ao serviço de empresa portuguesa, sofreu o acidente no estrangeiro, é estrangeiro e não residia em Portugal, não preenchendo os requisitos exigidos por aquela norma para ter direito às prestações previstas na lei portuguesa aplicável ao caso dos autos.
25. Na verdade, não se trata de não se considerar a lei portuguesa aplicável, mas, precisamente, de aplicar a lei portuguesa que, no caso, é a LAT, e da aplicação da lei portuguesa resulta claramente que o autor não tem direito às prestações nela previstas, por ser estrangeiro não residente em Portugal e vítima de acidente no estrangeiro.
26. O autor terá, sim, direito a ser indemnizado pelos danos sofridos no acidente de viação que sofreu, no âmbito do seguro obrigatório automóvel e noutra jurisdição, uma vez que era passageiro transportado num veículo automóvel (como resulta da alínea C) dos factos provados).
27. Ao decidir que, pela aplicação da lei portuguesa ao acidente sofrido pelo autor, este tem direito às prestações para reparação de acidente de trabalho previstas na Lei 98/2009, de 4 de Setembro (LAT), o douto acórdão recorrido violou, por erro de interpretação e aplicação, o disposto no art. 6º da Lei 98/2009, de 4 de Setembro, e o art.º 4 do Regulamento (CE) nº 864/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Julho de 2007,
28. Devendo ser revogada e substituída por outra que julgue que o autor não tem direito às prestações previstas na Lei 98/2009, de 4 de setembro, para reparação de acidentes de trabalho (por, apesar de estar ao serviço de empresa portuguesa, ter sofrido o acidente no estrangeiro, ser estrangeiro e não residir em Portugal) e, em consequência, absolva a recorrente dos pedidos formulados pelo autor.
Nas contra-alegações, Autor conclui que não deverá ser concedido provimento ao recurso interposto pela Ré, devendo ser mantido o acórdão proferida pelo Tribunal da Relação.
Neste Tribunal, a Exma. Procurador-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de ser negada revista. Este parecer não teve resposta das partes.
II. Fundamentação
Tal como resulta das conclusões do recurso de revista interposto, que delimitam o seu objeto, a questão suscitada que importa apreciar é a de saber: Se o sinistrado/Autor de nacionalidade ..., residente em ... (...), ..., com contrato de trabalho celebrado com empresa portuguesa (cuja responsabilidade infortunística em matéria de acidentes de trabalho foi transferida para a Ré seguradora) e que sofreu acidente de viação/trabalho na ... quando se encontrava ao serviço da sua entidade empregadora, tem direito a receber as prestações previstas na Lei n.º 98/2009 de 04 de setembro, também, designada como Lei de Acidentes de Trabalho (LAT).
Fundamentos de facto
As instâncias consideraram assente a seguinte matéria de facto:
A) No dia 5 de janeiro de 2017, o Autor trabalhava por conta e sob a direção da sua entidade empregadora, a sociedade “Lamision - Sociedade de Transporte, Lda.”, desempenhando as funções inerentes à categoria profissional de motorista ...;
B) Em contrapartida da atividade referida em A), o Autor auferia a retribuição anual de € 14.583,32 [(€ 557,00 x 14 meses, a título de retribuição base) + (€ 94,25 x 12 meses, a título de subsídio de refeição) + (€ 403,88 x 14 meses, a título de complemento salarial)];
C) No dia 5 de janeiro de 2017, o Autor sofreu um acidente de viação na ..., quando seguia como ocupante numa viatura pesada, estando ao serviço da sua entidade empregadora;
D) A data do evento referido em C), a entidade empregadora do Autor tinha transferida para a Ré a responsabilidade civil emergente de acidente de trabalho pela retribuição referida em B), por via da apólice n.º ...82;
E) A data do evento referido em C), o Autor residia em ... e ainda aí reside;
F) Por força do contrato referido em A), o Autor efetuava em Portugal os descontos para a Segurança Social e para a Autoridade Tributária;
G) No dia 26 de janeiro de 2018, o Autor foi submetido a exame médico singular no INML, tendo aí sido considerado que:
a) O Autor esteve afetado de ITA desde 6 de janeiro de 2017 até 28 de Setembro de 2017;
b) O Autor está afetado de IPATH, com 15% de TPP, desde 28 de Setembro de 2017, data da consolidação médico-legal das lesões.
H) Por conta do período de ITA referido em G), alínea a), a Ré pagou ao Autor a quantia de € 7.439,49;
I) O sinistrado (Autor) mostra-se afetado de IPP, com coeficiente de desvalorização de 15%, com IPATH, desde 28 de Setembro de 2017;
J) Em consequência do evento referido em C), o Autor sofreu fratura de L3, com artrodese L2-L4 e corporectomia de L3;
K) E afetação do plexo lombar esquerdo;
L) Em razão das lesões referidas em 1.º[J)] e 2.º [K)], o Autor apresenta, como sequelas, limitação da mobilidade da coluna lombar e hipostesia da face anterior da coxa esquerda;
M) O Autor, sendo ... e efetuando serviço internacional, iniciava e terminava as suas viagens no local indicado pela sua entidade empregadora, quer fosse em ..., quer fosse em qualquer país, inclusive Portugal, onde lhe era solicitado que fizesse cargas e descargas;
N) Os reboques acoplados ao veículo pesado habitualmente conduzido pelo Autor tinham matrícula ...;
O) O camião/cabine conduzido pelo Autor tinha matrícula portuguesa: ...-QM-...;
P) O Autor, a fim de se deslocar ao INML e ao tribunal, fê-lo de ... (...) até ... de carro, tendo sido transportado por familiares;
Q) O Autor, a expensas suas, deslocou-se duas vezes a Portugal, ao INML e ao tribunal;
R) O Autor conduzia ou fazia-se transportar, nas viagens que efetuava ao serviço da sua entidade empregadora, em veículos pesados a que estavam acoplados reboques com matrícula ....
Fundamentos de direito
Como se referiu, a única questão suscitada é a de saber se o acidente de viação, ocorrido na ..., sofrido pelo Sinistrado/Autor, AA, de nacionalidade ... e residente em ..., enquanto ......, ao serviço de uma empresa portuguesa (cuja responsabilidade infortunística em matéria de acidentes de trabalho fora transferida para a Ré seguradora) que lhe provocou lesões e sequelas incapacitantes – tem direito a receber da Ré as prestações previstas na Lei n.º 98/2009 de 04 de setembro, também, denominada por Lei de Acidentes de Trabalho (LAT).
Importa começar por referir que se mostra incontroverso, dado que as partes o aceitam, que o referido acidente de viação sofrido, no dia 05 de janeiro de 2017, pelo Autor /Sinistrado AA, ocorrido na ... quando seguia como ocupante numa viatura pesada de transporte de mercadorias ao serviço da sua entidade empregadora Lamision - Sociedade de Transporte, Lda., trata-se, simultaneamente, de um acidente de trabalho.
Também, se mostra incontroverso entre as partes que, ao caso, é aplicável a lei portuguesa, mormente a Lei n.º 98/2009 de 04 de setembro que regulamenta o regime de reparação de acidentes de trabalho e de doenças profissionais (LAT), aplicação que decorre das posições assumidas pelas partes no processo, como resulta claro pela Recorrente, na conclusão n.º 4 do recurso de revista agora interposto, quando conclui: Não se questionando, como nunca se questionou, que a lei aplicável aos pedidos formulados na presente ação é a lei material portuguesa, mais precisamente a Lei 98/2009, de 4 de Setembro (LAT), conclui-se que o acidente sofrido pelo autor deve ser qualificado como acidente de trabalho, por se mostrarem preenchidos os requisitos para tal, uma vez que o acidente ocorreu em execução do contrato de trabalho do autor e que lhe produziu lesão corporal de que resultou redução na sua capacidade de trabalho e de ganho (artigo 8º da LAT ).
No entanto, a Recorrente/Ré entende, ainda, que uma norma de conflitos se limita a indicar a lei material que vai dirimir o litígio mas não regula ela própria o litígio e que o artigo 6.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro (LAT), não é uma norma de conflitos interna, limitando-se a determinar quem e em que que condições pode ser ressarcido dos danos causados por acidente de trabalho e ter direito às prestações previstas na LAT, não se justificando a intervenção dos Regulamentos Comunitários a que instâncias recorreram. E, não estando em causa não ser aplicável a lei portuguesa, conclui que não residindo o Sinistrado, AA de cidadania ..., em Portugal, circunstância que já se verificava à data do acidente, atento ao disposto no n.º1 do art.º 6 da LAT, resulta claro que o Autor por ser estrangeiro não residente em Portugal e vítima de acidente ocorrido no estrangeiro não tem direito às prestações nela previstas, razão pela qual o presente recurso merece provimento, devendo ser absolvido dos pedidos formulados pelo Autor, admitindo, contudo, que este terá direito a ser indemnizado pelos danos sofridos pelo acidente de viação que sofreu, no âmbito do seguro obrigatório automóvel e noutra jurisdição, uma vez que era passageiro transportado num veículo automóvel. Este entendimento, não deixa de configurar uma incongruência por parte da Recorrente, dado ter expressamente reconhecido nos autos, que Autor foi vítima de um acidente de trabalho, que ocorreu ao serviço da sua entidade empregadora, uma empresa portuguesa.
Vejamos então
Afigura-se-nos que a questão agora equacionada pela Recorrente, consiste em saber se, face ao estabelecido no n.º 1 do artigo 6º da LAT, as consequências do acidente de trabalho sofrido pelo Sinistrado, AA, são, ou não, reparáveis à luz da Lei de Acidentes de Trabalho, n.º 98/2009 de 04 de setembro, cuja aplicação entende não estar em causa.
Como resulta dos autos, ambas as instâncias, embora com fundamentação diversa, concluíram pela aplicabilidade da LAT em toda a sua extensão e pelo consequente direito do Sinistrado às prestações nela previstas com a reparação dos danos emergentes do acidente de trabalho de que foi vítima em 05 de janeiro de 2017. Consideraram, a nosso ver, bem que a disposição do artigo 6.º da LAT configura uma norma de conflitos unilateral de fonte interna que está conectada ao regime material. Estamos perante uma relação jurídica que envolve diversos Estados Membros da União Europeia, razão pela qual teremos de verificar se, no direito europeu, existe alguma norma de conflitos que, por força do que se estabelece no art.º 8, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa (CRP), se sobreponha à do mencionado art.º 6 da LAT e que seja diretamente aplicável no nosso ordenamento jurídico.
Como se refere na sentença de 1ª instância, tendo o acidente em causa conexão com ordenamentos jurídicos distintos, uma vez que o Autor é trabalhador de cidadania ... ao serviço de um empresa portuguesa, com a qual celebrou, em Portugal, um contrato de trabalho, reside em ... e o acidente correu na ..., impõe-se, de forma a determinar qual a lei material aplicável ao presente litígio, que se recorra ao Regulamento (CE) n.º 593/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de Junho de 2008, sobre - a Lei aplicável às obrigações contratuais (Roma I) - dado que que a obrigação da celebração do contrato de seguro de responsabilidade civil emergente do acidente de trabalho decorre diretamente do contrato de trabalho, configurando um dever principal do empregador no âmbito da relação laboral. Com efeito, uma das obrigações que para o empregador resulta do contrato de trabalho é a de prevenção dos riscos e doenças profissionais e de indemnização dos prejuízos emergentes de acidente de trabalho, como estipula o art.º 127, n.º 1, al. g), do Código do Trabalho, sendo obrigado a transferir a responsabilidade pela reparação dos danos emergentes de acidente de trabalho para entidades legalmente autorizadas a realizar este seguro, nos termos art.º 283, n.º 5, do Código do Trabalho, pelo que, no contexto e estrutura da relação laboral, a Seguradora/Ré, surge, por força da lei, como substituta do empregador na respetiva responsabilidade contratual. Diverge-se, assim, da fundamentação do acórdão recorrido quando considera ser aplicável o Regulamento (CE) n.º 847/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho de 11.07.2007, relativo à lei aplicável a obrigações extracontratuais, ainda que, tenha concluído, também, pela aplicação da LAT ao acidente dos autos.
Ora, a regra geral, sobre a lei aplicável, contida no referido Regulamento (CE) n.º 593/2008, no seu art.º 3, n. º1, é a da liberdade de escolha, daí resultando que a escolha deve ser expressa ou resultar de forma clara das disposições do contrato. Idêntica regra resulta, em matéria de contrato individual de trabalho, cf. n. º1 do art.º 8 do mesmo Regulamento.
No caso, estamos perante um evento ocorrido na execução do contrato de trabalho, pelo que há que atender aos convénios celebrados entre o trabalhador e a sua entidade empregadora, constantes de fls. 151v.º a 154 e de fls. 43[1], dos autos, sendo que se é certo que deles não decorre uma escolha expressa sobre a lei aplicável ao contrato, não menos certo é que, face às disposições que o regem e perante todo o seu contexto, resulta que o autor e a sua entidade empregadora quiseram subordinar à lei material portuguesa as questões dele emergentes; veja-se, a menção ao código do trabalho, à contratação coletiva, bem como, nas cláusulas do contrato, as várias alusões a normativos ínsitos na lei portuguesa, maxime, ao Código do Trabalho, daí que haja uma escolha, ainda que implícita, das partes relativamente à lei a aplicar ao contrato.
Mas, ainda que, não se colhesse do convénio celebrado entre o autor e a sua entidade empregadora a escolha implícita da lei aplicável, a outra solução não poderíamos chegar, atento ao disposto no artigo 8.º, do referido Regulamento, pois que, se os factos provados não nos permitem estabelecer qual o país onde o Autor presta habitualmente o seu trabalho em execução do contrato, ou na sua falta , a partir do qual o trabalhador presta habitualmente o seu trabalho em execução do contrato - cf. n.º 2 do referido artigo 8.º, não sendo, assim, possível
determinar a lei aplicável com recurso aos critérios enunciados no referido n.º 2, será aplicável a lei do país onde se situa o estabelecimento que contratou o autor, por força do n.º 3 do mesmo art.º 8, na medida em que a entidade empregadora do Autor tem a sua sede em Portugal e foi, aliás, em Portugal que o autor foi contratado, conforme decorre dos convénios a que aludimos. Assim, também, por esta via, seja de eleger a Lei portuguesa, como sendo a lei materialmente aplicável ao presente litígio.
Deste modo, a lei material a aplicar na resolução do acidente a que se reportam os autos, sendo a portuguesa, será a que regula a matéria dos acidentes de trabalho, maxime, a Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro, atenta a data a ocorrência do evento, em 5 de janeiro de 2017, art.º 187.º, n.º 1, da LAT.
No entanto, como se referiu, a Recorrente entende que não estando em causa não ser aplicável a lei portuguesa, conclui que não residindo o Sinistrado, AA de cidadania ..., em Portugal, circunstância que já se verificava à data do acidente, atento ao disposto no n.º1 do art.º 6 da LAT, não tem direito às prestações previstas na mesma Lei, pois da aplicação daquele seu dispositivo resulta claro que o Autor não tem direito às prestações nela previstas, por ser estrangeiro não residente em Portugal e vítima de acidente ocorrido no estrangeiro.
Não podemos concordar com esta afirmação, dado que, o Autor de nacionalidade ..., é cidadão de um Estado-membro da U.E., cidadãos que "não são estrangeiros como os outros, visto que compartilham da cidadania com os cidadãos nacionais - J. J. Gomes Canotilho - Vital Moreira "Constituição República Portuguesa Anotada", 4.ª edição revista, Coimbra editora, 2007, p. 357."
Assim, estes cidadãos, enquanto trabalhadores gozam, também eles, dos direitos de prestação, sem distinção fundada v.g. na nacionalidade ou território de origem, entre os quais se inclui o direito à assistência e justa reparação, quando vítimas de acidente e trabalho ou de doença profissional, garantido pelo artigo 59.º, n.º 1, al. f) da CRP. Equiparação que vai ao encontro ao direito de livre circulação que é uma liberdade fundamental dos cidadãos da União e um dos pilares do mercado interno na União.
Como se afirma no Preâmbulo da Diretiva 2014/54/EU do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16.4.2014, "A livre circulação de trabalhadores confere a todos os cidadãos da União, independentemente do respetivo lugar de residência, o direito de se deslocarem livremente para outro Estado-Membro a fim de aí trabalharem e/ou residirem para efeitos de trabalho. Protege-os contra a discriminação em razão da nacionalidade no que diz respeito ao acesso ao emprego, às condições de emprego e de trabalho, em especial no que se refere à remuneração, ao despedimento e a outras vantagens fiscais e sociais, garantindo-lhes igualdade de tratamento ao abrigo do direito, das práticas ou de convenções coletivas nacionais, em relação aos nacionais desse Estado-Membro. Esses direitos deverão ser exercidos sem discriminação por todos os cidadãos da União que exercem o seu direito à livre circulação, incluindo os trabalhadores permanentes, sazonais e fronteiriços". (sublinhado nosso).
Assim e no seguimento do parecer da Exma. Procuradora-geral Adjunta neste Tribunal, concluímos que não configura um entendimento compatível com a Constituição da República Portuguesa, a interpretação do artigo 6.º, n.º 1 da LAT, segundo a qual um trabalhador estrangeiro não residente em Portugal sinistrado no estrangeiro ao serviço de empresa portuguesa não se encontra abrangido por aquela lei e, consequentemente, não tem direito às prestações nela previstas, que seja vítima no estrangeiro de um acidente.
Face ao exposto, deverá aplicar-se ao caso dos autos e em toda a sua extensão a lei portuguesa em matéria de reparação de acidentes de trabalho, ou seja, a Lei n.º 98/2009 de 04 de setembro, não merecendo censura a decisão do acórdão recorrido ao decidir pela aplicação ao acidente dos autos a Lei de Acidentes de Trabalho n.º 98/2009 de 04 de setembro (LAT).
III. Decisão
Face ao exposto, julga-se improcedente o recuso de revista interposto pela Recorrente /Ré, confirma-se a decisão do acórdão recorrido que, reconhecendo como acidente de trabalho o acidente sofrido pelo Autor, condenou a Ré/Seguradora no pagamento ao Autor das prestações devidas ao abrigo da Lei de Acidentes de Trabalho n.º 98/2009 de 04 de setembro.
Custas pela Recorrente.
STJ, 16 de dezembro de 2021.
Maria Paula Sá Fernandes (Relatora)
Júlio Vieira Gomes
Chambel Mourisco
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[1] Tratam-se de documentos não impugnados e aos quais é lícito recorrer por apelo ao disposto no art. 607.º, n.º 4, 2.ª parte, do Código de Processo Civil.