Para que se possa entender, para efeitos do artº 210º, nº 1, do Código Penal, ter existido ameaça com perigo iminente para avida ou para a integridade física, é necessário que exista um nexo de imputação do que o agente disse á vítima (eventual ameaça) e o apoderamento da coisa.
RELATÓRIO
No âmbito do processo 125/20.6PAABT o arguido IB foi acusado da prática de um crime de roubo, p. e p. pelo artº 210º, nº 1, do C.P..
Submetido a julgamento, foi proferido acórdão no qual se entendeu ter o arguido praticado um crime de furto simples e, em consequência, foi declarado extinto o procedimento criminal por virtude da desistência da queixa.
Inconformado com tal decisão, dela recorreu o Ministério Público, tendo terminado a motivação e recurso com as seguintes conclusões:
“1ª – A nossa discordância relativamente à douta decisão recorrida radica no facto de na mesma se ter considerado, face à matéria de facto dado como provada, que esta não integrava a prática de um crime de roubo, p. e p. pelo art.º 210º, n.º 1, do Código Penal, mas sim de um crime de furto simples, p. e p. pelo art.º 203º, do Código Penal.
2ª – Contudo, e salvo o devido respeito, entendemos que o Tribunal a quo deveria ter interpretado as normas que aplicou aos factos dados como provados, não no sentido e termos em que o fez, mas sim no sentido que levasse a condenar o arguido pela prática de um crime de roubo, p. e p. pelo art.º 210º, n.º 1, do Código Penal.
3ª - Não obstante a fundamentação jurídica plasmada na douta decisão recorrida e a jurisprudência ali citada, estamos em crer que a factualidade dada como prova configura uma situação de ameaça com perigo iminente para a integridade física do ofendido. E, nessa medida, a conduta do arguido preenche o tipo legal do crime de roubo.
4ª – Essa nossa conclusão tem como suporte o facto de ter sido dado como provado que no dia 08-04-2020, em hora não exatamente apurada, mas já de noite, o arguido avistou o ofendido, aproximou-se do mesmo e perguntou-lhe como estavam as coisas.
5ª – Por sua vez, foi também dado como provado que após isso, o arguido disse ao ofendido, em tom que este teve como intimidatório, “passa para cá o dinheiro”, tendo o mesmo respondido “não”.
6ª - Foi ainda dado como provado que o arguido se apercebendo de que o ofendido tinha aberta a bolsa que usava presa à cintura, meteu aí uma mão, de lá retirando a quantia de € 100,00, configurada em quatro notas de € 20,00 e duas notas de € 10,00, do BCE.
7ª – É certo que face aos factos dados como provados pela douta decisão recorrida, não terá ocorrido uma situação propriamente reconduzível a uma atuação por esticão. Contudo, o ofendido apercebeu-se que o arguido meteu uma mão no interior da sua bolsa e que desta retirou a referida quantia monetária.
8ª - Para além disso, era de noite e, face ao tom em que o arguido abordou e se dirigiu ao ofendido, este sentiu-se intimidado.
9ª – É assim num contexto intimidatório, que o arguido mete uma mão na bolsa que o ofendido usava presa à cintura, e desta retira a quantia monetária acima indicada.
10ª – Logo, na nossa modesta opinião, em tal contexto, a subtração do dinheiro ocorreu num quadro que deverá qualificar-se como de ameaça com perigo iminente para a integridade física do ofendido.
11ª – Na verdade, recorrendo às regras da experiência, dir-se-á que a referida descrição factual, do ponto de vista de um destinatário médio, será entendida como uma ameaça com perigo iminente para a sua integridade física.
12ª - Se a intenção do arguido fosse tão só subtrair o dinheiro, e assim violar o direito de propriedade e de detenção de coisas móveis, não teria previamente proferido as expressões “passa para cá o dinheiro”.
13ª – Ao faze-lo, parece lógico concluir que sabia que com tais expressões intimidava o ofendido e mais facilmente podia subtrair o dinheiro a este, o qual não iria oferecer qualquer tipo de resistência, face à atual ameaça de perigo iminente para a sua integridade física.
14ª - Daí que, entendemos que a factualidade dada como provada integra a prática de um crime de roubo, p. e p. pelo art.º 210º, n.º 1, do Código Penal, e não a prática de um crime de furto, p. e p. pelo art.º 203º, do mesmo diploma legal.
15ª – É ainda nosso entendimento que a douta decisão recorrida ao interpretar e aplicar o direito nos termos que o fez, considerando que os factos dados como provados integram a prática de um crime de furto, p. e p. pelo art.º 203º, do Código Penal, e não de um crime de roubo, violou o disposto no art.º 210º, n.º 1, do mesmo diploma legal, quando se tivesse feito essa mesma interpretação e aplicação do direito nos termos que sustentamos, levaria à conclusão que a factualidade provada integrava a prática de um crime de roubo, e, em consequência, conduziria à condenação do arguido pela prática do mesmo.
16ª - Assim, o douto Acórdão recorrido violou a disposição constante do art.º 210º, n.º 1, do Código Penal.
Nestes termos, deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, o douto Acórdão recorrido ser revogado e substituído por outro que condene o arguido IB, como autor material, da prática de um crime de roubo, p. e p. pelo art.º 210º, n.º 1, do Código Penal.
No entanto, Vossas Excelências certamente decidirão conforme for de DIREITO e de JUSTIÇA”
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O arguido não respondeu ao recurso.
Neste tribunal da relação, o Exmº P.G.A. emitiu parecer no sentido da procedência do recurso, pelas razões referidas na respectiva motivação.
Cumprido que foi o disposto no artº 417º, nº 2, do C.P.P., não foi apresentada qualquer resposta.
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APRECIAÇÃO
A única questão que importa apreciar no presente recurso é a de saber se da matéria de facto que provada se considerou se pode concluir que o arguido actuou com ameaça com perigo iminente para a integridade física da vítima de modo a dever considerar-se que incorreu na prática de um crime de roubo.
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A matéria de facto considerada provada é a seguinte:
“1. O arguido IB, com a alcunha de “…”, conhece JG, desde data indeterminada.
2. No dia 08.04.2020, a hora não exatamente apurada, mas já de noite, o arguido avistou JG na Rua …, em ….
3. O arguido aproximou-se de JG e perguntou-lhe como estavam as coisas.
4. Após, o arguido disse ao JG, em tom que este teve como intimidatório, “passa para cá o dinheiro”, tendo este respondido “não”.
5. Apercebendo-se de que o JG tinha aberta uma bolsa que usava presa à cintura, o arguido aí meteu uma mão, de lá retirando a quantia de € 100,00, configurada em quatro notas de €20,00 e duas notas de €10,00 do BCE.
6. De seguida, o arguido abandonou o local e levou consigo, fazendo sua, essa quantia monetária, não obstante bem saber que não lhe pertencia e que agia contra a vontade e consentimento do seu legítimo proprietário.
7. Atuou o arguido de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei.”
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A matéria considerada não provada é a seguinte:
“- quando avistou o JG, o arguido logo formulou o propósito de, mediante o recurso à força e à intimidação, se apropriar do dinheiro que este trouxesse consigo nesse dia, fazendo-o seu;
- o arguido, de forma abrupta e repentina, agarrou JG com bastante força, e retirou-lhe, puxando com violência, o dinheiro que este trazia guardado uma bolsa presa à cintura;
- atuou o arguido com o propósito alcançado de abordar a vítima de forma violenta e inesperada, a fim de a atemorizar, enfraquecendo a sua capacidade de defesa e impedindo-a de oferecer resistência, como quis e conseguiu.”
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Vejamos, então, se perante a única matéria que se considerou provada, pode concluir-se, como pretende o recorrente, que o arguido incorreu na prática de um crime de roubo e não de um crime de furto, conforme se entendeu na decisão recorrida.
Resulta do artº 210º do Cód. Penal que para que ocorra o crime de roubo tem que ocorrer uma das seguintes circunstâncias:
- violência contra uma pessoa;
- ameaça com perigo iminente para a vida ou para integridade física;
- colocação da vítima na impossibilidade de resistir.
Depois de na decisão recorrida se tecerem considerações acerca dos pressupostos objectivos do crime de roubo, escreveu-se o seguinte:
“No caso dos autos, ainda que o arguido tenha dito ao ofendido, em tom que este teve como intimidatório, “passa para cá o dinheiro”, este respondeu “não”.
Ou seja, o ofendido opôs-se à pretensão do arguido.
É então que, apercebendo-se de que o JG tinha aberta uma bolsa que usava presa à cintura, o arguido aí meteu uma mão, de lá retirando a quantia de € 100,00, configurada em quatro notas de €20,00 e duas notas de €10,00 do BCE.
Isto é, o arguido não usou de qualquer violência sobre o ofendido.
Assim, os factos praticados pelo arguido não integram o crime de roubo pelo qual foi acusado, mas antes um crime de furto simples, p. e p. pelo artº 203º do CP, o qual depende de queixa (cfr, nº 3).”
Conforme resulta do trecho acima transcrito, na decisão recorrida entendeu-se que não ocorreu violência sobre a vítima.
O recorrente parece que também entende que assim é, pois pelo que pugna é pela verificação de ameaça, pois que na conclusão 3ª alega que: “Não obstante a fundamentação jurídica plasmada na douta decisão recorrida e a jurisprudência ali citada, estamos em crer que a factualidade dada como prova configura uma situação de ameaça com perigo iminente para a integridade física do ofendido.” (realce nosso).
Entende, pois, o recorrente, que ocorreu uma circunstância que o tribunal recorrido nem sequer analisou, sendo certo que, repete-se, uma coisa é a violência, outra coisa é a ameaça com perigo iminente para a vida ou para a integridade física.
Seja como for, o nosso entendimento é o de que não ocorre qualquer das referidas circunstâncias.
Com efeito, como se entendeu no ac. do S.T.J. de 12-07-2012, CJ (STJ), 2012, T2, pág.238:
“II. Para que ocorra o crime de roubo tem de existir um nexo de imputação entre os meios utilizados para provocar um efectivo constrangimento e a subsequente subtracção.”
Também neste sentido se pronuncia Conceição Ferreira da Cunha, Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo II, pág. 172: “… é necessário que se possa afirmar um nexo de imputação entre o conseguir a coisa móvel alheia e os meios utilizados e, assim, que esses meios tenham provocado um efectivo constrangimento à entrega do bem ou um efectivo constrangimento à tolerância da sua subtracção”
No caso dos autos não existe qualquer nexo de imputação do que o arguido disse à vítima ao apoderamento do dinheiro.
O arguido disse à vítima “passa para cá o dinheiro”, em tom que a vítima teve como intimidatório, tendo este respondido “não” (mais rigorosamente o que a vítima disse foi que “não tinha”, conforme resulta da audição do seu depoimento, mas, para além de tal não ser relevante, a matéria de facto não foi impugnada, pelo que se tem como assente).
Significa isto que com a utilização da referida expressão o arguido nada conseguiu, em nada tal expressão levou a que a vítima se sentisse constrangida a entregar o dinheiro, ou que o tivesse entregue.
Só depois é que o arguido, vendo que a vítima tinha uma bolsa presa à cintura aberta, meteu a mão no seu interior e daí retirou o dinheiro (também conforme o que a vítima declarou, a bolsa tinha duas partes: uma que estava aberta de onde o arguido retirou o dinheiro e outra que estava fechada e que também continha dinheiro, mas relativamente à qual o arguido nada fez).
Não ocorreu, pois, qualquer violência, nem qualquer ameaça com perigo iminente para a integridade física da vítima, ameaça essa que nem sequer o recorrente refere qualquer teria sido.
Pode a vítima ter-se sentido intimidada, é certo, mas isso em nada o levou a adoptar qualquer conduta de entrega do dinheiro ao arguido, nem essa circunstância teve qualquer relação com o apoderamento do dinheiro que só ocorreu porque a bolsa estava aberta e o arguido aí meteu a mão e retirou o dinheiro.
E tal situação é bem diversa daquela que era imputada ao arguido.
Bem andou, pois, a decisão recorrida, ao considerar que o arguido incorreu na prática de um crime de furto simples e não na prática do que crime de roubo de que estava acusado.
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DECISÃO
Face ao exposto, acordam os Juízes em julgar improcedente o recurso.
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Sem tributação.
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Évora, 8 de Fevereiro de 2022
Nuno Garcia
Edgar Valente