I. Entende-se não existir violação do disposto nos arts. 640.º e 662.º do CPC ao ter o acórdão recorrido – adoptando uma postura não formalista, conforme à jurisprudência do STJ – aproveitado a impugnação da matéria de facto feita pela ré em sede de apelação porque compreendeu o sentido de tal impugnação; e assim, ter apreciado a valoração da prova no tocante aos factos impugnados, e procedido à sua análise, atendendo a todos os meios de prova constantes dos autos e não se cingindo aos meios de prova indicados pela parte.
II. Quanto à questão da invocada nulidade formal das procurações outorgadas para a constituição das hipotecas voluntárias, verifica-se que a eventual averiguação das regras legais aplicáveis ao caso dos autos, podendo conduzir à declaração de nulidade das procurações, teria apenas como efeito a ineficácia das mesmas ao abrigo do n.º 1 do art. 268.º do CC, ineficácia, porém, que apenas pode ser invocada pela pessoa representada, no caso, a mãe da autora, e não pela autora.
III. Assim, a apreciação da eventual nulidade das procurações não apenas se mostra inútil para alcançar o objectivo pretendido pela recorrente, como se apresenta como incompatível com o facto de tal pretensão ser dirigida contra a titular da legitimidade substantiva para invocar a ineficácia das procurações, a mãe da autora, interveniente principal ao lado dos réus nos presentes autos.
IV. Confirma-se, porém, que padece o acórdão recorrido de nulidade por omissão de pronúncia da questão objecto do recurso subordinado de apelação (saber se deve considerar-se que, tendo as hipotecas voluntárias dos autos, constituídas sobre bem imóvel dos pais da autora, servido de garantia a empréstimos bancários contraídos pelo irmão da autora, tal exigiria o seu consentimento, na qualidade de herdeira legitimária, nos termos do art. 877.º do CC, norma que, alegadamente, seria aplicável à constituição de tais hipotecas ex vi art. 939.º do CC).
V. Por esta razão, determina-se a baixa dos autos ao tribunal a quo para apreciação de tal questão.
1. AA e BB intentaram a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra Caixa Geral de Depósitos S.A. e CC e mulher, DD, peticionando o seguinte:
a) Que sejam «anuladas as hipotecas voluntárias realizadas pelas escrituras públicas, juntas como docs. 3 e 4, lavradas entre a Ré Caixa Geral de Depósitos SA e o irmão das Autoras, o aqui Réu, CC e EE no Cartório Notarial ..., respeitantes ao prédio melhor identificado supra, com as devidas e legais consequências e ser determinado o cancelamento, na Conservatória do Registo Predial ..., das inscrições C-1 e C-2 referentes a esse mesmo prédio descrito sob o n.º ...70 – ..., lavradas a favor da Ré Caixa Geral de Depósitos SA.»
b) Que seja «anulada a hipoteca voluntária realizada pela escritura pública, junta como doc. 4, pelos factos alegados nos artigos 31.º a 39.º da presente petição inicial, lavrada entre a Ré Caixa Geral de Depósitos SA e o irmão das Autoras, o aqui Réu, CC e EE no Cartório Notarial ..., respeitantes ao prédio melhor identificado supra, com as devidas e legais consequências e ser determinado o cancelamento, na Conservatória do Registo Predial ..., da inscrição C-2 referente a esse mesmo prédio descrito sob o n.º ...70 – Chancelaria, lavrada a favor da Ré Caixa Geral de Depósitos SA.».
Para tanto alegam as AA. que são irmãs do R. CC e filhas de FF e EE, que foram executados no processo executivo que identificam e no qual a R. Caixa Geral de Depósitos peticiona o pagamento de uma quantia de € 736.942,86.
No âmbito dessa acção executiva, da qual as AA. tiveram conhecimento através dos editais de venda do prédio denominado Herdade ..., constituem títulos executivos as escrituras de hipoteca que serviram de base ao registo de duas hipotecas voluntárias sobre o referido prédio.
As AA. são herdeiras legitimárias dos seus pais, os quais são proprietários do imóvel penhorado referido e que constitui cerca de 90% do seu património.
As hipotecas serviram de garantia a mútuos de que o 2.º R. foi o único beneficiário. Assim, tal oneração foi efectuado em prejuízo dos restantes filhos, as ora AA..
O direito dos filhos à herança é um direito próprio, que deriva do nascimento, não dependendo da abertura da herança, pelo que estes têm o direito de fazer garantir a sua legítima, nomeadamente quando os actos em vida dos pais são feitos com intenção de os prejudicar.
Neste entendimento, trazem à colação o art. 877.º do Código Civil, que, na compra e venda, exige o consentimento dos restantes descendentes em venda a um deles. Assim como o disposto no art. 939.º do mesmo Código que determina a aplicação das normas de compra e venda a outros contratos onerosos pelos quais se alienem bens ouse estabeleçam encargos sobre eles.
Assim, para a constituição das hipotecas em causa, necessário seria o consentimento das AA., sendo que a R. Caixa Geral de Depósitos tinha perfeito conhecimento da sua existência, tendo exigido a sua intervenção em outros actos.
Em consequência, entendem que devem ser anuladas as hipotecas voluntárias que identificam.
Por outro lado, as procurações que o R. CC utilizou para a constituição da primeira hipoteca, em 16/07/2001, foram outorgadas pelos seus pais três dias antes, pelo que, no momento em que aquele constituiu a segunda hipoteca, sete meses depois, já não se encontrava habilitado para a constituir, porque só lhe foram atribuídos poderes para constituir a primeira.
Não tendo poderes de representação, o seu acto, nos termos do disposto no art. 268.º, n.º 1, do CC, teria de ser ratificado sob pena de ser ineficaz relativamente ao representado.
Tal negócio não foi ratificado.
Assim, com este fundamento deve ser anulada a segunda das hipotecas realizadas.
Em conclusão, pronunciam-se pela procedência da acção, peticionando a anulação das hipotecas que identificam e o cancelamento da sua inscrição.
2. A R. Caixa Geral de Depósitos apresentou contestação. Por excepção invocou a preterição de litisconsórcio passivo necessário por não intervirem na acção os proprietários do prédio hipotecado. Por impugnação, alega que as hipotecas foram constituídas livremente pelos proprietários do prédio em causa, impugnando a proporção do valor do bem em causa no acervo hereditário, e alegando que o direito a herdar não recai sobre nenhum bem específico, nem existe expectativa jurídica nos moldes expostos pelas AA..
Da mesma forma conclui pela validade das procurações e pela improcedência da acção.
3. Respondendo a convite do tribunal para sanação de excepção dilatória de ilegitimidade, foi requerida e deferida, em 29/06/2017, a intervenção principal provocada “como associada dos Réus” de EE, mãe das AA.. Tendo vindos aos autos informação do falecimento de FF, pai das AA., em 06/01/2027.
4. A A. BB apresentou desistência do pedido.
Homologada tal desistência, foi a instância declarada extinta nessa parte.
5. Em 07/11/2017, a R. CGD apresentou articulado superveniente, invocando a improcedência da acção com fundamento na renúncia da A. AA à herança de seu pai (em benefício de sua mãe), FF, por escritura de 06/09/2017.
6. Por saneador-sentença de 30/01/2018, com fundamento na verificação das excepções inominadas de ilegitimidade activa superveniente e de falta de interesse em agir, foram os RR. absolvidos da instância.
7. Inconformada, a A. AA interpôs recurso para o Tribunal da Relação ..., o qual, por acórdão de 24/05/2018, foi julgado procedente – com fundamento em que, não obstante ter renunciado à herança do seu pai, a A. mantivera a expectativa jurídica relativamente à legítima na herança da mãe, interveniente principal na presente acção – determinando-se o prosseguimento dos autos.
8. Remetidos os autos à 1.ª instância, foi efectuado julgamento e proferida sentença, em 09/01/2020, pela qual se decidiu o seguinte:
«Pelo exposto julgo parcialmente procedente, por parcialmente provada, a presente acção, e consequentemente, anula-se a hipoteca voluntária constituída por escritura pública outorgada em 26 de Fevereiro de 2002 entre a Caixa Geral de Depósitos, S.A. e CC e EE, no Cartório Notarial ..., a fls. ...27 a ...29, do Livº ..., determinando-se o cancelamento do registo da hipoteca inscrita pela inscrição C-2, AP. ... de 2002/02/20, sobre o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ..., freguesia ..., sob o nº ...70/..., improcedendo o demais peticionado.».
9. Inconformada, por sua vez, com tal decisão, a R. C.G.D. interpôs recurso de apelação, pedindo a alteração da decisão relativa à matéria de facto e a reapreciação da decisão de direito.
Por acórdão de 11/03/2021 foi proferida a seguinte decisão:
«Pelo acima exposto, decide-se:
a) Na procedência do Recurso Principal, revoga-se a Sentença recorrida, na parte em que decidiu anular “a hipoteca voluntária constituída por escritura pública outorgada em 26 de Fevereiro de 2002 entre a caixa Geral de Depósitos, S.A. e CC e EE, no Cartório Notarial ..., a fls. ...27 a ...29, do Livº ..., determinando-se o cancelamento do registo da hipoteca inscrita pela inscrição C-2, AP. ... de 2002/02/20, sobre o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ..., freguesia ..., sob o nº ...70/...”, absolvendo-se os Réus desse pedido;
b) Declarar improcedente o Recurso Subordinado.».
8. Vem a A. AA interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando as seguintes conclusões:
«a) A Ré/Recorrente CGD recorreu da matéria de facto, pugnando pela alteração da mesma;
b) Nomeadamente pugnando pela alteração da matéria de facto dada como provada em 9 e 10;
c) Ou seja, pugnando pela alteração da seguinte matéria de facto dada como provada pela 1ª Instância:
“9 – Os outorgantes das procurações referidas em 6 quiseram apenas autorizar a constituição de uma hipoteca pelo 2º R., CC.
10 – Os referidos outorgantes nunca, por qualquer meio, declararam concordar com a realização de uma segunda hipoteca, nem nunca tiveram a intenção de ratificar o acto do R. CC.”
d) A Recorrente CGD não cumpriu o ónus previsto no Artigo 640º do CPC para a impugnação da matéria de facto;
e) Isso mesmo dá conta o Tribunal da Relação ...;
f) A Recorrente CGD não especificou os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, não especificou os concretos meios de prova, constantes do processo e da gravação da prova, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
g) A Recorrente CGD nem sequer especifica a decisão que, no seu entender, devia ser proferida sobre as questões de facto impugnadas;
h) Assim como estando os depoimentos das testemunhas e partes gravados, igualmente não indicou com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso;
i) Ora nos termos do disposto no nº 1 do Artigo 640 do CPC o recurso é rejeitado quando o recorrente não cumpra a especificação dos concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, dos concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida, e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas;
j) Assim como também não indicou com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, o que nos termos do nº 2 do citado preceito tem como consequência a imediata rejeição do recurso na respetiva parte;
k) Ao invés do ali previsto expressamente o Tribunal a quo entendeu, ainda assim, conhecer do recurso da matéria de facto da CGD, ao fazê-lo violou o disposto no Artigo 640º do CPC, para além do disposto nos Artigos 13º e 20º da CRP;
l) Pelo que, deve o Acórdão recorrido nesta parte ser revogado e o recurso da matéria de facto da CGD ser rejeitado, mantendo-se assim a matéria provada constante de 10 da sentença e que ilegalmente o Tribunal a quo alterou;
Mais,
m) As hipotecas foram constituídas pelo R CC, com base em duas procurações, uma de cada um dos seus progenitores e que lhe conferiam poderes para:
n) O procurador, em nome dos seus representados tinha poderes para: “junto de quaisquer instituições de crédito nomeadamente a Caixa Geral de Depósitos S.A. contrair qualquer empréstimo nos montantes, prazos e juros e cláusulas que tiver por convenientes, dando em garantia dos mesmos e para a segurança dos mesmos como hipoteca o prédio misto descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob a ficha nº ...94…. Mais confere os necessários poderes ao referido mandatário para celebrar quaisquer contratos de mútuo com a referida instituição bancária, requerer quaisquer actos de registo predial, incluindo cancelamentos e averbamentos, provisórios e definitivos e outorgar e assinar as respectivas escrituras públicas, nos termos e condições que entender por convenientes, requerendo, praticando e assinando tudo o mais que necessário seja para os indicados fins;
o) Já no seu próprio nome e interesse, o mandatário tinha poderes para: “ficando ainda o mandatário autorizado a servir-se desta procuração para a prática de negócio consigo mesmo, em consequência hipotecar o referido bem para garantia do empréstimo que a ele mandatário lhe seja concedido nos termos constantes desta procuração”.
p) Ou seja, pelos mandantes foram conferidos poderes ao mandatário para fazer negócio consigo mesmo, podendo hipotecar o referido prédio para garantia do empréstimo que a ele mandatário lhe seja concedido.
q) Ora daqui decorre inequivocamente que não só a 2ª hipoteca é nula, por ninguém ter conferido poderes ao mandatário para a fazer,
r) Como ambas as hipotecas são nulas por o mandatário não ter poderes para as realizar uma vez que verifica-se a nulidade das procurações por falta da forma exigida por Lei;
s) Ora a lei é clara: as procurações conferidas também no interesse do procurador têm que ser celebradas por instrumento público – Artigo 116, nºs 1 e 2 do Código do Notariado;
t) Acontece que as procurações em causa foram feitas por documento particular com reconhecimento das assinaturas;
u) O reconhecimento das assinaturas dos mandantes não tem a virtualidade de transforar o documento particular em instrumento público, e, por conseguinte, em documento autêntico, ou sequer autenticado, é simplesmente um documento particular com as assinaturas reconhecidas; logo muito longe de fazer prova plena das declarações nele constantes!
v) Acresce ainda que mesmo que tais procurações não fossem nulas por inobservância da forma exigida por lei, por se tratarem de procurações que conferem poderes ao mandatário para fazer negócio consigo mesmo e por conseguinte são irrevogáveis, logo a lei exige que sejam feitas por instrumento público;
w) Tais procurações seriam igualmente nulas, como são, pela inobservância da forma exigida por Lei uma vez que a Lei exige que a procuração revista a forma exigida para o negócio que visa realizar; ora no caso a hipoteca tem que ser constituída por documento autêntico ou autenticado; logo as procurações teriam que igualmente ter sido feitas por documento autêntico ou autenticado; o que não ocorreu;
x) E quanto à forma que a constituição de hipoteca sobre imóveis deve revestir a Lei é igualmente clara: dispõe o Artigo 714º do CC que deve constar de escritura pública, testamento, ou documento particular autenticado;
y) Ora um documento particular com as assinaturas reconhecidas não é um documento autenticado;
z) Não há como os confundir: tanto assim que a Jurisprudência não os confunde nem a Doutrina;
aa) Não se percebe como é que no caso dos autos se trata um documento particular com as assinaturas reconhecidas como sendo um documento autêntico ou autenticado!
bb) Assim como o Notário que realizou as escrituras de hipoteca não ignorava que as procurações, sem serem feitas por instrumento público ou documento particular autenticado, não revestiam a forma exigida por Lei para as procurações irrevogáveis nem para conferirem poderes para a constituição de uma hipoteca!
cc) Estivesse o Sr. Notário de boa fé e não teria feito a escritura;
dd) Mas o descalabre foi elevado ao rubro quando o mesmo ainda teve o despautério de em vez de uma fazer duas escrituras com base nas ditas procurações, que ainda que não fossem nulas nunca conferiram poderes para mais do que uma hipoteca por empréstimo contraído pelo R CC;
ee) O mesmo se diga da R CGD: bem sabia a mesma, como entidade bancária que é, que jamais as ditas procurações tinham a forma que a Lei exige para poderem servir para a realização de uma escritura pública de hipoteca ou para o que quer que seja atenta a flagrante nulidade das mesmas!
ff) No sentido de que a omissão da forma legalmente exigida acarreta a nulidade à luz do disposto no Artigo 220º do CC, a qual pode ser invocada a todo o tempo e declarada oficiosamente, cita-se a título meramente exemplificativo, os seguintes Acórdãos [...]
gg) É inequívoco, é pacífico, e muito claro, que em qualquer um dos citados Acórdãos, foi considerado que a omissão da forma prevista na Lei acarreta a nulidade por ocorrência de vicio formal;
hh) O que neles se discutiu nem foi isso, porque isso é pacifico, o que neles de discutiu foram as consequências dessa nulidade;
ii) Não entende a Recorrente porque é que nestes autos o Tribunal a quo, o mesmo que é Autor do primeiro Acórdão acima citado, no caso destes autos, não detectou e conheceu da nulidade por omissão da forma prevista na Lei para as procurações!
jj) Bastava as mesmas serem irrevogáveis como são, para que a Lei exija que sejam feitas por instrumento público!
kk) E não foram. Pelo que, são nulas.
ll) Conferindo poderes para a constituição de hipoteca sobre imóvel, tinham igualmente que revestir a forma de instrumento público ou documento particular autenticado: que não revestem!
mm) E também o Tribunal a quo não detectou e não conheceu de tal nulidade, como deveria ter feito;
nn) O Artigo 220º do CC é claríssimo: a declaração negocial que careça da forma legalmente prescrita é nula, quando outra não seja a sanção especialmente prevista na lei.
oo) É igualmente claro o disposto no Artigo 294º do CC: os negócios jurídicos celebrados contra disposição legal de carácter imperativo são nulos;
pp) A hipoteca sobre imóveis tem que ser constituída por escritura, documento particular autenticado ou testamento (Artigo 714º do CC); Logo, a procuração para representar as partes para a constituição de hipoteca sobre imóvel tem que ser feita por escritura ou documento particular autenticado; o que não aconteceu.
qq) Por tudo o acima exposto e legislação invocada já as procurações são indiscutivelmente nulas por omissão da forma legalmente exigida;
rr) Mas a nulidade das mesmas, pela omissão da falta de forma exigida por Lei, decorre ainda, expressamente, do nº 2 do Artigo 116º do Código do Notariado:
“2 - As procurações conferidas também no interesse de procurador ou de terceiro devem ser lavradas por instrumento público cujo original é arquivado no cartório notarial.”
ss) Dúvidas não podem existir que as procurações são conferidas também no interesse do procurador – dão-lhe podres para fazer negócio com ele próprio – e só por isso já a Lei obrigava a que tivessem sido lavradas por instrumento público!
tt) Por razões lógicas e conhecidas de todos: notários, Tribunais, Bancos – pela simples razão que conferidas também no interesse do procurador são irrevogáveis (Artigo 265º, nº 3 do CC) e este seu carácter impõe por questões de segurança e certeza jurídica, já que se tratam de procurações que os mandantes não têm como “se livrar delas” que sejam lavradas por instrumento público.
“II - Constituindo regra a livre revogabilidade do mandato (artº 1170º, nº 1) e da procuração (artº 265º, nº 2) e a ineficácia das convenções de irrevogabilidade (segundo as mesmas normas, no segmento «não obstante convenção em contrário»), o certo é que essa revogabilidade é afastada quando o mandato ou a procuração tenha sido «conferido(a) também no interesse do mandatário (ou procurador) ou de terceiro»: só nessa hipótese (do mandato ou procuração também no interesse do mandatário ou procurador, ou de terceiro) haverá mandato ou procuração irrevogável.” (Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 18/11/2009, processo 67/1999.E1)
uu) A título meramente exemplificativo, de que até apenas a falta de arquivo (quanto mais também o facto de a mesma não ter sido feita por instrumento público) da procuração irrevogável celebrada por instrumento público acarreta a sua nulidade, cita-se o Acórdão infra, do Supremo Tribunal de Justiça de 29/09/2020, processo 97/17.4T8STC.E1.S1 [...]
vv) Ora no caso dos autos as procurações nem sequer foram lavradas por instrumento público, pelo que não podiam ter ficado arquivadas no Cartório;
ww) O facto de a procuração não possuir a estipulação de “irrevogabilidade”, não lhe retira essa qualidade/efeito. A irrevogabilidade da procuração vigora independentemente de estipulação na procuração. Desde que exista um interesse relevante do procurador na procuração;
xx) Porém, tal procuração, sendo uma procuração irrevogável como se deixou dito, tinha de obedecer a requisitos de forma para que a validade do ato celebrado (a escritura publica) não viesse a ser afetada (art. 268º do Código Civil).
yy) Pois dispõe o nº 2 do art. 116º do Cód. Notariado que:
2 - As procurações conferidas também no interesse de procurador ou de terceiro devem ser lavradas por instrumento público cujo original é arquivado no cartório notarial.
zz) Nos termos da transcrita norma, a procuração dos autos teria de ser lavrada por “instrumento publico” e o seu original teria que ficar arquivado no cartório notarial.
aaa) O regime especial da procuração irrevogável, ao passar a comportar um maior risco para o dominus, exigia agora uma certeza quanto à garantia de conformidade com a vontade do dominus, que não era suficientemente satisfeita com uma declaração que constasse de documento simples, ainda que reconhecido notarialmente.
bbb) Desta feita, a aludida norma do art. 116º do Cód. Notariado veio trazer àquele ato uma solenidade acrescida, com a intervenção do notário na execução/redação do conteúdo ínsito na procuração, podendo concluir-se que «(…) a “ratio” do nº 2 do art. 116º do Cód. Notariado, e o seu sentido jurídico traduzem-se num agravamento do regime formal da procuração irrevogável, em relação ao regime geral.
ccc) A intervenção notarial promove a clarificação da situação, de modo a tornar claro que se trata de uma procuração irrevogável, que a mesma é outorgada no interesse do procurador ou de terceiro e não de uma típica procuração no interesse exclusivo do dominus. E, finalmente, permite ainda guardar no arquivo, no cartório notarial, o original do instrumento que titula a procuração, o que acarreta inegáveis vantagens de publicidade e segurança
ddd) Nos termos conjugados dos arts. 220º e 364º do Código Civil, as exigências de forma podem ser ad probationem ou ad substantiam;
eee) Do art. 364º do Código Civil, resulta que a forma pode ser exigida por lei “apenas para prova da declaração”. Nesse caso, a sua falta não é a causa de nulidade, mas apenas de dificuldade de prova. Sem a forma ad probationem, o ato é válido, mas não pode ser provado, a não ser por um meio mais solene, com força probatória superior.
fff) Já a falta da forma ad substantiam acarreta a nulidade do ato.
ggg) Em regra, as exigências legais de forma são ad substantiam.
hhh) Esta conclusão retira-se do art. 220º do Código Civil que comina, em princípio, com nulidade o desrespeito pela forma exigida por lei. Admitindo, porém, que outro regime seja fixado em preceito especial.
iii) A finalidade das exigências de forma deve resultar da lei.
jjj) Se não resultar claramente da lei que as exigências de forma se destinam apenas a provar a declaração, essas exigências deverão ser consideradas ad substantiam e a sua preterição provocará a nulidade do negócio nos termos do art. 220º do Código Civil. Neste sentido, cfr. [...]
kkk) Voltando à norma do nº 2 do art. 116º do Cód. Notariado, nada resulta que a forma exigida o seja apenas para efeitos de prova da declaração. Como atrás expusemos, o preceito revela um interesse de tutela da autonomia privada, e o agravamento do regime formal da procuração irrevogável, em relação ao regime geral, tem a finalidade de tutela da liberdade de discernimento do dominus na outorga da procuração e de certeza quanto ao conteúdo.
lll) Deve assim, concluir-se que as exigências de forma que resultam da referida norma, devem ser qualificadas de ad substantiam.
mmm) Trata-se de exigência ou requisito de forma que deve considerar-se uma formalidade ad substantiam. Se desrespeitada a forma legal exigida para o negócio jurídico unilateral que é a procuração, a mesma é nula;
nnn) A forma exigida pela norma do nº 2 do art. 116º do Cód. Notariado, constitui um único comando: “…instrumento público cujo original é arquivado no cartório notarial”, que não é cindível quanto aos seus efeitos – art. 9º, nº 3 do Código Civil.
ooo) “O arquivamento da procuração no cartório notarial”, teve por base as mesmas razões que ditaram a exigência de “instrumento publico” para a procuração irrevogável (Pires de Lima e Antunes Varela, CÓDIGO CIVIL ANOTADO, I, 3ª ed. pág., 58, dizem que o sentido da lei, coincidirá com a vontade real do legislador, sempre que esta seja clara e inequivocamente demonstrada através do texto legal)
ppp) Deve assim, concluir-se que as exigências de forma que resultam da referida norma, devem ser qualificadas “in totum” de ad substantiam.
qqq) Assim, é-nos dado concluir que a procuração utilizada na escritura de compra e venda do imóvel dos autos, não obedecia aos requisitos formais para a intervenção da ré, em representação dos autores.
rrr) As consequências jurídicas para a omissão da forma legal exigida, vamos encontrá-las na interpretação conjugada dos arts. 364º e 220º do Código Civil que nos dizem o seguinte:
1. Quando a lei exigir, como forma da declaração negocial, documento autêntico, autenticado ou particular, não pode este ser substituído por outro meio de prova ou por outro documento que não seja de força probatória superior.
sss) Por sua vez o art. 220º do mesmo Código, que a declaração negocial que careça da forma legalmente prescrita é nula, quando outra não seja a sanção especialmente prevista na lei.
ttt) Como no caso concreto é feita expressa referência na lei à necessidade de a procuração ser “lavrada por instrumento público cujo original é arquivado no cartório notarial”, quando a mesma tenha sido emitida em benefício do representante (como foi, nos termos que deixámos expressos), nenhuma duvida pode subsistir que nos encontramos perante uma formalidade ad substantiam (como igualmente deixámos expresso), cuja preterição conduz à nulidade da própria procuração;
uuu) No sentido de que a omissão da forma legalmente exigida acarreta a nulidade à luz do disposto no Artigo 220º do CC, a qual pode ser invocada a todo o tempo e declarada oficiosamente, cita-se a título meramente exemplificativo, o Acórdão [...]
Mais,
vvv) No nosso ordenamento jurídico está consagrado o princípio da substanciação (contraposto ao da individualização) segundo o qual, não basta a indicação genérica do direito que se pretende fazer valer, mas antes será necessária a indicação especificada do facto constitutivo desse direito (cf. [...])
www) Com assento nesses princípios sempre ficará salva ao Tribunal a possibilidade de qualificar juridicamente a situação que lhe é posta à consideração, embora alicerçada nos factos articulados, como decorre do Artigo 664º do Código do Processo Civil, o que conduz, no caso concreto, à possibilidade de fazer reconverter procurações supostamente válidas, em procurações nulas (por falha dos devidos requisitos formais); e hipotecas alegadamente válidas serem anuladas na decorrência da evidente nulidade das procurações usadas para a outorga das hipotecas;
xxx) Nos termos do Artigo 286º do CC, a nulidade é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e pode ser declarada oficiosamente pelo Tribunal.
yyy) Pelo que, deveria o Tribunal a quo ter conhecido oficiosamente da nulidade das procurações e consequentemente da anulação dos negócios celebrados com base nelas, máxime as hipotecas e não o tendo feito está a Recorrente em tempo de alegar a referida nulidade que manifestamente se verifica nos termos supra expostos.
zzz) A Recorrente é filha dos proprietários do prédio hipotecado e agora penhorado em sede de execução intentada pela CGD; a Recorrente é a presumível herdeira da sua mãe, agora viúva; pelo que, é patente que a mesma é interessada na manutenção do património da sua mãe.
Mais,
aaaa) Alega ainda a Recorrente a nulidade do Acórdão recorrido por omissão de pronúncia sobre questão que lhe foi submetida para apreciação e decisão: o R CC, seu irmão, apoderou-se de todo o património dos pais de ambos, o que a Requerente considera ser uma ofensa à sua legítima. É que caso com base numa procuração um dos filhos pudesse contrair empréstimos hipotecando todo o património dos pais, que faria responder pelos créditos contraídos, ficando assim ele com a totalidade do valor do património dos pais através dos empréstimos contraídos e por outro lado os pais sem património que responderia pelos empréstimos do filho, estava encontrada a maneira de contornar a lei: tal negócio não se considera gratuito para que possa ser reduzido na parte em que exceder a quota disponível, também não carece da autorização dos irmãos porque não se trata de uma transmissão onerosa dos pais para o filho, pelo que, estaria encontrada a maneira de contornar a Lei que defende a legitima e que não permite a deserdação dos filhos a não ser nos casos prescritos na Lei.
bbbb) Ora o Tribunal a quo nada decidiu sobre tal matéria como se lhe impunha que tivesse feito, pelo que, também por causa desta matéria – que não sendo de conhecimento oficioso como a nulidade das procurações foi submetida à sua apreciação – ocorre a nulidade do Acórdão recorrido por omissão de pronúncia, nos termos do disposto na alínea d) do nº 1 do Artigo 615º do CPC.»
Termina pedindo que o recurso seja julgado procedente e, em consequência:
- Sejam as procurações declaradas nulas, nos termos do art. 286.º do CC, e anuladas as hipotecas constituídas com base em tais procurações, sendo ainda ordenado o cancelamento dos registos das mesmas e todos os que a estes se seguiram tendo como causa as referidas hipotecas;
- Se assim não entender, deverá o acórdão recorrido ser julgado nulo por ter alterado a matéria de facto impugnada pela Recorrente CGD, quando o deveria ter rejeitado, por esta não ter cumprido o ónus imposto pelo art. 640.º do CPC para a impugnação da matéria de facto;
- Devendo ainda o acórdão recorrido ser julgado nulo por omissão de pronúncia, nos termos da alínea d) do n.º 1 do art. 615.º do CPC, por não ter decidido sobre a ofensa da legítima alegada pela ora Recorrente
9. A Recorrida Caixa Geral de Depósitos contra-alegou, concluindo nos termos seguintes:
«A. A vexata quaestio resume-se (i) à nulidade do Acórdão recorrido por alegadamente ter conhecido da matéria de facto quando considerou que a ora Recorrida não cumpriu o ritual previsto no artigo 640.º do CPC; e (ii) a putativa nulidade das procurações por falta de forma, imputando a Recorrente a nulidade do Aresto recorrido por pretensa violação da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º, aplicável ex vi n.º 1 do artigo 666.º, ambos do CPC. Mas sem razão.
B. A resposta à primeira questão suscitada pela Recorrente terá, necessariamente de ser negativa, porquanto, embora o Venerando Tribunal da Relação tenha considerado improcedente a impugnação da matéria de facto nos termos alegados pela ora Recorrida, entendeu alterar a matéria de facto – considerando o Ponto 10 não provado – mediante reponderação dos meios de prova que se encontram disponíveis e nos quais o Tribunal a quo fundou a sua convicção.
C. Concretamente, entendeu ser excessivo dar como provada a matéria do Ponto 10 dos Factos Provados, apenas com base nas declarações de parte dos Réus CC e EE, sem qualquer apoio documental ou no depoimento de terceiros.
D. Neste contexto, bem andou o Venerando Tribunal da Relação que, no uso dos poderes conferidos pelo artigo 662.º, n.ºs 1 e 2, alínea c) do CPC, reapreciou a decisão de facto, em função, sublinhe-se, da análise crítica de todos os meios de prova disponíveis (os mesmos que antes estavam ao dispor do Tribunal a quo e que foram produzidos em audiência sujeita ao contraditório das partes).
E. Destarte, o Venerando Tribunal da Relação não violou qualquer regra de direito probatório, seja material ou adjetivo, nem desrespeitou o ónus imposto à ora Recorrida pelo artigo 640.º do CPC, pela simples e singela razão de que apreciou a questão no uso dos poderes conferidos pelo artigo 662.º, n.ºs 1 e 2, alínea c) do CPC.
F. Logo, deverão ser julgadas improcedentes as conclusões plasmadas nas alíneas a) a l) do recurso de revista.
G. Ademais, determina o n.º 4 do citado artigo 662.º do CPC que «das decisões da Relação previstas nos nºs 1 e 2 não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça».
H. Ora, o Venerando Tribunal da Relação que reputou deficiente (excessiva) a decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto, alterando a matéria de facto à luz do n.º 2, al. c) do art. 662º do CPC, não cabe recurso para o STJ, nos termos do n.º 4 deste mesmo artigo, ficando, por isso, vedada está a esse Supremo Tribunal, de acordo com o disposto no artigo 641.º, n.º 2, alínea a), aplicável ex vi do artigo 679.º ambos do CPC, a possibilidade de apreciar se a Relação extravasou, ou não, os poderes conferidos por aquele preceito normativo.
I. Relativamente à segunda questão, sublinhe-se que, nos artigos 258.º a 269.º do CC, a representação caracteriza-se pela actuação de alguém (representante) em nome de outrem (representado), não se limitando aquele a exprimir a vontade deste.
J. A procuração é classificada como um negócio jurídico unilateral receptício, o que implica liberdade de celebração e de estipulação e surge perfeita apenas com uma declaração de vontade. Designadamente, não é necessária qualquer aceitação para que ela produza os seus efeitos, e excluindo aqui o âmbito dos poderes outorgados, o artigo 262.º, n.º 2 do CC contém a regra básica segundo a qual a procuração deve revestir a forma exigida para o negócio que o procurador possa realizar, ou seja, a procuração poderá ser verbal quando vise negócios consensuais, devendo ser passada por escrito sempre que essa seja a forma requerida para o negócio a celebrar.
K. Com efeito, a forma legal é estabelecida ad substantiam, tal como decorre da aludida regra prevista no n.º 2 do artigo 262.º do CC, impondo que, por regra, a procuração tenha de revestir a forma do negócio idealizado. Contudo,
L. Resulta expressamente da primeira parte do aludido n.º 2 do artigo 262.º do CC (“salvo disposição em contrário”), que o princípio da equiparação formal entre o acto concessor de poderes representativos e o negócio que o procurador deva realizar comporta exceções, o mesmo sucedendo com o disposto no artigo 714.º do mesmo Código.
M. Uma dessas exceções é a que vem prevista no artigo 116.º do Código do Notariado, norma que é inclusivamente citada pela Recorrente, mas cuja interpretação, com o devido respeito não merece qualquer acolhimento, sobretudo por omitir dolosamente que as procurações a fls. dos presentes autos revestem a forma escrita, escrito e assinado pelo representado com reconhecimento presencial da letra e assinatura. Assim,
N. A procuração pode ser verbal ou escrita, consoante os negócios a concluir sejam consensuais ou requeiram forma escrita; quando para estes se exija escritura pública, aquela procuração pode assumir a forma de instrumento público, documento escrito e assinado pelo representado com reconhecimento presencial da letra e assinatura ou por documento autenticado»
O. Na medida em que o notário intervenha, a lei dispensa a observância da regra do artigo 262.º, n.º 2, do CC, permitindo que as procurações sejam lavradas, designadamente, por documento escrito e assinado pelo representado com reconhecimento presencial da letra e assinatura ou por documento autenticado, quando o negócio principal esteja sujeito a escritura pública. Na base da norma constante do artigo 116º, nº 1, do CN está, clara e inequivocamente, a ideia de que o notário garante a ponderação das partes e se certifica da correspondência entre a vontade manifestada e a vontade real destas, assegurando as cautelas subjacentes às exigências formais da lei substantiva.
P. Pelo exposto, podemos concluir pelo carácter excepcional do artigo 116º, n.º 1, do CN, relativamente à regra geral estabelecida no artigo 262º, n.º 2, do CC, em matéria de forma de procurações, preceito que, por sua vez, consagra também um regime oposto ao princípio da consensualidade vigente no direito civil português (cfr artigo 219º do CC). Ora,
Q. Flui da matéria de facto assente pelas instâncias (vd. ponto 6 – pág. 13 do Acórdão recorrido) que as procurações que o Réu CC utilizou para a constituição das hipotecas, foram outorgadas pelos mandantes, seus pais, em 13/07/2001, cfr. docs. 5 e 6 juntos com a p.i. cujo teor se dá por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos.
R. No verso das aludidas procurações, consta, respetivamente o seguinte texto: «Reconheço as assinaturas infra e letra infra e rectro de EE, feitas ante mim, pela própria, cuja identidade por conhecimento pessoal. Cartório Notarial ..., 13 de Julho de 2001»; «Reconheço as assinaturas infra e letra infra e rectro de CC, feitas ante mim, pelo próprio, cuja identidade por conhecimento pessoal. Cartório Notarial ..., 13 de Julho de 2001».
S. Destarte, tendo as procurações sido lavradas nos termos e com as formalidades impostas pelo n.º 1 do artigo 116.º do CN, que constitui uma norma excepcional, face à regra do artigo 262.º, n.º 2, do CC, as hipotecas constituídas por escritura, de harmonia com o disposto no artigo 714.º do CC, são válidas e eficazes, pelo que as conclusões exaradas nos pontos m) a bbbb) do recurso de Revista devem ser julgadas improcedentes.
T. Por outro lado, confunde a Recorrente o regime previsto no n.º 2 do art. 116.º do CN, vocacionada para as procurações irrevogáveis, que tem de ser articulada com o disposto no n.º 3 do art. 265.º, do CC, com as procurações através das quais se permite a realização de negócios consigo mesmo, que foi o que sucedeu nestes autos.
U. Dito doutro modo, as procurações “conferidas no interesse do procurador” não se confundem com aquelas que admitem a celebração de negócios consigo mesmo, nos termos do artigo 261.º do CC, impondo-se àquelas um regime reforçado em matéria de forma, tal como prescreve o n.º 2 do artigo 116.º do CN.
V. A lei não define o “interesse do procurador ou de terceiro” que se deva ter como relevante para exclusão do princípio geral da livre revogabilidade da procuração e, normalmente, será de atender à “relação jurídica em que a procuração se baseia”, sendo caso típico daquele interesse o de qualquer deles ter “contra o dador de poderes uma pretensão à realização do negócio” ou “o direito a uma prestação»
W. Densificando este conceito, concluímos que na caracterização desse interesse, para se concluir pelo interesse do mandatário ou de terceiro, é forçoso descortinar um direito subjectivo de que um deles seja titular, direito que é exercido, ou por qualquer forma actuado, através do mandato e, mais especificamente, através do cumprimento do acto gestório. Ora,
X. No caso dos autos não se provou a existência de qualquer relação subjacente à outorga das procurações a favor do Réu CC, pelo que não é possível dizer que tais procurações foram conferidas também no interesse dele, inviabilizado a sua sujeição ao regime do n.º 2 do artigo 116.º do CN.
Y. E não se diga que esse interesse resulta do facto de o Réu CC estar autorizado a celebrar negócio consigo mesmo, porque isso não quer dizer que o pudesse celebrar no seu interesse (não resultando de nenhum negócio base o interesse do procurador, o negócio consigo mesmo que o procurador realizasse teria de ser no interesse do representado).
Z. Donde, as conclusões acima referidas, exaradas nos pontos m) a bbbb) do articulado recursório, devem também ser julgadas improcedentes.
AA. As hipotecas em apreço foram constituídas por escritura pública, de harmonia, naturalmente, com o artigo 714.º do CC, exigindo a lei esta solenidade por razões de certeza e publicidade; outras vezes a escritura pública é exigida apenas por razões de interesse das partes, quer seja para uma reflexão ponderada, quer seja para prova do acto. Com efeito,
BB. Atento o disposto no artigo 371.º, n.º 1, do CC, os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que nele são atestados com base na percepção da entidade documentadora, decorrendo do artigo 372.º do mesmo Código que a força probatória dos documentos autênticos só pode ser ilidida com base na sua falsidade.
CC. Segundo o n.º 2 do citado normativo, o documento é falso quanto nele se atesta como tendo sido objecto da percepção da autoridade ou oficial público qualquer facto que na realidade se não verificou, ou como tendo sido praticado pela entidade responsável qualquer acto que na realidade o não foi. Ora,
DD. Nos presentes autos não foi suscitada a falsidade das escrituras através das quais se constituíram as hipotecas em crise, fazendo, assim, tais documentos autênticos prova plena desses factos.
EE. Acresce que, o notário, nas aludidas escrituras, que verificou a identificada dos outorgantes e quanto às procurações e poder do 2.º Réu para a mesma, exarou o notário, no texto de cada uma da escrituras que aquele outorgava as mesmas por si e como procurador em representação dos seus pais «qualidade e poderes para o acto que verifiquei por duas procurações que arquivo» e «qualidade e poderes para o acto que verifiquei por duas procurações arquivadas sob os números ... e ... a instruir a escritura exarada a folhas ...vinte e sete do livro de notas para escrituras diversas número ...vinte e seis – C deste Cartório Notarial».
FF. Consequentemente, não poderá assim serem postos em crise os negócios jurídicos unilaterais (procurações), cujos elementos intrínsecos são verdadeiramente atestados nas escrituras, conservando, pois, tais documentos, na sua essencialidade, eficácia probatória, nomeadamente para a constituição das hipotecas constituídas por escrituras públicas e assim registadas no Registo Predial.
GG. Subsidiariamente, na eventualidade de a nulidade imputada às procurações venha a ser julgada procede, o que não se concede, o direito real de garantia (hipotecas) da CGD não ficaria afetado por força do n.º 1 do artigo 291.º do CC.
HH. O n.º 1, do art. 291º, do CC, dispõe que «a declaração de nulidade ou anulação do negócio jurídico que respeite a bens imóveis, ou a móveis sujeitos a registo, não prejudica os direitos adquiridos sobre os mesmos bens, a título oneroso, por terceiro», sem distinguir o tipo de direitos (reais) susceptíveis de ficaram salvaguardados do efeito retroactivo da declaração de nulidade da compra e venda antecedente.
II. Ora, a utilização da expressão «direitos adquiridos», no plural, é sintomático da intenção do legislador de não restringir o âmbito de aplicação do art. 291º do CC ao direito de propriedade registado a favor de terceiro.
JJ. Destarte, na doutrina é pacífico o entendimento de que “terceiro” objecto de tutela pelo art. 291º do CC poder ser um subadquirente de um direito real de gozo menor ou de um direito real de garantia, como é o caso da hipoteca.
KK. Face ao exposto, é evidente que a CGD enquanto titular de um direito real de garantia - duas hipotecas - sobre o prédio identificado nestes autos, caso venha a ser declarada a nulidade das procurações subjacentes à outorga das escrituras através das quais se constituíram tais hipotecas, não poderá deixar de ser considerada “terceiro” para efeitos do disposto no art. 291º do CC.
LL. Consequentemente, a eventual nulidade das procurações é inoponível à Recorrida, por ser considerado terceiro de boa-fé.»
Cumpre apreciar e decidir.
10. Vem provado o seguinte (mantêm-se a numeração e a redacção das instâncias):
1 - Nos autos de execução sob o número 224/04...., com termos pela Comarca ... - ... – Inst. Central – Sec. Cível e Criminal – J…, a aí a exequente, e aqui Ré, Caixa Geral de Depósitos S.A. peticiona o pagamento da quantia de € 736.942,86 (setecentos e trinta e seis mil novecentos e quarenta e dois euros e oitenta e seis cêntimos).
2 - As Autoras são irmãs de CC e filhas de FF e de EE, todos executados melhor identificados nos autos 224/04.....
3 - No âmbito, dessa mesma execução, foi promovida a venda do seguinte imóvel: “Prédio misto sito ou denominado Herdade ..., freguesia ..., concelho ..., com a área de 912.1000 ha, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...70/..., inscrito na matriz a parte rústica sob o art. ...1 da secção ..., ...1 e ...2 e a parte urbana sob o art. ...39”., cfr. doc. 1 junto com a p.i., cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
4 - Naqueles autos 224/04...., constituem títulos executivos as escrituras de hipoteca, as quais serviram de base ao registo das hipotecas voluntárias, cfr. apresentações AP. ... de 2001/07/16 e AP. ... de 2002/02/20, ambas a favor da aí exequente Caixa Geral de Depósitos S.A., para garantia de mútuos cedidos aos 2ºs RR. nos valores respectivamente de 85.000.000$00 e € 200.000, e montantes máximos assegurados respectivamente de € 127.797,500$00 e € 300.700.
5 - As obrigações pecuniárias assumidas pelo irmão das Autoras, o aqui Réu CC junto da Ré Caixa Geral de Depósitos S.A. e os proventos resultantes das mesmas, foram de gasto exclusivo daquele.
6 - As procurações que o Réu CC utilizou para a constituição das hipotecas, foram outorgadas pelos mandantes, seus pais, em 13/07/2001, cfr. docs. 5 e 6 juntos com a p.i. cujo teor se dá por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos.
7 – As AA. tiveram conhecimento da existência das hipotecas através da fixação do edital para a venda datado de 01/12/2015.
8 – As AA. não prestaram o seu consentimento para a constituição das hipotecas supra identificadas.
9 – Os outorgantes das procurações referidas em 6 quiseram apenas autorizar a constituição de uma hipoteca pelo 2º R., CC.
10 - [dado como não provado pela Relação: Os referidos outorgantes nunca, por qualquer meio, declararam concordar com a realização de uma segunda hipoteca, nem nunca tiveram a intenção de ratificar o acto do R. CC]
Factos dados como não provados pela 1.ª instância:
a) O imóvel denominado “Herdade ...” constitui cerca de 90% do património dos pais da A.
b) Os dois empréstimos a favor de apenas um dos filhos pelos pais da A. teve como intuito prejudicar aquelas.
c) A Caixa Geral de Depósitos conhecia que as AA. são filhas de FF e EE.
d) Por inúmeras ocasiões a R. Caixa Geral de Depósitos exigiu obrigatoriamente, em outros contratos celebrados, as assinaturas das AA. juntamente com a do seu irmão.
11. Tendo em conta o disposto no n.º 4 do art. 635.º do Código de Processo Civil, o objecto do recurso delimita-se pelas respectivas conclusões, sem prejuízo da apreciação das questões de conhecimento oficioso.
Assim, o presente recurso, e não obstante o estilo prolixo das respectivas conclusões, tem como objecto as seguintes questões (pela ordem de precedência pela qual serão conhecidas):
- Nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia, nos termos do art. 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC, aplicável ex vi art. 666.º, n.º 1, do CPC;
- Violação do disposto no art. 640.º do CPC e, bem assim, dos arts. 13.º e 20.º da Constituição por o acórdão recorrido ter conhecido da impugnação da matéria de facto sem que a apelante tenha cumprido os ónus que lhe competiam;
- Erro na aplicação do direito, uma vez que que as procurações são nulas, por falta de forma, nos termos dos arts. 220.º, 364.º e 714.º do Código Civil, bem como do art. 116.º, n.º 2, do Código do Notariado.
12. Analisados tanto os termos em que as AA. fundaram as suas pretensões (tendo, entretanto, a 2.ª A. desistido da instância) como a complexidade do processado – em que avultam especialmente o teor, não inteiramente linear, do recurso subordinado de apelação da A. e a interpretação dele feita pelo acórdão da Relação – constata-se que a plena e cabal resolução das questões objecto do presente recurso de revista e, em especial, a apreciação da invocada nulidade por omissão de pronúncia, impõem que, antes de mais, se considerem os dados mais relevantes do processado.
Iremos assim detalhar:
- Os fundamentos da pretensão das AA.;
- Os fundamentos da sentença da 1.ª instância de 09/01/2020, que julgou parcialmente procedente a acção;
- O objecto da apelação da R. Caixa Geral de Depósitos;
- O objecto do recurso subordinado da A., ora Recorrente;
- Os fundamentos do acórdão da Relação que julgou procedente o recurso da R. e improcedente o recurso subordinado da A..
A) Fundamentos da pretensão das AA.:
De acordo com o relatório supra do presente acórdão, as AA. peticionaram a anulação de duas hipotecas voluntárias constituídas sobre o prédio denominado Herdade ..., pertencente aos seus pais, com os seguintes fundamentos:
(i) Terem as ditas hipotecas sido constituídas para garantir empréstimos bancários contraídos pelo irmão das AA., o que, em seu entender, e de acordo com o regime da venda de pais a filhos do art. 877.º do Código Civil, aplicável ex vi art. 939.º do mesmo Código, regime que se destina proteger os herdeiros legitimários, exigiria o consentimento das AA., que não foi prestado;
(ii) De qualquer forma, as procurações outorgadas pelos pais das AA. ao irmão destas, aqui 2.º R., apenas concediam poderes para constituir a primeira hipoteca; em consequência, o acto de constituição da segunda hipoteca foi realizado em representação sem poderes; não tendo sido ratificado, nos termos do art. 268.º, n.º 1, do Código Civil, é ineficaz em relação aos representados, razão pela qual se deve entender ser o mesmo acto anulável.
B) Decisão da 1.ª instância:
A sentença de 09/01/2020, julgando improcedente o primeiro fundamento invocado pelas AA. e procedente o segundo fundamento, decidiu pela validade da primeira hipoteca e pela anulação da segunda hipoteca.
C) Apelação da R. CGD:
Em sede de apelação, a R. CGD impugnou a decisão, pedindo a alteração da matéria de facto e pugnando pela improcedência do segundo fundamento invocado na petição inicial e reconhecido pela sentença, alegando, entre outros argumentos, que as procurações outorgadas pelos pais das AA. são formalmente válidas (ao abrigo do art. 116.º, n.º 1, do Código do Notariado) e conferiram ao 2.º R., poderes para constituir tanto a primeira como a segunda hipotecas voluntárias.
D) Recurso subordinado da 1.ª A.:
Em sede de recurso subordinado – ainda que formalmente invocando apenas a nulidade da decisão por alegada falta de conhecimento da questão da ofensa da sua legítima – pugnou a 1.ª A. pelo bem julgado da decisão da primeira instância, ao reconhecer como verificado o segundo fundamento invocado na p.i.; e pôs em causa a decisão de improcedência do primeiro fundamento, pretendendo que se admitisse que, tendo as hipotecas em causa sido constituídas para garantir empréstimos bancários contraídos pelo irmão da A., tal exigiria o consentimento desta última, na qualidade de herdeira legitimária nos termos do art. 877.º do Código Civil, em seu entender, aplicável à constituição de hipotecas voluntárias ex vi art. 939.º do mesmo Código.
Com efeito, não apenas por a A. ter qualificado o meio processual utilizado como recurso subordinado, mas sobretudo e, essencialmente, pelo conteúdo substantivo das conclusões por si formuladas («a) À data da interposição da presente ação, a ora Recorrente era herdeira legitimária de FF e de EE, seus pais, os quais eram ambos proprietários do imóvel em apreço. b) Por força do falecimento do pai da Recorrente, e da renúncia e repúdio dos restantes herdeiros, é a sua mãe a proprietária do aludido bem, o qual representa cerca de 90% do património da mesma. c) As obrigações pecuniárias assumidas pelo irmão da Recorrente e Réu na acção, CC, junto da Ré Caixa Geral de Depósitos S.A. e os proventos resultantes das mesmas, foram de gasto exclusivo daquele. d) A Recorrente, enquanto filha da sobreviva EE, e sua herdeira legitimária, tem, por isso, o direito de fazer garantir a sua legítima, mesmo futura, pelos meios legais. e) Com efeito, o Código Civil admite a prática de actos necessários à conservação dos direitos, bem como alude à ameaça de direitos dos herdeiros. f) Enquanto filha, a Recorrente pode pedir, mesmo em vida dos pais, a anulação de dívidas e/ou encargos por estes contraídas – que se presumem simuladamente e com o intuito de a prejudicar – não sendo, portanto, preciso demonstrar a efectividade do prejuízo. g) Assim, é evidente que a celebração das escrituras das quais emergem esses encargos (hipotecas voluntárias) tem o fim de defraudar a aqui Recorrente na sua legítima, ou seja, no seu direito à herança, vendo a sua expectativa jurídica hereditária gravemente afectada. h) Perante a materialidade alegada, desde já, se adianta que não falta legitimidade à ora Recorrente para intentar a presente ação, nos termos em que o fez na petição inicial apresentada, tal como resulta do art. 30.º CPC. i) Dessa forma, é notório que a Sentença de que ora se recorre, não teve em devida consideração o facto de a Recorrente manter a qualidade de herdeira legitimária da sua mãe. j) Em face de todo o exposto, verifica-se por parte do Tribunal a quo um deficiente ou inexistente exame crítico de todos os factos juridicamente relevantes que serviram para formar a sua convicção.»), considera-se que a A., ora Recorrente, requereu que a Relação (re)apreciasse o primeiro fundamento da acção, julgando-o procedente, com a consequente revogação da decisão da 1.ª instância na parte em que lhe fora desfavorável, anulando-se (também) a primeira hipoteca voluntária (e mantendo-se a da decisão de anulação da segunda hipoteca voluntária, tanto com o fundamento reconhecido pela sentença como com aquele outro fundamento pelo qual a primeira hipoteca deveria ser anulada).
Vejamos se foi assim considerado pelo tribunal a quo.
Ao delimitar o objecto de ambos os recursos, afirma-se (pág. 34 do acórdão recorrido) o seguinte:
«O Recurso Principal tem por objecto a discordância quanto à Decisão do Tribunal “a quo” de anular a segunda escritura, por a Ré C.G.D. entender que a acção deveria improceder.
Já o Recurso Subordinado advém do facto da Autora entender que Tribunal “a quo” deveria ter reconhecido/declarado que, por via da constituição da referida hipoteca, foi ofendida a legítima da Autora.
Conformando-se as partes com a improcedência da restante parte do peticionado pela Autora.». [negrito nosso]
Deste modo, verifica-se que o acórdão recorrido:
- Entendeu ter sido suscitada uma questão de erro de julgamento a respeito da possibilidade de a A. recorrer ao meio de tutela da legítima previsto no art. 877.º do Código Civil, alegando esta ser tal regime aplicável à constituição de hipotecas voluntárias ex vi art. 939.º do mesmo Código;
- Entendeu, porém, que esse erro de julgamento não punha em causa a decisão de improcedência relativa ao primeiro fundamento da acção nem tampouco a decisão de improcedência respeitante à primeira hipoteca.
Reconhecendo, embora, que o recurso subordinado da A. não prima pela clareza, não podemos acompanhar o entendimento do tribunal a quo quanto ao objecto do mesmo recurso.
Na verdade, ao suscitar a A. a questão do erro de julgamento a respeito da possibilidade de a A. recorrer ao meio de tutela da legítima previsto no art. 877.º do Código Civil, em seu entender, aplicável à constituição de hipotecas voluntárias ex vi art. 939.º do mesmo Código – primeiro fundamento da acção – com base no qual, em sede de p.i., peticionou a anulação de ambas as hipotecas voluntárias, pretendia a A.:
- Que a Relação reapreciasse tal fundamento, julgando-o procedente e, consequentemente, revogasse a decisão da 1.ª instância, anulando a 1.ª hipoteca e mantendo a anulação da 2.ª hipoteca (agora também por este fundamento cumulativo);
- Em relação à 2.ª hipoteca, mantivesse o juízo da 1.ª instância quanto à procedência do segundo fundamento invocado na p.i. (o acto de constituição da segunda hipoteca foi realizado em representação sem poderes, sendo, por isso, anulável).
Temos, assim, que a afirmação do acórdão recorrido «conformando-se as partes com a improcedência da restante parte do peticionado pela Autora» não é correcta. Com efeito, estamos perante a hipótese de recurso de decisão desfavorável prevista no n.º 1 do art. 633.º do CPC («Se ambas as partes ficarem vencidas, cada uma delas pode recorrer na parte que lhe seja desfavorável, podendo o recurso, nesse caso, ser independente ou subordinado.») e não perante a hipótese de ampliação do recurso de apelação da R., prevista no n.º 1 do art. 636.º do CPC («No caso de pluralidade de fundamentos da ação ou da defesa, o tribunal de recurso conhece do fundamento em que a parte vencedora decaiu, desde que esta o requeira, mesmo a título subsidiário, na respetiva alegação, prevenindo a necessidade da sua apreciação.»).
E) Acórdão da Relação:
A Relação alterou a matéria de facto (dando como não provado o ponto 10. da factualidade dada como provada pela 1.ª instância) e reapreciou a decisão de direito, pronunciando-se, designadamente, sobre as seguintes questões:
- Saber se os poderes conferidos pelas procurações abrangem ou não a segunda hipoteca (questão correspondente ao segundo fundamento da acção, julgado procedente pela decisão da 1.ª instância, cuja reapreciação foi suscitada em sede de recurso de apelação da R. CGD). Pode ler-se no acórdão recorrido:
«Enquadrando a questão, importa dizer que, tendo a Autora renunciado à herança aberta pela morte de seu pai, o pedido em apreço, relativo à anulação da segunda escritura, o presente recurso tem que ser perspectivado, exclusivamente, como anteriormente já tínhamos referido, no contexto da expectativa jurídica da Autora à herança de sua mãe.
Em face da matéria de facto dada por assente, afigura-se-nos linear concluir que, por via das aludidas procurações, os mandantes apenas conferiram poderes a seu filho, o Réu CC, enquanto mandatário, para onerar o prédio em apreço com hipoteca para garantia de um empréstimo concedido por instituição bancária ao aqui Réu, em benefício próprio.
O que se concretizou com a realização da primeira escritura de hipoteca.
Tudo o mais, ou seja, a realização da segunda escritura de hipoteca, extravasa o âmbito dos poderes conferidos pelos mandantes ao mandatário, aqui Réu, CC, por via das referidas procurações, pelo que a constituição dessa segunda hipoteca, onerando o prédio dos mandantes, é, nos termos do disposto no art.º 268º, n.º 1 do Cód. Civ., ineficaz em relação a estes, pois não ratificaram esse negócio.
Em face deste enquadramento, entendeu o Tribunal “a quo” que a acção deveria proceder parcialmente, quanto ao segundo pedido, atinente exclusivamente à segunda escritura, com os seguintes fundamentos:
«[...]»
A nosso ver, o art.º 287º do Cód. Civ., enquanto norma que define, em termos gerais, a legitimidade substantiva para se poder invocar a anulação de um determinado negócio, tendo por suporte um vício que o fere, tem necessariamente de ser conjugada, como se retira da expressão “as pessoas em cujo interesse a lei a estabelece”, reportando-se à legitimidade substantiva para arguir a nulidade de um determinado negócio jurídico, com outra norma jurídica que atribua especificamente tal legitimidade substantiva a esse alegado interessado, no quadro legal que define o vício do negócio.
Ou seja, mostra-se necessário, que o demandante estabeleça uma cadeia normativa, tendo por pano de fundo a norma geral que define o regime da anulabilidade, entre a norma que consubstancia o vício do negócio jurídico, e a norma que confere ao demandante legitimidade material para peticionar a anulação do negócio ou a declaração da sua ineficácia.
O disposto no n.º 1 do art.º 268º do Cód. Civ., de per si, não concede a um terceiro, nomeadamente ao herdeiro legitimário, o direito de ver declarada a ineficácia de um determinado negócio jurídico, porque quem interveio nesse negócio em representação de uma parte - no que interessa ao caso, quem interveio no negócio em representação dos seus pais -, não tem poderes de representação para o efeito.
Do texto da norma, apenas se pode concluir que a legitimidade material para intentar a atinente acção de declaração de ineficácia do negócio, se restringe à pessoa em nome da qual, indevidamente, alguém, sem poderes para a representar, celebrou um negócio em seu nome.
Para que os herdeiros legitimários pudessem deitar mão deste instituto, mostrar-se-ia necessário, à semelhança do que acontece com o disposto no n.º 2 do art.º 242º do Cód. Civ., aditar à norma um número que consagrasse expressamente a excepção, conferindo legitimidade material dos herdeiros legitimários para intentar a competente acção.» [negrito nosso]
- Saber se se encontram preenchidos os pressupostos para fazer funcionar os meios de tutela da legítima da A., havendo que ter presente que a questão concreta correspondente ao primeiro fundamento da acção, julgado improcedente pela 1.ª instância, cuja reapreciação foi suscitada em sede de recurso subordinado da A., é a seguinte: deve ou não considerar-se que, tendo as hipotecas voluntárias em causa sido constituídas para garantir empréstimos bancários contraídos pelo irmão da A., tal exigiria o consentimento desta última, na qualidade de herdeira legitimária nos termos do art. 877.º do Código Civil, norma que, no entender da A., é aplicável à constituição de tais hipotecas ex vi art. 939.º do mesmo Código.
A Relação afirmou o seguinte:
«Assim não sendo, importa indagar se há norma que conceda legitimidade substantiva ao herdeiro legitimário para ver anulado um negócio - melhor dizendo ver declarada a sua ineficácia de um negócio relativamente aos mandantes, em que alguém agiu em representação do autor da herança, ainda vivo, sem ter poderes para o efeito.
Como é pacífico, no quadro da legislação portuguesa, o autor da herança pode, em vida, alienar onerosamente os seus bens, sem que, em regra, os herdeiros legitimários se possam opor à sua vontade negocial.
Pois, como é entendimento doutrinário e jurisprudencial largamente sufragado (ver por todos o Acórdão deste TRE, de 08/06/2017, proferido no Proc. n.º 538/13.0TBSSB.E1, em que foi Relator o Des. Tomé de Carvalho, citando uma súmula da doutrina), os sucessíveis legitimários, em vida do autor da sucessão, apenas têm uma expectativa juridicamente titulada à sua porção legitimária (neste sentido vide Rabindranath Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, 200, Vol. I, a págs. 141), facultando-lhes a lei um conjunto restrito de meios para defenderem os seus direitos, uns que só podem exercer após a abertura da herança, nomeadamente a acção para redução de liberalidades por inoficiosidade, outros que podem ser exercidos em vida do autor da herança, em que relevam “a acção de declaração de simulação, à acção de inabilitação por prodigalidade, a necessidade de consentimento dos demais descendentes na venda feita a um deles e as curadorias provisória e definitiva” (Rabindranath Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, 200, Vol. I, a págs. 164), hoje com as necessárias adaptações devido ao novo regime do maior acompanhado.
Resumindo, “Não existe na lei uma intenção geral e genérica de proteger os herdeiros legitimários conferindo-lhe legitimidade para atacar os actos que atinjam as suas expectativas em relação à futura sucessão nos bens da herança dos seus antecessores ainda vivos. Essa legitimidade só existe em circunstâncias especiais se concretamente definidas na lei, designadamente através da possibilidade de arguir a simulação quando pretenda agir em vida do autor da sucessão contra os negócios por ele simuladamente feitos com o intuito de o prejudicar.” (citado Acórdão do TRE)
Afastadas as acções atinentes à pessoa do autor da herança, por não terem interesse para o caso em apreço, restam-nos a acção de declaração de simulação e a acção para anulação de venda feita a filhos ou netos, sem o consentimento dos restantes.
Quanto à segunda, a acção para anulação de venda feita a filhos ou netos, sem o consentimento dos restantes, que tem por suporte a violação do disposto no art.º 877º do Cód. Civ., já o Tribunal “a quo”, e bem, entendeu não ser aplicável à situação em apreço, no que as partes se conformaram.
Resta-nos a acção de declaração de simulação de negócio, que pode ser intentada pelos herdeiros legitimários, em face do disposto no n.º 2 do art.º 242º do Cód. Civ.
Na definição do n.º 1 do art.º 240º do Cód. Civ., a simulação absoluta evidencia-se num acordo entre o declarante e o declaratário, no intuito de enganar terceiros, que conduz a que as partes vertam num negócio jurídico uma declaração negocial que não corresponde à sua efectiva vontade.
[...]
Na situação em apreço, não resulta dos autos, nem as partes o alegaram, que os mandantes, pais da Autora e do mandatário, ao emitir a referida procuração, quiseram _ na parte que respeita à autorização para o mandatário efectuar negócio consigo mesmo_, sob a capa dessa autorização, efectuar um qualquer outro negócio em benefício de seu filho, por exemplo, e conjecturando, que os mandantes, em conluio com o mandatário, bem sabendo que este não tinha o propósito de pagar os empréstimos que lhe foram concedidos pela C.G.D., quiseram que este ficasse com a quantia garantida pelas hipotecas, em prejuízo dos restantes herdeiros dos mandantes, que assim veriam o principal bem do património dos mandantes, o bem hipotecado, vendido para pagamento da dívida do mandatário.
Tratando-se de um regime excepcional, que confere legitimidade substantiva aos herdeiros legitimários, no quadro definido pelo n.º 2 do art.º 242º, para arguir a nulidade de negócio simulado que seja efectuado com o intuito de os prejudicar, não pode ter aplicação analógica em situações diversas, que não se enquadrem no instituto da simulação.
Como se diz no Acórdão do TRC, de 18/05/2004, proferido no Proc. n.º 1475/04,
[...]
Aqui chegados, e depois desta resenha, não se vislumbrando norma jurídica que atribua à Autora, enquanto herdeira legitimária de sua mãe, legitimidade substantiva que suporte a sua pretensão de ver anulada a segunda escritura de hipoteca, ou melhor dizendo, não se alcançando norma jurídica que confira à Autora legitimidade substantiva para, ao abrigo do disposto no n.º 1 do art.º 287º do Cód. Civ., e tendo por referência ao disposto no n.º 1 do art.º 268º do Cód. Civ., ver declarada a ineficácia dessa hipoteca relativamente a seus pais, a acção tem que naufragar completamente.». [negritos nossos]
13. Apresentado, de forma esquemática, o processado nos autos, naquilo que releva para apreciação do presente recurso, enunciam-se de novo as questões recursórias a apreciar:
- Nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia, nos termos do art. 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC, aplicável ex vi art. 666.º, n.º 1, do CPC;
- Violação do disposto no art. 640.º do CPC e, bem assim, dos arts. 13.º e 20.º da Constituição por o acórdão recorrido ter conhecido da impugnação da matéria de facto sem que a apelante tenha cumprido os ónus que lhe competiam;
- Erro na aplicação do direito, uma vez que que as procurações são nulas, por falta de forma, nos termos dos arts. 220.º, 364.º e 714.º do Código Civil, bem como do art. 116.º, n.º 2, do Código do Notariado.
14. Vem a Recorrente arguir a nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia, nos termos do art. 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC, aplicável ex vi art. 666.º, n.º 1, do CPC, acerca da questão do desrespeito pela legítima da A., questão que, conforme se extrai de tudo o que fica dito no ponto 12. do presente acórdão, consistia no seguinte: em sede de recurso subordinado de apelação, a A. pôs em causa a decisão de improcedência do primeiro fundamento, pretendendo que se admitisse que, tendo as hipotecas em causa sido constituídas para garantir empréstimos bancários contraídos pelo seu irmão da A., tal exigiria o consentimento desta última, na qualidade de herdeira legitimária nos termos do art. 877.º do Código Civil, aplicável à constituição de hipotecas voluntárias ex vi art. 939.º do mesmo Código.
Consideremos, de novo, os termos em que o acórdão recorrido se pronunciou sobre a temática do invocado desrespeito pela legítima da A., procurando averiguar se, em concreto, apreciou a questão específica suscitada no recurso subordinado:
«Afastadas as acções atinentes à pessoa do autor da herança, por não terem interesse para o caso em apreço, restam-nos a acção de declaração de simulação e a acção para anulação de venda feita a filhos ou netos, sem o consentimento dos restantes.
Quanto à segunda, a acção para anulação de venda feita a filhos ou netos, sem o consentimento dos restantes, que tem por suporte a violação do disposto no art.º 877º do Cód. Civ., já o Tribunal “a quo”, e bem, entendeu não ser aplicável à situação em apreço, no que as partes se conformaram.» [negrito nosso]
Salvo se se considerasse que a locução “e bem” corresponderia a conhecer da questão – o que, tanto em si mesma considerada, como no contexto em que foi proferida, não se afigura admissível – não pode senão concluir-se pela verificação da invocada omissão de pronúncia acerca da questão objecto do recurso subordinado da A..
Importa, porém, passar a apreciar as demais questões que integram o objecto do presente recurso, sendo que a sua resolução poderá, eventualmente, tornar inútil a baixa dos autos ao tribunal a quo para suprimento da reconhecida nulidade.
15. Invoca a Recorrente a violação do disposto no art. 640.º do CPC e, bem assim, dos arts. 13.º e 20.º da CRP por o acórdão recorrido ter conhecido da impugnação da matéria de facto (dando como não provado o ponto 10. da matéria de facto) sem que a apelante tenha cumprido os ónus que lhe competiam.
Por seu lado, a pugna a Recorrida pela manutenção do acórdão recorrido.
Vejamos.
Lê-se na fundamentação do acórdão recorrido:
«Embora a Apelante não tenha cumprido, com rigor, o disposto no art. 640.º do NCPC, retira-se do arrazoado das suas Alegações quanto à questão em apreço, que a sua pretensão é de ver alterada a Decisão relativa à matéria de facto constante dos Pontos 9 e 10 dos Factos Provados, no sentido da mesma ser dada como não provada.
(…)
Sendo a matriz da impugnação da decisão relativa à matéria de facto, a demonstração, pela Apelante, através de um juízo crítico sobre todas as provas produzidas sobre um determinado ponto de facto - sublinhamos, sobre os meios de prova que fundaram a convicção do Juiz “a quo” para decidir sobre esse concreto ponto de facto e sobre os que o Apelante entende que também devem ser considerados para decidir, de forma diversa, esse mesmo ponto da matéria de facto -, que esses meios de prova impunham decisão diversa sobre aquele determinado ponto de facto, patenteando assim o erro de julgamento do Tribunal “a quo” sobre essa concreta matéria, poder-se-ia concluir, desde já, que, desfocado que está o alvo das Alegações da Apelante, pois não atingiu o sentido da Decisão do Tribunal “a quo”, o Recurso improcede nesta parte, pois, na verdade, a Apelante não faz um juízo crítico sobre a Decisão do Tribunal “a quo”, dado que, apesar de se reportar aos mesmos documentos, as referidas procurações, sustenta a sua pretensão em parte do documento diversa da que levou o Tribunal “a quo” a sustentar a sua convicção, parte essa que nada tem a haver com a matéria em discussão.
De qualquer forma, iremos aferir da bondade da Decisão do Tribunal “a quo”, tendo em conta o segmento das procurações em que alicerçou a sua convicção e os restantes meios de prova que suportaram a sua convicção para dar como provados os Pontos 9 e10 dos Factos Provados.».
Da análise do teor do acórdão, retira-se que a Relação entendeu que, apesar de a R. apelante ter cumprido de forma deficiente o ónus imposto pelo art. 640.º do CPC, os termos em que o fez mostraram-se suficientes para a Relação apreender o teor da impugnação da matéria de facto e dela conhecer, sem que determinasse a rejeição do recurso nesta parte.
Esta posição corresponde à orientação da jurisprudência reiterada deste Supremo Tribunal, como resulta dos sumários dos seguintes acórdãos, na parte que ora releva:
- Acórdão de 07/03/2019 (proc. n.º 2293/10.6TBVIS.C1.S1), in www.dgsi.pt:
«V - Na apreciação do recurso interposto contra a decisão de facto, o tribunal da Relação, embora tendo o objeto do seu conhecimento delimitado pelos concretos pontos de facto que o recorrente tenha indicado como incorretamente julgados, no tocante à sua averiguação, não está limitado à análise dos meios de prova indicados pelo recorrente, ou pelo recorrido, para evidenciar, ou para desmentir, o erro de julgamento atribuído à 1.ª instância; dispõe, aqui, a Relação de amplo poder inquisitório no âmbito do qual pode, inclusivamente, recorrer à renovação da prova ou à produção de novos meios de prova.»
- Acórdão de 17/06/2021 (proc. n.º 472/15.9T8VRL.G1.S1)[1], in www.dgsi.pt:
«II - O tribunal da Relação tem, em sede de reapreciação da matéria de facto e no âmbito da formação da sua própria convicção acerca do facto impugnado, um amplo poder inquisitório sobre a prova produzida que imponha decisão diversa; não estando adstrito aos meios de prova que tiverem sido convocados pelas partes nem aos indicados pelo tribunal recorrido.».
- Acórdão de 14/07/2021 (proc. n.º 1333/14.4TBALM.L2.S1)[2], in www.dgsi.pt:
«I - Os poderes de reapreciação contidos no art. 662.º do CPC, traduzem um verdadeiro e efetivo 2.º grau de jurisdição sobre a apreciação da prova produzida, impondo-se, por isso, nos termos do art. 607.º, n.º 4, ex vi art. 663.º, n.º 2, ambos do CPC, que a Relação analise criticamente as provas indicadas em fundamento da impugnação, conjugando-as entre si e contextualizando-as, se necessário, no âmbito da demais prova disponível, de modo a formar a sua própria convicção, sobre ela recaindo ainda o dever de fundamentação do juízo de valoração da prova que formulou sobre cada um dos pontos da matéria de facto em confronto, de modo a explicar e justificar a sua própria e autónoma convicção.
II - Não obstante o papel relevante da imediação na formação da convicção do julgador e de essa imediação estar mais presente no tribunal da 1.ª instância, daí não se retira que a convicção formada pelo julgador na 1.ª instância deva, sem mais, prevalecer sobre o juízo probatório formado pelo tribunal da Relação sobre cada um dos factos julgados em 1.ª instância e objeto de impugnação, de acordo com as provas produzidas constantes dos autos e à luz do critério da sua livre e prudente convicção, nos termos do art. 607.º, n.º 5, ex vi do art. 663.º, n.º 2, ambos do CPC, em ordem a verificar a ocorrência de erro de julgamento.».
- Acórdão de 29/04/2021 (proc. n.º 684/17.0T8ABT.E1.S1)[3], in www.dgsi.pt:
«I - O art. 662.º do CPC confere à Relação o poder – rectius o poder-dever – de reapreciar e, por conseguinte, de alterar o teor, eliminar ou aditar pontos à decisão sobre a matéria de facto, independentemente da iniciativa das partes.»
Entende-se, assim, não existir qualquer violação do disposto nos arts. 640.º e 662.º do CPC, uma vez que o acórdão recorrido, adoptando uma postura não formalista, aproveitou a impugnação da matéria de facto feita pela R. em sede de apelação, porque compreendeu o sentido de tal impugnação. Nesta medida, apreciou a valoração da prova no tocante aos factos provados 9. e 10., que se mostravam impugnados pela mesma R., e procedeu à sua análise atendendo a todos os meios de prova constantes dos autos, não se cingindo aos meios de prova indicados pela parte, o que não constitui qualquer violação aos latos poderes normativos conferidos à Relação pelo referido art. 662.º do CPC.
Conclui-se, assim, pela não a violação do disposto no art. 640.º do CPC, razão pela qual não se vislumbra que ocorra desrespeito das normas constitucionais (arts. 13.º e 20.º da Constituição), genericamente invocadas pela Recorrente, sem, contudo, consubstanciar o alegado; o que inviabiliza pronúncia mais concretizada.
16. Invoca a Recorrente a existência de erro na aplicação do direito, uma vez que que as procurações, pelas quais os pais da A. outorgaram poderes ao 2.º R. para constituir as hipotecas voluntárias, são nulas, por falta de forma, nos termos dos arts. 220.º, 364.º, e 714.º do Código Civil, bem como do art. 116.º, n.º 2, do Código do Notariado.
Ainda que a questão da nulidade das procurações venha suscitada pela primeira vez em sede de recurso de revista, sendo de conhecimento oficioso, não pode deixar de ser ponderada.
Compulsado o processado, e como se extrai do que se afirma supra, no ponto 12. do presente acórdão, o recurso de apelação da R. assentou, entre outros fundamentos, na alegada validade das procurações em resultado da aplicação do regime do n.º 1 do art. 116.º do Código do Notariado, no qual se prescreve:
«As procurações que exijam intervenção notarial podem ser lavradas por instrumento público, por documento escrito e assinado pelo representado com reconhecimento presencial da letra e assinatura ou por documento autenticado».
Em sede de revista, vem a A. pôr em causa a validade de tais procurações, alegando que, do regime legal aplicável (cfr. os arts. 220.º, 364.º e 714.º do CC, e ainda o art. 116.º, n.º 2 do Código de Notariado), resulta que as mesmas teriam de ter sido exaradas por escritura pública.
Já a Recorrida pugna pela validade das procurações, atendendo a que foram lavradas por documento escrito com reconhecimento presencial das assinaturas dos representados, o que está de acordo com a previsão do n.º 1 do art. 116.º do Código de Notariado.
Quid iuris?
Assiste razão à Recorrente quando invoca não ser esta última a norma que regula a exigência de forma relativamente às procurações dos autos. Com efeito, a norma do n.º 1 do art. 116.º do Código de Notariado tem natureza meramente enunciativa, devendo a norma prescritiva ser procurada no regime do Código Civil.
Aqui chegados, contudo, e antes de prosseguir, importa atender ao seguinte: uma eventual averiguação da regra ou regras aplicáveis, podendo conduzir ao reconhecimento da invocada nulidade formal das procurações, teria como efeito a ineficácia das mesmas ao abrigo do n.º 1 do art. 268.º do Código Civil («O negócio que uma pessoa, sem poderes de representação, celebre em nome de outrem é ineficaz em relação a este, se não for por ele ratificado»), ineficácia, porém, que apenas poderia ser invocada pela pessoa representada (no caso dos autos, a mãe da A.). Vale aqui, plenamente, o afirmado pela Relação a respeito da legitimidade substantiva da A. para invocar (outros) vícios das procurações:
«O disposto no n.º 1 do art.º 268º do Cód. Civ., de per si, não concede a um terceiro, nomeadamente ao herdeiro legitimário, o direito de ver declarada a ineficácia de um determinado negócio jurídico, porque quem interveio nesse negócio em representação de uma parte - no que interessa ao caso, quem interveio no negócio em representação dos seus pais -, não tem poderes de representação para o efeito.
Do texto da norma, apenas se pode concluir que a legitimidade material para intentar a atinente acção de declaração de ineficácia do negócio, se restringe à pessoa em nome da qual, indevidamente, alguém, sem poderes para a representar, celebrou um negócio em seu nome.
Para que os herdeiros legitimários pudessem deitar mão deste instituto, mostrar-se-ia necessário, à semelhança do que acontece com o disposto no n.º 2 do art.º 242º do Cód. Civ., aditar à norma um número que consagrasse expressamente a excepção, conferindo legitimidade material dos herdeiros legitimários para intentar a competente acção.» [negrito nosso]
Neste sentido se pronunciou já este Supremo Tribunal, no acórdão de 29/03/2011 (proc. n.º 448/2001.E1.S1), cujo sumário se encontra publicado em www.stj.pt, e que aqui se transcreve na parte relevante (que reflecte em termos rigorosos o conteúdo do acórdão):
«III - A representação sem poderes, prevista no art. 268.º do CC, não contende com a validade do negócio jurídico celebrado, mas tão só com a sua eficácia relativa, dado que o negócio celebrado por representante sem poderes é simplesmente ineficaz, e apenas relativamente ao representado.
IV - O acto é ineficaz face à representada e o vício só por ela pode ser invocado, porque só a ela o negócio é inoponível.
V - A outra parte que contrata com o representante sem poderes tem o direito de revogar ou rejeitar o negócio com base nessa ineficácia enquanto a ratificação não tiver lugar (art. 268.º, n.º 4, do CC), o que não se verifica no caso de se tratar de um negócio jurídico unilateral.
VI - A norma do art. 268.º do CC regula as relações entre o representado, o representante e os sujeitos que com estes celebram negócios jurídicos, estabelecendo no seu n.º 4 um regime de protecção destes últimos no âmbito dos negócios concluídos com falta de poderes.
VII - Se o acto ou negócio foi celebrado sem poderes de representação (falsus procurador), é em relação ao representado, dominus negotii, que o negócio é ineficaz, salvo se tiver lugar a ratificação que, na mesma conformidade, também só a ele pertence (n.º 1 do art. 268.º) e não a terceiro que posteriormente surja no tráfico jurídico. Ou seja, o direito de arguir a ineficácia está indissociavelmente ligado à pessoa do dominus negotii e não ao bem.» [negritos nossos]
De acordo com esta orientação – que se acolhe – a apreciação da eventual nulidade das procurações dos autos não apenas se mostra inútil para alcançar o objectivo pretendido pela A., ora Recorrente, como se apresenta como incompatível com o facto de tal pretensão ser dirigida contra a titular da legitimidade substantiva para invocar a ineficácia das procurações (a mãe da A., aqui interveniente principal do lado passivo, representada numa das procurações e a favor de quem a A. renunciou à herança do pai, representado na outra procuração).
Conclui-se, pois, pela improcedência deste fundamento de recurso.
17. Deste modo, constata-se que a resolução da segunda e terceira questões recursórias não tornou inútil a baixa dos autos ao tribunal a quo para suprimento da reconhecida nulidade.
18. Pelo exposto, julga-se o recurso parcialmente procedente, determinando-se a baixa dos autos ao Tribunal da Relação para apreciação da questão objecto do recurso subordinado de apelação tal como enunciada no ponto 14. do presente acórdão.
Custas no recurso na proporção de 50% por cada uma das partes e custas no processo a final, sem prejuízo do que vier a ser decidido quanto ao pedido de apoio judiciário apresentado pela autora.
Lisboa, 27 de Janeiro de 2022
Maria da Graça Trigo (relatora)
Maria Rosa Tching
Catarina Serra
_______
[1] Relatado pela aqui relatora e votado pelo presente colectivo.
[2] Relatado pela aqui 1.ª Adjunta e votado pela aqui 2.ª Adjunta.
[3] Relatado pela aqui 2.ª Adjunta.