I – A lei processual civil consagra, quanto à admissibilidade de recurso, um regime que o faz depender, cumulativamente, do valor da causa (alçada) e do valor da sucumbência (da perda, do decaimento relativamente ao(s) pedido(s) formulado(s)), relevando, no entanto, apenas aquele, em caso de fundada dúvida sobre este.
II- O recurso de revista excepcional não constitui uma modalidade extraordinária de recurso, mas antes um recurso ordinário de revista, criado pelo legislador, na reforma operada ao Código de Processo Civil, com vista a permitir o recurso nos casos em que o mesmo não seja admissível em face da dupla conformidade de julgados, nos termos do art. 671º, nº 3, do CPC, e desde que se verifique um dos requisitos consagrados no art. 672º, nº 1, do mesmo Código. Por conseguinte, a sua admissibilidade está igualmente dependente da verificação das condições gerais de admissão do recurso de revista, como sejam o valor da causa e o da sucumbência, exigidas nos termos enunciados pelo nº 1, do art. 629º, do CPC.
III – O eventual direito das partes a recorrerem ao Supremo Tribunal de Justiça, está totalmente dependente de normas conformadoras do legislador ordinário e que transcendem o direito consagrado no artigo 20º da Constituição da República Portuguesa.
IV - No que toca à limitação do recurso em função das alçadas, à irrecorribilidade em função da relação entre o valor da acção e a alçada dos tribunais, o Tribunal Constitucional sempre entendeu que esse critério não ofende o princípio constitucional de acesso ao direito e aos tribunais consagrado no artigo 20º da Constituição da República Portuguesa.
V - Na vertente do princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição, segundo jurisprudência do Tribunal Constitucional, no processo civil o que o legislador tem de assegurar sempre a todos, sem discriminação de ordem económica, é o acesso a um grau de jurisdição, e, prevendo a lei que o acesso à via judiciária em mais do que um grau, que seja garantido que o acesso a elas se faça sem discriminação alguma, proibindo o arbítrio no estabelecimento do critério de recorribilidade.
VI - As normas dos artigos 629º, nº 1, e 672º, do Código de Processo Civil, na interpretação perfilhada, não enfermam de inconstitucionalidade.
4ª Secção
LR/JG/CM
Acordam em conferência na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:
I
1. “STRONG CHARON – SOLUÇÕES DE SEGURANÇA, S.A.” notificada do despacho proferido pela Relatora em 27 de Outubro de 2021 que não admitiu o recurso de revista excepcional pela mesma interposto contra o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação ... em 8 de Abril de 20210, vem apresentar reclamação para a Conferência, ao abrigo do disposto no artigo 652º, nº 3, aqui aplicável por força do artº 679º, ambos do Código de Processo Civil.
2. O despacho proferido pela Relatora, ora reclamado, tem o seguinte teor:
“Nos presentes autos, apreciando preliminarmente a admissibilidade do recurso de revista excepcional interposto pela Ré “STRONG CHARON, SOLUÇÕES DE SEGURANÇA, S.A..”, foi proferido despacho, em 1.10.2020, convidando as partes a pronunciar-se sobre a possibilidade, no mesmo considerada e equacionada, de o recurso não ser admissível, por o valor da causa ser inferior ao da alçada do Tribunal da Relação de que se recorre.
Esse despacho, regularmente notificado às partes, não obteve reacção.
Assim, pelas razões no mesmo aduzidas, que aqui me dispenso de reproduzir, não admito o recurso interposto pela Ré “STRONG CHARON, SOLUÇÕES DE SEGURANÇA, S.A..”.
Custas a cargo da Recorrente”.
3. Por sua vez o despacho preliminar proferido, em 1.10.2021, para que remete o despacho reclamado tem o seguinte teor:
“Nos presentes autos de acção declarativa com processo comum, emergente de contrato individual de trabalho, em que é Autora AA e RR. “STRONG CHARON, SOLUÇÕES DE SEGURANÇA, S.A.”, e, através de incidente de intervenção provocada, “COMANSEGUR, SEGURANÇA PRIVADA, S.A”, vem pela Ré “STRONG CHARON, SOLUÇÕES DE SEGURANÇA, S.A.”, interposto recurso de revista excepcional, nos termos do disposto no artigo 672º, nº 1, al. c), do Código de Processo Civil, do acórdão do Tribunal da Relação ..., de 8 de abril de 2021, que julgou improcedente o recurso por si interposto contra a sentença de 1ª instância, de 10.7.2020, que julgou a acção parcialmente procedente e condenou a R. a reconhecer a ilicitude do despedimento da A. e no pagamento de quantia a título de indemnização e créditos laborais vencidos, e nas retribuições intercalares.
No despacho saneador foi fixado à causa o valor de € 11 803,10.
Quanto ao recurso interposto, por despacho do Exma. Desembargadora Relatora de 13.7.2021, foi ordenada a subida dos autos ao STJ para apreciação.
II
Subidos os autos a este Supremo Tribunal cumpre apreciar da admissibilidade do recurso, tendo presente que nos termos das disposições conjugadas dos artigos 679º e 652º, nº 1, al. b) do Código de Processo Civil o tribunal superior não está vinculado à decisão do tribunal a quo que admite o recurso, fixa a sua espécie, ou determina o seu efeito.
A recorrente interpõe recurso de revista excepcional ao abrigo da disposição normativa do artigo 672º, nº 1, al. c), do Código de Processo Civil.
A revista excepcional é um mecanismo que legitima o recurso de revista nas situações em que a existência de uma situação de dupla conforme entre a decisão recorrida e a decisão da 1ª instância que da mesma é objecto impede a admissão do recurso, nos termos do nº 3 do artº 671º do Código de Processo Civil, preceito segundo o qual “ sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte”.
Deste modo, só pode invocar-se a admissão da revista pela via da revista excepcional nas situações em que face à situação de dupla conforme, nos termos acima referidos, o recurso de revista não pode ser admitido.
Pressupõe-se, pois, que o recurso seria admissível e só a dupla conforme obsta à sua admissão.
Dito de outro modo, a revista excepcional só pode ser interposta se estiverem verificadas as condições gerais de admissibilidade do recurso de revista, na medida em que não constitui uma modalidade extraordinária de recurso, antes um verdadeiro e próprio recurso ordinário de revista, cuja previsão visou assegurar o recurso de revista nos casos em que o mesmo não seja admissível por existir uma situação de dupla conformidade, nos termos do nº 3 do artº 671º.
No caso vertente não estão verificadas as condições gerais de admissibilidade do recurso de revista uma vez que o valor da causa não é superior ao da alçada do Tribunal da Relação de que se recorre. Na verdade,
De acordo com o disposto no artigo 629º, nº 1, do Novo Código de Processo Civil, correspondente ao artigo 678º do Código anterior, aplicável subsidiariamente “ex-vi” do artigo 1º, nº 2, al. b), do Código de Processo do Trabalho, “O recurso ordinário só é admissível quando a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre e a decisão impugnada seja desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal, atendendo-se em caso de fundada dúvida acerca do valor da sucumbência, somente ao valor da causa”.
O valor da causa representa a utilidade económica do pedido, isto é, o benefício visado com a acção e com a reconvenção, dependendo a sua fixação do critério geral consagrado no artigo 296º, nº 1, e 297º, nº 1, do Código de Processo Civil.
A alçada dos Tribunais da Relação encontra-se fixada actualmente, e desde 2007, em € 30 000,00 (artº 24º, nº 1, da Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro (LOFTJ, na redacção do D.L. nº 303/2007, de 24 de Agosto, e artº 44º, nº 1, da Lei nº 62/2013 (LOSJ), de 26 de Agosto).
In casu o valor da causa é inferior ao da alçada do Tribunal da Relação de que se recorre, pelo que o recurso interposto não será admissível.
Em face do referido e perspetivando-se a possibilidade de não conhecimento do recurso interposto, nos termos do artº 3º, nº 3, e 655º, nº 1, do Código de Processo Civil, notifique as partes para se pronunciarem, querendo, no prazo de 10 dias”.
4. Inconformada com o despacho reclamado vem a Recorrente requerer que sobre o mesmo recaia um acórdão, nos termos do artigo 652º, nº 3, do Código de Processo Civil, o que faz nos termos seguintes:
“ I – Do valor da acção
1. Pese embora se esteja nos presentes autos perante uma ação declarativa emergente de contrato individual de trabalho, sob a forma de processo comum, com o valor da ação, fixado pelo Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo do Trabalho ... - Juiz ..., na quantia de € 11.803,10, entende a Recorrente que deverá ser admitido o recurso de Revista Excecional.
2. Com efeito, o objeto processual principal nos presentes autos versa sobre a verificação da transmissão da unidade económica e, em consequência, sobre a transmissão da posição de entidade empregadora.
3. E, por fim, sobre a entidade responsável, se Recorrente Strong Charon se Recorrida Comansegur, pela ocorrência de um despedimento ilícito, por ausência de processo disciplinar e justa causa,
4. Peticionou ainda a Autora e a título subsidiário que a Recorrente fosse condenada a reintegrá-los no seu local de trabalho e no pagamento, a cada um deles, da quantia de € 11.803,10, a título de retribuições vencidas e de indemnização por danos morais.
5. Não obstante o valor dos pedidos líquidos individualmente formulados pela Autora se fixar na quantia de € 11.803,10, acontece que peticionou igualmente a declaração da ilicitude do despedimento por iniciativa da Recorrente, na sequência da transmissão da unidade económica.
6. Em virtude do estatuído no art.º 296.º, n.ºs 1 e 2 do Código Processo Civil, a toda a causa deve ser atribuído um valor certo, expresso em moeda legal, o qual representa a utilidade económica imediata do pedido, ao qual se atenderá para determinar a competência do tribunal, a forma do processo, bem como da possibilidade de recurso das decisões e fixação do valor da taxa de justiça inicial.
7. Se pela ação se pretende obter qualquer quantia certa em dinheiro será esse o valor da causa; se pela ação se pretende obter um benefício diverso, o valor da causa é a quantia em dinheiro equivalente ao benefício – art.º 303.º, n.º 1 do Código Processo Civil.
8. Ora, quanto ao pedido declarativo de despedimento ilícito, do reconhecimento da transmissão da entidade económica e da consequente transmissão do contrato de trabalho não dispunham as partes qualquer mecanismo para atribuir um valor de expressão monetária, uma vez que representam interesses imateriais.
9. Por “interesses imateriais”, para efeitos do disposto no art.º 303.º do Código Processo Civil, terá de entender-se os que sejam insuscetíveis de serem reduzidos a mera expressão económica, ou seja, as ações em que estejam em causa relações jurídicas sem expressão pecuniária, sem conteúdo económico, ou em que este é meramente fictícia, nelas se incluindo as que têm por objeto direitos indisponíveis.
10. Pelo contrário, a resposta à verificação da transmissão da transmissão da entidade tem efeitos diferentes e/ou divergentes sobre as posições jurídicas de qualquer uma das Partes no processo, assumindo uma clara autonomia em relação a qualquer outro dos pedidos formulados pelos autores.
11. Ora o valor da causa tem de refletir essa possibilidade, atendendo à natureza dos pedidos aí formulados
II – Da jurisprudência do STJ
12. A interpretação firmada pelo Supremo Tribunal de Justiça sobre o valor da ação, enquanto pressuposto geral do conhecimento de um recurso de revista excecional, não se mostra como uniforme quanto à admissibilidade nos casos em que os pedidos e o valor da ação se apresenta como inferior ao valor da alçada do tribunal de que se recorre; admitindo por vezes e rejeitando por outras.
13. Na verdade, muito recentemente e a título de mero exemplo, no domínio do processo judicial a correr os seus termos com o número 959/18.1T8BJA.E1.S1, o Supremo Tribunal de Justiça, por despacho judicial de 05 de julho de 2021, admitiu o conhecimento de uma pretensão recursória, formulada através da figura do recurso de revista excecional, com o valor de ação de € 43.746,45 em que figuram como Recorridos onze [11] trabalhadores vigilantes com diversos pedidos, mas todos, quando considerados isoladamente, de valor inferior a € 30.000,01 – situação de coligação ativa voluntária.
Cfr. certidão judicial que se protesta juntar.
14. Verifica-se, assim, que o Supremo Tribunal de Justiça julgou como verificados os pressupostos gerais de admissibilidade e recorribilidade, entre os quais o atinente à alçada do tribunal recorrido, mesmo numa causa de valor total de € 43.746,45 com onze autores e com pedidos que considerados isoladamente não ultrapassam o valor de € 30.000,01,
15. Na verdade, cada um dos pedidos formulados pelos Autores, nas suas doutas petições iniciais, na quantia de € 5.000,01.
16. Ordenado, em consequência, a remessa dos referidos autos à Formação com competência para aferir da verificação dos pressupostos específicos e especiais de admissão de revista excecional.
17. Enquanto no caso em apreço, esse mesmo Supremo Tribunal de Justiça não admite o recurso de revista excecional interposto pela aqui Recorrente, com fundamento na circunstância de não se encontrar como preenchido o requisito e o pressuposto respeitante ao valor da causa.
18. Ora, a interpretação sedimentada e adotada sobre a regra da admissibilidade do recurso no que respeita ao valor da ação não poderá, sempre com o devido respeito, subsistir por violação das regras interpretativas, presentes no artigo 9.º do Código Civil – A interpretação (…) tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico.
19. Com efeito, a par do que aconteceu no citado processo — mero exemplo de uma jurisprudência contrária à fundamentação do despacho em crise e que, s.m.o. não permite afirmar que é entendimento pacífico do STJ que, no caso de revista excecional, o valor da causa releva para efeitos de verificação do requisito e pressuposto geral — nos presentes autos, o valor da causa fixado, mesmo que não seja superior à alçada do Tribunal da Relação não pode impedir o conhecimento do recurso de revista.
III – Da Inconstitucionalidade na Interpretação de Norma Jurídica
20. No art.º 13.º da Constituição da República Portuguesa encontramos uma das regras universais e elementares do estado de direito – princípio da igualdade perante a lei.
Artigo 13.º
Princípio da igualdade
1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.
2. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.
21. Se é certo que o princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei não impõe a uniformidade absoluta de regimes jurídicos para todos os cidadãos, consentindo a sua diversidade assente em diferença de situações,
22. Não é menos correto afirmar que se trata, aqui, de um princípio de conteúdo pluridimensional, que postula várias exigências, designadamente a de obrigar a um tratamento igual de situações de facto iguais e a um tratamento desigual de situações de facto desiguais, não autorizando o tratamento desigual de situações iguais e o tratamento igual de situações desiguais.
23. Não podemos olvidar que o princípio constitucional da igualdade do cidadão perante a lei é um princípio estruturante do Estado de Direito Democrático e do sistema constitucional global.
24. Ora, se no domínio do processo n.º 959/18.1T8BJA.E1.S1, o Supremo Tribunal de Justiça se pronunciou expressamente quanto à admissibilidade de um recurso de revista excecional, pese embora o valor da ação, quando cada um dos pedidos considerados isoladamente, se mostrasse como inferior ao valor da alçada do tribunal recorrido [€ 30.000,01],
25. Não pode, agora, a Recorrente se conformar com a decisão de não admissão do recurso de revista excecional, por si interposto, com fundamento na falta de verificação do pressuposto geral de admissibilidade respeitante ao valor da causa, sob pena de a interpretação adotada da conjugação das normas jurídicas presentes nos artigos 629.º, n.º 1 e 672.º, ambos do CPC, se mostrar como inconstitucional por violação do princípio da igualdade.
26. Perante uma situação com contornos idênticos, se não semelhantes, o Supremo Tribunal de Justiça adotou um juízo valorativo distinto e diametralmente oposto, negando, assim, à Recorrente o direito ao acesso aos Tribunais, na modalidade de direito ao recurso – art.º 20.º da C.R.P.
27. O princípio da igualdade processual das partes significa que são iguais em direitos, deveres, poderes e ónus, estando colocadas em perfeita paridade de condições e gozando de idênticas possibilidades de obter a justiça que lhes seja devida. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.11.2003, processo: 04A1417, relator: AZEVEDO RAMOS.
28. Por seu turno, o artigo 204.º da nossa Lei Fundamental preceitua que os Tribunais se encontram impedidos de aplicar normas, enquanto resultado após o processo de interpretação,
Artigo 204.º
Apreciação da inconstitucionalidade
Nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados.
29. À luz do princípio do acesso aos tribunais, como acima se referiu, e com a agravante de desvalorizar a proteção da confiança, segurança jurídica e, sobretudo, a unidade interpretativa dos tribunais, a manutenção da posição adotada e vertida no douto despacho em escrutínio conduziria a um resultado desproporcionado e injusto atendendo, além do mais, ao prejuízo económico que advém da condenação para a Recorrente – art.º 2.º da C.R.P., e portanto violador destes princípios e comando tutelados pela Constituição, entre os quais o famigerado princípio da igualdade.
30. Interpretação essa que se mostra ferida de inconstitucionalidade por violação dos princípios da igualdade e do acesso aos tribunais,
31. Inconstitucionalidade essa que, desde já, se invoca para todos os efeitos legais
32. Ora, concluindo, por tudo o exposto, consideramos que se mostram preenchidos os pressupostos gerais de admissibilidade do recurso de revista excecional, decorrentes do artigo 672.º, n.º 1 do Código de Processo Civil”.
4. A recorrida não apresentou resposta à reclamação.
Cumpre decidir
O despacho reclamado anteriormente decidiu não admitir o recurso interposto pela Reclamante uma vez que a causa não tem valor superior à alçada da Relação.
A reclamação da Recorrente assenta em três fundamentos:
- (i) – valor da acção que versa sobre a verificação da transmissão da unidade económica e, em consequência, sobre a transmissão da posição de entidade empregadora, sobre a entidade responsável por um despedimento ilícito e a condenação na reintegração da A., que representam interesses imateriais;
- (ii) – existência de jurisprudência não uniforme do STJ sobre o valor da acção enquanto pressuposto geral do conhecimento de um recurso de revista excepcional e a admissibilidade do recurso de revista excepcional em causas de valor inferior à alçada da Relação;
- (iii) – violação dos princípios constitucionais da igualdade e do direito ao acesso aos tribunais.
Nenhum destes argumentos procede.
No que concerne à determinação do valor da acção os fundamentos em que se sustenta o entendimento da reclamante são idênticos aos invocados, em situação de contornos semelhantes, na reclamação para a conferência apresentada pela Reclamante no Procº nº 4048/19.7T8PRT.P1.S1, que veio a ser decidida por acórdão deste Supremo Tribunal de 8 de Junho de 2021, aresto no qual se afirmou o seguinte:
“Quanto à determinação do valor da acção, já se salientou no despacho reclamado que este Supremo Tribunal já apreciou várias vezes a questão suscitada pela recorrente da fixação do valor da causa de acordo com o critério consagrado no artigo 303º, nº 1, do Código de Processo Civil, tendo em jurisprudência reiterada, firmada, entre outros nos acórdãos de 22.3.2007, Procº 07S274, 14.5.2009, Procº nº 09S0475, 6.12.2017, Procº nº 519/14.6TTVFX.P1.S1. 20.12.2017, Procº nº 2841/16.8T8LSB.L1.S1., perfilhado o entendimento de que no domínio do actual Código de Processo do Trabalho, tal como no de 1981, não há que atender, como direito subsidiário, ao critério da imaterialidade dos interesses do artigo 303º do Código de Processo Civil, uma vez que o artigo 79º, alínea a), nas acções em que esteja em causa o despedimento do trabalhador e a sua reintegração na empresa, o legislador apenas assegurou o recurso para a Relação, sendo de observar quanto à admissibilidade (ou não) de recurso para o Supremo, o regime geral das alçadas, do mesmo modo que os fundamentos jurídicos dos pedidos com incidência pecuniária formulados não podem ser valorados autonomamente e considerados como relativos a interesses imateriais. (Sublinhado nosso).
Ao que se acrescentará que a circunstância de se discutir qual o regime jurídico aplicável em cada litígio, seja esse regime de natureza legal ou de natureza convencional, não transforma o respectivo processo em causa sobre interesses imateriais, sempre com recurso assegurado até ao Supremo Tribunal de Justiça”.
Reafirmando esse entendimento dir-se-á ainda em seu reforço que, nos termos do disposto no artigo 296º, nº 1, do Código de Processo Civil, o critério geral para a determinação do valor coincide com a utilidade económica imediata que pela acção se pretende obter.
Essa utilidade económica é, por regra, salvo critério especial, de aferir pelo pedido formulado pelo Autor, e não pelo fundamento jurídico, pela causa de pedir, em que assenta a sua pretensão.
“Como se avalia essa utilidade?”
Perguntava e respondia Alberto dos Reis, COMENTÁRIO, 3º, Coimbra 1946, pág. 591:
«A resposta é simples. Vê-se qual é o fim ou o objetivo da ação e depois procura-se a equivalência económica desse objetivo. (…) a equivalência económica consiste na indicação da quantia em dinheiro correspondente ao objetivo da ação.
Ora o objetivo duma ação conhece-se pelo pedido que o autor faz. De maneira que o princípio fundamental da fixação do valor enuncia-se assim: Valor da causa igual a valor do pedido expresso em moeda legal.»
No caso dos autos é incontroverso que o valor da acção, definitivamente fixado, de acordo com o referido critério e o regime legal aplicável, é inferior ao da alçada do Tribunal da Relação, pelo que, nos termos do artigo 629º, nº 1, do Código de Processo Civil não é admissível recurso ordinário, de revista nos termos gerais, do acórdão recorrido, e, consequentemente, recurso de revista excepcional.
Improcede, pois, o primeiro fundamento invocado pela reclamante.
O segundo argumento ou fundamento invocado pela Reclamante é o de que “a interpretação firmada pelo Supremo Tribunal de Justiça sobre o valor da acção, enquanto pressuposto geral do conhecimento de um recurso de revista excecpional, não se mostra como uniforme quanto à admissibilidade nos casos em que os pedidos e o valor da acção se apresenta como inferior ao valor da alçada do tribunal de que se recorre, admitindo por vezes e rejeitando por outras”.
A Reclamante aponta como exemplo da alegada divergência interpretativa, o despacho de admissão de recurso proferido no Procº nº 958/18.1T8BJA.E1.S1., de 5.6.2021, que admitiu o recurso de revista excepcional, com remessa dos autos à Formação prevista no artigo 672º, nº 3, do CPC, em acção com o valor de € 43 746,45, proposta por 11 autores e em que os pedidos individualmente considerados são inferiores ao valor da alçada da Relação, despacho esse que transcreve e de juntou certidão.
Quanto a esta alegação há que dizer apenas que a constatação da existência de divergências interpretativas sobre determinado preceito ou regime legal, comuns na vida jurídica e prática judiciária, e para a qual, nesta a lei prevê os mecanismos e vias legais para as solucionar, em si e por si só, não demonstra, nem nada acrescenta nesse sentido, que o despacho reclamado tenha incorrido em erro de julgamento, e em nada infirma que no caso vertente se está perante uma acção de valor inferior à alçada do Tribunal da Relação, em que o recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça não é possível por assim o determinar o artigo 629º, nº 1, do Código de Processo Civil, por aplicação da regra das alçadas com a qual o legislador prosseguiu a finalidade de racionalizar os meios disponíveis, permitindo, no dizer do Tribunal Constitucional, que o acesso à justiça não seja, na prática, posto em causa pelo colapso do sistema judiciário, decorrente da chegada de todas (ou da esmagadora maioria) das acções aos diversos patamares de recurso.
Isto dito, certo é que, o referido despacho ( preliminar, provisório e não formando caso julgado, por ser modificável pela conferência, quer por iniciativa do relator, dos seus adjuntos e das próprias partes -artigos 700.º, n.º 1, alínea h), e 658º, nº 1, do Código de Processo Civil- ), sem, contrariamente ao pretendido pela Reclamante, equacionar ou decidir sobre a questão do valor da causa em situação de coligação, questão sobre a qual não contém qualquer pronúncia ou afirmação, considerou que, como nele se afirma, o valor da causa é superior à alçada da Relação, o que está em sintonia e convergência com o entendimento do despacho reclamado de que, sendo o valor da causa inferior à alçada do Tribunal da Relação não é admissível recurso ordinário de revista, nem revista excepcional, entendimento esse que verdadeiramente a Reclamante não questiona e colhe unanimidade na jurisprudência deste Supremo Tribunal e na doutrina. Como afirma Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Almedina, 6ª edição, 2020, pág. 442, “o acesso à revista excecional depende naturalmente da verificação dos pressupostos do recurso de revista “normal”, designadamente no que respeita à natureza ou conteúdo da decisão, em face do art. 671º, nº 1, ao valor do processo ou da sucumbência (art. 629º, nº 1) ou à legitimidade (art. 632º)”.
É, assim, infundada a posição sustentada pela Reclamante, soçobrando também o fundamento, que tem pressuposto o alegado, mas insubsistente, tratamento desigual de situações de facto iguais, da inconstitucionalidade da interpretação dos normativos dos artigos 629º, nº 1, e 672º, ambos do Código de Processo Civil, por violação dos princípios da igualdade e do acesso ao direito e aos tribunais, consagrados nos artigos 13º e 20º, respectivamente, da Constituição da República Portuguesa. De resto,
A interpretação das normas do Código de Processo Civil subjacente ao despacho reclamado não é arbitrária e não representa qualquer restrição intolerável do acesso ao recurso, como forma de reapreciação das decisões judiciais, nem qualquer violação do princípio da igualdade.
“Sobre o efeito limitativo das alçadas, em conexão com o valor da acção, relativamente à admissibilidade do recurso, nos termos do actual artigo 629, nº 1, do Código de Processo Civil, correspondente ao anterior artigo 678º, nº 1, deve afirmar-se, como afirma Lopes do Rego, “O Direito fundamental de acesso aos Tribunais e a reforma do Processo Civil”, Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues I, Coimbra Editora, 2001, p. 764, PC”, que “é evidente que não pode pretender pôr-se seriamente em causa a existência, no ordenamento processual [especificamente nos domínios dos processos civil e laboral], de limites objectivos à admissibilidade do recurso, estabelecidos para as causas de menor relevância, tendo em conta a natureza dos interesses nelas envolvidos ou a sua repercussão económica para a parte vencida: é que tais limitações derivam em última instância, da própria ‘natureza das coisas’, da necessidade imposta por razões de serviço e pela própria estrutura da organização judiciária de não sobrecarregar os tribunais superiores com a eventual reapreciação de todas as decisões proferidas pelos restantes tribunais – sob pena de o número daqueles ter de ser equivalente ao dos tribunais de 1ª instância e com a consequente dispersão das tendências jurisprudenciais”
Entendimento que reflecte a jurisprudência firme e abundante do Tribunal Constitucional, recentemente reiterada no acórdão nº 70/2021, de 27 de Janeiro de 2021, no sentido de que, o direito de acesso aos Tribunais não impõe ao legislador ordinário que garanta sempre aos interessados o acesso a diferentes graus de jurisdição para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos.
Por maioria de razão, a Constituição não exige a consagração de um sistema de recursos sem limites ou ad infinitum (cf. Acórdão do TC nº 125/98). A existência de limitações à recorribilidade funciona como mecanismo de racionalização do sistema judiciário, permitindo que o acesso à justiça não seja, na prática, posto em causa pelo colapso do sistema, decorrente da chegada de todas (ou da esmagadora maioria) das acções aos diversos “patamares” de recurso” (cf. Acs. do TC. nºs 72/99, 431/02, 374/02 e 106/06).
Tal como o Tribunal Constitucional tem vindo a afirmar uniformemente, não resulta da Constituição nenhuma garantia genérica de direito ao recurso de decisões judiciais; nem tal direito faz parte integrante e necessária do princípio constitucional do acesso ao direito e à justiça, consagrado no citado artigo 20.° da Constituição, reconhecendo-se, nesse âmbito, ao legislador ordinário uma ampla margem de discricionariedade na concreta conformação e delimitação dos pressupostos de admissibilidade e do regime dos recursos, com o limite decorrente da própria previsão constitucional de tribunais superiores que lhe veda suprimir em blocos a recorribilidade ou fazê-la depender de circunstâncias que traduzam a violação do princípio da proporcionalidade.
Especificamente no que toca à limitação do recurso em função das alçadas, à irrecorribilidade em função da relação entre o valor da acção e a alçada dos tribunais, o Tribunal Constitucional, como se sublinha no acórdão nº 70/2021, e na jurisprudência nele citada, sempre entendeu que esse critério não ofende o princípio constitucional de acesso ao direito e aos tribunais consagrado no artigo 20º da Constituição da República Portuguesa.
Na vertente do princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição, segundo a mesma jurisprudência do Tribunal Constitucional, no processo civil o que o legislador tem de assegurar sempre a todos, sem discriminação de ordem económica, é o acesso a um grau de jurisdição, e, prevendo a lei que o acesso à via judiciária em mais do que um grau, que seja garantido que o acesso a elas se faça sem discriminação alguma, proibindo o arbítrio no estabelecimento do critério de recorribilidade, arbítrio esse que se não vislumbra na interpretação que no caso vertente foi efectuada das disposições do artigo 629º, nº 1, conjugado com o artigo 672º, ambos do Código de Processo Civil.
Parafraseando mutatis mutandis o que se afirmou no acórdão deste Supremo Tribunal de 17.6.2019, Procº nº 3980/17.3T8CBR-B.C1.S2, não se lobriga, nem alcança, por que forma, perante as circunstâncias do caso concreto, a não admissão do presente recurso de revista excepcional, configura uma violação dos princípios do acesso à Justiça e à tutela jurisdicional efectiva, na modalidade de direito ao recurso, e da igualdade.
O princípio fundamental do Estado de Direito implica essencialmente a sujeição do poder a princípios e regras jurídicas, que garantem aos cidadãos liberdade, igualdade e segurança, cfr Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª Edição Revista, 63.
Nesta asserção, não se antolha ter ocorrido qualquer tratamento discriminatório do Recorrente, ao qual foram aplicados os normativos de direito considerados pertinentes, tendo em atenção a pretensão que o mesmo formulou.
Do mesmo modo não se mostra violado o disposto no artigoo 20º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, na vertente do direito ao acesso ao direito e do direito de acesso aos tribunais, direitos esses que se mostram plenamente exercidos pela Reclamante, sendo patente o exercício pela mesma de tais direitos, tendo a mesma visto o seu pedido ser discutido e apreciado em duas instâncias jurisdicionais.
Questão diversa dessa é o eventual direito a recorrer ao Supremo Tribunal de Justiça que a Reclamante se arvora, direito este que está totalmente dependente de normas conformadoras do legislador ordinário e que transcendem aquele específico direito que se mostra plenamente satisfeito: a garantia judiciária consiste no direito de recurso a um Tribunal e de obter dele uma decisão jurídica sobre a questão colocada, qual seja o Tribunal a que se tem direito dependerá dos preceitos constitucionais e legais que regem a repartição da competência jurisdicional, cfr Gomes Canotilho e Vital Moreira, ibidem, 164.
Embora o legislador não «disponha» dos direitos fundamentais, o exercício dos mesmos e das liberdades fundamentais no seu conjunto, necessitam de leis em ordem a garantir o seu exercício, daí a possibilidade daquele em determinar os respectivos conteúdos jurídico-normativos, autorizando-lhe a Constituição a preencher o âmbito normativo carecido de conformação jurídico-normativa, maxime, na regulamentação recursiva que aqui se cura, cfr Cristina Queiroz, Direitos Fundamentais (Teoria Geral), 202.
Não ocorreu, assim, qualquer afronta àquele princípio fundamental do acesso ao Direito e tutela jurisdicional efectiva, na “modalidade de direito ao recurso”, tão pouco ao princípio da igualdade.
Em suma, a interpretação das normas do Código de Processo Civil subjacente ao despacho reclamado não é arbitrária e não representa qualquer restrição intolerável do acesso ao recurso, como forma de reapreciação das decisões judiciais, nem qualquer violação do princípio da confiança ou de qualquer outro dos mencionados pela Recorrente.
Em face do exposto, acordam em indeferir a presente reclamação, confirmando o despacho reclamado.
Custas pela Reclamante.
Lisboa, 26 de Janeiro de 2021
Leonor Cruz Rodrigues (Relatora)
Júlio Manuel Vieira Gomes
Joaquim António Chambel Mourisco