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CASO JULGADO
FORÇA OBRIGATÓRIA
EFEITOS DO JULGADO
AUTORIDADE DE CASO JULGADO
ACÇÃO DE DEMARCAÇÃO
ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
Sumário
I - A força obrigatória do caso julgado desdobra-se em duas vertentes, uma designada por efeito negativo do caso julgado e outra designada por efeito positivo do caso julgado. O efeito negativo do caso julgado consiste numa proibição de repetição de nova decisão sobre a mesma pretensão ou questão, por via da excepção dilatória de caso julgado, regulada em especial nos artigos 577º, al. i), segunda parte, 580º e 581º, do CPC. O efeito positivo (ou autoridade do caso julgado) exprime-se pela vinculação das partes e do tribunal a uma decisão anterior, que não pode ser posta em crise. II - Destarte, enquanto o efeito negativo do caso julgado leva a que apenas uma decisão possa ser produzida validamente sobre o um mesmo objecto processual, mediante a exclusão de poder jurisdicional para a produção de uma segunda decisão, o efeito positivo admite a produção de decisões de mérito sobre objectos processuais distintos mas materialmente conexos, na condição da prevalência do sentido decisório da primeira decisão. III - A decretada improcedência de prévia acção de demarcação – por inexistência de dois prédios autónomos -, não constitui obstáculo, em termos de autoridade de caso julgado, à instauração de uma posterior acção de reivindicação fundada no destaque de uma parte do dito prédio e tendo por causa de pedir a aquisição originária fundada em usucapião daquela parte delimitada daquele prédio
Texto Integral
Processo n.º 794/20.7T8VFR.P1 Comarca de Aveiro - Juízo Local Cível de Santa Maria da Feira – J3. Relator: Des. Jorge Seabra 1º Adjunto: Juiz Desembargador Dr. Pedro Damião e Cunha 2º Adjunto: Juíza Desembargadora Dr.ª Maria de Fátima Andrade
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Sumário (elaborado pelo Relator): …………………………….. …………………………….. ……………………………..
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Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto:
I. RELATÓRIO: 1.B… e C… propuseram a presente acção declarativa comum contra herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de D…, representada pelos seus herdeiros E…, F… e G…, peticionando a final o seguinte:
a) Declaração a reconhecer que os Autores são legítimos e exclusivos proprietários do prédio descrito no artigo 1º da petição inicial;
b) Condenação dos Réus a reconhecer esse direito de propriedade e a abster-se da prática de qualquer acto que colida ou afecte esse direito;
c) Condenação dos Réus a cessar de imediato a intromissão e a prática de qualquer acto que viole aquele direito de propriedade;
d) Condenação dos Réus a pagar aos Autores a quantia de €5.250,00, a título de indemnização pela privação do uso do aludido prédio, bem como, ainda, a pagarem as quantias que se forem vencendo até que venham a obter a fruição plena do referido prédio, tudo acrescido de juros de mora à taxa legal a contar da citação e até integral pagamento;´
e) Condenação dos Réus a pagar aos Autores a indemnização que se vier a liquidar em execução por todos os danos e prejuízos que sofreram e virão a sofrer, conforme alegado na petição inicial, acrescida de juros de mora à taxa legal.
Como fundamento, os Autores alegaram que são únicos e exclusivos proprietários do prédio urbano, sito na Rua…, n.º…, … – Santa Maria da Feira, inscrito na matriz predial urbana da dita freguesia de … sob o artigo ….º e descrito na competente Conservatória do Registo Predial sob o n.º …., prédio que lhes adveio por sucessão testamentária por morte de H…, invocando, ainda, factos conducentes à sua aquisição por usucapião; tal prédio, segundo o alegado, é constituído por uma área coberta de 61, 93 m2 e por um logradouro situado a sul e a nascente com a área de 103, 00 m2, numa área total de terreno de 164,93 m2.
Mais alegaram, ainda, que os Réus são donos do prédio rústico sito nas …/…, …, Santa Maria da Feira, inscrito na matriz predial rústica da dita freguesia de … sob o artigo …º e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º …., sendo que o seu (dos Autores) prédio confronta do nascente com este prédio dos Réus e estes últimos acediam e acedem ao seu prédio através de um portão, situado a poente, existente na propriedade dos Autores.
Por outro lado, invocam que, desde meados do ano de 2019, os Réus os impedem de fruírem e gozarem plenamente do seu direito de propriedade sobre o aludido prédio descrito sob o artigo 1º da petição, colocando uma grade de madeira em frente ao portão de acesso ao rés-do-chão e um cadeado no portão de acesso ao logradouro do prédio, obrigando-os a retirar essa grade e a cortar o cadeado para aceder ao seu prédio.
Face a tais acontecimentos, desde meados de 2019 a filha dos Autores foi obrigada a deixar o imóvel por receio do que pudesse vir a acontecer e os mesmos deixaram de ter acesso à sua propriedade e de poder dar de arrendamento o referido imóvel, ficando, assim, privados da sua fruição. 2. Os Réus deduziram contestação, em que, além do mais, invocaram a excepção de caso julgado, sustentando, neste âmbito que os Autores intentaram em 5.02.2013 acção comum de demarcação contra E… e D…, que deu origem ao processo n.º 662/13.9TBVFR do 3º Juízo Cível, ali invocando o direito de propriedade sobre o prédio inscrito na matriz sob o artigo 1306, com base num testamento e aquisição originária e peticionando, além do mais, o reconhecimento que tal prédio tem a área total de 164, 93 m2.
Sucede, no entanto, que no dito processo veio a ser proferido Acórdão já transitado em julgado que julgou improcedente aquela pretensão dos Autores, absolvendo os Réus do ali peticionado.
Destarte, segundo os Réus, em face da prolação de tal decisão transitada em julgado, verifica-se a excepção de caso julgado. 3. Foi cumprido o contraditório, pugnando os Autores pela improcedência desta excepção. 4. Em sede de despacho saneador foi, além do mais, que ora não releva, julgada procedente a excepção de autoridade de caso julgado, absolvendo-se os Réus da instância. 5. Inconformados, vieram interpor recurso de apelação os Autores, alegando e deduzindo, a final, as seguintes CONCLUSÕES …………………………….. …………………………….. …………………………….. NESTES TERMOS, (…) deve o presente recurso ser admitido e julgado totalmente procedente e, em consequência, alterar-se a decisão recorrida, no que diz respeito à excepção de caso julgado com base na errada interpretação das normas jurídicas, concretamente do artigo 581º CPC seguindo-se os ulteriores termos do processo. 6. Os Réus contra-alegaram pugnando pela improcedência do recurso e confirmação da decisão recorrida. 7. Foram observados os vistos legais.
Cumpre decidir.
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II. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO:
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - artigos 635º, nº 3, e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.
Como assim, a questão essencial que se suscita no recurso é a de saber se ocorrem no caso sub judice os pressupostos da excepção de (autoridade de) caso julgado, conforme declarado pelo Tribunal de 1ª instância, com a consequente absolvição da instância dos Réus.
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III. FUNDAMENTAÇÃO de FACTO:
Para efeitos decisórios, relevam os factos constantes do relatório que antecede, o teor dos articulados deduzidos pelas partes nos presentes autos e, ainda, o teor das decisões proferidas no antecedente processo n.º 662/13.9TBVFR, tudo conforme melhor se especificará em sede de fundamentação jurídica da decisão a proferir nesta instância.
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III. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA:
Como acima se referiu a questão central no presente recurso, enquanto questão decisiva à sorte da presente apelação, é, segundo cremos, a matéria atinente ao caso julgado ou autoridade de caso julgado que alegadamente decorre das decisões (Acórdão desta Relação e Acórdão do STJ) proferidas no processo comum n.º 662/13.9TBVFR, sendo que nesta outra acção foram Autores os também aqui Autores, B… e C…, e Réus E… e I…, que aqui também são Réus, ainda que, face ao falecimento daquele I…, seja aqui demandada a respectiva herança ilíquida e indivisa, representada pelos seus identificados herdeiros.
Decidindo.
Antes de nos centrarmos no objecto essencial do presente recurso cumpre, a bem do integral esclarecimento da decisão a proferir, fazer aqui uma referência prévia.
Essa referência é a de que na decisão proferida pelo Tribunal de 1ª instância, ao contrário do que sugerem as conclusões do recurso, não foi decretada a procedência da excepção de caso julgado, nem foi, nesse contexto, afirmado pelo Tribunal de 1ª instância que os pedidos e a causa de pedir são os mesmos em ambos os processos, ou seja, neste processo e no antecedente processo n.º 662/13.9TBVFR.
Com efeito, como é consabido e resulta do artigo 581º, do CPC, a excepção de caso julgado na sua vertente negativa, enquanto proibição de nova decisão sobre o mesmo objecto do processo anterior (com risco da sua repetição inútil ou da sua contradição), supõe a existência de uma tríplice identidade, qual seja que a nova acção seja idêntica quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir – artigo 581º, n.º 1, do CPC.
Neste sentido, como refere o Professor Rui Pinto, “ Exceção e autoridade de caso julgado – algumas notas provisórias “, Revista Julgar On Line, Novembro de 2018, pág. 6, a força obrigatória do caso julgado desdobra-se numa dupla eficácia, designada por efeito negativo do caso julgado e efeito positivo do caso julgado.
“ O efeito negativo do caso julgado consiste numa proibição de repetição de nova decisão sobre a mesma pretensão ou questão, por via da excepção dilatória de caso julgado, regulada em especial nos artigos 577º, alínea i), segunda parte, 580º e 581º. Classicamente, corresponde-lhe o brocardo ne bis in idem.
O efeito positivo ou autoridade do caso lato sensu consiste na vinculação das partes e do tribunal a uma decisão anterior. Classicamente corresponde-lhe o brocardo judicata pro veritate habetur.
Enquanto o efeito negativo do caso julgado leva a que apenas uma decisão possa ser produzida sobre um mesmo objecto processual, mediante a exclusão de poder jurisdicional para a produção de uma segunda decisão, o efeito positivo admite a produção de decisões de mérito sobre objectos materialmente conexos, na condição da prevalência do sentido decisório da primeira decisão. “
Em suma, como se enuncia no AC RG de 7.08.2014, “ os efeitos do caso julgado material projectam-se no processo subsequente necessariamente como excepção de caso julgado, em que a existência da decisão anterior constitui um impedimento a decisão de idêntico objecto posterior, ou como autoridade de caso julgado material, em que o conteúdo da decisão anterior constitui uma vinculação na decisão do distinto objecto posterior. “ [1]
Daí que, na excepção de autoridade de caso julgado, em que está em causa no processo posterior um objecto distinto, não seja exigível, à partida, aquela identidade quanto ao pedido ou causa de pedir em ambos os processos, embora tenha sempre que estar em causa,
em ambos os processos, a mesma questão jurídica essencial já previamente decidida no processo anterior (questão prejudicial) e os mesmos sujeitos do ponto de vista da sua qualidade jurídica, sendo certo que, como princípio geral, a decisão não pode vincular terceiros a ela alheios, ou, como refere Rui Pinto, op. cit., pág. 20, “ … apenas pode ser sujeito aos efeitos – beneficiado ou prejudicado – de um acto do Estado quem participou da sua produção de modo contraditório. “ (princípio da eficácia relativa do caso julgado) [2]
Dito isto e retomando o nosso raciocínio inicial, a decisão recorrida não afirmou, pois, ao contrário do aparentemente sugerido pelas conclusões do recurso, a existência de uma identidade entre a causa de pedir e o pedido nos dois processos em concurso (os presentes autos e o processo n.º 662/13.9TBVFR) e, nesse contexto, a procedência da excepção de caso julgado, na sua acima referida vertente negativa, antes afirmou, em termos distintos, em primeiro lugar, que a decisão proferida no processo n.º 662/13.9TBVFR, que julgou improcedente a aludida acção de demarcação instaurada pelos ali (e aqui) Autores e absolveu os ali (e aqui Réus) dos pedidos nela formulados, se assumia como prejudicial perante a decisão a proferir nestes autos e que, em razão disso, em segundo lugar, tendo naquela acção prévia de demarcação sido definido que o imóvel constituído por casa com r/c e andar com logradouro (correspondente ao artigo matricial ….), deixado em legado aos Autores e o terreno (correspondente ao artigo matricial …) também deixado em legado aos Réus e onde se encontra implantada a referida casa com r/c e andar, constitui, para efeitos civis (artigo 204º, n.º 2, do Cód. Civil), um único prédio, estavam, nessas circunstâncias, os Autores impedidos, nesta outra e subsequente acção, de peticionar o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre o prédio descrito sob o artigo 1º da petição inicial e, logicamente, de formular os demais pedidos sequenciais àquele, vingando, pois, na perspectiva do Tribunal de 1ª instância, a excepção de autoridade de caso julgado enquanto obstáculo ao prosseguimento dos presentes autos intentados pelos Autores.
Neste preciso sentido, escreveu-se na decisão recorrida:
“ Ficou assim definido na acção n.º 662/13.9TBVFR que para efeitos civis apenas havia um prédio. Assim sendo, os aqui Autores não poderiam nesta acção, com referência ao mesmo prédio, peticionar o reconhecimento da sua propriedade, condenando-se os Réus a reconhecer e respeitar esse direito de propriedade e a abster-se da prática de qualquer acto que colida ou afecte esse direito (…), por justamente ser indubitável a relação de prejudicialidade entre a decisão proferida no processo n.º 662/13.9TBVFR, que julgou totalmente improcedente a acção e absolvendo os réus do pedido e os presentes autos – considerando que para efeitos civis apenas havia um prédio – e a presente acção, de tal forma que pode ser oposta a autoridade de caso julgado, decorrente da vinculação positiva externa ao caso julgado assente no artigo 691º do Código de Processo Civil, em sede de objecto de prejudicialidade, como resulta da acção anterior. “
Significa isto que, não estando sequer em discussão na decisão recorrida que a causa de pedir e os pedidos na prévia acção comum de demarcação e na presente acção de reivindicação são distintos e, portanto, logicamente, que não pode estar em causa a procedência da excepção de caso julgado – pois que a mesma supõe, como antes se salientou, sempre a identidade do objecto do processo, aferida pela identidade das partes, da causa de pedir e do pedido (artigo 581º, do CPC), de tudo decorre que a questão central é, de facto, apenas saber se ocorrem os pressupostos da excepção de autoridade de caso julgado, enquanto vertente positiva do caso julgado, como antes assinalado.
Aqui chegados, julgamos, com o devido respeito, que a decisão acolhida pelo Tribunal de 1ª instância não pode ser secundada nesta instância, correspondendo a mesma a uma interpretação menos adequada do instituto em causa e, até, da interpretação e fundamentação constantes das decisões proferidas no prévio processo n.º 662/13.9TBVFR e, em particular, do Acórdão da Relação e do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que ali proferidos.
De facto, em nosso ver, a decisão recorrida, com o sentido decisório que nela se mostra acolhido e em função da fundamentação nela perfilhada, no limite poderia conduzir a que os Autores, apenas em razão da improcedência da anterior acção de demarcação (n.º 662/13.9TBVFR) se vissem para futuro inibidos ou impedidos de obterem a cisão dos dois imóveis acima referidos e, nesse contexto, de verem reconhecido o seu direito real sobre o concreto prédio de que se arrogam proprietários, nomeadamente por meio de destaque do mesmo, ou seja, mediante a alegação e demonstração da sua aquisição originária por meio de usucapião, com a sua consequente reivindicação.
Ora, nesta perspectiva e com o devido respeito, nada no dito Acórdão desta Relação e/ou do Supremo Tribunal de Justiça que decretaram a improcedência da acção de demarcação antes instaurada pelos aqui Autores contra os Réus aponta nesse sentido e, ademais, em nosso ver, até aponta em sentido contrário, não sendo, assim, possível extrair, ao contrário do acolhido pelo Tribunal de 1ª instância, de tais decisões um qualquer obstáculo, em particular ao nível da afirmada autoridade de caso julgado, ao prosseguimento dos presentes autos que se estruturam, manifestamente, como uma típica acção de reivindicação, tal como prevista no artigo 1311º, do Cód. Civil, ainda que se mostrem associados ao reconhecimento do direito de propriedade dos Autores sobre o prédio melhor descrito no artigo 1º da petição inicial e consequente condenação dos Réus a tal reconhecer, outros pedidos, em concreto pretensões indemnizatórias por prejuízos decorrentes da alegada violação de tal direito real invocado pelos Autores e perpetrada pelos Réus (artigo 555º, n.º 1, do CPC).
Se não, vejamos.
A aludida acção de demarcação (que no actual Código de Processo Civil passou a seguir a forma de processo comum) foi julgada improcedente por falecer um dos seus pressupostos, qual seja a existência de dois prédios autónomos e confinantes, sendo certo que, como já se referiu, ali se decidiu que, para efeitos civis, apenas existia um prédio.
Com efeito, como decorre do preceituado no artigo 1353º, do Cód. Civil, a acção de demarcação pressupõe para o seu decretamento a existência de prédios confinantes e uma situação de dúvida ou incerteza quanto às respectivas estremas, levando a doutrina a classificá-la como “ uma acção de acertamento ou de declaração da extensão da propriedade, sem que estejam em causa os títulos de aquisição. “ [3]
No entanto, quer o Acórdão deste Relação de 19.03.2018 (que revogou a sentença de 1ª instância que tinha decretado a procedência da acção de demarcação), quer o subsequente Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.09.2018, que confirmou a decisão desta Relação, deixaram perfeitamente claro na sua fundamentação que a decretada improcedência da acção de demarcação não constituía obstáculo intransponível à posterior autonomização dos segmentos ou partes daquele prédio, uma urbana, outra rústica, ainda que em outro contexto, ou seja, em função de uma outra acção com distinta causa de pedir.
Neste sentido, escreveu-se no citado Acórdão desta Relação:
“ A acção de demarcação, tal como previsto no artigo 1353º do Código Civil, pressupõe a existência de dois prédios confinantes, cuja estrema ou estremas não se apresentam definidas. Na sentença recorrida [proferida pelo tribunal de 1ª instância na aludida acção n.º 662/13.9TBVFR] partiu-se do pressuposto de que existindo dois imóveis inscritos na matriz, um na matriz urbana, legado ao autor e outro na matriz rústica que havia sido legado à ré, isso era bastante para concluir pela existência de dois prédios para efeitos civis. Ora, como resulta claramente do disposto no n.º 5 do artigo 12º do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis, as inscrições matriciais só para efeitos tributários constituem presunção de propriedade. Na realidade, o conceito de prédio para efeitos civis é autónomo e consta do n.º 2 do artigo 204º do Código Civil. (…) No caso em apreço, para que se pudesse afirmar que a autonomia fiscal dos prédios tinha correspondência no plano civil impunha-se a alegação e prova de um acto de destaque do solo sobre o qual foi implantada a construção ou, pelo menos, a prática de actos de posse sobre uma parcela bem delimitada do solo, prolongada no tempo, em condições de publicidade, conducente à constituição do destaque, ou seja, da autonomização de uma fracção do solo por usucapião. Esse acto de destaque era essencial para que se pudessem autonomizar no plano civil os prédios fiscalmente inscritos na matriz urbana e na matriz rústica e para a definição das áreas concretas de cada um deles, das suas delimitações e da definição dos acessos a cada um deles e dos títulos desses acessos (propriedade ou serventia a poder ulteriormente firmar uma servidão por destinação de pai de família). No caso dos autos, nada disso foi alegado ou provado e, pelo contrário, resulta da factualidade apurada que nunca ocorreu qualquer autonomização da construção relativamente ao solo sobre o qual foi implantada, pois que resulta da factualidade apurada que o prédio inscrito na matriz urbana sob o artigo ….º e legado ao autor está implantado no prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo … e legado à ré. Na falta de alegação de factos integradores do aludido destaque, continua a subsistir um só prédio com duas inscrições matriciais, não tendo uma só dessas inscrições matriciais, nesse circunstancialismo, aptidão para se constituir como objecto de direitos reais. “ (sublinhados nossos)
E nesta esteira no subsequente Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, escreveu-se:
“ O tribunal apreciou a autonomia fiscal dos prédios, pois têm matrizes distintas com titulares inscritos distintos, mas não considerou que daí estivesse provado que as duas matrizes correspondiam civilmente a dois prédios autónomos, para todos os efeitos, nomeadamente para demarcação. E como para o direito civil não existem prédios mistos, haveria que provar que as matrizes deram origem a prédios autónomos no sentido civil do termo, o que no caso, estando a casa implantada no terreno se faria por uma de duas formas: - prova do destaque da casa (a partir da matriz urbana) em relação ao terreno (matriz rústica), por via de processo próprio a desenvolver junto das instâncias competentes [4]; - prova de que a casa enquanto prédio urbano é, desde tempo suficiente, objecto de posse boa para aquisição do direito de propriedade por usucapião, possuída por quem se alega seu proprietário, usucapião que tenha sido já invocada. Mas mais uma vez haveria que reafirmar: tais invocações e provas teriam de estar reunidas para a acção de demarcação poder ser julgada procedente – o que não foi o caso. “ (sublinhados nossos)
Vem isto a significar que, na interpretação que julgamos ser devida dos ditos actos decisórios, ambos os citados arestos e, em particular o Acórdão do Supremo, deixaram de forma expressa em aberto a possibilidade de vir a ser instaurada uma outra acção comum, nomeadamente de reivindicação, destinada, precisamente, à obtenção da autonomização naquele prédio único de dois prédios para efeitos civis (um urbano e outro rústico), autonomização essa decorrente ou fundada na respectiva aquisição originária por usucapião, aí invocando o alegado proprietário da parte urbana o objecto da sua posse (casa de habitação e logradouro) e as demais características dessa posse (duração, publicidade e continuidade) relevantes para aquele efeito jurídico.
Por conseguinte, em nosso julgamento, sendo esta a causa de pedir e o objecto essencial da presente acção, confrontada a decisão acolhida na aludida acção n.º 662/13.9TBVFR – emergente dos aludidos Acórdãos desta Relação e do Supremo - não vemos que se possa sustentar que essa decisão prévia possa constituir, em termos de autoridade de caso julgado, óbice ou obstáculo ao prosseguimento da presente acção, independentemente do juízo de mérito que a mesma possa vir a merecer a final e em função da prova que nela vier a ser produzida.
Por conseguinte, em nosso ver e com o devido respeito, não ocorre a excepção de autoridade de caso julgado decretada pelo Tribunal de 1ª instância, merecendo, pois, provimento o recurso de apelação interposto pelos Autores.
Mas ainda, segundo se nos afigura, outro argumento poder ser convocado no mesmo sentido.
A decisão recorrida partiu, como acima se expôs, do pressuposto que a decisão proferida na aludida acção de demarcação é prejudicial relativamente à presente acção de reivindicação e que, como tal, esta tinha que aceitar a definição do prédio em causa como um prédio único.
Sobre a relação de prejudicialidade entre acções conexas refere o Professor Miguel Teixeira de Sousa, “ Estudos sobre o Novo Código de Processo Civil “, 2ª edição, Lex, 1997, pág. 575, que ” … A relação de prejudicialidade entre objectos processuais verifica-se quando a apreciação de um objecto (que é o prejudicial) constitui um pressuposto ou condição do julgamento de um outro objecto (que é o dependente). Também nesta situação tem relevância o caso julgado: a decisão proferida sobre o objecto prejudicial vale como autoridade de caso julgado na acção em que é apreciado o objecto dependente.
Nesta hipótese, o tribunal da acção dependente está vinculado à decisão proferida na causa prejudicial. “ [5]
Ora, sendo assim, em nosso ver, tendo presente o já salientado objecto da acção de demarcação (que não tem por objecto, recorde-se, a definição do direito de propriedade, mas apenas a sua delimitação ou definição da sua extensão), a mesma não se assume como uma acção cujo objecto seja prejudicial face ao objecto da presente acção de reivindicação e, logicamente, a partir da mesma e da sua decisão não é, segundo cremos, possível extrair qualquer efeito ao nível de uma alegada autoridade de caso julgado aplicável na posterior acção de reivindicação. [6]
E mais será assim quando, como é o caso, a dita acção de demarcação foi julgada improcedente.
Com efeito, se na sentença de procedência fica declarado o direito alegado pelo autor, na sentença de improcedência fica declarado que o autor não tem o direito que alega, apenas e só à luz do concreto facto constitutivo que alegou.
Neste sentido, como salienta Rui Pinto, op. cit., pág. 40-44, cuja posição aqui se perfilha, há que distinguir consoante a primeira decisão (proferida na causa alegadamente prejudicial) seja de procedência do pedido (caso julgado positivo) ou de improcedência do pedido (caso julgado negativo).
Numa situação de caso julgado positivo estão vedadas novas acções entre os mesmos sujeitos, sempre que o pedido seja o mesmo em ambas e exista uma relação de concurso entre causas de pedir.
Na realidade, se o autor venceu na pretensão de obtenção de certo efeito jurídico é irrelevante por que concreto fundamento venceu, de facto e de direito. Digamos que “ … uma procedência é suficiente para o sistema condicionar a repetição do direito de acção.”
Todavia, as coisas passam-se de modo diferente na situação de caso julgado negativo.
Ao autor vencido não está vedado que repita o mesmo pedido, mas com diferentes causas de pedir: o que transitou foi que, pelo primeiro e concreto fundamento, o autor não tem o direito que alega, mas não transitou que ele não possa ter direito por qualquer outro fundamento fáctico não deduzido.
Significa isto que, no caso dos presentes autos, para além de estarem em ambos os processos em concurso (o processo n.º 662/13.9 e o presente processo) pedidos e causas de pedir distintos – o que afasta, desde logo, a excepção de caso julgado -, acresce, ainda, que a circunstância de anterior acção de demarcação ter improcedido – pelas razões já acima expostas -, não constitui, em termos de autoridade de caso julgado, em nosso ver e com o devido respeito, um qualquer óbice intransponível a que os Autores possam demonstrar a aquisição originária do seu direito de propriedade sobre o prédio ora em causa (por usucapião) – casa de habitação e logradouro - e, nesse contexto, exigirem o reconhecimento desse direito por parte dos réus e, ainda, de exigirem o ressarcimento dos prejuízos alegadamente sofridos.
Se o conseguirão fazer e em que termos é questão que contende já com o mérito da própria acção e este só pode ser dirimido a final e em função do que vier a resultar da instrução do processo.
Por conseguinte, em síntese final, também a esta luz, deve ser concedido provimento à apelação, revogando-se o despacho que julgou procedente a excepção de autoridade de caso julgado e absolveu os réus da instância, devendo, antes, os autos prosseguir os seus ulteriores termos.
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V. DECISÃO: Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogar o despacho que declarou procedente a excepção de autoridade de caso julgado e absolveu os réus da instância, devendo, ao invés, os autos prosseguirem os seus ulteriores termos.
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Custas pela recorrida, que ficou vencida - artigo 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC.
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Porto, 15.12.2021
Jorge Seabra
Pedro Damião e Cunha
Fátima Andrade
(O presente acórdão não segue na sua redacção o Novo Acordo Ortográfico)
______________________ [1] AC RG de 7.08.2014, relator Sr. Juiz Desembargador Jorge Teixeira ou, ainda, AC RG de 17.12.2013, relator Sr. Juiz Desembargador Manuel Bargado, ambos disponíveis in www.dgsi.pt [2] Vide, neste sentido, por todos, ao nível da jurisprudência, AC RP de 21.11.2016, por nós relatado, AC STJ de 18.06.2014, relator Sr. Juiz Conselheiro A. ABRANTES GERALDES, AC STJ de 30.03.2017, relator Sr. Juiz Conselheiro Tomé Gomes, AC STJ de 28.06.2018, relator Sr. Juiz Conselheiro, Acácio das Neves, todos disponíveis in www.dgsi.pt e na doutrina, RUI PINTO, op. cit., pág. 28-29 e J. LEBRE de FREITAS, “ Um Polvo Chamado Autoridade do Caso Julgado “, ROA, ano 79 (2019), III-IV, Julho/Dezembro, pág. 707. Sobre as hipóteses excepcionais de extensão da força de caso julgado a terceiros, vide, ainda, por todos, J. LEBRE de FREITAS, op. cit., pág. 694-695 e F. FERREIRA de ALMEIDA, “ Direito Processual Civil “, II volume, pág. 601-616. [3] Vide, neste sentido, por todos, A. VARELA, P. LIMA, “ Código Civil Anotado ”, III volume, 2ª edição, Revista e Actualizada, 1987, pág. 199. [4] Vide o artigo 2º do DL n.º 400/84, de 31.12 e o artigo 5º do DL n.º 448/91, de 29.11. [5] Vide, no mesmo sentido, por todos, RUI PINTO, op. cit., pág. 38. [6] Sobre a distinção entre a acção de demarcação e a acção de reivindicação, além da doutrina já citada sobre a nota 3, vide, ainda, o recente Acórdão desta Relação de 21.10.2021, relatado pela Sr.ª Juíza Desembargadora Isoleta de Almeida Costa, assim como a demais jurisprudência ali referida, acórdão que se encontra disponível in www.dgsi.pt.