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INVENTÁRIO
DIVÓRCIO
CRÉDITO POR DÍVIDAS DA RESPONSABILIDADE DE AMBOS OS CÔNJUGES
RELACIONAÇÃO
Sumário
1 – O processo de inventário em consequência do divórcio, instaurado para partilha do património comum do dissolvido casal, é norteado pelo objectivo de conseguir um equilíbrio no rateio final, ou seja, que nenhum dos ex-cônjuges, após a partilha, fica prejudicado em relação ao outro. 2 – O inventário em consequência de divórcio não se destina apenas a dividir os bens comuns dos cônjuges, mas também a liquidar definitivamente as responsabilidades entre eles e deles para com terceiros. 3 – A partilha envolve a satisfação dos créditos de cada um dos cônjuges sobre o outro, uma vez que o artigo 1689º, nº 3, do Código Civil estabelece que esses créditos são pagos pela meação do cônjuge devedor no património comum; não existindo bens comuns, ou sendo estes insuficientes, respondem os bens próprios do cônjuge devedor. 4 – Quando um dos cônjuges paga com bens próprios dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges, torna-se credor do outro pelo que haja satisfeito além do que lhe competia satisfazer e esse crédito é exigível no momento da partilha dos bens do casal. 5 – Tal crédito deve ser objecto de relacionação no inventário subsequente ao divórcio. 6 – Tendencialmente, no inventário devem ser solucionadas todas as questões emergentes da cessação das relações patrimoniais entre os cônjuges com influência na partilha do património comum, designadamente as que respeitam à liquidação das compensações devidas pelo pagamento de dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges suportado apenas por um deles.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães (1):
I – Relatório
1.1. No processo de inventário em consequência de divórcio, instaurado para partilha do património comum do dissolvido casal constituído por M. M. e L. B., o cabeça-de-casal apresentou relação de bens, donde consta, no passivo, a seguinte verba:
«Verba n.º 3: Crédito de compensação do requerente sobre o património comum, correspondente a metade dos pagamentos efectuados pelo requerente, após a dissolução do casamento, para amortização dos mútuos bancários descritos sob as verbas n.º 4 e n.º 5, incluindo o pagamento dos seguros contratados, o qual ascende a mais de €30.300,00 (trinta mil e trezentos euros) [€60.600,09/2].».
A interessada M. M.deduziu reclamação contra a relação de bens, onde «salienta que na relação das verbas constantes do passivo não é junto qualquer documento comprovativo dos valores em causa nem é feita qualquer referência a documentos por ventura já juntos aos autos» e termina requerendo que «o cabeça de casal proceda às demais supra referidas correçõesque se julga impor nesta nova relação de bens apresentada, devendo ainda proceder aquele à junção de documentos que demostrem os valores referidos nas verbas 1, 2 e 3 do Passivo».
Em resposta, o cabeça-de-casal referiu, quanto «à verba n.º 3 do passivo, a mesma só poderá ser definitivamente calculada no término do processo de inventário, porquanto, todos os meses o Requerente tem liquida[do] sozinho a totalidade das prestações devidas à Caixa ...».
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1.2. Em 06.10.2020 foi proferido despacho com o seguinte teor, na parte que releva para o objecto do recurso:
«A verba nº 3 é considerada como um crédito do cabeça de casal que apenas poderá ser considerado desde que posterior a 06.01.2006 (art. 1789º, nº 1 do CCivil). Ora, “como é sabido, no decurso da sociedade conjugal (...) os cônjuges tornam-se reciprocamente devedores entre si e tal situação verifica-se sempre que (...), tratando-se de dívida da responsabilidade solidária de ambos, um dos cônjuges satisfez voluntariamente maior quantia que o outro” – cfr. Lopes Cardoso in “Partilhas Judiciais”, vol. III, 4ª Ed, 1991, pág. 392. Todavia, tal “disciplina não impõe que na partilha se dê pagamento ao cônjuge credor do que o outro cônjuge lhe está devendo” (loc. cit.) dado que tais créditos “não respeitam ao património comum mas ao património individual do cônjuge credor, constituindo, em contrapartida um elemento negativo do cônjuge devedor” (loc. cit.). Nessa medida e ainda segundo Lopes Cardoso (loc. cit.) tais créditos “não deverão ser objecto de relacionação, isto mau grado deverem ser considerados no momento da partilha para serem satisfeitos na conformidade do disposto no art. 1698º, nº 3 do CCivil”, respondendo pelos mesmos, em primeira linha, a meação do cônjuge devedor no património comum e na, insuficiência desta, os bens próprios do devedor. Obviamente que, nesta sede, considera-se que tal direito de crédito não será incluído na relação de bens (devendo ser excluída a verba nº 3), mas poderá ser considerado, desde que documentalmente comprovado, a final, no momento da partilha, com vista a ser deduzido à meação do respectivo devedor».
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1.3. Inconformado, o cabeça-de-casal L. B. interpôs recurso de apelação daquele despacho, formulando as seguintes conclusões:
«1- Os presentes autos de Inventário após divórcio iniciaram-se no ano de 2015 em cartório notarial, tendo sido nomeado cabeça-de-casal o ora Recorrente.
2- Nessa qualidade e em cumprimento dos deveres que impendem sobre o cabeça-de-casal, o Recorrente apresentou relação dos bens que constituem património comum, nela incluindo:
a. quer os bens adquiridos na constância do matrimónio dissolvido (ativo);
b. quer as dívidas contraídas na constância do matrimónio dissolvido e em proveito comum do ex-casal (passivo);
c. quer, ainda, os créditos entre cônjuges consubstanciados nas dívidas que após a dissolução do casamento por decretamento de divórcio custeou única e exclusivamente, sendo que são da responsabilidade comum dos ex-cônjuges.
3- Em 20/02/2020, ao abrigo do disposto na Lei nº 117/2019, de 23 de setembro, a Interessada solicitou a remessa do processo de inventário para o Tribunal Judicial competente, no caso, para o Juízo de Família e Menores de Braga do Tribunal Judicial da Comarca de Braga. Ao que o Recorrente anuiu expressamente.
4- Subsequentemente originaram-se os presentes autos de processo de Inventário de Competência Facultativa e, por despacho proferido em 30/09/2021, o Tribunal a quo decidiu pela exclusão do direito de crédito relacionado pelo Recorrente na relação de bens, determinando a exclusão da verba nº 3 do passivo, acrescentando “(…) mas poderá ser considerado, desde que documentalmente comprovado, a final, no momento da partilha, com vista a ser deduzido à meação do respectivo devedor”.
5- Ora, incide a discordância do Recorrente sobre a decisão de exclusão da relação de bens do seu direito de crédito relacionado enquanto verba nº 3 do passivo. Constitui, pois, esta parte do segmento decisório plasmado no despacho recorrido o objeto do presente recurso.
6- Com a devida vénia, o Recorrente não se conforma com a decisão de exclusão da verba nº 3 do passivo da relação de bens, correspondente ao relacionamento do direito de crédito que o Recorrente reclama da Interessada/Recorrida.
Vejamos:
7- Na pendência do casamento o ex-casal adquiriu:
a. Um prédio urbano composto de casa de dois pavimentos para habitação com quintal, com a área de 87m2 e descoberta de 200m2, sito no lugar ..., freguesia de ..., concelho de Vila Verde, na matriz respetiva sob o nº …, relacionado na verba n.º 4 do ativo da relação de bens;
b. Um prédio rústico denominado “Borda …”, com a área de 1375m2, sito no lugar ..., freguesia de ..., concelho de Vila Verde, relacionado da verba nº 5 do ativo da relação de bens;
c. uma casa de cave e rés-do-chão com logradouro, sita no lugar de …, freguesia de …, concelho de Vila Verde, descrito na Conservatória do Registo Predial de …, sob o nº …/19971204, e inscrito na matriz respetiva sob o nº …, relacionada na verba n.º 6 do ativo da relação de bens
8- Para aquisição dos prédios descritos em a) e b) o ex-casal contraiu mútuo com a Caixa ..., SA (referência 0171.020816.485) cujo montante à data cujo montante, na altura da prolação da sentença da dissolução do casamento por divórcio e da consequente cessação das relações pessoais e patrimoniais entre os inventariados, ascendia a €64.000,00 (sessenta e quatro mil euros). O referido crédito encontra-se garantido por hipoteca voluntária sobre o imóvel descrito em c).
9- Para aquisição do imóvel descrito em c) o ex-casal contraiu mútuo com a Caixa ..., SA (referência 0171.020817.285) cujo montante à data da prolação da sentença da dissolução do casamento por divórcio e da consequente cessação das relações pessoais e patrimoniais entre os inventariados, ascendia a €25.000,00 (vinte e cinco mil euros). O referido crédito encontra-se garantido por hipoteca voluntária sobre o imóvel em questão.
10- A responsabilidade pelo pagamento dos referidos contratos de mútuos bancários cabia a ambos os cônjuges, tratando-se de dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges (artigo 1691º, nº 1, alínea a) do Código Civil (CC)). Todavia, é apenas o Recorrente quem, antes ainda da data do divórcio, pelo menos desde o ano de 2002, data em que ocorreu a separação de facto, e até ao presente, tem vindo a suportar as prestações dos empréstimos, os seguros, os impostos (IM) com bens próprios.
11- E ainda que não se conceda o reconhecimento da data da separação de facto, sem prejuízo do ónus da prova que recai sobre o Recorrente, sempre resultará pacífico que nos termos do artigo 1789º, nº 1 do CC os efeitos da sentença de dissolução do casamento por divórcio, proferida em 28/01/2009 retroagem à data da propositura da ação de divórcio, isto é, a 06/01/2006.
12- Assim sendo, o Recorrente detém um crédito sobre a Recorrida, correspondente àquilo que pagou a mais do que devia, nos termos do artigo 1697º, nº 1 do CC. Sendo que, deve atender-se ao artigo 1730º do CC que estabelece a regra da metade, isto é, os cônjuges participam por metade no ativo e no passivo da comunhão, sendo, de resto, nula qualquer estipulação que afaste a referida regra.
13- Face ao quadro legal aplicável, o Recorrente incluiu na relação de bens, no passivo, sob a verba nº 3, o seu crédito sobre a Recorrida correspondente a metade do valor global dos pagamentos efetuados, após a dissolução do casamento, para amortização dos mútuos bancários, seguros e impostos.
14- Nos termos do artigo 1688º do CC, as relações patrimoniais entre os cônjuges cessam pela dissolução do casamento, isto é, pelo divórcio. O divórcio dissolve o casamento e tem juridicamente os mesmos efeitos da dissolução por morte, salvas as exceções consagradas na lei (artigo 1788º do CC). Decretado o divórcio por decisão transitada em julgada, abrem-se, então, as portas para proceder à partilha dos bens que faziam parte do acervo do casal. É esta a finalidade do inventário após divórcio.
15- Assim, no processo de inventário após divórcio, salvo melhor entendimento, ao cabeça de casal incumbe apresentar uma relação de bens, onde indicará os bens que deverão ser relacionados para serem objeto da partilha. Assim, cabe-lhe, então, “relacionar todos os bens comuns, de acordo com o regime da comunhão de adquiridos, as dívidas a terceiros que onerem o património comum, as dívidas entre cônjuges, bem como as “compensações” de patrimónios”.
16- Prosseguindo o processo de inventário na operação da liquidação, após se relacionarem os bens comuns nos termos mencionados, avança-se para a “correção de desequilíbrios pelo mecanismo das compensações e o pagamento das dívidas”.
17- Nos termos do nº 1 do artigo 1689.º do CC, cada cônjuge recebe os seus bens próprios e a sua meação no património comum, conferindo cada um deles o que dever a este património. Assim, o cônjuge devedor terá que compensar o património comum pelo enriquecimento obtido no seu património próprio à custa da comunhão – ou seja, por todos os valores de que o património próprio beneficiou à custa do património conjugal.
18- As compensações servem, precisamente, para chegarmos ao valor real do ativo comum, constituindo um modo de correção de eventuais desequilíbrios decorrentes das transações efetuadas entre as três massas patrimoniais na constância do casamento, pretendendo-se evitar enriquecimentos indevidos. Só depois de se calcular o valor das compensações e das dívidas a terceiros é que obtemos o valor do ativo comum líquido, com vista a passar para a terceira e última operação: a partilha propriamente dita.
19- Numa perspetiva de proteção do cônjuge credor, é defensável que se proceda, de antemão, ao cálculo e atribuição das respetivas compensações e só posteriormente, apurando-se o ativo da comunhão, saldar-se as dívidas em relação aos credores terceiros.
20- Aqui chegados, afigura-se que a solução que melhor permite condensar no processo de inventário todas as questões contendentes com as relações entre o património comum e os patrimónios próprios de cada cônjuge e contendentes com as relações entre patrimónios próprios dos cônjuges, por vista a garantir a completa partilha, é a de incluir na relação de bens quer os bens (ativo), quer as dívidas a terceiros e as compensações (passivo).
21- Esta solução, de resto, permite estabilizar o objeto da partilha, determinar o valor do ativo comum líquido, desta forma facilitando a desejada composição das meações. Tem sido este o acolhimento da doutrina e jurisprudência maioritários.
22- Vertendo ao caso concreto, os créditos reclamados pelo Recorrente sobre a Recorrida, resultantes de pagamentos efetuados depois da data em que terminaram as relações pessoais e patrimoniais entre os cônjuges, consubstanciam a satisfação de dívidas contraídas no decurso da comunhão e que a ambos os cônjuges responsabilizava, pelo que, deve ser considerada na partilha.
23- Pelo exposto, e apesar de não ser totalmente desconhecida a tese citada no despacho recorrido, o Recorrente seguindo a corrente jurisprudencial maioritária relacionou os créditos que tem a reclamar da Interessada, sua ex-cônjuge, sem prejuízo de vir a atualizar esse montante até ao momento da liquidação do património comum, uma vez que continua a efetuar pagamentos mensais por conta das dívidas comuns.
24- Pois assim se garante e fortalece a posição do cônjuge credor e se acautela cabalmente a correção de eventuais desequilíbrios das massas patrimoniais (património comum / patrimónios próprios dos cônjuges).
Da necessidade de decisão diversa,
25- Com fundamento nas razões aduzidas, entende o Recorrente que deve ser revogado o despacho ora posto em crise na parte em que decide pela exclusão da relação de bens do direito de crédito que detém sobre a Recorrida substituindo-o, nessa parte, por decisão que reconheça a retidão da inclusão de tal crédito na relação de bens.
NESTES TERMOS:
E nos melhores de Direito que V.as Ex.as certamente suprirão, requer-se se dignem a dar provimento ao presente recurso de apelação e, consequentemente, a revogar o despacho recorrido na parte em que decide pela exclusão da relação de bens do relacionamento do direito de crédito que o Recorrente detém sobre a Recorrida substituindo-o, nessa parte, por decisão que reconheça a retidão da inclusão de tal crédito na relação de bens».
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Não foram apresentadas contra-alegações.
O recurso foi admitido como sendo de apelação, com subida imediata, em separado e efeito devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.
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1.4. Questão a decidir
Tendo presente que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635º, nºs 2 a 4, e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, a única questão a decidir consiste em determinar se deve ser relacionado no inventário o direito de crédito que o Recorrente alega ter sobre a Recorrida, relativo a despesas por si suportadas, após a cessação das relações pessoais e patrimoniais, com bens imóveis que integram o património comum.
No fundo, trata-se de saber se deve ser relacionado o crédito resultante de o requerente/cabeça-de-casal ter pago dívidas da responsabilidade solidária de ambos os cônjuges.
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II – Fundamentação
2.1.Fundamentos de Facto
Os factos que relevam para a decisão da questão são os que resultam do precedente relatório, para os quais se remete.
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2.2.Do objecto do recurso
Estamos perante um inventário em consequência de divórcio, no qual foi relacionada como passivo uma verba consistente num «crédito de compensação do requerente sobre o património comum, correspondente a metade dos pagamentos efectuados pelo requerente, após a dissolução do casamento, para amortização dos mútuos bancários descritos sob as verbas n.º 4 e n.º 5, incluindo o pagamento dos seguros contratados, o qual ascende a mais de €30.300,00 (trinta mil e trezentos euros) [€60.600,09/2]».
Importa referir que a interessada M. M. não se opôs à relacionação de tal crédito. Apenas suscitou a questão da falta de junção de documentos comprovativos do respectivo valor, tanto que até preconizou que o cabeça-de-casal procedesse «à junção de documentos que demostrem os valores referidos nas verbas 1, 2 e 3 do Passivo».
O Tribunal recorrido, aderindo ao entendimento de João António Lopes Cardoso na sua obra Partilhas Judiciais (2), considerou «que tal crédito não será incluído na relação de bens», pelo que o excluiu, mas admitiu que possa vir a «ser considerado, desde que documentalmente comprovado, a final, no momento da partilha, com vista a ser deduzido à meação do respectivo devedor».
Portanto, a questão é esta: deve ou não tal crédito ser relacionado no âmbito do inventário subsequente ao divórcio?
Sobre a questão de saber se deve ser objecto de relacionação no inventário o crédito do interessado que solveu dívida da responsabilidade de ambos os cônjuges, têm sido defendidas duas teses.
A tese que exclui a relacionação sustenta que «estes créditos não respeitam ao património comum mas ao património individual do cônjuge credor, constituindo, em contrapartida, elemento negativo do do cônjuge devedor», mas que devem «ser considerados no momento da partilha para serem satisfeitos na conformidade do disposto no art. 1689º-3 do Cód. Civil». Esta é a posição defendida por João António Lopes Cardoso, tal como se assinalou na decisão recorrida, segundo a qual esse crédito não se relaciona mas satisfaz-se na partilha.
A tese que considera necessária a relacionação funda-se na ideia de que o processo de inventário em consequência de divórcio não se destina apenas a dividir os bens comuns dos cônjuges, mas também a liquidar definitivamente as responsabilidades entre eles e deles para com terceiros, o que pressupõe sempre a relacionaçãode todos os bens, próprios ou comuns, e também daqueles créditos. Entre muitos outros arestos, pode-se ver defendida tal tese no acórdão desta Relação de Guimarães, de 07.03.2019, proferido no processo 170/11.2TBEPS.G2 (relatado por Sandra Melo) (3).
Para que fique bem claro, a dissensão entre as duas posições respeita apenas à relacionação, pois que ambas consideram que a dívida/crédito deve ser considerada no momento da partilha. Daí que o essencial resida em saber se é para o efeito necessária a relacionação prévia à partilha.
Para o efeito, importa definir o quadro normativo que determina a solução a dar à questão objecto do recurso.
Cessadas as relações patrimoniais entre os cônjuges pela dissolução do casamento – art. 1688º do Código Civil (CCiv.) –, recebem estes os seus bens próprios e a sua meação no património comum, conferindo cada um deles o que dever a este património – art. 1689º, nº 1, do CCiv. (4). A par dessa reposição do que cada um dos cônjuges estiver a dever ao património comum, havendo passivo a liquidar, são pagas em primeiro lugar as dívidas comunicáveis até ao valor do património comum, e só depois as restantes – art. 1689º, nº 1. Recorde-se que o passivo, que onera o património comum, da responsabilidade de ambos os cônjuges é apurado nos termos dos artigos 1691º, 1693º, nº 2, e 1694º, nºs 1 e 2.
Mas a lei definiu igualmente que a partilha envolve a satisfação dos créditos de cada um dos cônjuges sobre o outro e regulou a forma como são satisfeitos: o nº 3 do artigo 1689º estabelece que são pagos pela meação do cônjuge devedor no património comum; não existindo bens comuns, ou sendo estes insuficientes, respondem os bens próprios do cônjuge devedor.
Releva ainda o artigo 1697º, nº 1, segundo o qual, quando por dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges tenham respondido bens de um só deles, este torna-se credor do outro pelo que haja satisfeito além do que lhe competia satisfazer. Portanto, um tal crédito deve ser pago nos termos regulados no nº 3 do artigo 1689º.
No caso dos autos, tendo o casamento sido sujeito ao regime da comunhão de adquiridos, a partilha é feita em consonância com o aludido regime e as normas legais que o norteiam. Importa notar que, nos termos do artigo 1730º, nº 1, os cônjuges participam por metade no activo e no passivo da comunhão.
Não há dúvida, nem foi levantada, que os encargos e despesas com o património comum, como é o caso das prestações de amortização de empréstimos, IMI e seguros relativos a imóveis comuns, entre muitas outras semelhantes, constituem dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges. Sendo uma dessas dívidas paga por um dos cônjuges, após a cessação das relações pessoais e patrimoniais entre eles, o que a solveu torna-se credor do outro pelo que haja satisfeito além do que lhe competia satisfazer, sendo este crédito exigível no momento da partilha dos bens do casal e, consequentemente, pago pela meação do cônjuge devedor no património comum, nos termos do disposto no citado artigo 1689º, nº 3.
Dito isto, entendemos que o pagamento de dívidas comuns do casal por um dos cônjuges, com recurso a bens próprios seus, posteriormente à data da cessação dos efeitos patrimoniais do casamento, dá origem a um crédito do cônjuge pagador sobre o outro cônjuge, que deve ser relacionado no processo de inventário instaurado em consequência do divórcio. Aliás, sejam tais dívidas saldadas na constância do casamento ou depois do divórcio, mas necessariamente antes da partilha, consideramos que o regime é o mesmo e que deve tal crédito do cônjuge que liquidou dívidas comuns do casal ser relacionado no inventário.
Existem ponderosas razões para que tal crédito seja objecto de relacionação no inventário, como tem sido assinalado pela jurisprudência largamente maioritária (5), assim como por vários autores (6).
Em primeiro lugar, os defensores da não relacionação desse crédito no inventário não aduzem um fundamento substancial para afastar tal relacionação, emergente do regime normativo que acabamos de expor ou da própria natureza do processo de inventário. Não é apresentado um argumento susceptível de demonstrar que é absolutamente errado, irrelevante ou inútil – ou, pelo menos, supérfluo – relacionar o crédito.
Pelo contrário, além de inexistir um argumento que convença do desacerto da relacionação do crédito, nenhuma norma a afasta.
Logo numa análise liminar, verifica-se que o artigo 1689º refere-se à partilha do casal e pagamento de dívidas e menciona as operações que integram aqueles actos. Resulta dessa disposição e das demais atrás citadas que o inventário instaurado para partilha do património comum do dissolvido casal implica a realização de várias operações, entre as quais figuram a determinação dos bens que integram o referido património, o apuramento e pagamento das dívidas, a avaliação e cálculo das compensações, a consideração destas e a efectiva partilha dos bens comuns.
Essas operações – rectius, a referida no artigo 1689º, nº 3 – só fazem realmente sentido se o crédito do cônjuge que pagou uma dívida comum com os seus bens próprios obtiver a respectiva satisfação nessa fase, o que envolve a sua necessária relacionação, enquanto pressuposto da submissão do assunto à conferência de interessados e da subsequente deliberação sobre o pagamento, bem como da posterior consideração nas operações da partilha. Dito de outro modo, a partilha de bens subsequente ao divórcio pressupõe a liquidação do património comum, com a contabilização de dívidas a terceiros e cálculo de compensações, partilhando-se depois apenas o activo comum líquido.
Argumentam os defensores da tese contrária que a execução do apontado regime «não impõe que na partilha se dê pagamento ao cônjuge credor do que o outro cônjuge lhe está devendo», mas, salvo o devido respeito, essa asserção, se entendida como referindo-se à questão que estamos a abordar, parece não estar em consonância com o disposto no nº 3 do artigo 1689º, ao estabelecer que os créditos de cada um dos credores sobre o outro são pagos pela meação do cônjuge devedor no património comum e que só no caso de inexistência ou insuficiência dos bens comuns é que respondem os bens próprios do cônjuge devedor.
Depois, a posição de que tais créditos não se relacionam mas que são considerados na partilha para então serem satisfeitos tem inconvenientes não despiciendos.
Existindo bens comuns, o objectivo é pôr fim à indivisão, partilhando a massa de bens pelos dois titulares. Para chegarmos a essa partilha efectiva, é necessário praticar um conjunto de actos preparatórios. O acto que se nos afigura estruturante – no plano jurídico e no dos interesses em presença – de todos os demais actos subsequentes é o da identificação dos bens comuns, das dívidas para com terceiros, das dívidas dos cônjuges ao património comum ou deste àqueles e dos créditos de cada um dos cônjuges sobre o outro que devam ser pagos pela meação do cônjuge devedor no património comum.
Ora, é para isso que serve a relação de bens. Uma relacionação adequada e exaustiva permite delimitar o objecto e âmbito do inventário e possibilita aos interessados a oportuna discussão das questões factuais e jurídicas com vista à definição dos respectivos direitos e obrigações. Mais do que tudo, no plano prático do cidadão comum que intervém num processo de inventário, permite desde o início saber aos interessados com o que contam, evitando surpresas já na parte final do inventário, na fase da partilha.
Por conseguinte, na parte que releva para o objecto deste recurso, no inventário competirá relacionar o passivo, desde logo, o que onera o património comum, da responsabilidade de ambos os cônjuges (a apurar nos termos dos arts. 1691º, 1693º, nº 2, e 1694º, nºs 1 e 2, do CCiv.), mas também as dívidas do património comum a cada um dos cônjuges (7) e, segundo a maioria da jurisprudência e da doutrina, os créditos de compensação, dos cônjuges entre si, emergentes do pagamento de dívidas comuns com bens próprios. O passivo relacionado será submetido à conferência de interessados para deliberar sobre a sua aprovação e forma de pagamento.
O conteúdo do processo de inventário não deve ser determinado por um eventual arquétipo técnico desligado da realidade, mas sim, norteado pelas normas que sobre o mesmo, directa ou reflexamente, dispõem, conformado em ordem a satisfazer os direitos e interesses das pessoas que nele são parte. É o processo de inventário subsequente ao divórcio que deveconstituir o repositório e suporte processual para a apreciação de todas as questões atinentes com os bens comuns e o passivo dele emergente ou com ele atinente, no que se incluem as compensações entre os cônjuges, emergentes, por exemplo, do pagamento com bens próprios de dívidas comuns.
Em segundo lugar, essa é a solução que melhor se adequa às finalidades do inventário em consequência do divórcio e que satisfaz as legítimas expectativas de quem recorre ou intervém num tal processo.
Por um lado, o objectivo que preside a todas as operações de liquidação e partilha do património comum é conseguir um efectivo equilíbrio no rateio final, o que se consegue se o património individual de cada um dos cônjuges não ficar nem beneficiado nem prejudicado em relação ao do outro. Por outro lado, há ainda um objectivo complementar, qual seja o de procurar resolver todas as questões atinentes ao património comum no inventário, para que os interessados não se vejam posteriormente na necessidade de recorrer a tribunal com a finalidade de sanar conflitos que nem sequer se suscitariam se o inventário tivesse sido exaustivo e completo.
São raros – pontualíssimos – os casos em que se verifica que, após a cessação das relações pessoais e patrimoniais entre os cônjuges, as dívidas emergentes do património comum foram, entretanto, satisfeitas pelos dois de forma absolutamente igual. Apurada a situação dívida a dívida, regra geral, só um deles é que efectuou, à custa do seu património individual e próprio, o pagamento de uma concreta dívida (8). Vista a globalidade das dívidas, a situação mais comum é um dos cônjuges efectuar o pagamento de algumas dívidas que vão surgindo e o outro satisfazer as demais dívidas, mas, efectuado o confronto do que foi pago, um deles acabou por pagar uma quantia global superior à suportada pelo outro. Daí que seja necessário um dos cônjuges compensar o outro pelo que este pagou a mais.
Portanto, dado o elevado número de divórcios, estamos perante uma questão muito relevante para a nossa sociedade, para a qual o processo de inventário deve dar resposta célere, adequada e justa.
Sendo instaurado inventário subsequente ao divórcio, parece-nos que uma tal questão deve ficar resolvida no mesmo. Não é curial que, subsistindo à data da partilha, a dívida da responsabilidade de ambos os cônjuges seja um problema comum a ambos; se um dos cônjuges entretanto a pagou, passe a ser apenas um problema daquele que a satisfez e que este se veja na contingência de diligenciar pelo respectivo ressarcimento fora do âmbito do inventário, eventualmente através de um outro processo judicial, penalizando quem cumpre com os seus deveres. Como exemplar e contundentemente se demonstra no acórdão da Relação de Lisboa, de 09.03.2017, processo 5208-14.9T8ALM-B.L1-2 (Pedro Martins), «se um imóvel de 10.000 é adquirido pelos dois cônjuges com um empréstimo de 5000 pedido pelos dois, o património comum tem o valor líquido de 5000 (activo de 10.000 menos dívida de 5000). Se for partilhado nesse momento, cada um deles só recebe só 2500 (por alguma de várias vias: se o imóvel for vendido, a dívida é paga e a parte sobrante é dividida pelos dois; se o imóvel for adjudicado a um deles, sem acordo quanto ao pagamento da dívida, a dívida é paga por aquele a quem for adjudicado e o mesmo ainda terá de dar tornas de 2500 ao outro, ficando para si com os outros 2500). Se a dívida de 5000 for entretanto paga com o dinheiro de apenas de um deles, o património comum passa a ter o valor líquido de 10.000. Se for dividido assim, sem mais nada, cada um deles recebe 5000 (por exemplo, através de tornas pagas pelo outro). O que é injusto porque foi apenas um deles que pagou a dívida. Recebendo 5000 da partilha, por tornas, este fica com 0, pois que aqueles 5000 se encontram com os 5000 que gastou para pagar a dívida. Ou seja, um fica com 5000 e o outro com 0. Não pode ser. Por isso, tem de haver uma compensação entre o património comum e o património do que pagou a dívida».
Em terceiro lugar, salvo o devido respeito, a posição contrária parece não levar devidamente em linha de conta a natureza do património comum, que este só se extingue – termina – com a partilha dos bens comuns (9), que a “partilha do casal” não se limita à partilha do património comum, envolvendo uma fase anterior de liquidação da comunhão, e que o crédito do cônjuge que pagou uma dívida comum está indissociado da «meação do cônjuge devedor no património comum», na medida em que é pago por esta, nos termos do nº 3 do artigo 1689º.
Trata-se de um património de afectação comum que tem de ser reintegrado daquilo em que for desfalcado (na expressão do nº 1 do artigo 1689º, «conferindo cada um deles o que dever a este património») e ao qual é também imputado o passivo comum. Aliás, na vertente que releva para a decisão do recurso, em sede de operação de partilha, o passivo comum começa por ser deduzido ao montante global a partilhar. No que respeita ao passivo, começa-se por pagar as dívidas comuns, ou seja, as comunicáveis, no dizer da lei (artigo 1689º, nº 2); depois são pagas outras dívidas (parte final do referido preceito); por último, dá-se pagamento aos créditos de cada um dos cônjuges sobre o outro, pela meação do cônjuge devedor no património comum (nº 3 do artigo 1689º).
O crédito do cônjuge que pagou uma dívida comum não é uma questão estranha à matéria que se discute no inventário. É um assunto que releva para efeitos de partilha do património comum, pois, aquando desta o referido crédito deve ser considerado para ser satisfeito pela meação do cônjuge devedor.
Vejamos um exemplo: o património comum é composto por um único imóvel no valor de € 50.000,00, pelo que na massa comum o marido tem € 25.000,00 e a mulher outros € 25.000,00. Se por hipótese a mulher tiver pago uma dívida comum no valor de € 60.000,00, tem sobre o marido um crédito de € 30.000,00, correspondente ao que pagou a mais. Sendo tal imóvel adjudicado à mulher, esta apenas fica paga da quantia de € 25.000,00, restando credora do marido no montante de € 5.000,00. O crédito da mulher sobre o marido foi parcialmente pago, até ao montante de € 25.000,00, pelo valor da meação do marido no património comum, que era, recorde-se, de € 25.000,00. Em consequência da apontada operação, que deve ser feita no inventário, a mulher ainda tem o remanescente do crédito, no valor de € 5.000,00, sobre o marido, pelo qual responderão os bens próprios do marido.
Como é evidente, uma tal operação deve ser feita no âmbito do inventário e não ficcionar-se que a mulher, que anteriormente pagou uma dívida comum no valor de € 60.000,00, ainda é por sua vez devedora ao marido, no âmbito do inventário, de € 25.000,00 (por ter ficado para si o imóvel no valor de € 50.000,00).
Se o crédito do cônjuge pagador de dívida comum tem essa relevância, é conveniente e adequado que seja objecto de relacionação.
Aliás, funcionalmente, atenta a forma como deve ser pago, tal crédito opera como um crédito sobre o património comum. Não lhe podia ser conferida verdadeira natureza de crédito sobre o património comum, na medida em que podem verificar-se casos de inexistência de bens comuns ou de, apesar de existirem, a meação do cônjuge devedor poder ser insuficiente para satisfazer a totalidade do crédito.
Não deixa de ter razão Cristina Manuela Araújo Dias, em “Do Regime da Responsabilidade por Dívidas dos Cônjuges, Problemas, Críticas e Sugestões” (10), quando afirma que, na situação em que um dos cônjuges paga uma dívida comum com bens próprios, o que existe é «[c]ompensação do património comum ao património do cônjuge que pagou dividas comuns com bens próprios, ainda que tal crédito passe pelo aumento da sua meação no património comum e por uma diminuição da meação do outro cônjuge como se este fosse o devedor, atendendo ao disposto no art. 1689º, nº 3». Acrescenta que «[o] n.º 1 do art. 1697.º regula as compensações devidas pela comunhão a favor a favor de um dos cônjuges, quando este respondeu por dívidas comuns. O direito de crédito aí atribuído a um dos cônjuges tanto existe nos casos em que o cônjuge respondeu com os bens próprios, como obrigado solidário (nos termos do art. 1695.º, n.º 1), como nos casos em que tenha respondido como obrigado conjunto (art. 1695.º, n.º 2), uma vez que mesmo neste último caso, ele poderá ter querido satisfazer uma parte da dívida global superior à que lhe competia (...). Pretende-se que o cônjuge que pagou mais do que devia tenha sempre o direito a ser compensado daquilo que pagou a mais. (...) se, no momento da partilha, houver bens comuns, é por eles que o cônjuge credor será pago em primeiro lugar (cfr. o art. 1689.º, n.º 3), tudo se passando como se o devedor fosse realmente o património comum e, a título subsidiário, o outro cônjuge. Pretende-se que o cônjuge que pagou mais do que devia tenha sempre o direito a ser compensado daquilo que pagou a mais. (...) É efectivamente a meação do cônjuge não credor que compensará o cônjuge que respondeu com o seu património por dívidas comuns (cfr. o art. 1689.º, n.º 3), verificando-se, desta forma, uma compensação do património comum ao próprio de um dos cônjuges. É que, note-se, dada a ausência de personalidade jurídica da comunhão, os titulares do património comum são, efectivamente, ambos os cônjuges. No final, a compensação devida a um dos cônjuges pela comunhão será paga por um acréscimo da meação do cônjuge credor nos bens comuns, de valor igual ao da compensação devida e, necessariamente, por uma diminuição, na mesma proporção, na meação do outro cônjuge. (...) Se se trata de uma dívida comum, pela qual respondem os bens comuns, mas paga com bens próprios, temos, consequentemente, compensação e não créditos entre cônjuges».
Em quarto lugar, a partilha em sentido amplo, que é o utilizado no artigo 1689º, nº 1, integra três operações:
a) A separação dos bens próprios (no dizer da lei, «recebem os seus bens próprios»);
b) A liquidação do património comum, com a finalidade de apurar o valor do activo comum líquido, o que envolve operações de cálculo das compensações e de contabilização das dívidas a terceiros e entre os cônjuges;
c) A partilha em sentido restrito, ou seja, a partilha do activo comum líquido, concretizada em atribuições de carácter patrimonial.
Para se chegar à partilha propriamente dita é necessário previamente determinar, por exemplo, se um cônjuge é detentor de um direito de crédito sobre o outro, emergente de ter pago com bens próprios dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges. Essa é uma questão que influencia a partilha.
Ora, como no inventário devem ser solucionadas todas as questões emergentes da cessação das relações patrimoniais entre os cônjuges com influência na partilha do património comum, designadamente as que respeitam à liquidação das compensações devidas pelo pagamento de dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges suportado apenas por um deles, é adequado, com vista à oportuna dilucidação de tal questão, que o crédito seja relacionado. Essa relacionação permite estabilizar o objecto da partilha, alcançar o mencionado objectivo e garantir uma partilha completa.
Em resumo, o cônjuge que pagou dívidas comuns com bens próprios tem direito a obter o pagamento desse crédito sobre o outro cônjuge no momento da partilha, através da meação deste no património comum; como em regra o que se partilha no inventário deve ser objecto de relacionação, tal crédito deve ser relacionado. Não é curial deixar de relacionar um crédito que vai ser considerado na partilha, uma vez que a satisfação de tal crédito naquela fase pressupõe que anteriormente foi objecto de discussão e definição; para ser satisfeito na partilha, é necessário que previamente se verifique se existe e qual o seu montante. Isso pressupõe a relacionação e a sua subsequente discussão com vista à definição do direito.
Termos em que procede a apelação.
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2.3. Sumário
1 – O processo de inventário em consequência do divórcio, instaurado para partilha do património comum do dissolvido casal, é norteado pelo objectivo de conseguir um equilíbrio no rateio final, ou seja, que nenhum dos ex-cônjuges, após a partilha, fica prejudicado em relação ao outro. 2 – O inventário em consequência de divórcio não se destina apenas a dividir os bens comuns dos cônjuges, mas também a liquidar definitivamente as responsabilidades entre eles e deles para com terceiros. 3 – A partilha envolve a satisfação dos créditos de cada um dos cônjuges sobre o outro, uma vez que o artigo 1689º, nº 3, do Código Civil estabelece que esses créditos são pagos pela meação do cônjuge devedor no património comum; não existindo bens comuns, ou sendo estes insuficientes, respondem os bens próprios do cônjuge devedor. 4 – Quando um dos cônjuges paga com bens próprios dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges, torna-se credor do outro pelo que haja satisfeito além do que lhe competia satisfazer e esse crédito é exigível no momento da partilha dos bens do casal. 5 – Tal crédito deve ser objecto de relacionação no inventário subsequente ao divórcio. 6 – Tendencialmente, no inventário devem ser solucionadas todas as questões emergentes da cessação das relações patrimoniais entre os cônjuges com influência na partilha do património comum, designadamente as que respeitam à liquidação das compensações devidas pelo pagamento de dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges suportado apenas por um deles.
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III – DECISÃO
Assim, nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar procedente a apelação, revogando-se o despacho recorrido, o qual deve ser substituído por outro que admita a relacionação do alegado crédito que integra a verba nº 3 do passivo.
Custas pela Recorrida.
Joaquim Boavida (relator)
Paulo Reis (1º adjunto)
Joaquim Espinheira Baltar (2º adjunto)
1. Utilizar-se-á a grafia anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, respeitando-se, em caso de transcrição, a grafia do texto original.
2. Ed. Almedina, 4ª edição, pág. 392.
3. Disponível em www.dgsi.pt, tal como todos os demais acórdãos que de ora em diante se citarem sem indicação da respectiva fonte.
4. São do Código Civil todas as disposições que se mencionarem sem indicação da proveniência.
5. Acórdãos da Relação de Lisboa, de 21.02.2002 (que pode ser consultado em CJ, ano XXVII, tomo I, pág. 111), de 12.10.2012, proc. 16285/11.4T2SNT.L1-8, de 09.03.2017, proc. 5208-14.9T8ALM-B.L1-2 (Pedro Martins), de 06.04.2010, proc. 113-D/2001.L1-1, de 27.10.2016, proc. 3935/04.8TBSXL-I.L1-2, de 14.01.2020, proc. 1120/09.1TMLSB-C.L2-1 (Amélia Rebelo); da Relação de Guimarães, de 07.03.2019, proc. 170/11.2TBEPS.G2 (Sandra Melo), de 17.12.2013, proc. 1385/10.6TBBCL-C.G1, de 17.01.2013, proc. 456/06; da Relação do Porto, de 10.11.2016, proc. 299/10.4TMMTS-A.P1, de 17.06.2019, proc. 1975/17.6T8VLG.P1 (Manuel Fernandes), de 25.11.2013, proc. 744/07.6TMPRT-D.P1; da Relação de Coimbra, de 08.11.2011, proc. 4931/10.1TBLRA.C1, de 15.02.2005, proc. 4018/04, de 12.03.2013, de 06.05.2008, proc. 202-E/1999.C1 («O processo de inventário em consequência de divórcio não se destina apenas a dividir os bens comuns dos cônjuges, mas também a liquidar definitivamente as responsabilidades entre eles e deles para com terceiros, o que pressupõe sempre a relacionação de todos os bens, próprios ou comuns, e também daqueles créditos»); da Relação de Évora, de 28.05.2009, proc. 554/07.0TBABT.E1; do STJ de 05.07.1990 (BMJ 399, pág. 512), todos, excepto os assinalados, disponíveis em www.dgsi.pt.
6. Tomé d’Almeida Ramião, O Novo Regime do Processo de Inventário. Notas e Comentários, 2ª edição, Quid Juris, 2015, pág. 205, Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, vol. I, 5ª edição, Imprensa da Universidade de Coimbra, Julho de 2016, págs. 502 a 520 e 748 a 750; Cristina Manuela Araújo Dias, Do Regime da Responsabilidade por Dívidas dos Cônjuges, Problemas, Críticas e Sugestões, Coimbra Editora, 2009, págs. 769 a 931; Esperança Pereira Mealha, Acordos Conjugais para Partilha dos Bens Próprios, Almedina, 2004, págs. 78/80; Eva Dias Costa, Breves Considerações Acerca do Regime Transitório Aplicável às Relações Patrimoniais dos Ex-Cônjuges Entre a Dissolução do Casamento e a Liquidação do Património do Casal, Universidade Portucalense (acessível em http://repositorio.uportu.pt/jspui/bitstream/11328/665/1/Eva_Dias_Costa.1.pdf).
7. Este ponto parece-nos tendencialmente incontroverso.
8. Por exemplo, são raríssimos os casos de pagamento da prestação mensal do empréstimo contraído para a aquisição de habitação própria do casal – que é a dívida mais comum e emblemática – em partes iguais pelos dois cônjuges após a ocorrência da separação ou cessação das relações pessoais e patrimoniais.
9. Não somos desconhecedores da vexata quaestio sobre a natureza da situação subsequente à dissolução da comunhão e anterior ao momento em que se procede à respetiva liquidação e partilha.
10. Coimbra Editora, 2009, págs. 774 a 792.