I - A providência de habeas corpus tem a natureza de remédio excecional para proteger a liberdade individual, revestindo carácter extraordinário e urgente «medida expedita» com a finalidade de rapidamente pôr termo a situações de ilegal privação de liberdade.
II - O habeas corpus não é meio adequado para viabilizar uma «saída precária para o próximo dia 23 de dezembro de 2021» mesmo que o requerente «suspeite que mais uma vez (…) não irá beneficiar desta saída precária derradeira». Acresce que essa não é uma competência legalmente atribuída a este Tribunal, nem o Supremo Tribunal de Justiça se pode substituir às entidades competentes para decidir saídas jurisdicionais ou administrativas.
Habeas Corpus
Acordam, em audiência, no Supremo Tribunal de Justiça
I
1. AA, arguido em cumprimento de pena de prisão, veio através de defensor requerer a providência de habeas corpus alegando o seguinte (transcrição):
«I
1- O exponente encontra-se a cumprir pena de prisão no total de sete anos, dois meses e 23 dias.
2- Este total sancionatório resultou da junção de um conjunto de processos penais que se encontram consubstanciados nos autos n° 1140/11.... que correm termos pelo Juízo de Execução de Penas - Juiz ... - Tribunal Judicial da Comarca ....
3- O exponente deu entrada no Estabelecimento prisional de ... no dia 20 de Dezembro de 2014;
4- ou seja - há sete anos, dois meses e 23 dias que se encontra ali enclausurado.
5- NUNCA o exponente saiu - entretanto - do referido EP. NUNCA.
6- Ou seja - em sete anos, dois meses e 23 dias de prisão NUNCA o recluso beneficiou de qualquer saída precária ou outra, de longa ou de curta duração.
II
7- O exponente recebeu recentemente a notificação de que se junta cópia como doc. A,
8- mediante a qual se lhe deu conhecimento que a sua saída em liberdade se encontra prevista para o próximo dia 26 de Janeiro de 2022.
9- Ou seja - segundo o teor daquela notificação, o exponente recluso irá sair em liberdade naquele próximo dia 26 de Janeiro de 2022.
10- Sucede, porém, que NUNCA o exponente havia beneficiado de qualquer saída precária.
11- O exponente encontra-se - assim - enclausurado há sete anos, dois meses e 23 dias, sem que NUNCA tivesse saído, ainda que, precariamente.
III
12 - Segundo o documento B que se anexa - e também recebido da parte do E P de ...,
13 -O exponente atingiu os 2/3 da sua pena - rigorosamente - em 6 de Julho de 2020,
14- e alcançará os 5/6 da mesma pena no dia referido de 26 de Janeiro de 2022.
15- Ou seja - o exponente encontra-se a pouco mais de um mês de atingir aqueles 5/6 da pena total que lhe foi aplicada.
IV
16- Comina a lei penal (Código Penal) o seguinte (…):
Capítulo IV
Licenças de saída do estabelecimento prisional
Artigo 76.°
Tipos de licenças de saída
- Podem ser concedidas ao recluso, com o seu consentimento, licenças de saída jurisdicionais ou administrativas.
- As licenças de saída jurisdicionais visam a manutenção e promoção dos laços familiares e sociais e a preparação para a vida em liberdade.
- As licenças de saída administrativas compreendem:
Saídas de curta duração, para manter e promover os laços familiares e sociais;
Saídas para realização de actividades;
Saídas especiais, por motivos de particular significado humano ou para resolução de situações urgentes e inadiáveis;
Saídas de preparação para a liberdade. (...)
Artigo 77.°
Disposições comuns
1-0 período de saída é considerado tempo de execução da pena ou da medida privativa da liberdade, excepto se a respectiva licença for revogada,
- O recluso é informado sobre os motivos da não concessão de licença de saída, salvo se fundadas razões de ordem e segurança o impedirem.
- A não concessão de licenças de saída não pode, em caso algum, ser utilizada como medida disciplinar.
- Os reclusos em regime de segurança apenas beneficiam das licenças de saída administrativas previstas na alínea c) do n.° 3 e no n.° 4 do artigo anterior.
- Os reclusos preventivos apenas beneficiam das licenças de saída administrativas previstas nas alíneas b) e c) do n.° 3 e no n.° 4 do artigo anterior.
- Na programação das licenças de saída deve ter-se em conta o normal desenvolvimento das actividades do recluso.
- As licenças de saída jurisdicionais, de curta duração e de preparação para a liberdade não podem ser gozadas consecutivamente.
- É correspondentemente aplicável o disposto no n.° 4 do artigo 22.°
Artigo 78. °
Requisitos e critérios gerais
1 - Podem ser concedidas licenças de saída quando se verifiquem os seguintes requisitos:
a) Fundada expectativa de que o recluso se comportará de modo socialmente responsável, sem cometer crimes;
Compatibilidade da saída com a defesa da ordem e da paz social; e
Fundada expectativa de que o recluso não se subtrairá à execução da pena ou medida privativa da liberdade.
2 - Tendo em conta as finalidades das licenças de saída, ponderam-se na sua concessão;
A evolução da execução da pena ou medida privativa da liberdade;
As necessidades de protecção da vítima;
O ambiente social ou familiar em que o recluso se vai integrar;
As circunstâncias do caso; e
Os antecedentes conhecidos da vida do recluso.
3 - Na concessão de licenças de saída podem ser fixadas condições, adequadas ao caso concreto, a observar pelo recluso.
Artigo 79.°
Licenças de saída jurisdicionais
1 - As licenças de saída jurisdicionais são concedidas e revogadas pelo tribunal de execução das penas.
2 - As licenças de saída jurisdicionais podem ser concedidas quando cumulativamente se verifique:
O cumprimento de um sexto da pena e no mínimo seis meses, tratando-se de pena não superior a cinco anos, ou o cumprimento de um quarto da pena, tratando-se depena superior a cinco anos;
A execução da pena em regime comum ou aberto;
A inexistência de outro processo pendente em que esteja determinada prisão preventiva;
A inexistência de evasão, ausência ilegítima ou revogação da liberdade condicional nos 12 meses que antecederem o pedido.
3 - Nos casos de execução sucessiva de penas de prisão ou de pena relativamente indeterminada, o sexto e o quarto da pena determinam-se, respectivamente, em função da soma das penas ou da pena que concretamente caberia ao crime.
- Cada licença de saída não pode ultrapassar o limite máximo de cinco ou sete dias seguidos, consoante a execução da pena decorra em regime comum ou aberto, a gozar de quatro em quatro meses.
- As licenças de saída jurisdicionais não são custodiadas,
Artigo 80.°
Licenças de saída de curta duração
1-0 director do estabelecimento prisional pode conceder licenças de saída de curta duração desde que cumulativamente se verifique:
A execução da pena em regime aberto;
O gozo prévio com êxito de uma licença de saída jurisdicional;
A inexistência de evasão, ausência ilegítima ou revogação da liberdade condicional nos 12 meses que antecederem o pedido.
- As licenças de saída de curta duração podem ser concedidas de três em três meses, até ao máximo de três dias seguidos, abrangendo preferencialmente os fins-de-semana.
- As licenças de saída de curta duração não são custodiadas.
(-)
17 - Quer isto dizer que o exponente deveria ter beneficiado de – pelo menos - uma saída precária:
18- O que nunca sucedeu.
19 - Quer isto - também - dizer que o recluso deveria ter saído já a meio da pena global em que foi condenado; o que, de todo, não aconteceu, erroneamente.
20 - Ou aos 2/3 da pena; o que - também - não aconteceu.
V
21- Em suma - o exponente deveria ter beneficiado ou de alguma saída precária ou de alguma saída precária a meio da pena, ou aos 2/3 da pena.
22- Ou mesmo - e eventualmente - das duas saídas ou tipos de saída;
23- fossem ou não de curta duração; 24-o que nunca aconteceu.
24- O recluso NUNCA beneficiou de nenhuma destas possibilidades, fixadas por lei. Nenhuma!
25- Este comportamento para com o exponente tem sido violento e tem violado aquelas regras legais,
26- bem como os dispositivos gerais universais que - por via do disposto nos artigos 62° do Código Penal ou 83° da Lei n° 115/2009 de 12 de Outubro - fixam a necessidade, senão mesmo a obrigatoriedade, de qualquer recluso poder beneficiar das referidas saídas em liberdade, ainda que precariamente.
27- NADA disto aconteceu, lamentavelmente, no caso do exponente.
28- Vejam-se - com efeito - estes dispositivos legais mobilizados:
Artigo 62. ° (Código Penal) Adaptação à liberdade condicional
Para efeito de adaptação à liberdade condicional, verificados os pressupostos previstos no artigo anterior, a colocação em liberdade condicional pode ser antecipada pelo tribunal, por um período máximo de um ano, ficando o condenado obrigado durante o período da antecipação, para além do cumprimento das demais condições impostas, ao regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância.
E Lei n° 115/2009 de 12 de Outubro
Artigo 83.°
Licenças de saída de preparação para a liberdade
A fim de facilitar a preparação para a liberdade, o director-geral dos Serviços Prisionais pode autorizar o recluso a sair do estabelecimento prisional, até ao máximo de oito dias, nos últimos três meses de cumprimento da pena ou nos últimos três meses que antecedem os cinco sextos depena superior a seis anos de prisão.
29- São estes os factos. É esta a realidade.
30- É este o tecido normativo vigente.
VI
31- As saídas precárias têm - brevitatis causa - como função essencial a de prepararem os reclusos para que retomem com a maior normalidade possível o processo de ressocialização, o complexo e, por vezes, muito difícil regresso à sociedade donde vieram. (Título XI da Lei n° 115/2009 de 12 de Outubro).
32- Como é sabido, as primeiras experiências europeias neste domínio das saídas precárias iniciaram-se nos inícios do passado século XX na Suíça onde se começaram a permitir - de forma pioneira - saídas a reclusos que chegassem ao meio das penas e que tivessem demonstrado comportamentos normais no interior do estabelecimento prisional onde se encontravam. Estas iniciais saídas precárias limitavam-se a dois dias, foram dando bons resultados, no geral, pelo que a medida foi-se alastrando pelos países europeus limítrofes, encontrando-se hoje em dia instituídas na grande maioria das legislações penais e penitenciárias.
33- Quer isto dizer que o sistema de saídas precárias tem como objectivo essencial o incentivar do processo de ressocialização do recluso, preparando-o para o regresso à comunidade.
34- Foi neste contexto que o regime das saídas precárias foi adoptado pelo sistema legal português, tendo sido recentemente actualizado por via da citada Lei n° 115/2009 de 12 de Outubro.
35- Ora, sucede que no caso vertente NUNCA o recluso exponente beneficiou de qualquer saída precária, como se disse; facto que não pode deixar de nos estranhar, atendendo sobretudo à politica de saídas precárias que tem vindo a ser usado no Estabelecimento prisional de ....
36- A evolução do sistema no nosso Pais conheceu - como é sabido -os textos dos diplomas legais que se consubstanciaram - respectiva e sucessivamente - nos Decretos-Lei n°s 783/76 de 29 de Outubro, 265/79 de 1 de Agosto, 49/80 de 22 de Março, 414/85 de 18 de Outubro até que foi publicada a actualmente em vigor Lei n° 115/2009 de 12 de Outubro.
38 - E o actual artigo 79° que fixa as regras que permitem a utilização deste sistema de saídas precárias, aplicável - no caso vertente – ao exponente AA.
39- As licenças de saída podem ser concedidas quando cumulativamente se verifique o cumprimento de um sexto da pena e no mínimo seis meses, tratando-se de pena não superior a cinco anos, ou o cumprimento de um quarto da pena, tratando-se de pena superior a cinco anos; a execução da pena em regime comum ou aberto; a inexistência de outro processo pendente em que esteja determinada prisão preventiva; a inexistência de evasão, ausência ilegítima ou revogação da liberdade condicional nos 12 meses que antecederem o pedido. Nos casos de execução sucessiva de penas de prisão ou de pena relativamente indeterminada, o sexto e o quarto da pena determinam-se, respectivamente, em função da soma das penas ou da pena que concretamente caberia ao crime.
40- Sucede que o exponente satisfaz TODOS estes requisitos, sem excepção.
41- Não obstante, NUNCA o requerente beneficiou de qualquer saída até à presente data.
42- Se naquilo que toca às condições gerais e especiais para que o recluso possa beneficiar de saídas precárias já vimos que o mesmo beneficia de todas exigências fixadas naquele artigo 79°, vejamos aquilo que o artigo 78° regula no que inere aos requisitos e critérios gerais.
43- Podem ser concedidas licenças de saída quando exista fundada expectativa de que o recluso se comportará de modo socialmente responsável, sem cometer crimes; quando haja compatibilidade da saída com a defesa da ordem e da paz social; e quando haja fundada expectativa de que o recluso não se subtrairá à execução da pena ou medida privativa da liberdade.
44- Tendo em conta as finalidades - descritas supra - das licenças de saída, ponderam-se, obviamente, na sua concessão: a evolução da execução da pena ou medida privativa da liberdade; as necessidades de protecção da vítima; o ambiente social ou familiar em que o recluso se vai integrar; as circunstâncias do caso; e os antecedentes conhecidos da vida do recluso.
45- Também, neste particular, a situação actual do recluso encontra-se perfeitamente coincidente com as normas exigidas para o caso vertente.
46- Note-se que o exponente não sai há já sete anos, dois meses e 23 dias.
47- Note-se que o exponente possui forte apoio familiar adequado, social e económico.
48- Note-se que o recluso - detido como está há já mais de sete anos e dois meses - já não ingere bebidas alcoólicas durante todos estes sete anos, dois meses e 23 dias.
49- Note-se que a alegada vítima reside a mais de 300 km de distância da residência futura do recluso, alem do que é a própria lei vigente que - por via do n° 3 do artigo 78° - pode permitir fixar condições, adequadas ao caso concreto, a observar pelo recluso.
50 - Em suma - no entendimento do exponente encontram-se reunidas TODAS as condições para que ao recluso exponente e requerente possa ser concedida uma saída precária de longa duração antes mesmo da sua saída prevista para o dia 26 de Janeiro de 2022.
VII
51- Já acima mencionámos o artigo 83° da Lei n° 115/2009 de 12 de Outubro que prevê - expressamente - a possibilidade de os reclusos, em geral, poderem beneficiar de licenças de saída para preparação para a liberdade.
52- Com efeito - e repete-se - A fim de facilitar a preparação para a liberdade, o director-geral dos Serviços Prisionais pode autorizar o recluso a sair do estabelecimento prisional, até ao máximo de oito dias, nos últimos três meses de cumprimento da pena ou nos últimos três meses que antecedem os cinco sextos depena superior a seis anos de prisão (sic).
53- O recluso nunca beneficiou de qualquer saída precária, em sete anos, dois meses e 23 dias.
54- Mais uma vez, o exponente - tendo presente tudo aquilo que segue exposto - solicitou uma saída precária para o próximo dia 23 de Dezembro de 2021, até como preparação para a liberdade, de que -também - nunca beneficiou.
55- O exponente suspeita que mais uma vez - e não obstante TUDO o que segue dito - não irá beneficiar desta saída precária derradeira, solicitada para o próximo dia 23 de Dezembro de 2021.
VIII
56 - O exponente sente-se fortemente injustiçado por tudo aquilo que segue exposto.
57- Não crê que mais uma vez venha a beneficiar de qualquer saída precária, ainda que muito próxima da sua saída em liberdade, ainda que no contexto da referida preparação para a liberdade.
58- E como não crê que possa vir a beneficiar de um conjunto de direitos que lhe assistem, decidiu socorrer-se do superior sentido de JUSTIÇA de V. Exas. para que se possam pronunciar sobre este seu pedido de saída em liberdade, ainda que - eventualmente - de forma precária.
59- Também sabe o exponente que o poder decisório - no que toca ao pedido formulado - cabe quer ao Estabelecimento prisional de ..., quer ao Juiz da Execução das Penas, quer ao Director-Geral dos Serviços Prisionais.
60- Todavia, como o exponente não crê jamais em nenhuma destas entidades que lhe inviabilizaram qualquer saída em sete anos, dois meses e 23 dias, decidiu recorrer ao Supremo Tribunal de Justiça para que possa - através do instituto do habeas corpus - permitir a saída do exponente ou em 23 de Dezembro de 2021 mediante a saída precária já pedida no E. P. de ... ou mediante uma licença para preparação da liberdade já pedida junto da Direcção-Geral dos Serviços Prisionais.
Em conclusão
Nos termos do disposto nos artigos 31° da Constituição da República Portuguesa, dos artigos 220° e seguintes do Código do Processo Penal, nos termos do disposto nos artigos 62°, 76° a 80° do Código Penal, 83° da Lei n° 115/2009 de 12 de Outubro o exponente solicita muito respeitosamente a V. Exas. se dignem conceder-lhe a liberdade nas modalidades sugeridas de saída precária prolongada e de preparação para a liberdade que se irá concretizar no próximo dia 26 de Janeiro de 2022».
2. Foi prestada a informação de acordo com o disposto no art. 223.º/1, CPP, nos seguintes termos (transcrição):
«No âmbito do preceituado no artigo 223.º, n.º 1, do CPP, passo a lançar nos autos a competente informação.
O condenado AA, identificado no processo, encontra-se recluído no Estabelecimento Prisional do ... desde 20.12.2014.
Cumpre presentemente a pena única de 5 anos e 7 meses de prisão aplicada no processo n.º 1488/04...., da Comarca ... – Juízo Central Criminal ... – Juiz ..., no âmbito do qual foram cumuladas penas parcelares atinentes à autoria de um crime de desobediência, um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, um crime de maus tratos, um crime de violação e um crime de coacção sexual.
O termo do cumprimento desta pena encontra-se calculado para 16.08.2023, tendo operado interrupção da sua execução no quadro da previsão do artigo 63.º, n.º 1, do Código Penal.
No decurso da presente reclusão, com termo em 01.11.2020, cumpriu a pena única de 3 anos e 9 meses de prisão, à ordem do processo n.º 190/16...., da Comarca ... – Juízo Central Criminal ... – Juiz ..., no âmbito do qual foram cumuladas penas parcelares atinentes à autoria de um crime de violência doméstica, dois crimes de condução de veículo em estado de embriaguez e dois crimes de condução de veículo sem habilitação legal.
Os dois terços da soma das penas em presença foram alcançados em 06.07.2020, os cinco sextos da mesma soma sê-lo-ão em 26.01.2022, estando o seu termo previsto para 16.08.2023.
Por despacho de 17.04.2020 foi denegada a concessão do perdão instituído no artigo 2.º da Lei n.º 9/2020, de 10 de Abril.
Por decisões de 25.06.2019, de 07.07.2020 e de 28.06.2021, todas proferidas por este TEP ..., foi sucessivamente denegada a concessão da liberdade condicional.
Ao longo do cumprimento das penas o recluso não beneficiou de qualquer licença de saída jurisdicional por nunca terem sido julgados verificados os pressupostos previstos no artigo 78.º do CEP, tendo a mais recente decisão neste âmbito sido proferida em 21.04.2021, após o que o recluso não voltou a requerer a concessão da medida de flexibilização em causa.
Presentemente, estão em curso os termos processuais com vista à concessão da liberdade condicional obrigatória em sede de cinco sextos da soma das penas em presença, data calculada para 26.01.2022 (artigo 63.º, n.º 3, do Código Penal).
Remeta cópia da presente informação ao Supremo Tribunal de Justiça, acompanhada de certidão de fls. 163-167, 214-216, 220, 290-292, 328-330, 358-363 (esta última peça processual configurando a mais recente decisão proferida quanto à liberdade condicional) e 368 e verso, todas do PLC (apenso C)».
3. Convocada a secção criminal e notificados o MP e o defensor, realizou-se a audiência (arts. 11.º/4/c, 223.º/2/ 3, e 435.º, CPP).
II
1. Questão a decidir: a legalidade da manutenção da pena de prisão aplicada ao requerente.
2. O circunstancialismo factual relevante para o julgamento resulta da petição de habeas corpus, quer da informação, quer da certidão que acompanha os presentes autos e é o seguinte:
2. 1. O condenado AA, encontra-se em cumprimento de pena no Estabelecimento Prisional do ... desde 20.12.2014.
2.2. Cumpre presentemente a pena única de 5 anos e 7 meses de prisão aplicada no processo n.º 1488/04...., da Comarca ... no âmbito do qual foram cumuladas penas parcelares atinentes à autoria de um crime de desobediência, um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, um crime de maus tratos, um crime de violação e um crime de coação sexual.
2.3. O termo do cumprimento desta pena encontra-se calculado para 16.08.2023.
2.4. No decurso da presente reclusão cumpriu já a pena única de 3 anos e 9 meses de prisão, à ordem do processo n.º 190/16...., da Comarca ..., no âmbito do qual foram cumuladas penas parcelares atinentes à autoria de um crime de violência doméstica, dois crimes de condução de veículo em estado de embriaguez e dois crimes de condução de veículo sem habilitação legal.
2.5. Os dois terços da soma das penas ocorreram em 06.07.2020, os cinco sextos verificam-se em 26.01.2022, estando o termo da pena previsto para 16.08.2023.
2.6. Por despacho de 17.04.2020 foi negada a concessão do perdão instituído no artigo 2.º da Lei n.º 9/2020, de 10 de abril.
2.7. Por decisões de 25.06.2019, de 07.07.2020 e de 28.06.2021, todas proferidas pelo TEP ..., foi negada a concessão da liberdade condicional.
2.8. No decurso do cumprimento das penas o condenado não beneficiou de qualquer licença de saída jurisdicional por não terem sido julgados verificados os pressupostos previstos no artigo 78.º do CEP, tendo a mais recente decisão neste âmbito sido proferida em 21.04.2021.
2.9. Presentemente, estão em curso os termos processuais com vista à concessão da liberdade condicional obrigatória em sede de cinco sextos da soma das penas em presença, data calculada para 26.01.2022 (artigo 63.º, n.º 3, do Código Penal).
3. O habeas corpus é um meio, procedimento, de afirmação e garantia do direito à liberdade (arts. 27.º e 31.º, CRP), uma providência expedita e excecional – a decidir no prazo de oito dias em audiência contraditória, art. 31.º/3, CRP – para fazer cessar privações da liberdade ilegais, isto é, não fundadas na lei, sendo a ilegalidade da prisão verificável a partir dos factos documentados no processo. Enquanto nas palavras do legislador do Decreto-lei n.º 35 043, de 20 de outubro de 1945, «o habeas corpus é um remédio excepcional para proteger a liberdade individual nos casos em que não haja qualquer outro meio legal de fazer cessar a ofensa ilegítima dessa liberdade», hoje, e mais nitidamente após as alterações de 2007, com o acrescento do n.º 2 ao art. 219.º, CPP, o instituto não deixou de ser um remédio excecional, mas coexiste com os meios judiciais comuns, nomeadamente com o recurso (arts. 7.º/1/m, e 179.º, CEPMPL, no caso de cumprimento de pena de prisão).
4. Quanto ao pedido de habeas corpus por prisão ilegal, dispõe o art. 222.º CPP:
«1 - A qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência de habeas corpus.
2 - A petição é formulada pelo preso (…) e deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de:
(…)
a) Ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente;
b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou
c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial».
5. O requerente iniciou o cumprimento da pena de prisão em 20.12.2014. Há manifesto lapso do requerente quando afirma «há sete anos, dois meses e 23 dias que se encontra ali enclausurado». As contas, sem relevância para o presente caso, são outras. Segundo alega, desde o início do cumprimento de pena não beneficiou de qualquer saída precária ou outra, de longa ou de curta duração, nem de liberdade condicional. E, conforme informa o juiz do TEP, tal corresponde à realidade processual. Mas daí não decorre que a prisão do recorrente seja ilegal, ilegalidade que nem o requerente, aliás, sustenta. A prisão foi ordenada pelo juiz do processo onde ocorreu a condenação, pela prática de crimes puníveis e punidos com pena de prisão e não se mantém para além dos prazos fixados pela lei. E tanto basta para afirmar que o pedido carece de fundamento. Mas vejamos com detalhe qual a concreta pretensão do requerente.
6. Oportunamente foi apreciada a colocação do condenado em liberdade condicional, mas por decisões de 25.06.2019, 07.07.2020 e 28.06.2021, o TEP ... decidiu não colocar o condenado em liberdade condicional, por entender não verificados os respetivos requisitos. Essas decisões podiam ter sido recorridas pelo condenado. Sabido que a colocação do condenado em liberdade condicional, quando se encontrar cumprida metade da pena e no mínimo 6 meses ou aos dois terços, não é automática, pois depende da verificação em concreto dos pressupostos consagrados no art. 61.º/2/3, CP, a circunstância de, até ao momento, não ter beneficiado de colocação em liberdade condicional resultou de, em decisão judicial e com respaldo em normas legais, se ter entendido que o condenado não reunia as condições legais exigidas.
7. Assim, a prisão do requerente é legal porque não ultrapassou qualquer prazo fixado pela lei ou por decisão judicial. Estando em curso, como afiança o juiz do TEP, o procedimento «com vista à concessão da liberdade condicional obrigatória em sede de cinco sextos da soma das penas em presença, data calculada para 26.01.2022 (artigo 63.º, n.º 3, do Código Penal)», o que já foi notificado o arguido, a sua detenção vai cessar na data imposta por lei.
8. As licenças de saída jurisdicionais ou administrativas também não são automáticas, mas concedidas pela entidade competente mediante a verificação de determinados requisitos (arts. 76.º a 80.º CEPMPL). Quanto às saídas jurisdicionais não foram concedidas por «não terem sido julgados verificados os pressupostos previstos no artigo 78.º do CEP».
9. O requerente, segundo a sua expressão, «sente-se fortemente injustiçado» por não ter beneficiado de qualquer saída precária, nem liberdade condicional. Segundo afirma, «solicitou uma saída precária para o próximo dia 23 de dezembro de 2021, até como preparação para a liberdade, de que também nunca beneficiou». Mas, segundo o próprio, «suspeita que mais uma vez (…) não irá beneficiar desta saída precária derradeira, solicitada para o próximo dia 23 de dezembro de 2021», razão por que «decidiu recorrer ao Supremo Tribunal de Justiça para que possa - através do instituto do habeas corpus - permitir a saída do exponente ou em 23 de Dezembro de 2021 mediante a saída precária já pedida no E. P. de ... ou mediante uma licença para preparação da liberdade já pedida junto da Direcção-Geral dos Serviços Prisionais».
10. O português claro usado pelo requerente não deixa dúvida: o que pretende com a providência de habeas corpus é conseguir «saída precária para o próximo dia 23 de dezembro de 2021». Como repetidamente tem dito este STJ a providência de habeas corpus não é um recurso ou um seu sucedâneo, mas um remédio excecional para proteger a liberdade individual nos casos em que não haja qualquer outro meio legal de fazer cessar a ofensa ilegítima dessa liberdade. No caso, como vimos, não está em causa a legalidade da restrição da liberdade do requerente já que decretada e mantida com respeito pelas normas legais e da Constituição. Sendo assim, resta dizer ao requerente que o habeas corpus não é meio adequado para viabilizar a pretendida «saída precária para o próximo dia 23 de dezembro de 2021», mesmo que o requerente «suspeite que mais uma vez (…) não irá beneficiar desta saída precária derradeira». O pedido do requerente não cabe nas competências legalmente atribuídas a este Tribunal (art. 11.º CPP, arts. 52.º a 56.º, LOSJ, Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto) e o Supremo Tribunal de Justiça não se pode substituir às entidades competentes para decidir saídas jurisdicionais ou administrativas (arts. 76.º, 79.º/1, 80.º/1, 81.º/1, 82.º e 83.º CEPMPL).
III
Indefere-se a providência de habeas corpus por falta de fundamento legal.
Custas pelo requerente, com taxa de justiça que se fixa em três UC – n.º 9 do artigo 8.º do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III a ele anexa.
Supremo Tribunal de Justiça 23 de dezembro de 2021.
António Gama (Relator)
Orlando Gonçalves
Eduardo Loureiro (Presidente)