Para que o terceiro possa ser responsabilizado por violação do direito do credor por via da responsabilidade contratual, com fundamento seja no efeito externo das obrigações seja no abuso do direito, é, desde logo, necessário que o terceiro tenha conhecimento efectivo do direito do credor.
I. RELATÓRIO
Recorrente: Contraste, Empreendimentos imobiliários, Lda.
Recorrido: Município de Celorico de Basto
1. A autora Contraste, Empreendimentos Imobiliários, Lda., deduziu a presente acção comum contra o Município de Celorico de Basto.
O pedido é o de que o réu seja condenado a pagar à autora o crédito que esta detém sobre a Cooperbasto resultante das obras de restauro e requalificação do antigo engenho de azeite que o réu se obrigou a subsidiar nos termos que resultam da deliberação do seu órgão executivo de 2.05.2007.
Apresenta a seguinte causa de pedir:
- A autora é titular de um crédito sobre a massa insolvente da Cooperbasto.
- Esse crédito foi cedido pela sociedade Befebal Sociedade de Construções SA., através de um contrato de cessão de créditos firmado em Agosto de 2013.
- O crédito foi reconhecido por sentença judicial decretada no processo 123/11...., transitada em julgado.
- A cessão de créditos foi reconhecida no apenso A da acção 123/11.....
- Em tal acção 123/11.... estava em causa o seguinte:
“A Autora intentou a presente ação declarativa sob a forma de processo ordinário pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de € 114.225,48, acrescida de juros comerciais vencidos e vincendos contados desde a data de vencimento de cada uma das faturas, sobre os montantes ainda em dívida, até efetivo integral pagamento.
Alega, em síntese, que se dedica à construção civil e obras públicas tendo celebrado com a Ré contrato de empreitada para “recuperação e ampliação de edifício para prova, mostra e venda de produtos regionais”, pelo preço global de € 347.447,16, acrescido de IVA, ao qual quiseram que se aplicassem as regras de execução dos contratos públicos de empreitada, já que foi sempre acompanhada por técnicos do Município.
Acordaram que a Ré pagaria o que resultasse dos autos de medição dos seus técnicos e de outros a mando daquela e que os trabalhos medidos seriam faturados e pagos em trinta dias a contar da data de emissão.
Concluiu a obra, aceite pela Ré sem reclamação, mostrando-se não pagos os valores de € 536,76, € 31.687,44 e € 7.340,49, respetivamente, vencidos em 28 de Setembro, 17 de Outubro e 28 de Dezembro de 2008, assim como os trabalhos resultantes dos autos de medição nºs 13 e 16, no valor total de € 32.008,01.
Além dos trabalhos especificamente previstos no caderno de encargos, a Ré foi solicitando diversos trabalhos a mais, os quais após medição conjunta orçaram € 5.947, vencido em 30 de Outubro de 2009; da mesma forma procedeu às instalações mecânicas na parte final da obra, no montante de € 2.500, vencido desde 30 de Abril de 2010.
Em 27 de Outubro de 2009 acordaram em levar a cabo a revisão obrigatória de preços, usando como critério fórmulas estabelecidas para obras da mesma natureza, tendo emitido e entregue fatura vencida desde aquela data.
A Ré foi pagando valores após a data de vencimento de cada uma das faturas pelo que liquidou juros no montante de € 6.064,55 e emitiu notas de débito.
Conclui que se encontra em dívida a quantia global de € 114.225,48, acrescentando que em 5 de Janeiro de 2011 reclamou o seu pagamento através de missiva à qual a Ré respondeu fixando o valor em dívida em € 111.725,48, propondo um plano de pagamento para dez anos sem juros, o que entendeu não ser razoável.”
- Nessa acção foi decidido o seguinte:
“I. Julgando a ação provada e procedente, condena a Ré Cooperbasto – Cooperativa Agrícola de Basto, CRL a pagar à Autora Befebal – Sociedade de Construções, S.A. o seguinte:
a) € 79.570,09 relativamente aos valores em dívida das faturas identificadas nos pontos 12) a 15), 17), 19) e 24) da fundamentação de facto;
b) juros calculados às taxas previstas na Portaria nº 597/2005 de 19 de Junho e no artigo 2º nº 2 da Portaria nº 277/2013 de 26 de Agosto, por referência aos avisos publicados e a publicar pela Direção Geral do Tesouro e Finanças, sobre os montantes e desde as datas de vencimento das faturas identificadas nos pontos 12) a 15) e 17) da fundamentação de facto até 21 de Outubro de 2009, até ao montante máximo peticionado de € 6.064,55;
c) juros calculados às taxas previstas na Portaria nº 597/2005 de 19 de Junho e no artigo 2º nº 2 da Portaria nº 277/2013 de 26 de Agosto, por referência aos avisos publicados e a publicar pela Direção Geral do Tesouro e Finanças, desde 22 de Outubro de 2009 relativamente às faturas aludidas em b), bem como sobre os montantes e desde as datas de vencimento das faturas identificadas nos pontos 19), 23) e 24) da fundamentação de facto até integral e efetivo cumprimento;
d) o que vier a ser liquidado relativamente à revisão de preços, até ao montante máximo peticionado de € 27.982,30.
II. Julgando a reconvenção não provada e improcedente absolve a Reconvinda Befebal – Sociedade de Construções, S.A. dos pedidos formulados pela Reconvinte Cooperbasto – Cooperativa Agrícola de Basto, CRL.”
- Na acta da reunião ordinária 11/07, de 2.05.2007 da Câmara Municipal de Celorico de Basto foi apresentada uma proposta pelo Presidente da Câmara com o seguinte teor: COOPERBASTO CASA DO AGRICULTOR – CASA DOS PRODUTOS REGIONAIS.
- Sobre o assunto foi apresentada pelo Senhor Presidente da Câmara uma proposta do seguinte teor:
“Considerando que:
- Em 5 de Agosto de 2005 a Câmara Municipal de Celorico de Basto deliberou aprovar a cedência do edifício de "antigo engenho do azeite" à Cooperbasto, CRL - Casa do Agricultor, para aí ser instalada a "Casa de Produtos Regionais",
- Em 6 de Setembro de 2005 foi aprovada a minuta da escritura de constituição de Direito de Superfície do edifício do "antigo engenho do azeite" e do prédio rústico denominado "Leiras de Trás do Engenho entre este Município e a Cooperbasto, CRL - Casa do Agricultor.
- Em 20 de Setembro de 2005 foi deliberado pela Câmara Municipal ceder à Cooperbasto, CRL - Casa do Agricultor uma parcela de terreno com a área de 305m2, identificada numa planta anexa à deliberação, que funcionaria como logradouro do referido edifício do "antigo engenho do azeite".
- Em 5 de Dezembro de 2006 a Câmara Municipal deliberou, no âmbito do projecto para instalação e funcionamento da Casa dos Produtos Regionais, no sentido de assumir o compromisso de proceder ao restauro do edifício do "antigo engenho do azeite", e requalificá-lo de forma a ficar devidamente enquadrado no deliberando assumir o encargo respectivo com a execução do projecto, de forma a permitir, com a elaboração de um único projecto, a obtenção de uma solução global com melhor enquadramento estético e funcional.
- Nessa deliberação não foram definidos valores para a comparticipação da Câmara Municipal apenas se deliberando no sentido de esta assumir a obrigação de executar a referida obra a suportar os custos do respectivo projecto.
- Em 30 de Janeiro de 2007 a Cooperbasto, CRL - Casa do Agricultor apresentou nesta Câmara Municipal requerimento que agora está sob análise, onde é manifestada a intenção daquela Cooperativa assumir a execução da totalidade do projecto da Casa de Produtos Regionais, incluindo a restauração do edifício do "engenho do azeite', candidatando esse mesmo projecto ao programa LEADER +, com vista a obter financiamento para construção da Casa de Produtos Regionais (financiado a 50%), terminado com os produtos supra descritos.
Considerando ainda que
- A Câmara Municipal de Celorico de Basto ao deliberar conforme deliberou em 5 de Agosto de 2005, 6 de Setembro de 2005, 20 de Setembro de 2005 e 5 de Dezembro de 2006, sobre o assunto em questão, cedendo os prédios do "antigo engenho do azeite" e terrenos anexos, e assumindo posteriormente a obrigação proceder ao restauro do edifício do antigo engenho do aceite", para o requalificar de forma a ficar devidamente enquadrado no projecto definido e proposto pela Cooperbasto, CRL - Casa do Agricultor, assumindo ainda o encargo com a execução do respectivo projecto, considerou que o apoio que estava a dar extravasava o circulo restrito dos associados da cooperativa, beneficiando a colectividade celoricense em geral h concluindo por isso que o projecto se revestia de interesse público municipal.
(...) Propõe-se que:
Esta Câmara Municipal, atendendo ao exposto no requerimento da Cooperbasto, CRL - Casa do Agricultor, e considerando que para a concretização do projecto em questão a melhor solução técnica e económica passa peia decisão de permitir que a Cooperbasto: CRL - Casa do Agricultor assuma a execução da totalidade do projecto da Casa dos produtos Regionais, incluindo a restauração do "edifício do engenho do azeite", candidatando esse mesmo projecto ao programa LEADER +, substitua a sua forma de apoio, entregando uma quantia equivalente aos custos que teria de suportar directamente, para dar cumprimento ás obrigações anteriormente assumidas, e supra descritas.
- A transferência da quantia em causa será sempre precedida de uma informação técnica dos Serviços desta Autarquia que confirme a execução da obra que esta Câmara Municipal deveria realizar e respectivos valores, o mesmo se aplicando ao projecto, uma vez que esses valores ainda não se encontram quantificados, porque a Câmara Municipal assumiu a obrigação de executar uma obra a elaborar
Deliberação por unanimidade: Aprovada.
Não participou na discussão e votação o Sr. Vereador Dr. AA.
RELAÇÃO DAS FACTURAS ENTRADAS NO PERÍODO DE 16 A 26 DE ABRIL -Entregue fotocópia a todos os membros da Câmara
Tomado conhecimento.
RELAÇÃO DOS PAGAMENTOS EFECTUADOS NO PERÍODO DE 16 A 26 DE ABRIL - Entregue fotocópia a todos os membros da Câmara.
Tomado conhecimento”.
- Entende a autora que a Cooperbasto ficou credora da CM de um valor correspondente ao custo das obras.
- Entretanto a Cooperbasto contrata a Befebal para fazer as referidas obras.
- As obras foram feitas, mas a CM apenas pagou uma parte do preço (cerca de €110.000,00) pelo que a Cooperbasto não pagou a sua dívida à Befebal (crédito reconhecido na sentença 123/11....).
- A CM de Celorico de Basto constituiu um direito de superfície a favor da Cooperbasto sobre o prédio onde foram realizadas as obras.
- Findo o período correspondente ao direito de superfície o Município fica com o terreno e com as benfeitorias realizadas sem ter pago o respectivo preço.
- Entende a autora que existirá abuso de direito do Município pelo facto de não cumprir o determinado na deliberação camarária.
O contestante apresenta os seguintes argumentos:
- A autora, que se arroga cessionária do alegado crédito nunca notificou o Município réu da invocada cessão de créditos.
- Razão pela qual essa alegada cessão de créditos é ineficaz perante o réu.
- Com efeito, por requerimento datado de 3.01.2020 e apresentado no município de Celorico de Basto a autora informou o réu que havia celebrado um contrato de cessão de créditos com a empresa “Befebal - Sociedade de Construções, SA”, em 5.03.2013, arrogando-se credora da Cooperbasto - Cooperativa Agrícola de Basto, CRL (atualmente insolvente), no montante de € 79.570,09, a que acresceriam juros e ainda um crédito a liquidar em incidente de liquidação no montante máximo de € 27.982,30.
- Todavia, quando a autora apresentou esse requerimento na Câmara Municipal de Celorico de Basto, já a Cooperbasto - Cooperativa Agrícola de Basto, CRL havia sido declarada insolvente (por sentença proferida em 17.11.2018, transitada em julgado em 12.12.2018).
- Ademais, e de acordo com o disposto no artigo 585.º do Código Civil, o devedor pode opor ao cessionário, ainda que este os ignorasse, todos os meios de defesa que lhe seria lícito invocar contra o cedente, com ressalva dos que provenham de facto posterior ao conhecimento da cessão.
- Não pode agora o réu invocar todos os meios de defesa que poderia lícito invocar contra o cedente, em face da insolvência do cedente.
- A Câmara Municipal de Celorico de Basto, órgão executivo do réu, nas reuniões realizadas em 2.08.2005, 6.09.2005, 20.09.2005 e 5.12.2006, deliberou ceder o direito de superfície, à cooperativa Cooperbasto – Cooperativa Agrícola de Basto, CRL, do seguinte prédio, que integra o domínio provado do réu: UM - Prédio urbano - ..., destinada a lagar de azeite, sito em ..., freguesia de ..., concelho de ..., com a área de 128 m2, a confrontar de norte, Rio ..., sul e poente, Município de Celorico de Basto, nascente, caminho de servidão, inscrito na matriz predial com o artigo ...22º e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n º ...30, com o valor tributável de 2 798, 49€, ao qual se atribui o valor de 3.000,00€.
- O superficiário efectuou o registo desse direito de superfície na Conservatória do Registo Predial.
- Entretanto, a Cooperbasto – Cooperativa Agrícola de Basto, CRL, enquanto superficiária, procedeu a obras de alteração e ampliação do prédio identificado na al. a).
- Para o efeito, terá efectuado um procedimento contratual no âmbito do qual celebrou um contrato de empreitada com a empresa Befebal (cedente do crédito objeto da presente ação), em 31-08-2007, mas no qual o Município não foi parte nem interveniente.
- A Cooperbasto – Cooperativa Agrícola de Basto, CRL, foi declarada insolvente, por sentença proferida em 17.11.2018, transitada em julgado (12.12.2018)
- A Cooperbasto é a responsável exclusiva e dona da obra que deu causa ao alegado crédito e recorreu a fundos comunitários (não suportando a totalidade do custo da execução da obra).
- Deste modo, o Município de Celorico de Basto apenas atribui um subsídio, não se responsabilizou pelo pagamento da obra.
- A atribuição de subsídio por parte de uma autarquia local a uma cooperativa é legalmente admissível.
- Todavia, esse mesmo subsídio já não é extensível a terceiros (designadamente, à autora). O subsídio/doação concedido pelo réu à citada cooperativa não é um direito de crédito transmissível mas intuitu personae.
- Deste modo a atribuição do subsídio teve como escopo e finalidade:
* instalação da “Casa de Produtos Regionais” nos imóveis;
* restauro do edifício do “antigo engenho do azeite”, e requalificação respectiva;
* benefício da população e da colectividade celoricense em geral;
* interesse público municipal.
- Ora este escopo e este interesse público municipal não permitem que a coisa doada – o subsídio – seja transmissível a terceiros, pois essa possibilidade não foi prevista nas deliberações camarárias – actos administrativos praticados na prossecução do interesse público – nem a finalidade e escopo da atribuição do subsídio são incompatíveis com a transmissibilidade a terceiros.
- Assim, o subsídio atribuído pela deliberação da câmara municipal de Celorico de Basto é uma doação intuitu personae.
3. Depois dos articulados foi proferido despacho com o seguinte teor:
“Convido ainda a autora a esclarecer os seguintes aspectos:
- O crédito identificado no artigo 1º da petição inicial foi reclamado na insolvência da Cooperbasto?
- Em caso afirmativo, foi reconhecido e graduado?
- Em caso afirmativo, deverá a autora juntar os documentos que provem o alegado.
- A autora deverá igualmente informar do estado em que se encontra o processo de insolvência.
- Deverá ainda a autora pronunciar-se quanto a uma possível excepção de ilegitimidade activa – tendo em conta que o reconhecimento judicial do crédito não envolve a massa insolvente da Cooperbasto.
- Deverá ainda a autora pronunciar-se quanto à pertinência de um eventual chamamento a esta lide da massa insolvente da Cooperbasto.
- A autora deverá ainda pronunciar-se quanto à competência material deste tribunal tendo em consideração que o invocado direito de crédito baseia-se numa deliberação camarária.”
A autora respondeu por articulado de 27.05.2021 respondendo à matéria excepcional invocada na contestação e ainda informando que o crédito foi reclamado na insolvência da Cooperbasto e graduado.
4. Como o Tribunal considerou que seria possível conhecer o mérito da presente lide de imediato, agendou uma audiência prévia onde foram discutidos os aspectos jurídicos e factuais do caso, como consta da respectiva acta.
5. O saneador-sentença, proferido em 6.07.2021, pelo Tribunal Judicial da Comarca ..., tem o seguinte teor:
“Em primeiro lugar, cumpre dizer que o crédito da Befebal foi reclamado e reconhecido na insolvência pela Befebal. A aqui autora não consta como credora na lista de créditos ali apresentada e reconhecida, junta a estes autos pela autora.
Quer isto dizer que existe (em abstracto) uma duplicação de pedidos sobre o mesmo direito de crédito.
Deixemos de lado esta questão e foquemo-nos no que é mais relevante para a solução de direito a encontrar no caso concreto:
- A primeira pergunta que se tem que colocar é a seguinte: A Befebal poderia intentar uma acção autónoma para demandar o Município de Celorico de Basto no sentido de exigir o pagamento do valor devido à Cooperbasto?
A resposta só pode ser negativa.
Recordemos que o direito de crédito reconhecido judicialmente é entre a Befebal e a Cooperbasto! É imperativo ter sempre presente que uma coisa é o negócio jurídico existente entre a Cooperbasto e a Befebal e outra, completamente diferente, é o negócio jurídico existente a montante entre a Cooperbasto e o aqui réu Município.
Então, teremos que analisar se existe direito de crédito da Cooperbasto sobre o Município (é essencialmente neste vector que a defesa do Município nesta acção se alicerça) e ainda se, existindo esse direito de crédito, é exigível pela Contraste directamente ao Município o respectivo pagamento.
Comecemos a nossa análise por esta última questão.
É facto assente que a Cooperbasto foi declarada insolvente e que um determinado credor (Befebal) tem um direito de crédito sobre a massa insolvente reclamado e reconhecido no processo de insolvência.
Podemos também dar como certo que existiu uma cessão de créditos entre esse credor da Massa Insolvente e um terceiro (a aqui autora, Contraste). É correcto igualmente afirmar que esse credor da Massa Insolvente resolveu, de mote próprio, reclamar junto do devedor da Massa o cumprimento de uma determinada obrigação, rectius, o pagamento de um determinado crédito. De tal forma que, sendo esta acção julgada procedente, terá o réu que pagar directamente à autora o valor relativo a esse direito de crédito.
Salvo o devido respeito por diversa opinião, a pretensão da autora terá que soçobrar. A cessão de créditos operada não lhe confere mais direitos em relação a terceiros (relacionados com o crédito) do que teria a cedente. A autora não pode demandar directamente o Município pedindo um crédito cuja titularidade cabe à Massa Insolvente.
Embora a autora não o diga, parece-nos que o mecanismo jurídico de que a autora se quer servir é a sub-rogação, prevista no artigo 589º do Código Civil, “o credor que recebe a prestação de terceiro pode sub-rogá-lo nos seus direitos, desde que o faça expressamente até ao momento do cumprimento da obrigação.”
Especialmente relevante para o caso é o artigo 606º do Código Civil que refere o seguinte: “Sempre que o devedor o não faça, tem o credor a faculdade de exercer, contra terceiro, os direitos de conteúdo patrimonial que competem àquele, excepto se, por sua própria natureza ou disposição da lei, só puderem ser exercidos pelo respectivo titular.
2. A sub-rogação, porém, só é permitida quando seja essencial à satisfação ou garantia do direito do credor.”
No caso concreto, a autora, constatando que a massa insolvente não exigiu do Município o pagamento do seu direito de crédito, pretende exercer contra esse terceiro devedor o direito de conteúdo patrimonial que cabia à Cooperbasto.
Contudo, acrescenta a lei que “excepto se, por sua própria natureza ou disposição da lei, só puderem ser exercidos pelo respectivo titular”. E aqui é que reside o nó górdio da questão. É que os direitos de crédito da massa insolvente (que serão potencialmente activo dessa massa) terão que ser exigidos pelo administrador da insolvência.
Como se decidiu no aresto do Supremo Tribunal de Justiça de 17.04.2018, processo 1136/13.3TYVNG-3.P1S2, disponível em www.dgsi.pt, “O Administrador da insolvência é o órgão privilegiado de gestão e liquidação da massa insolvente, sendo competente para a realização de todos os actos que lhe são cometidos quer pelo seu Estatuto, cfr Lei 22/2013, de 26 de Fevereiro), quer pela Lei em geral, como resulta do artigo 2º daquele diploma.
Estão compreendidas nessas funções, entre outras devidamente prevenidas na Lei insolvencial, as relativas ao destino dos negócios jurídicos celebrados pelo insolvente, vg cumprimento e/ou recusa de cumprimento de contratos.
Neste conspecto, preceitua o disposto no artigo 102º, nº 1 do CIRE que «em qualquer contrato bilateral em que, à data da declaração de insolvência, não haja ainda total cumprimento, nem pelo insolvente nem pela outra parte, o cumprimento fica suspenso até que o administrador da insolvência declare optar pela execução ou recusar o cumprimento.».
Este normativo faz atribuir ao AI o poder de conformar ou de reconformar as relações contratuais existentes, através do exercício da faculdade de executar o cumprimento do contrato, caso a massa insolvente esteja em condições de o fazer, transmitindo a coisa vendida e exigindo o preço, ou o remanescente, ou, poderá ainda recusar o cumprimento, com as consequências indemnizatórias daí advenientes, sendo certo que o aludido poder tem de ter em conta os interesses da massa, já que o AI deve orientar a sua conduta por forma a maximizar a satisfação dos interesses dos credores
Integrando o escolho, entre o cumprimento e o não cumprimento de um contrato promessa celebrado pela Insolvente, o cumprimento de um dever pelo AI e, pautando-se a sua actuação por princípios de maximização da massa, tendo em atenção a satisfação dos interesses dos credores, a faculdade que lhe concedida pela norma não poderá configurar um direito potestativo, pois este caracteriza-se por o seu titular o exercer por sua vontade exclusiva, desencadeando efeitos na esfera jurídica de outrem independentemente da vontade deste, traduzindo um poder de alterar, unilateralmente, através de uma manifestação de vontade, a ordem jurídica, nela fazendo produzir efeitos jurídicos.
A exercitação por parte do AI, da opção de cumprimento ou não cumprimento dos contratos que lhe confere o artigo 102º, nº1 do CIRE não está dependente da sua vontade exclusiva, mas antes se encontra vinculada aos superiores interesses da massa insolvente, os quais deverão ser ponderados antes da tomada de qualquer decisão, veja-se em abono desta asserção o que dispõe o nº 4 daquele mesmo normativo ao penalizar aquele considerando que «A opção pela execução é abusiva se o cumprimento pontual das obrigações contratuais pela massa insolvente for manifestamente improvável.», de onde se poder extrair que se estará, igualmente, perante um comportamento abusivo quando a recusa de cumprimento acarretar para a massa insolvente um prejuízo considerável.”
Também o Tribunal da Relação do Porto em acórdão datado de 11.10.2016, disponível em www.dgsi.pt decidiu que, “o insolvente não fica privado dos poderes de administração e disposição relativamente a bens não compreendidos na massa insolvente artigo 88.º, n.º 1, a contrario, CIRE).
O insolvente dispõe de legitimidade para cobrança de um crédito não apreendido para a massa insolvente e relativamente ao qual o administrador da insolvência manifestou expressamente a falta de interesse.
O administrador da insolvência só representa o falido relativamente a bens integrantes da massa insolvente., com a finalidade de proteger os credores concursais.”
Com bastante interesse também no acórdão de 11.05.2017 o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu que, “tendo presente o disposto nos artºs 81º, nº 1 e 85º, nº 3 , ambos do CIRE, pacífico é que em razão da declaração da insolvência de devedor, fica este último privado dos poderes de administração e disposição relativamente a bens compreendidos na massa insolvente, ou seja, sendo essencialmente os efeitos da referida decisão de natureza patrimonial, e reflectindo-se eles nos poderes de actuação do insolvente no referido domínio e na sua esfera jurídica, passam os poderes em causa a ser da competência do administrador da insolvência .
A legitimidade que o CIRE confere ao administrador da insolvência de agir/actuar em defesa do interesse da massa insolvente e dos direitos dos credores, não é partilhada/ cumulativa com uma outra - de igual natureza e conteúdo - do próprio insolvente, a ponto de no âmbito da prossecução e defesa dos interesses e direitos acima referidos poder também o insolvente agir por si e em “substituição” do administrador da insolvência no desempenho das funções que lhe incumbe/compete.
Em face do referido carece o devedor insolvente de legitimidade para, sponte sua, substituir-se ao administrador da insolvência no exercício de concreta tarefa em defesa dos interesses dos credores, v.g. dirigindo-se a processo de insolvência de um terceiro e nele deduzir uma reclamação de um crédito.”
Quer isto dizer que a autora não tem legitimidade para, em substituição da massa (e ultrapassando todos os credores ali reconhecidos) vir exigir o cumprimento de um direito de crédito sobre um devedor da massa insolvente. O facto de esse direito de crédito ter como origem – na versão da autora – um comportamento assumido pela cedente de crédito Befebal é irrelevante. No fundo, se assim não fosse, as regras concursais e de reclamação de créditos previstas para a insolvência deixariam de ter sentido. Todos os credores da massa iriam cobrar os seus créditos individualmente. Deixaria de existir graduação de créditos e pagamentos em função do tipo de crédito em causa.
No fundo, a autora pretende ser paga por fora da massa insolvente, mas socorrendo-se de um activo dessa massa (o putativo direito de crédito).
Portanto, o réu terá que ser absolvido do pedido uma vez que este é manifestamente improcedente.
Entende a autora que o réu agiu com abuso de direito porquanto deliberou entregar o subsídio quando as obras fossem feitas e, tendo estas sido concluídas, o réu não entregou esse subsídio. Parece-nos que também aqui não existe razão à autora. O abuso de direito não é fonte de obrigação. Quer dizer, não faculta por si só um direito a uma determinada pessoa. Existe como medida de excepção e como válvula de escape do sistema e tem como missão paralisar um determinado direito ou demonstrar a ilicitude no âmbito da responsabilidade civil extra contratual.
Ora, no caso concreto nenhuma dessas situações existe. É importante frisar que o Município não se vinculou com o cumprimento de qualquer obrigação. A deliberação camarária em causa ficou dependente “de uma informação técnica dos serviços desta autarquia que confirme a execução da obra que esta Câmara Municipal deveria realizar e respectivos valores, o mesmo se aplicando ao projecto, uma vez que esses valores não se encontram quantificados, porque a Câmara Municipal assumiu a obrigação de executar uma obra a elaborar o respectivo projecto”. Não existe qualquer direito certo, líquido e exigível.
O mesmo é dizer que a autora não tem fonte de obrigação que sustente o seu pedido contra a ré.
Julgo a acção manifestamente improcedente e, em consequência, absolvo o réu de todos os pedidos contra si formulados. Registe e notifique. Custas pela autora, in totum. GMR., ds.”
6. Não se conformando com a douta sentença, vem a autora Contraste, Empreendimentos imobiliários, Lda., nos termos do artigo 678.º do CPC, interpor recurso per saltum para o Supremo Tribunal de Justiça, pedindo a revogação daquela sentença e a condenação do réu a pagar à autora a quantia peticionada a título de indemnização.
Formula, no final das suas alegações, as seguintes conclusões:
“I - A recorrente nos termos do artigo 678° do C.P.C, requer que o presente recurso suba diretamente ao Supremo Tribunal de Justiça por se verificarem todos os pressupostos do recurso per saltum.
II - A Recorrente no presente recurso não põe em causa a matéria de facto apenas discute questões de direito, sendo certo que se verificam os demais pressupostos previstos nas diversas alienas do n° 1 do citado artigo 678°
III - Quanto à situação dos autos, afigura-se-nos que a sentença recorrida não fez uma correta subsunção dos factos ao direito.
IV - Se há situação paradigmática em que um terceiro interfere de modo decisivo numa relação contratual e impede o cumprimento por banda de uma das partes de uma das obrigações dela resultante, é aquela espelhada nos autos.
V - O R. ao incumprir com a totalidade da obrigação que resulta da deliberação do seu órgão executivo supra parcialmente transcrita, atua em violação aos ditames da boa fé e torna-se o terceiro que decisivamente origina o incumprimento da obrigação de pagamento de preço decorrente do contrato de empreitada celebrado entre a Cooperbasto e a sociedade cedente do crédito à A.
VI - A conduta do R. é tanto mais censurável quanto o mesmo não podia desconhecer que o seu incumprimento além de ilícito ia provocar o incumprimento do sujeito contratual obrigado ao pagamento do preço e consequentemente iria causar prejuízo no credor de tal preço, no caso a aqui recorrente.
VII - A deliberação do órgão executivo do R. foi decisiva para a relação contratual entre a cooperativa dona da obra e o empreiteiro.
VIII - A deliberação do R. criou no empreiteiro a legitima e fundada expectativa de que o pagamento do preço por parte da dona da obra estava assegurado pela atribuição do subsídio.
IX - Atendendo ao princípio da afetação do subsídio a dona da obra estava obrigada a canalizar a referida receita para o pagamento ao empreiteiro pela execução da obra.
X - Tivesse o R. cumprido com a obrigação que decorre do seu órgão executivo no momento próprio e o crédito detido pela A. teria sido saldado antes da situação de insolvência da Cooperativa dona da obra.
XI - É pois o R. o único responsável pelo incumprimento da dona da obra e consequentemente a sua conduta é causa do prejuízo sofrido pela A., respeitante ao não recebimento da parte do preço em falta da empreitada.
XII - A conduta do R. ainda é mais censurável na medida em que apesar do incumprimento ainda vê integrado no seu património o valor das obras executadas pela sociedade empreiteira a quem a A. adquiriu o crédito, mercê da resolução do contrato de constituição do direito de superfície.
XIII - A conduta do R. de ser havida como interferência determinante e decisiva de terceiros na relação obrigacional a qual por contrário aos princípios da boa fé e geradora de danos deve ser integrada na responsabilidade civil extracontratual como uma exceção à doutrina do efeito interno das obrigações.
XIV - Não sendo de acolher por via de regra, a teoria da eficácia externa das obrigações - ao abrigo da qual se poderá imputar ao R. a violação do direito de crédito da autora - prevalecendo a doutrina do efeito interno das obrigações, certo é que esta não pode ser entendida de forma pura ou dogmática.
XV - Situações existirão em que o comportamento de terceiro configura uma interferência na esfera negocial que pode assumir aspetos que ultrapassam os limites da liberdade contratual, e quando tal sucede, o comportamento do terceiro interferente poderá ser passível de censura à luz dos princípios da boa fé ou do abuso do direito, verificados os pressupostos da responsabilidade civil.
XVI - Assim já decidiu esse Alto Tribunal nos acórdãos de 11-12-2012 no processo n° 165/1995.LI.SI 7a secção em que foi relator o Senhor Conselheiro Távora Victor e 20-09-2011 proferido no processo n° 245/07.2TBSBG.C1.S1 6a secção em que foi relator o Senhor Conselheiro Fonseca Ramos.
XVII - A conduta do R. além de atentar contra dos ditames da boa-fé integra todos os requisitos do instituto da responsabilidade civil porquanto é contrária às normas jurídicas, resulta de uma conduta consciente e voluntária do R., provocou dano na esfera jurídica da A., sendo que tal dano foi a causa direta necessária e adequada do incumprimento do R.
XVIII - A sentença recorrida ao não ter condenado o R., violou erro de aplicação e interpretação as normas dos artigos 334°, 397°, e 483° do C.C.”.
7. O réu apresenta, por sua vez, contra-alegações, em que, em primeiro lugar, sustenta que não estão preenchidos os requisitos do recurso per saltum e, em segundo lugar, pugna pela improcedência do recurso.
8. A subida dos autos foi determinada por despacho proferido em 21.10.2021.
9. Tendo o presente recurso sido interposto como recurso per saltum, tipo que é regulado no artigo 678.º do CPC, a ora Relatora verificou o preenchimento dos respectivos requisitos e proferiu, em 22.11.2021, um despacho julgando admissível o recurso, nos termos do n.º 5 daquela norma.
10. Não houve resposta de nenhuma das partes.
Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC), a questão a decidir, in casu, é a de saber se o réu Município de Celorico de Basto pode ser responsabilizado pelo incumprimento do crédito da Befebal contra a Cooperbasto e, consequentemente, condenado a pagar o crédito à Contraste (cessionária e actual titular do crédito).
II. FUNDAMENTAÇÃO
OS FACTOS
Os factos que foram considerados pelo Tribunal de 1.ª instância são os que resultam do antecedente Relatório.
O DIREITO
A questão que se suscita no presente recurso diz respeito à responsabilização de terceiro por violação do direito do credor, que, como se diz no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 30.04.2019, é um tema que “está entre os mais controversos de todo o direito civil” [1].
De facto, sendo pacífico que, em certas condições, o terceiro deve ser responsabilizado, a doutrina divide-se quanto ao enquadramento desta responsabilidade (extracontratual), discutindo se ele deve ser responsabilizado nos termos do artigo 483.º, n.º 1, do CC[2] ou nos termos do artigo 334.º do CC[3].
Para compreender melhor a discussão, leia-se a exposição de Nuno Manuel Pinto Oliveira:
“O Código Civil português consagra três cláusulas fundamentais de responsabilidade civil extracontratual ou extraobrigacional por factos ilícitos (responsabilidade delitual): 1.º a violação de direitos de outrem (art. 483.º, n.º 1, 1.ª alternativa); 2.ª a violação de disposições legais de protecção (art. 483.º, n.º 1, 2.ª alternativa); e – 3.ª o princípio da proibição do abuso do direito (art. 334.º).
(…)
O problema do efeito externo das relações obrigacionais relaciona-se exclusiva ou essencialmente com a interpretação da primeira cláusula delitual do art. 483.º do Código Civil: os adeptos da teoria do efeito externo advogam uma interpretação declarativa do art. 483.º do Código Civil atribuindo à expressão “direitos de outrem” um sentido mais amplo, de forma a abranger os direitos relativos (direitos de crédito); os adversários da teoria do efeito externo defendem uma interpretação restritiva do art. 483.º do Código Civil atribuindo à expressão “direitos de outrem” um sentido menos amplo, de forma a abranger apenas os direitos absolutos (designadamente os direitos reais e os direitos de personalidade) e a não abranger os direitos relativos
Os primeiros dizem que os direitos de crédito têm dois efeitos: um efeito interno – dirigido a uma pessoa determinada e individualizada; contra o devedor – e um efeito externo – dirigido contra um conjunto de pessoas não determinadas e não individualizadas; contra todas as pessoas (não titulares)
O efeito interno do direito de crédito teria como contra-pólo ou correlato um dever especial – o dever de prestar –; o efeito externo do direito de crédito teria como contra-pólo ou correlato um dever geral – “o dever para toda a gente de respeitar o direito do credor”. “Se o credor tem um direito, chamado relativo, contra o seu devedor, nem por isso deixa[ria] de ter, por outro lado, um outro direito, chamado absoluto, contra todos os outros homens (o direito a que estes nada fizessem que impedisse o reconhecimento e a efectivação do seu crédito)”
Os segundos dizem que os direitos de crédito (só) têm um efeito interno.
Face à interpretação restritiva do art. 483.º do Código Civil, a pretensão indemnizatória do credor contra o terceiro deveria fundar-se na cláusula de responsabilidade civil do art. 334.º: no princípio da proibição do abuso do direito
Entre a primeira e a terceira cláusulas de responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos existe uma diferença: a aplicação ao caso da primeira cláusula de responsabilidade civil exigiria menos – exigiria, tão-somente, que o terceiro tivesse conhecimento do direito do credor –; a aplicação ao caso da terceira cláusula de responsabilidade civil exige mais: “para que haja abuso do direito por parte de terceiro […] não basta que este tenha conhecimento do direito do credor : é preciso que, ao exercer a sua liberdade de contratar, ele exceda manifestamente, por força do art. 334.º, os limites impostos pela boa fé ou pelos bons costumes.
(…)
O texto do art. 483.º do Código Civil e, em especial, o termo “direitos de outrem” conforta a teoria do efeito externo das relações obrigacionais.
O problema está em averiguar se deve fazer-se uma interpretação restritiva ou uma interpretação não restritiva da lei; em averiguar se há alguma razão para fazer uma interpretação restritiva da lei, destinada a “limitar o dispositivo do art. 483.º do Código Civil aos direitos ditos absolutos”, ou se não há nenhuma razão para o fazer – p. ex., porque “o facto de o incumprimento vir tratado no local da “responsabilidade contratual” apenas indiciaria que o legislador entendeu duplicar essa matéria no tocante às violações de créditos feitas pelo próprio devedor; mas, em qualquer caso, manter-se-ia o dispositivo do art. 483.º, n.º 1 do Código Civil que, não compreendendo distinções, não deveria ser restringido””[4].
Quer isto dizer, simplificando, que as duas teses têm um mínimo denominador comum: tanto para uns como para outros, para responsabilizar o terceiro é necessário que se demonstre que ele conhecia o direito do credor.
Mas, antes de analisar este ponto, há uma coisa que salta à vista: é difícil ou mesmo impossível sustentar-se que a lesão do direito de crédito da Befebal se deveu à conduta (interferência) do Município.
Veja-se, desde logo, que obrigação era aquela que assumiu o Município perante a Cooperbasto.
A resposta pressupõe a interpretação da deliberação da Câmara aprovada por unanimidade e exarada na acta da reunião ordinária 11/07, de 2.05.2007.
Pode ler-se aí na parte relevante:
“Propõe-se que:
Esta Câmara Municipal, atendendo ao exposto no requerimento da Cooperbasto, CRL - Casa do Agricultor, e considerando que para a concretização do projecto em questão a melhor solução técnica e económica passa peia decisão de permitir que a Cooperbasto: CRL - Casa do Agricultor assuma a execução da totalidade do projecto da Casa dos produtos Regionais, incluindo a restauração do "edifício do engenho do azeite", candidatando esse mesmo projecto ao programa LEADER +, substitua a sua forma de apoio, entregando uma quantia equivalente aos custos que teria de suportar directamente, para dar cumprimento ás obrigações anteriormente assumidas, e supra descritas.
- A transferência da quantia em causa será sempre precedida de uma informação técnica dos Serviços desta Autarquia que confirme a execução da obra que esta Câmara Municipal deveria realizar e respectivos valores, o mesmo se aplicando ao projecto, uma vez que esses valores ainda não se encontram quantificados, porque a Câmara Municipal assumiu a obrigação de executar uma obra a elaborar.
Deliberação por unanimidade: Aprovada”[5].
A primeira conclusão a retirar é que o Município não tinha a obrigação de entregar à Cooperbasto um valor correspondente ao custo das obras.
Na verdade, com aquela deliberação camarária o Município procedeu a uma substituição da forma de apoio inicialmente atribuída à Cooperbasto por uma forma nova de apoio pecuniário. No entanto, este novo apoio não passava por custear as obras efectivamente realizadas (i.e., desembolsar o valor correspondente ao custo das obras realizadas pela Cooperbasto) mas custear as obras hipotéticas (i.e. desembolsar o valor correspondente ao custo das obras se elas tivessem sido realizadas pelo Município).
Inicialmente, era o o Município quem deveria realizar directamente às obras.
Em confirmação, podem ler-se os considerandos que antecedem a deliberação:
“- Em 5 de Dezembro de 2006 a Câmara Municipal deliberou, no âmbito do projecto para instalação e funcionamento da Casa dos Produtos Regionais, no sentido de assumir o compromisso de proceder ao restauro do edifício do "antigo engenho do azeite", e requalificá-lo de forma a ficar devidamente enquadrado no deliberando assumir o encargo respectivo com a execução do projecto, de forma a permitir, com a elaboração de um único projecto, a obtenção de uma solução global com melhor enquadramento estético e funcional.
- Nessa deliberação não foram definidos valores para a comparticipação da Câmara Municipal apenas se deliberando no sentido de esta assumir a obrigação de executar a referida obra a suportar os custos do respectivo projecto”.
Com aquela deliberação passou a ser a Cooperbasto a realizar directamente às obras, sendo certo que o Município apoiaria transferindo para a Cooperbasto determinada quantia – a quantia equivalente aos custos que suportaria se fosse ela a realizar as obras.
Quer dizer: o Município comprometeu-se a pagar, não quaisquer custos das obras, não os custos (actuais e concretos) das obras realizadas pela Cooperbasto, mas os custos (hipotéticos) das obras se realizadas por ela própria. Isto é bem ilustrado pela parte final do texto da deliberação: “A transferência da quantia em causa será sempre precedida de uma informação técnica (…) que confirme a execução da obra que esta Câmara Municipal deveria realizar e respectivos valores (…), uma vez que esses valores ainda não se encontram quantificados, porque a Câmara Municipal assumiu a obrigação de executar uma obra a elaborar” [6].
É a própria recorrente que admite que o Município assumiu uma obrigação com conteúdo distinto da obrigação de pagar as obras efectivamente realizadas quando fala em “subsídio” (cfr. conclusões VIII e IX),.
Tendo o Município assumido uma obrigação com conteúdo distinto da obrigação de pagar as obras efectivamente realizadas, é muito difícil estabelecer – começar sequer a estabelecer – uma ligação entre o incumprimento desta obrigação e a falta de pagamento do preço das obras e, consequentemente, imputar ao Município o incumprimento do crédito que a Befebal detinha contra a Cooperbasto.
A necessidade de um nexo deste tipo entre a conduta do terceiro e a violação do direito de crédito é bem sublinhada num dos Acórdãos referidos pela recorrente – o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.09.2011[7] –, dizendo-se, no respectivo sumário:
“Não se podendo factualmente afirmar uma relação de causalidade adequada entre a actuação da Ré e a cessação ou ruptura do contrato que o Autor celebrou com terceiro, nem que a conduta da Ré foi dolosa ou sequer interferente na execução do contrato-promessa, não se pode concluir que os danos pela frustração do contrato-promessa, que se considerou terem sido sofridos pelo Autor, tivessem sido causados pela actuação da recorrente”.
Em suma, não pode acompanhar-se a recorrente no entendimento de que “o R. o único responsável pelo incumprimento da dona da obra e consequentemente a sua conduta é causa do prejuízo sofrido pela A., respeitante ao não recebimento da parte do preço em falta da empreitada” (cfr. conclusão XI).
Em todo o caso (i.e., mesmo que aquele não fosse o caso), sempre um factor decisivo impediria a condenação do Município em responsabilidade extracontratual, com fundamento no efeito externo das obrigações ou no abuso do direito: não resulta dos autos – e, na verdade, nem foi exactamente alegado – que o Município tivesse conhecimento efectivo do direito de crédito da Befebal contra a Cooperbasto.
Como se viu, mesmo para os defensores da tese (menos exigente) do efeito externo, a responsabilização do terceiro depende do conhecimento efectivo, por parte do terceiro, do direito do credor.
Esta relação de dependência é bem salientada no outro Acórdão referidos pela recorrente – o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11.11.2012[8] –, em cujo sumário pode ler-se:
“Verificado que a ré adquirente de uma Quinta, objecto de contratos-promessa de lotes para construção celebrados com a ré alienante, tinha conhecimento desses negócios, abusa do direito da liberdade contratual se adquirindo o prédio provoca conscientemente o incumprimento de tais contratos”.
Nas palavras de um defensor desta tese, Eduardo Santos JÚNIOR, o raciocínio seria o seguinte:
“todo o direito subjectivo, porque direito, postula, como dissemos, a sua oponibilidade a terceiros, a sua afirmação perante terceiros, em termos de a estes resultar – é o modo comum de ser ou de traduzir essa oponibilidade – um dever geral de abstenção de inteferir com o direito, sob pena de responsabilidade civil. Um dever geral, porque, virtualmente, in potentia, impende sobre todos os terceiros, como dissemos. Mas a própria contemplação da realidade das coisas demonstra que, inevitavelmente, não podemos bastar-nos com essa oponibilidade virtual. Algo há-de ocorrer que determine a concretização dessa oponibilidade virtual, a sua passagem de oponibilidade in potentia a oponibilidade in actu, que determine, afinal, que aquele dever geral, que, potencialmente, se estende a todos os terceiros, se concretize na esfera jurídica de certos terceiros, em termos de lhes resultar um dever específico ou concreto de absterem-se de interferir com o direito de que se trate.
Não se pode dizer que esse fenómeno concretizador seja um fenómeno único ou que a condição de passagem da oponibilidade in potentia para a oponibilidade in actu seja sempre uma só e mesma condição.
(…)
Mas parece bem que, de facto, o conhecimento constitui a peça-mestra de que fala Duclos: ou, porque preferimos falar de cognoscibilidade e de conhecimento, em vez de conhecimento presumido e de conhecimento efectivo, em regra ou muitas vezes, a consideração pela ordem jurídica, da cognoscibilidade do direito constitui a condição de concretização, na respectiva situação, da oponibilidade do direito, da sua passagem de oponibilidade in potentia a oponibilidade in actu; como, noutros casos, é a consideração do conhecimento efectivo, e só deste, que releva, para a ordem jurídica, como comdição concretizadora da oponibilidade.
(…)
[O]direito de crédito é tão oponível como qualquer direito; a existência do direito de crédito, como de qualquer direito, implica a sua oponibilidade in potentia a terceiros, em termos de um dever geral de respeito; este dever que, in potentia ou virtualmente, assiste a qualquer terceiro, e nessa medida a todos os terceiros, concretiza-se num dever concreto de respeito, no caso do direito de crédito, quando o terceiro o conheça, efectivamente. Na verdade, dada a natureza destes direitos – que normalmente não são reveláveis ou cognoscíveis –, a razoabilidade do Direito e as próprias exigências de fluência do tráfico jurídico, não há, da parte de terceiros, o dever ou o ónus de indagar da existência dos direitos de crédito de outrem; apenas o conhecimento efectivo do direito de crédito por parte de terceiro determina a concretização, na esfera jurídica desse terceiro, da oponibilidade in potentia do direito a oponibilidade in actu. Assim, o não conhecimento efectivo do direito de crédito afastará qualquer hipótese de responsabilidade do terceiro que o lese, simplesmente porque, na esfera jurídica do lesante, não se concretizou o dever de respeito, não chegou a verificar-se o específico dever de respeito limitativo da sua liberdade de agir; quando, porém, os terceiros conheçam por qualquer causa o direito de crédito de outrem – quando dele tenham um conhecimento efectivo – a lesão dele é susceptível de originar-lhes responsabilidade, verificados os respectivos pressupostos da responsabilidade civil. Mais em síntese: o conhecimento (conhecimento efectivo) do crédito não é condição de oponibilidade, enquanto oponibilidade in potentia, mas é condição de efctivação desta: já porque só assim, conhecendo o crédito, é que o terceiro estará habilitado a programar a sua acção por modo a não inteferir com o crédito alheio, já porque assim, quando o desrespeite, é que poderá ter de responder, em sede de responsabilidade civil”[9].
Nas conclusões da revista, a recorrente alega que “a conduta do R. é tanto mais censurável quanto o mesmo não podia desconhecer que o seu incumprimento além de ilícito ia provocar o incumprimento do sujeito contratual obrigado ao pagamento do preço e consequentemente iria causar prejuízo no credor de tal preço, no caso a aqui recorrente (cfr. conclusão VI).
Alega ainda que “o R. ao incumprir com a totalidade da obrigação que resulta da deliberação do seu órgão executivo supra parcialmente transcrita, atua em violação aos ditames da boa fé e torna-se o terceiro que decisivamente origina o incumprimento da obrigação de pagamento de preço decorrente do contrato de empreitada celebrado entre a Cooperbasto e a sociedade cedente do crédito à A” (cfr. conclusão V).
E alega que “a conduta do R. além de atentar contra dos ditames da boa-fé integra todos os requisitos do instituto da responsabilidade civil porquanto é contrária às normas jurídicas, resulta de uma conduta consciente e voluntária do R., provocou dano na esfera jurídica da A., sendo que tal dano foi a causa direta necessária e adequada do incumprimento do R.” (cfr. conclusão XVIII).
Ainda que se fizesse equivaler a alegação (fraca) de que o Município não podia desconhecer à alegação (firme) de que o Município conhecia efectivamente o crédito da Befebal e estava, portanto, como pretende a recorrente, em condições de antecipar o impacto do seu incumprimento naquela (outra) relação obrigacional, o problema é que tal alegação não está ilustrada nos autos ou, melhor dizendo, não tem correspondência em qualquer dos factos constantes dos autos.
Com efeito, dos autos não decorre que o Município tivesse conhecimento do direito que a Befebal detinha contra a Cooperbasto e isto constitui um obstáculo determinante à pretensão da recorrente de responsabilização do Município, seja pela via do efeito externo das obrigações (tese da interpretação declarativa do artigo 483.º do CC), seja, por maioria de razão, pela via do abuso do direito (tese da interpretação restritiva do artigo 483.º do CC). Como se sabe, a procedência deste último fundamento pressuporia a ilustração de que o Município havia excedido, com a sua conduta, os limites impostos pela boa fé ou pelos bons costumes – o que, manifestamente, não se verifica.
É compreensível que a recorrente, actual titular do crédito, pretendesse que o seu interesse fosse satisfeito à custa do terceiro, uma vez que a satisfação pelo devedor ficou mais dificultada com a declaração de insolvência deste.
E poderia até argumentar-se que, indirecta ou reflexamente, o incumprimento por parte do Município se repercutiu na solvabilidade da Cooperbasto, contribuindo para que fosse impossível a esta, por sua vez, cumprir a sua obrigação perante a Befebal.
É o que a recorrente parece alegar quando diz que “tivesse o R. cumprido com a obrigação que decorre do seu órgão executivo no momento próprio e o crédito detido pela A. teria sido saldado antes da situação de insolvência da Cooperativa dona da obra” (cfr. conclusão X).
O certo é que, como já se disse, não é possível responsabilizar o Município pela violação do direito de crédito detido, originariamente, pela Befebal e, agora, pela Contraste, pois não está demonstrado que o Município conhecia efectivamente este direito e, por maioria de razão, não está demonstrado, além disso, que o Município tivesse excedido, manifestamente, os limites impostos pela boa fé ou pelos bons costumes e referidos no artigo 334.º do CC.
Pelo exposto, nega-se provimento à revista e confirma-se o Acórdão recorrido.
Catarina Serra (relatora)
Rijo Ferreira
Cura Mariano
________
[1] Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 30.04.2019, proferido no Proc. 261/14.8TBVCD P1.S1.
[2] Cfr., por exemplo, António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, VI, Direito das Obrigações. Introdução, sistemas e direito europeu, dogmática geral, Coimbra, Almedina, 2012 (2:ª edição), pp. 408 e s. (esp. p. 424), E. Santos Júnior, Da responsabilidade civil de terceiro por lesão do direito de crédito, Almedina, Coimbra, 2003, pp. 437 e s. (esp. pp. 550-553), e António Pinto Monteiro, “Anotação aos Acórdãos do TRP de 8 de Outubro de 2018 e do STJ de 30 de Abril de 2019 (A responsabilidade de terceiro que coopera com o devedor na lesão do direito de crédito”, in: Revista de Legislação e de Jurisprudência, Março-Abril de 2020, n.º 4021, pp. 273 e s.
[3] Cfr., por exemplo, Antunes Varela, Das Obrigações em geral, vol. I, 10.a ed., Coimbra, Almedina, 2000, pp. 175 e s., Almeida Costa, Direito das Obrigações, Coimbra, Almedina, 2009 (12.ª edição), pp. 91 e s., Adriano Vaz Serra, "Responsabilidade de terceiros no não cumprimento de obrigações", in: Boletim do Ministério da Justiça, n.º 85, Abril de 1959, pp. 345-360, e Nuno Manuel Pinto Oliveira, Princípios de Direito dos Contratos, Coimbra, Coimbra Editora, 2011, pp. 965 e s. e pp. 985 e s.
[4] Cfr. Nuno Manuel Pinto Oliveira, Princípios de Direito dos Contratos, cit., pp. 970- 974 (sublinhados do autor).
[5] Sublinhados nossos.
[6] Sublinhados nossos.
[7] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.09.2011, Proc. 245/07.2TBSBG.C1.S1.
[8] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11.11.2012, Proc. 165/1995.L1.S1.
[9] Cfr. E. Santos Júnior, Da responsabilidade civil de terceiro por lesão do direito de crédito, cit., pp. 481-487 (sublinhados do autor e interpolação nossa).