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NASCITURO
DANOS MORAIS
Sumário
I- O nascituro encontra-se incluído na previsão contida no art. 496.º do CC pelo facto de ter de ser considerado herdeiro da vítima (falecida depois da concepção e antes do nascimento). II- Tem também um direito próprio a ser indemnizado pelo facto de não ter podido conhecer o próprio pai do qual foi prematuramente privado.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
Relatório
B......., solteira menor, nascida a 21 de Março de 2000, representada por sua mãe C......, solteira, maior, residente na ......, .... ..., ...., ......, Bragança,
intentou acção de indemnização decorrente de acidente de viação (ACÇÃO N.º ..../2002) contra
a “D……, SA”, pedindo
- a condenação desta na indemnização global de € 92.500,00 com juros à taxa legal desde a citação (por sofrimentos sofridos pelo pai entre o momento do acidente e seu falecimento em 5 de Agosto de 1999, pela perda do direito à vida deste, pela privação dos seus cuidados e carinhos, e pelos alimentos que, por esse facto, ficou impedida de desfrutar ao longo da vida até atingir a maioridade
Para o efeito invocou que quando era ainda apenas nascitura, ocorreu um acidente de viação em que veio a morrer aquele que viria a ser reconhecido como seu pai, E......, sendo a responsabilidade de tal acidente do condutor do veículo onde seu pai seguia como passageiro, encontrando-se transferida para a Ré a responsabilidade civil pelos danos causados com a circulação de tal viatura.
Por outro lado, numa outra acção, entretanto apensada (acção n.º 206/2002), F...... e esposa G......, pais do falecido E.......,
instauraram acção contra
a mesma Ré, tendo como núcleo central o mesmo acidente, pedindo
- a condenação desta no pagamento da quantia global de € 99.471,00, invocando para o efeito que sofreram imenso com a morte de seus filhos, e serem estes seus exclusivos herdeiros.
Sustentaram assim que são eles os titulares do direito a indemnização decorrente dos sofrimentos suportado pelo filho e por eles próprios, para além de lhes assistir o direito a ser indemnizado pelas despesas por eles pagas no tocante ao funeral e das que mais lhes advenham por via hereditária.
A Ré contestou as respectivas acções, aceitando a versão do acidente, mas impugnando o demais por desconhecimento.
De qualquer forma, como estava alegado haver uma filha do falecido E...... (nascitura ainda à data do falecimento deste), invocou a ilegitimidade dos pais da vítima para peticionarem indemnização na qualidade de herdeiros do filho falecido.
Os AA. da segunda acção replicaram dizendo que à data da morte de seu filho eram eles os únicos herdeiros, além de que havia despesas com o funeral, que foram suportadas pelos próprios.
Pretendiam assim ver reconhecida a sua própria legitimidade processual.
Saneados, condensados e instruídos os respectivos processos, veio a operar-se a apensação de que já demos nota, na data prevista para o início da audiência de julgamento do processo 15/2002.
A A. do processo 15/2002 requereu entretanto a ampliação do pedido de indemnização civil para € 182.500,00, sendo este admitido.
Na audiência de discussão e julgamento, foram dadas respostas aos quesitos da base instrutória de ambos os processos (fls. 162), vindo então a ser proferida Sentença, em cuja parte decisória ficou escrito o seguinte:
“Julgo improcedente a excepção de ilegitimidade invocada na acção 206/02, e em consequência julgo partes legítimas os AA. F...... e mulher G......;
Julgo parcialmente procedente as presentes acções e em consequência
- condeno a Ré D...... SA a pagar à A. B...... paz a quantia de € 125.000,00, e aos AA. F....... e mulher G....., a quantia de € 42.971,00, quantias essas acrescidas dos juros á taxa legal de 7% até 30 de Abril de 2003, e à taxa de 4% a partir de 1 de Abril de 2003, até integral pagamento.(...)”
Da Sentença vieram a recorrer a A. B..... e a Ré D...... .
Na sequência da apreciação do recurso interposto pela A. B....., este Tribunal da Relação veio no entanto a
“anular o julgamento, sem prejuízo do já decidido pelo Tribunal "a quo" em matéria de facto (a fls. 162) e que não está viciado, bem como os termos subsequentes (Sentença inclusive), a fim de em novo julgamento, na primeira instância, se apreciar, além do mais tido por interessante, a factualidade vertida nos arts. 49.º a 53.º, da petição, seguindo-se os pertinentes trâmites da lei processual.”
Cumprido o ordenado no tocante à ampliação da base instrutória, veio novamente a A. B..... ampliar o pedido, ficando este a perfazer o total de € 195.000,00 e respectivos juros, sendo admitido o pedido atinente a tal ampliação.
A nova Sentença voltou a julgar improcedente a excepção de ilegitimidade invocada na acção 206/02, e, em consequência,
julgou os AA. F...... e esposa G...... como partes legítimas.
Depois, considerou parcialmente procedentes as respectivas acções (apensadas), condenando a Ré a pagar:
à A B..... a quantia de € 150.000,00
e aos AA. F....... e esposa G..... a quantia de € 42.971,00,
quantias essas acrescidas de juros desde as datas da respectiva citação à taxa legal de 7% até 2004.04.30, e à taxa de 4% a partir de 2003.04.01, até integral pagamento.
A Ré não se conformou, tendo novamente interposto recurso
O mesmo veio a fazer a A. B..... .
Ambos os recursos foram admitidos como de apelação com efeito meramente devolutivo.
Alegaram e contra-alegaram ambas as recorrentes.
Remetidos os autos a este Tribunal foram os recursos aceites com as qualificações que lhe haviam sido atribuídos na primeira instância.
Correram os vistos legais.
..........................
Âmbito dos recursos
Exceptuando o conhecimento das questões que sejam de conhecimento oficioso, resulta do disposto nos arts. 684.º-3 e 690.º-1 do CPC que o que vem a delimitar as demais questões são as incluídas nas conclusões apresentadas com as alegações de recurso pelos respectivos recorrentes.
Daí o interesse em transcrever essas conclusões.
II-A) Conclusões da Apelante A. B.....:
1.ª) Nos presentes autos fora já proferida Sentença pelo Tribunal de Círculo de Bragança, na qual se rejeitara o pedido formulado pela A./recorrente de ressarcimento dos seus próprios danos morais emergentes da morte do sinistrado, seu pai, por entender o Mmo Juiz "a quo" que "o nascituro por falta de lei que lhe conceda o direito, não tem direito próprio a indemnização por danos emergentes da morte do progenitor", "e isto porque a lei e em especial o artº 496.º do CC não atribui direito a nascituros, o que devia para lhe ser reconhecido tal direito em conformidade com o disposto no artº 66 CC e as normas em que os direitos dos nascituros são considerados pela lei",
2.ª) - Inconformada com tal decisão, interpôs a ora recorrente apelação da mesma, que veio a ser decidida por Acórdão desta Relação prolactado nos autos em 21/06/2004, o qual, após notificação às partes, não foi objecto de recurso. tendo por isso, transitado em julgado, o qual julgou o recurso da apelante procedente e decidiu de forma absolutamente inequívoca que "os nascituros têm direito a ser indemnizados por danos não patrimoniais próprios, de acordo com o estatuído no art.º .496º, nº 2, do CC, verificado que seia o nascimento, completo e com vida, dos mesmos (artº 66º, do CC)".
3.ª) "- Ora, o Tribunal recorrido pronunciou-se novamente sobre a ressarcibilidade dos danos não patrimoniais próprios sofridos pela A., nascitura por morte do seu progenitor, rejeitando de novo, no plano geral do direito civil, o reconhecimento do direito dos nascituros à indemnização dos seus próprios danos não patrimoniais emergentes da morte do progenitor.
4.ª) - Ocorreu efectivamente violação de caso julgado, pois que tendo já a Relação nestes autos emitido pronúncia quanto à ressarcibilidade de tais danos peticionados pela A.. estava o Tribunal "a quo" condicionado por tal pronúncia, estando-lhe vedado aferir e coligir de novo os mesmos ou outros argumentos jurídicos para manter a decisão anterior já revogada nos autos por Tribunal superior.
5.ª ) - O Tribunal "a quo" estava pois, impedido de se pronunciar de novo no sentido, já frontalmente contrariado pela Relação, de que "o nascituro por falta de lei que lhe conceda o direito, não tem direito à indemnização por danos morais próprios emergentes da morte do progenitor, tendo apenas direito a suceder (que a lei lhe concede expressamente) ao seu pai e a receber as indemnizações por danos não patrimoniais que se radicaram no património daquele por causa da morte” (tese defendida na Sentença.
6.ª) .- Deve entender-se isso sim, que o aludido Acórdão da Relação tem força obrigatória dentro do processo por forma a evitar que o Tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou reproduzir a decisão por aquele pronunciada quanto à questão do reconhecimento legal do direito da A. enquanto nascitura, à indemnização dos danos morais próprios emergentes da morte do deu progenitor - cfr. artigos 671". Nº 1 e 497º, nº 2, do C.P.C..
7.ª) - Não se tendo pelo contrário, conformado com o aresto desta Relação quanto à ressarcibilidade dos danos morais próprios da A.. nascitura, decorrentes da morte do seu progenitor, a decisão, aliás douta, ora recorrida violou caso julgado e conheceu por isso, de questão de que não podia tomar conhecimento, sendo por isso, nula, a sentença impugnada - efr. Artº 668, nº 1, alínea d) do C.P.C..
8.ª) - Sem prejuízo e ainda que assim se não entenda, deve considerar-se que, ocorrendo o nascimento completo e com vida, o nascituro passa a ter personalidade jurídica e o direito a ter um pai que o acarinhe, que lhe dedique o desvelo e o amor paternais, que o aconselhe e lhe influencie a personalidade, que o eduque, que seja seu companheiro, pelo menos até à maioridade, e as mais das vezes, pela vida fora.
9.ª) - A perda do pai não pode deixar de ser considerada um dano, uma ofensa ao normal desenvolvimento da personalidade do menor, e portanto, uma ofensa à sua saúde, pois que "o nascimento da criança já sem pai, traduz-se numa perda irremediável, sempre presente pela vida fora, sobretudo na fase da formação da personalidade e nos momentos de comparação com outras crianças da mesma idade", uma vez que "o menor ficou privado do amparo moral e protecção, orientação e carinho que o pai lhe prodigalizaria até à maioridade e muito em especial enquanto criança e jovem".
10.ª ) - Deve ser reconhecida à A./recorrente o direito de ser ressarcida do dano a si própria causado e decorrente da ausência forçada do seu progenitor.
11.ª) A apelante computou tal dano no valor de € 25.000,00, que por justo e equitativo, lhe deve ser deferido.
12.ª) - A recorrente peticionou uma indemnização por danos patrimoniais decorrentes da perda da força de trabalho do seu progenitor, questão que deve ser apreciada como um dano patrimonial causado na esfera jurídica do próprio lesado, traduzido na afectação permanente, definitiva e absoluta da sua capacidade de ganho e de trabalho e não sob o ponto de vista do direito a alimentos que a A. podia exigir do lesado, apreciação esta redutora do problema e que só se justificaria se a pretensão da recorrente não tivesse acolhimento por via sucessória, ao abrigo do art.º 496º, nº 2. do C.C..
13.ª- Assim, e considerando o elevado grau de culpa do lesante, que agiu com dolo eventual, a situação económica do lesado e do lesante, o modo de ocorrência do acidente e a sua brutalidade, as lesões sofridas pela vítima, a personalidade e modo de ser do lesado, a sua condição de vida, a idade da vitima, a duração da sua vida, até para além da vida activa, o valor dos seus rendimentos à data do acidente, a sua expectável progressão profissional, a previsível evolução da inflação e dos salários (para o que se lançou mão de um índice de 0,5%), os índices de produtividade, a variação da taxa de juro (tornando-se por critério urna taxa de juro referencial de 3%) e a equidade, a perda - total da capacidade de ganho e de trabalho do lesado deve ser computada em valor não inferior ao peticionado de € 120.000,00.
14.ª) - Foram violados ou mal interpretados os artigos 671º, nº 1 e 497.º, nº 2, do C.P.C. e os artigos 66º, 70º, 496º. N.ºs 2 e 3, 562º, 564.º e 566.º, todos do Cód. Civil. NESTES TERMOS e nos demais de direito aplicáveis, devem (...) julgar a presente apelação procedente, e em consequência, anular ou revogar a aliás douta sentença recorrida, na parto impugnada, substituindo-a por outra que reconheça à A. recorrente o direito ao ressarcimento do dano não patrimonial a si própria causado e decorrente da ausência forçada do seu progenitor, a arbitrar em quantia não inferior a € 25.000,00 e que compute o dano patrimonial decorrente da perda total da capacidade de ganho e de trabalho do lesado, progenitor da apelante, em valor não inferior ao peticionado de € 120.000,00
Assim se fazendo, como sempre, inteira e merecida
Justiça”
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Da leitura de tais conclusões vemos que as questões que nos estão colocadas (neste recurso) são as seguintes:
Nulidade de Sentença por ofensa a caso julgado
A inclusão ou não do nascituro entre os titulares de direito de indemnização por danos não patrimoniais por falecimento do progenitor- art. 496.º do CC..
Determinação do montante indemnizatório por danos patrimoniais decorrentes da morte do pai da A. recorrente.
....................................
II-B) Conclusões da Apelante Ré “D......., SA”:
“
1 . À indemnização arbitrada de 75.000,00 Euros a título do direito de alimentos (sic) devidos pelo pai da B....., deve ser descontado a percentagem de 1/3, isto é, 24.939,89 Euros, já que este (o pai) sempre os gastaria em vida com ele próprio, ou, eventualmente com o seu agregado familiar,
2 . Pelo que deve aquela indemnização ser fixada em 50.060,11 Euros.
3. Devem os juros sobre a quantia de 50.000,00 euros fixada a título de dano de morte à menor B..... serem contabilizados apenas a partir da prolacção da sentença e não desde a data da citação.
(3) . Violou, por isso, a douta sentença ora recorrida o disposto no art.º 566.º n.º 3 do CC .
TERMOS EM QUE (...) deve ser dado provimento ao presente recurso.
.........................
As questões suscitadas pela Apelante Ré foram, portanto as seguintes:
Determinação do montante de indemnização a título de danos patrimoniais decorrentes do óbito do pai da A., falecido enquanto esta era ainda nascitura
Momento a partir do qual devem computar-se os juros sobre a indemnização arbitrada a título de danos não patrimoniais á menor B.....
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III. Fundamentação
III-A) Os factos
Foram considerados assentes e/ou provados na primeira instância os factos seguintes:
III-A-a) Na acção ordinária n.º 15/2002:
“1- No dia 05-08-1999, pelas 02-30, o veículo ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-BV circulava na Estrada Municipal n.º 504, que liga Gondesende a Espinhosela, no concelho deBragança;(A)
2- O veículo circulava no sentido Gondesende / Espinhosela, conduzido pelo seu dono, H......;(B)
3- No mesmo veículo seguiam, como passageiros, E..... e I....... (C)
4- A cerca de 500 metros da aldeia de Espinhosela, após ter descrito uma curva à direita de ligeira acentuação, o veículo automóvel entrou em despiste e invadiu a faixa de rodagem contrária, galgou a berma da via e foi embater violentamente nuns carvalhos e castanheiros existentes no lado esquerdo da estrada, onde ficou imobilizado;(D)
5- O veículo automóvel circulava a uma velocidade nunca inferior a 90 km/hora; (E)
6- À data do sinistro, no local do despiste, a faixa de rodagem, tinha 4 metros de largura e bermas em ambos os lados com 1 metro de largura; (F)
7 - E o traçado da faixa de rodagem era muito sinuoso, com curvas e contracurvas de reduzida visibilidade;(G)
8- O pavimento apesar de seco, era irregular, em mau estado de conservação com poucas condições de aderência; (H)
9- O condutor do veículo automóvel tentou imobilizar o veículo na faixa de rodagem, travando, em consequência do que deixou marcados no asfalto rastos com cerca de 4 metros de comprimento; (I)
10- No momento do despiste, o condutor do veículo automóvel conduzia-o com uma taxa de álcool no sangue de 0,71 grama/litro, sabendo que não lhe era permitido conduzir qualquer veículo automóvel com TAS superior a 0,5 grama/litro; (J)
11- O condutor do veículo automóvel sabia que se encontrava com uma TAS superior à legalmente permitida no momento do despiste;(K)
12- Tal estado de alcoolemia impediu o condutor do veículo automóvel de ter sobriedade e de dispor da atenção, cuidado e diligência necessárias e suficientes para evitar o despiste; (L)
13- Apesar do referido em J) a L), o condutor do veículo automóvel assumiu a condução do veículo sinistrado, representou a ocorrência de um acidente de viação como consequência possível da sua conduta e actuou conformando-se com a produção de tal resultado; (M)
14- A autora, B......, nasceu em 21-03-2000 e está registada na Conservatória do Registo Civil de Bragança como filha de C..... e de E......;(N)
15- E...... faleceu no dia 05-08-1999, no estado de solteiro (O)
16- O E...... nasceu em 3/4/1976 (certidão de fis. 106)
17 - Em consequência directa e necessária do despiste, E..... sofreu: fractura linear dos ossos da base do crânio, envolvendo o rochedo temporal, grande asa da esferóide, escama temporal, hemorragia meníngia, edema cerebral e congestão dos vasos cerebrais (1º)
18- As lesões referidas em 17 (idest resposta ao quesito 1.º da b.i.) foram causa directa e necessária da morte de E..... (2º)
19- Logo após o sinistro, E..... foi transportado para o Hospital Distrital de Bragança (3º)
20- Onde já chegou sem vida (4º)
21- À data da morte de E...... (05-08-1999), a autora já havia sido concebida (5º)
22- E..... faleceu sem deixar outros filhos além da autora (6º)
23- E não deixou testamento ou outra disposição de última vontade (7º)
24- À data do sinistro, E...... era empregado de restauração por conta de outrem, com contrato de trabalho por tempo indeterminado (8º)
25- E auferia o salário mensal de 62.700$00(9º)
26- E vivia com os seus pais (10º)
27- E namorava com a mãe da autora (l1.º)
28- E tinha o 9º ano de escolaridade e o curso de hotelaria do CEFP de Bragança como habilitações (12º)
29- E....... sustentava-se a si próprio e ajudava seu pais (14º)
30- E era saudável, forte, ágil, ambicioso, de grande carácter e determinação (15º)
31- Havia-lhe sido proposto ir trabalhar para a Pousada da Juventude em Bragança (16º)
32- À data do sinistro, E.... estava no pleno gozo das suas capacidades e faculdades fisicas e mentais (17º)
33- E era pessoa de trato fácil, alegre e educado (18º)
34- E era respeitado e considerado (19º)
35- E era trabalhador (20º)
36- E era dedicado à família e à sua namorada, mãe da autora (21º)
37- E nutria pelos mesmos grande amor e carinho (22)
38- E era querido pela família e namorada (23)
39- E..... pretendia constituir o seu agregado familiar com a mãe da autora (24)
40- À data do sinistro, a ré havia assumido o dever de indemnizar terceiros por danos emergentes da circulação do veículo de matrícula ..-..-BV mediante a celebração do contrato de seguro com H...., titulado pela apólice n.º 6.470.064 (P)
41- A Autora E....., em virtude da morte do pai, viu-se privada do seu convívio, e não pode contar com o amor, carinho, apoio e ajuda proporcionada pelo mesmo, e não lhe pode manifestar o mesmo tipo de sentimentos. A sua falta será algo que a marcará para sempre (n.ºs 25.º a 29.º da B.I)
III-A-b) Na acção ordinária. Nº 206/02:
42- No dia 05 de Agosto de 1.999, pelas 4h43m, faleceu E....., no estado civil de solteiro, com 23 anos de idade, filho de F..... e de G...... (A).
43- No dia 05 de Agosto de 1999, pelas 02h30m, ocorreu um acidente de viação, em que foi interveniente o veículo ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-BV (doravante designado BV).(B)
44- O BV era propriedade de H..... e por este conduzido à hora e data do acidente aqui em apreço.(C )
45- No dia 05 de Agosto de 1999, pelas 02h30m, H..... conduzia o BV pela E.N. 504, na freguesia de Espinhosela, concelho de Bragança, no sentido Gondesende - Espinhosela. (E)
46- Transportava, como passageiro, o ora falecido, E.......(F)
47- A cerca de 500m de Espinhosela, após ter descrito uma curva de ligeira acentuação e já em plena recta, o BV entrou em despiste.(G)
48- O condutor do BV, H....., tentou imobilizá-lo, mas em vão, tendo deixado vários rastos de travagem no piso.(H)
49 - O BV invadiu a hemi-faixa de rodagem contrária à que circulava e imobilizou-se na margem da via, no lado oposto-ao seu sentido de margem, após ter embatido em diversas árvores.(I)
50 - No local em apreço, a faixa de rodagem possui 4m de largura e configura uma recta. EJ)
51- À data e hora do acidente, o piso estava seco e em regular estado de conservação e o tempo estava bom.(L)
52 - Do despiste supra-referenciado, resultaram ferimentos graves no condutor do BV, H..... e num dos seus passageiros, o falecido E....., e ferimentos leves, noutro passageiro, I...... .(M)
53 - O falecido E..... sofreu, nomeadamente, múltiplas lesões traumáticas a nível craneo-encefálico, que foram a causa, directa e necessária da sua morte, conforme melhor descrito no relatório da autópsia de fls. 11 e segs.,(N)
54 - O referido H..... conduzia o BV em seu nome, por sua conta e no seu próprio interesse.(O)
55 - O falecido E..... perdeu a vida duas horas e treze minutos após a ocorrência do acidente (2)
56 - Durante esse lapso de tempo, sofreu dores físicas e angústia, perante a iminência da sua morte (3)
57 - O falecido E..... era uma um jovem brincalhão, com um feitio expansivo, sociável, alegre (4)
58- Gozava da estima de quem com ele convivia (5)
59- Habitava com os seus pais, com quem convivia diariamente (6)
60 - Entre o falecido E..... e os ora AA., existia enorme carinho, afeição e amor, tendo estes sentido de forma muito intensa a sua morte (7)
61- O falecido E..... era filho único dos ora AA.(8)
62- Os AA. despenderam 971 euros no pagamento das despesas de funeral do falecido E..... (9)
63- A menor B..... é filha do falecido E..... e nasceu em 21/03/00
64 - A responsabilidade civil emergente de acidente de viação, por danos causados a terceiros, atinente ao veículo de matrícula ..-..-BV, encontrava-se à data do acidente, transferida para a ora Ré, por contrato de seguro titulado pela apólice nº 6.470.064.(D)
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Relativamente aos factos enunciados considerados assentes e/ou provados não se suscita qualquer controvérsia:
Não existe entre eles qualquer deficiência, obscuridade ou contradição;
Também não se mostra necessidade de se proceder à respectiva ampliação.
Em face do exposto, consideram-se tais factos como definitivamente fixados.
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III-B- Análise dos recursos
III-B)-a) Quanto ao recurso da Apelante A.
III-B)-a-1) Da violação do caso julgado
Entende a aqui Apelante que a Sentença recorrida viola posição assumida e já decidida pelo Tribunal da Relação, pois que na Sentença não é reconhecido à A. como um direito próprio, o direito à indemnização pelo falecimento do pai (falecido ainda antes do nascimento da A.), quando – segundo o seu entendimento - este Tribunal da Relação já tomou posição oposta sobre o decidido, tanto assim que a razão da anulação da anterior Sentença veio a consistir na necessidade de ampliação da base instrutória com os factos enunciados nos arts. 49.º a 53.º da p.i. [Os arts. 49.º a 53.º que a Relação mandou aditar tinham a seguinte redacção: 49.º Acresce que o falecimento do E.... constitui também um rude e doloroso golpe para a A.? 50.º A A. deixa de poder contar com o amor, carinho, apoio e ajuda proporcionada pelo seu pai? 51.º De quem se viu privado de forma abrupta e trágica? 52.º A A. vai viver toda a sua infância e adolescência sem conhecer e poder desfrutar daqueles sentimentos sem os pode receber e dar ao seu querido pai? 53.º A morte do E..... marcará sempre a A., causando-lhe profunda frustração, desolação, tristeza, desespero e angústia?] para assim poder ser apreciado o direito que a A. B..... reclama como sendo um seu direito próprio.
Entendemos, salvo o devido respeito, que há aqui um equívoco da A., pela simples razão que não chegou a haver ainda qualquer julgamento sobre essa matéria: O que o Tribunal da Relação mandou efectuar foi pura e simplesmente a ampliação da base instrutória, dada a necessidade de nela se mostrarem incluídos todos os factos controvertidos, que se mostrem relevantes para a decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis sobre a questão de direito, (e não apenas orientada segundo a solução preconizada na Sentença, quando o próprio Juiz da primeira instância reconhece que há doutrina e jurisprudência divergente). Efectivamente, na Jurisprudência e Doutrina têm-se vindo a sustentar soluções não inteiramente concordantes quanto aos direitos dos nascituros, como nos dá abundante nota a Sentença recorrida.
Ora, o que foi ordenado pela Relação (ampliação da matéria de facto a incluir na base instrutória) foi efectivamente cumprido:
O Acórdão anterior da Relação não deve ser interpretado como querendo significar necessariamente, e desde logo, a solução jurídica antecipada para a questão problemática dos direitos sem sujeito [Cfr. Mota Pinto, Teoria Geral, 3.ª ed.,201], mas simplesmente encarada como o reconhecimento na necessidade de quesitação dessa matéria, pois sobre ela continuam a verificar-se entendimentos doutrinais e jurisprudenciais divergentes, sobre o qual seria admitido sempre hipótese de recurso até ao STJ.
Improcede assim a primeira questão suscitada.
III-A-a-2). Da inclusão ou não do nascituro na previsão contida no art. 496.º do CC., onde se encontra indicado quem é titular do direito de indemnização por danos não patrimoniais próprios - art. 496.º do CC.
Como podemos ver da matéria de facto, quando o E..... faleceu, a A. B..... já havia sido concebida, mas ainda não tinha nascido. Trata-se portanto de um nascituro (stricto sensu).
Ora, tendo a A., entretanto nascido já após a morte daquele, e vindo a ser reconhecida entretanto como sua filha, só adquiriu a sua personalidade jurídica no momento do seu nascimento completo e com vida, ou seja, em 2000.03.21, já na situação de orfã de pai, como resulta do art. 66.º-1 do CC..
A lei reconhece ao nascituro, desde logo, alguns direitos de uma forma explícita, posto que condicionados na sua eficácia ao nascimento completo e com vida- art. 66.º-2 do CC.
Estão entre eles, por exemplo, os seguintes:
O de receber doações - art. 952.º (doações a nascituros stricto sensu [neste caso também extensível a concepturo, filho de pessoa determinada, viva ao tempo da declaração do doador]);
O de poder ser logo perfilhado [ou até reconhecido judicialmente, como sustentado por Castro Mendes, in Teoria Geral do Direito Civil, I, pg. 106, da colecção Obras completas do Professor Castro Mendes, editadas pela AAFDL] – art. 1854.º e 1855.º
O de ser abrangido pelo poder paternal - arts. 1878.º (conteúdo do poder paternal relativamente a nascituros)
O de ser incluído logo na sucessão legal - 2033.º-1 idest, na sucessão legítima e legitimária dos nascituros [Neste caso os concepturos estão explicitamente excluídos].
O de poder ser contemplado na sucessão testamentária – art. 2033.º-2 (testamento a nascituros stricto sensu [Incluindo-se aqui também os concepturos filhos de pessoa determinada viva à data da abertura da sucessão] )
A previsão casuística dos factos atrás enunciados permite desde logo suscitar a questão de saber se ao nascituro só são reconhecidos esses direitos, ou se pelo contrário, lhe serão reconhecidos outros, e qual a razão ou razões pela(s) qual(is) o legislador contemplou dessa maneira tão específica as situações enunciadas.
Independentemente da posição que se vier a tomar a esse respeito, a simples existência de preceitos específicos onde são contemplados direitos do nascituro faz esclarecer desde logo, relativamente ao caso em presença, que a A. B....., sendo nascitura à data do óbito do pai, se tornou desde logo herdeira condicionada dele, e que, por se haver verificado essa condição (por ter nascido com vida), a sua relação sucessória é exactamente igual à de qualquer filho nascido. – art. 2033.º-1 do CC.
Ora, atendendo a que ela se tornou a única herdeira do pai (o E..... não era casado nem tinha outros filhos), os bens que devam preencher o património hereditário deste, transmitem-se por inteiro à filha, então ainda nascitura.
Na esfera jurídica patrimonial do pai, estavam desde logo incluídos os bens materiais que o mesmo tinha em vida, assim como as indemnizações a que, por direito próprio, lhe pertencessem ou viessem a ser conferidas por ter sido vítima de acidente, nelas se incluindo as indemnizações por danos patrimoniais e não patrimoniais que lhe viessem a ser reconhecidas ou conferidas por direito próprio. Nelas se incluem, portanto, as indemnizações decorrentes dos sofrimentos havidos entre o momento do acidente e a morte (dano não patrimonial – que neste caso não é objecto de pedido -), mas nela somos levados a incluir também a indemnização pela perda do direito à vida. [Capelo de Sousa, Sucessões, 1.º-265. Cfr., por exemplo, tb. Ac. do STJ de 85.05.23, BMJ 347.º-pg.398]
De contrário, poderíamos deparar com uma situação incompatível com a natureza mista de reparação e castigo [reparar/compensar o dano e, simultaneamente, reprovar a conduta do agente] que reveste a prática de um ilícito que produza danos na esfera jurídica de terceiros. Não o fazer, poderia representar “crime sem castigo”, na medida em que a um ilícito de enorme gravidade (como no caso presente, onde há que lamentar um morto e em que na sua génese esteve um condutor automóvel que circulava com uma taxa de alcoolémia superior à legalmente permitida) não teria como correspondência necessária a obrigação de reparação do dano morte.
Sobre este aspecto, sentimo-nos inteiramente sintonizados com a generalidade da doutrina, bastando citar, a título meramente exemplificativo, Inocêncio Galvão Teles [Inocêncio Galvão Teles, Sucessões, 5.ª ed., pg. 75 e ss.] e Dario Martins de Almeida [Dario Marins de Almeida, Manual de Acidentes de Viação, 1980, pg. 170] e é neste sentido que insere também a grande maioria da Jurisprudência portuguesa, ao colocar a indemnização pela perda do direito á vida (dano morte), como um direito próprio da vítima, que se deve integrar no património desta, a transmitir por via hereditária.
No caso em presença, a legal herdeira da vítima é portanto a A. B...... .
Não vamos alargar-nos em mais considerações sobre essa matéria, porque não é na transmissibilidade do direito à indemnização pelo dano morte na própria vítima que se centra a discussão central do presente recurso quanto à possibilidade de os nascituros poderem ser constituídos como titulares desse direito, por sucessão.
Importa então saber se, para além do direito à indemnização por esse dano – próprio da vítima -, a lei reconhece ao nascituro um direito próprio deste, radicado nos sofrimentos ou privações que o próprio nascituro irá sofrer ao longo da vida (dor de não ter sequer chegado a conhecer o pai nem o calor dos seus braços, a sua companhia ou os conselhos pela vida fora.)
Esta é que é a questão central deste recurso, sobre a qual, como a Sentença aliás doutamente reconhece, a Jurisprudência e doutrina se mostram muito divididas.
Estamos no entanto do lado daqueles que sustentam que o nascituro tem também um direito próprio a ser indemnizado pelo facto de o facto de não ter podido conhecer o pai, ou de ter ficado prematuramente privado da sua companhia ao longo da vida, e de isso vir a representar uma grande privação, que se traduzirá numa constante mágoa, dor ou sofrimento.
Esta nossa posição é diferente da tomada na decisão recorrida (onde esse direito não foi reconhecido ao nascituro mas aos pais da vítima), e está em total sintonia com a tese defendida pela Apelante B...... .
É que na verdade, quando dissemos que a lei prevê casos específicos em que reconhece direitos aos nascituros, não está a afastar, por exclusão de partes, a possibilidade de aplicação aos nascituros dos direitos que na lei surgem como próprios dos filhos. [Como se diz no Ac. deste Tribunal da Relação de 2000.03.20, abaixo citado, não há razão para criar distinções onde a lei não distingue. “Ubi lex non distinguit, necque nos distinguire licet”. Partilhamos esse mesmo entendimento:
Se um filho tem a mesma identidade física que já lhe advinha do preenchimento da qualidade de nascituro, porquê restringir o campo de direito destes? Em nome da inexistência ainda de personalidade? Mas não é que a atribuição da personalidade é uma ficção legal?]
Tal como sustentado por Dias Marques [Dias Marques, Código Civil anotado, 2.ª ed., pg.23. A divergência com a posição assumida por Castro Mendes in Teoria Geral, 1978, I-226, em que este Il. Mestre não reconhece tal latitude aos nascituros, apontando a esse respeito, como exemplo, a situação decorrente dos direitos adquiridos por terceiros sobre bens patrimoniais ao abrigo de usucapião, não nos parece convincente, pois não vemos como possa operar a usucapião no espaço temporal compreendido entre a concepção e o nascimento (normalmente nove meses), a menos que o Il. Professor estivesse a pensar na hipótese do progenitor do nascituro entretanto haver falecido e o referido terceiro já tivesse a posse sobre o bem em causa anteriormente ao falecimento daquele, preenchendo-se entretanto a temporalidade exigida para a posse continuada poder levar a usucapir durante o período em que o nascituro ainda não tivesse nascido, situação que efectivamente reconhecemos como problemática.], também nós sustentamos que um nascituro (stricto sensu), desde que nasça completo e com vida, adquire retroactivamente todos os direitos que caibam ou sejam reconhecidos ao filho.
Assim, no momento em que ocorreu o evento morte do pai, o nascituro que entretanto nasça com vida, passa a ficar equiparado à posição jurídica do filho. [Essa situação nunca poderia configurar-se no caso de concepturos]
Há no entanto que reconhecer a existência de vasta Jurisprudência e doutrina que não concorda com esta interpretação, argumentando – como se fez na douta Sentença recorrida - que o legislador, quando pretende referir-se a direitos dos nascituros fá-los distinguir dos direitos dos filhos, tanto mais que tem preceitos específicos para uns e que são diferentes dos outros e, no art. 496.º do CC. fala apenas em filhos (sem fazer qualquer referência a nascituros), criando nesse preceito um quadro dissemelhante do estipulado no campo sucessório. [Quanto à problemática dos direitos sem sujeito, cfr. Mota Pinto, Teoria Geral, 3.ª ed. 201]
Quanto a esta objecção, entendemos ser de trazer à colação o que já foi referido no Ac. deste Tribunal da Relação do Porto de 2000.03.20, relatado pelo ora Il. Conselheiro Custódio Montes [Ac. do TRP de 2000.03.30, CJ, ano XXV, tomo II, pg.209 e ss., subscrito por Custódio Montes, Oliveira Vasconcelos e Viriato Bernardo. No mesmo sentido, os Acs. da RL de 77.01.28, CJ, 1977, 1.º-191 e o de 2002.06.12, relatado por Teresa Féria, sumariado em www.dgsi.pt/trl.33182fc..., e também o da RC, de 92.01.21, sumariado in BMJ, 413-623; Contra, o Ac da RP de 89.04.13, CJ, ano XIV, tomo 2, pg.221 e o Ac RE, de 92.05.12, CJ, ano XVV, tomo 2, pg 349], a seguinte passagem:
“(...) A tese que defende que o nascituro não tem direito a indemnização por danos não patrimoniais, no contexto do art. 496.º (...), refere que se o legislador assim o quisesse tê-lo-ia feito, como o fez relativamente ás situações quanto aos direitos que (explicitamente) lhe reconhece.
Desde logo discordamos desta tese ao mencionar que a norma em questão não engloba no seu contexto os nascituros.
De facto, referindo-se a norma a “filhos” e não fazendo qualquer distinção entre os filhos nascidos e os nascituros, também o intérprete o não deve fazer.(...)
E mais abaixo:
“A ordem jurídica não pode ..., negar o facto evidente de que, face à realidade biológica, o nascituro e a criança nascida são idênticos”, ou, como ensina Leite de Campos, in A Vida, a Morte e a sua Indemnização (BMJ 365,18), “Entre a concepção e a morte, o ser humano é uma pessoa jurídica, por o direito se limitar a adoptar a realidade biológica, integrando-a no mundo da cultura.”
Para além disso, entendemos ainda que as referências explícitas no Código, em determinadas normas, ao estatuto dos nascituros nos parecer derivar do facto de ser necessária a previsão de consagrar desde logo determinado tipo de direitos antes que se concretizeo evento da passagem de “entes protegidos sem personalidade jurídica” à situação de filhos (o que só acontecerá com o nascimento completo e com vida – art. 66.º-1 do CC), mas não devido ao facto de se pretender demarcar uma “caput diminutio” do estatuto do nascituro (stricto sensu).
Assim, as situações decorrentes de facto gerador de responsabilidade, que tenham ocorrido ainda no período em que só havia nascituro (stricto sensu), não afastam este do direito a ser indemnizado como filho, por direito próprio, nos termos do art. 496.º do CC, condicionado como é natural, ex vi do art. 66.º do CC. - repete-se mais uma vez - à hipótese do se nascimento posterior, completo e com vida. [R. Capelo de Sousa, Sucessões, I-287: “O direito de indemnização é atribuído directamente às pessoas referidas no n.º 2 do art. 496.º. Há aquisição originária por parte dessas pessoas.”].
De resto, não se mostraria adequada ao reconhecimento do direito à identidade pessoal qualquer distinção entre ser apenas nascituro (ainda sem personalidade jurídica, mas já protegido) ou ser já filho, porque o filho já foi nascituro, e porque o nascituro será filho de quem o gerou, bastando para tal que nasça completamente e com vida.
Parece-nos, aliás, de mui difícil sustentabilidade constitucional poder aceitar-se uma visão diferente do problema, ainda que se reconheça uma forte corrente doutrinária e jurisprudencial que continua a remar em sentido contrário...
Com efeito, o art. 26.º da Constituição, reconhecendo a todos o direito à identidade pessoal, na sua vertente do direito á historicidade pessoal, com conhecimento da progenitura, bem como ao desenvolvimento da personalidade, não estaria a ser cumprido, se porventura interpretássemos o artigo enunciado de uma forma descriminativa, castrada, limitativa e sem razão, atribuindo o direito de indemnização por danos não patrimoniais aos filhos que já tenham nascido e não reconhecendo esse mesmo direito a quem, por maior azar, já esteja concebido mas ainda não tenha atingido esse estado físico, ainda que comungando da mesma fonte identitária ou genética da personalidade progenitora.
Violaria, por outro lado também, o direito constitucional da igualdade em que seriam colocados os descendentes no mesmo grau, do mesmo progenitor, relativamente ao enunciado direito, sendo certo que tanto um como outro provêm das mesmas pessoas e que a identidade física do filho nascido é a mesma do filho antes gerado (nascituro) enquanto encerrado no ventre materno, e que se desenvolve ininterruptamente desde a concepção. De trazer à colação os arts. 24.º, 25.º e 13.º da Constituição.
Não há pois uma única razão forte, salvo o devido respeito por opiniões em contrário, para restringir a interpretação do art. 496.º do CC., ao dela pretender excluir no âmbito da previsão do conceito de “filhos” (aí prevista) a abrangência dos nascituros, pois estes, tal como os primeiros, nem por isso deixarão de vir a ser reconhecidos como filhos, e, tanto uns como outros, irão sentir ao longo da vida a mágoa e o sofrimento profundo de não terem a possibilidade de privar com o pai e de dele receber o carinho, o conforto e a palavra amiga em todos os momentos, pedra de toque essencial na formação da sua personalidade, em que ficam diminuídos relativamente à situação que teriam se o pai lhes não tivesse sido roubado.[Tem aqui pleno cabimento as considerações tecidas no Acórdão citado, quando a propósito do livro de António Damásio, “O Erro de Descartes”, se faz apelo ao sentimento de fundo (denominado por background), considerando que nem todos os sentimentos provêm de emoções, e que há sentimentos sem emoções. Na realidade, a dor pode constituir um sentimento profundo de mágoa e privação sem que chegue ao patamar da emoção, e a emoção pode ser, e normalmente é, uma dor passageira e breve, ainda que possa constituir o ponto de partida para uma dor mais serena, mas perdurável e profunda. O recém nascido também não chega a emocionar-se com a perda do pai porque ainda não tem a sua razão formada, mas nem por isso deixará de sentir a sua perda, permanentemente, ao longo da vida.]
Tendo em conta que a A. veio a ser reconhecida como filha da vítima, cabe-lhe portanto o direito próprio de ser indemnizada pela dor que ao longo da vida vai ter por sentir a privação do pai que não chegou a conhecer.
Reconhece-se, nesta questão, à Apelante B..... o direito que reivindica, ou seja, o de ser ela titular, por direito próprio, à indemnização pelos danos não patrimoniais resultantes da dor/sofrimento pela privação física do pai ao longo da vida.
Entendemos, no entanto que a compensação/reparação a arbitrar se deve ficar pelos € 20.000,00, lançando mão da equidade face às situações que temos vindo a considerar para aqueles que são já filhos nascidos quando se verifica o evento morte do progenitor.
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III-A)-a-3) Do montante indemnizatório por dano patrimonial
A Sentença recorrida fixou à A. o direito a ser indemnizada em € 100.000,00 por danos patrimoniais decorrentes da privação dos rendimentos que o pai obteria, se fosse vivo, e que, por via disso aquele deixou de obter e de que seriam beneficiários os descendentes, neles se incluindo, naturalmente as verbas destinadas a alimentos dos filhos.
Entende a Apelante A. que essa verba deveria ser fixada em montante não inferior a € 120.000,00 que havia peticionado.
Em contrapartida a Apelante Ré, seguradora, sustenta que o montante fixado foi exagerado, devendo antes fixar-se em € 50.000,00, já que parte de um patamar de € 75.000,00. e sustenta que pelo menos 1/3 seria consumido pela própria vítima.
Pois bem:
Para calcular qual o montante que deve corresponder a esse dano patrimonial, haverá que começar por considerar o rendimento anual da vítima:
Assim, auferindo ela o vencimento mensal de 62.700$00, o seu rendimento anual seria o valor encontrado resultante da multiplicação desse valor por 14 meses.
Obteríamos assim o valor de 877.800$00, que vem a corresponder a € 4.378,45
Atendendo à idade da vítima (ainda muito jovem) seria suposto que a vítima ainda pudesse ter á sua frente uns 42 anos de vida activa.
À taxa de juro anual de 3% (que caracteriza no estádio actual a média prevista para uma economia com moeda estável, como a do euro), o capital necessário para, uma vez entregue de uma só vez, e antecipadamente, poder gerar o mesmo rendimento anual estático, e de, no mesmo prazo de 42 anos, se diluir conjuntamente com a quantia entregue, seria o de € 103.775,21, fazendo uso da fórmula financeira utilizada no Ac. do STJ de 5 de Maio de 1994, in CJ-Acs do STJ, ano II, tomo II, pg. 86 e ss. [Como já explicamos no nosso artigo “As fórmulas matemáticas e as tabelas financeiras - proposta para superação de problemas de aplicação ao jurista menos versado em matemática”, e por nós também publicitada em outros Acórdãos, designadamente no Ac. deste Tribunal da Relação do Porto de 8 de Julho de 2004, acessível em versão integral no Boletim Interno n.º 23 deste Tribunal da Relação, pg. 85, ou em www.dgsi.pt/jtrp (pesquisar depois entre os documentos de Mário Cruz, Ac.de 8 de Julho de 2004-acidente de viação) há uma forma mais simples de obtermos o mesmo resultado multiplicando o montante encontrado como rendimento anual pelo factor/índice referente a 42 anos, na tabela abaixo indicada, que mais não é do que a transposição/transformação da referida fórmula matemática utilizada no Ac. do STJ acima citado, à taxa de 3%, em simples factores índices, fazendo uso do programa informático excell:
Tendo em conta que a vítima gastaria com ela mesma pelo menos ¼ desse montante com o seu próprio sustento, restariam € 77.831,406 que seriam destinados às outras despesas, designadamente sustento e manutenção do lar, água, luz, gás, electricidade, saúde e utilidades para o lar, para além dos alimentos à filha.
Afigura-se-nos assim que o montante de danos patrimoniais fixado na Sentença em € 100.000,00 atribuídos a título de perda de capacidade de ganho da vítima e que viria a ter repercussão directa no património da A., designadamente em alimentos) nos pareça exagerado, porque, mesmo dando de barato que a aplicação das tabelas financeiras ou fórmulas matemáticas apenas nos fornecem resultados decorrentes de situações estáticas, (pois não contemplam algumas variáveis como as relativas às melhorias de rendimento/salário, por progressão na carreira, aplicação de diuturnidades ou melhoria de produtividade, nem contemplam também a modulação que a inflação pode introduzir), o que é facto é que nem todos esses rendimentos iriam ser afectos previsivelmente à própria A., designadamente à satisfação do seu direito a alimentos.
Como pacificamente se tem reconhecido, as fórmulas matemáticas ou cálculos financeiros apenas nos devem orientar como primeira aproximação, cabendo no entanto ao Juiz a fixação do montante final, sopesando todos os factores que o processo forneça, designadamente porque nos encontramos no domínio da responsabilidade civil extracontratual.
Assim, sopesando todos os factores enunciados na Sentença e os agora aqui trazidos, afigura-se-nos como mais justa a redução do valor de € 100.000,00 para € 75.000,00.
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III-B)-b) Quanto ao recurso da Apelante Ré.
III-B-b)-1) Do montante indemnizatório a título de alimentos
O dano decorrente da perda dos rendimentos da vítima no tocante a alimentos não foi considerado como tendo autonomia própria, encontrando-se já incluído no valor de € 75.000,00 considerados atendíveis como correspondentes à perda de capacidade de ganho da vítima.
Uma vez que sobre essa questão já nos pronunciamos no recurso da Apelante A., limitamo-nos a remeter para o que a esse respeito já deixámos expresso nesse recurso.
III-B)-b)-2 Dos juros moratórios
Na Sentença recorrida ficou enunciado que sobre a indemnização atribuída incidiriam juros moratórios desde a citação, à taxa de 7% até 2003.04.30, e à taxa de 4% a partir de 2003.04.01.
Acontece, no entanto, que os montantes encontrados para corresponder às indemnizações por danos não patrimoniais (dano morte por direito próprio da vítima e dano sofrimento do nascituro/filho pela privação da companhia do pai ao longo da vida) se encontram já actualizadas reportando-se à data mais recente que puder ser atendida pelo Tribunal, de acordo com o disposto no art. 566.º-2 do CC..
Como no recurso estamos a debruçar-nos sobre uma questão já decidida é entendimento jurisprudencial dominante que o momento atendível é o do encerramento da discussão da causa na primeira instância.
Daí que, relativamente às indemnizações por danos não patrimoniais, apenas devam incidir juros de mora sobre as quantias aí determinadas desde a data da referida Sentença (e não desde a citação), porque, de contrário, haveria lugar a uma dupla penalização – Acórdão do STJ n.º 4/2002 (proc. 1508/01, tirado em 2002.05.09, e publicado no DR-I-A, de 2002.06.27
Nesta questão tem inteira razão a Apelante Ré.
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III-C - Conjugação dos resultados dos recursos
Conjugando agora o que se mostra dito a respeito destes dois recursos no litígio que envolve a A. B..... com a Ré seguradora, vemos que à A. B..... foram reconhecidos os seguintes direitos a indemnização:
pelo dano não patrimonial sofrido na esfera jurídica do pai, pela perda da vida, € 50.000,00
pelo dano não patrimonial sofrido pela própria A., devido à mágoa/dor persistente pela privação do progenitor, € 20.000,00
pelo dano patrimonial decorrente da perda de capacidade de ganho da vítima, com directa repercussão na A., inclusive nos alimentos, € 75.000,00.
Da soma destes montantes vem a resultar € 145.000,00, dos quais 70.000,00 considerados actualizados á data da Sentença da primeira instância (por respeitarem a danos não patrimoniais).
Assim, há que contemplar juros moratórios à taxa legal sobre € 70.000,00 desde a data da Sentença (art. 566.º-2 do CC) e sobre os restantes € 75.000,00 desde a data da citação.(art. 805.º-3, 2.ª parte do CC.)
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Atendendo a que a indemnização final atribuída à A. B....., no conjunto das indemnizações parcelares atribuídas, acaba por ser um pouco menor do que fixada na Sentença recorrida vem a concluir-se que terá de ser julgado o recurso da A. como totalmente improcedente.
Ao invés, o recurso da Ré, terá de ser julgado procedente em parte.
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IV.Deliberação
Na improcedência da apelação da A. e na procedência parcial da apelação da Ré, revoga-se parcialmente a não obstante douta Sentença recorrida, substituindo a Sentença, na parte recorrida, ficando portanto condenada a Ré a pagar à A. a quantia de € 145.000,00, com juros moratórios legais a incidir sobre € 70.000,00 desde a data da Sentença e sobre € 75.000,00 desde a citação.
Custas:
Da apelação da A., a cargo desta;
Da apelação da Ré, por A. e Ré, na proporção de vencidas.
Da acção, por A. e R., na proporção de vencidas face aos pedidos.
(A A. beneficia no entanto do apoio judiciário, pelo que, no actual contexto, nada terá a pagar.)
Porto, 24 de Janeiro de 2006
Mário de Sousa Cruz
Augusto José Baptista Marques de Castilho
Maria Teresa Montenegro V. C. Teixeira Lopes