ANULAÇÃO DE DECISÃO ARBITRAL
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
FUNDAMENTAÇÃO DA SENTENÇA ARBITRAL
Sumário


1. O princípio da igualdade é estruturante de toda a arbitragem. Dele derivam os princípios da citação, da audição efectiva e do contraditório. Ora, quando a autora foi regularmente citada, foi notificada de todos os despachos, requereu por várias vezes o adiamento da audiência, o que lhe foi deferido por duas vezes, até que à terceira já não passou, não se pode afirmar que tenha havido qualquer violação do princípio da igualdade.
2. Num processo de arbitragem, o adiamento da audiência de julgamento é verdadeiramente excepcional.
3. A recusa em aceitar a contestação, que foi apresentada fora de prazo, não configura qualquer violação do contraditório, pois deste apenas decorre que seja dada à parte a oportunidade de apresentar a sua versão dos factos. Ora, nos termos do art. 139º,3 CPC, “o decurso do prazo peremptório extingue o direito de praticar o acto”.
4. A impugnação da sentença arbitral tem a natureza de contencioso de anulação e não, como sucede no processo civil, de substituição. A sua procedência conduz à cassação da decisão arbitral, e não à substituição da decisão arbitral por outra.
5. A Relação não pode, salvo casos excepcionais (art. 46º,9 LAV), apreciar o mérito da decisão arbitral.

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I- Relatório

X – Distribuição de Electricidade, S.A., sociedade anónima registada sob o número único de matrícula e de pessoa colectiva ………, com sede na Rua … Lisboa, veio propor contra A. F., titular do Número de Identificação Fiscal ………, residente na Rua de …, concelho de Guimarães, acção de anulação de sentença arbitral, nos termos e para os efeitos consignados no artigo 46º,1,2,3,a, subalíneas ii, v e vi e nos artigos 30º,1 e 42º,3, todos da LAV.

Alega em síntese que:
a) A autora X exerce, em regime de concessão de serviço público, a actividade de distribuição de energia eléctrica em alta, média e baixa tensão no concelho de Guimarães (cf. arts. 31º, 35º, 70º e 71º do DL n.º 29/2006, de 15/02, alterado pelo DL 215-A/2012, de 08/10, e arts. 38 e 42º do DL n.º 172/2006, de 23/08, alterado pelo DL 215-B/2012, de 08/10, e no art. 1º do DL n.º 344-B/82 de 1/09);
b) O réu é proprietário do prédio sito na Rua …, estando activo, desde 13 de Janeiro de 2016, contrato de fornecimento de energia eléctrica pela X – Comercial, celebrado no dia 12 de Janeiro de 2016, tudo conforme resulta do documento n.º 1 que junta e dá por inteiramente reproduzido, que é a reclamação apresentada pelo ora R. e documentos que a acompanharam.
c) A autora é responsável pelo abastecimento de energia eléctrica, instalação do equipamento de medição – contador – e leitura das grandezas registadas e medidas nesses equipamentos de medição no prédio identificado em 2 e por força do contrato a que esse número alude.
d) Em 26 de Agosto de 2020, o R. apresentou uma reclamação de consumo, baseada num contrato celebrado com a “empresa reclamada” para colocação de 3 painéis solares, que vieram a ser instalados no local indicado no dia 1 de Julho de 2020, mas não foi instalado o contador correspectivo, sem explicação para tal. Reclamou dessa situação, e, entretanto, recebeu uma factura de electricidade que considera excessiva, no montante de €300,08;
e) Pretende que seja efectuada visita técnica e colocação de novo contador, a rectificação da facturação, tendo em conta a minha média mensal e que seja esclarecido o motivo pelo qual foi despoletada tal facturação; e ainda uma indemnização de EUR 20,00 pela falta de comparência e justificação à visita técnica. E por último pretende uma compensação/indemnização de EUR 43,00 mensais desde 10/07/2020, até que a situação seja reposta e colocado o novo contador. Na impossibilidade de colocação do contador até ao dia 15/09/2020, pretende o cancelamento do contrato, não prescindindo das indemnizações acima mencionadas”.
f) Corridos os devidos trâmites legais, foi proferida sentença arbitral no dia 26 de Julho de 2021 que, julgando parcialmente procedente o pedido, decidiu:
“i) Reconhece-se o direito do autor a indemnização correspondente ao valor das prestações mensais vincendas relativas ao preço dos painéis e referidas em 1) dos factos provados, sempre, porém, limitado esse direito ao valor pedido de €43,00/mês, direito que se manterá até ser instalado o contador de consumos adequado nos termos expostos supra;
ii) Condenam-se ambas as demandadas a reconhecer esse direito do autor;
iii) Em alternativa, reconhece-se o direito do autor à resolução, por incumprimento do citado contrato, com todas as consequências legais e contratuais e
iv) Julgam-se improcedentes os demais pedidos formulados pelo autor”.
g) a sentença arbitral padece dos seguintes vícios:
g1. Violação dos princípios fundamentais com influência decisiva na resolução do litígio – art.º 46.º, n.º 3, al. a), subalínea ii) e art.º 30.º, n.º 1, ambos da LAV; houve violação do art. 30º,1,b da LAV, pois as partes não foram tratadas com igualdade, nem lhes foi dada oportunidade razoável de fazerem valer os seus direitos – mormente, à ora autora; e não foi aceite a contestação que a ora autora apresentou, com o que foi postergado o princípio do contraditório, em violação do art. 3º CPC e 30º,1,c) da LAV;
g2. Violação dos requisitos do art. 42º,1,3, ex vi do art. 46º,3,a,vi, ambos da LAV; por um lado, a fundamentação da sentença arbitral é obtusa, não permitindo às partes perceber o iter lógico que foi percorrido pelo tribunal arbitral; por outro porque o tribunal arbitral, na sua motivação, refere-se indistintamente às demandadas; por outro ainda porque há no silogismo feito na sentença uma quebra de raciocínio que não permite alcançar a razão pela qual o tribunal arbitral condena a ora autora ao pagamento de uma indemnização: parte da falta de instalação do contador, passa pela excepção do não cumprimento, para chegar ao direito a uma indemnização que, como se sabe, decorre do incumprimento definitivo e não da mora. Pois, o que poderia estar aqui em causa seria eventualmente a mora não imputável ao devedor, não o incumprimento. Ou seja, a fundamentação da decisão não é expressa – porque não demonstra minimamente o caminho lógico, ainda que sintético, percorrido – não é clara, nem coerente – porque não obedece a uma lógica de coerência e, portanto, não permite, nem sequer, inferir o iter percorrido – nem é suficiente – porque não se justifica a si mesma.
h) Por todo o exposto, pede a este Tribunal da Relação que anule a sentença arbitral, com os efeitos consignados no artigo 46º,10 da LAV.

O réu foi citado, mas não contestou.

Finda a fase dos articulados, solicitou-se ao Tribunal Arbitral a remessa do processo para instrução da causa.

O Tribunal é competente para conhecer da causa em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia.
As partes são dotadas de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas, encontrando-se a autora devidamente representada em juízo.
O processo é o próprio e não existem outras excepções, nulidades ou questões prévias que ora cumpra conhecer.

Não existe prova a produzir, relevando para a apreciação da causa a factualidade que emerge dos próprios autos do processo arbitral.
Nos termos do artigo 46.º, n.º 2, al. e) da LAV, os presentes autos seguem nesta fase a tramitação do recurso de apelação, com as necessárias adaptações, tendo sido colhidos os vistos legais.

II. Questões a decidir

1. Se no decurso do processo ocorreu violação do art. 30º,1,b da LAV, pois as partes não foram tratadas com igualdade;
2. Se com a não aceitação da contestação da ora autora foi postergado o princípio do contraditório, em violação do art. 3º CPC e 30º,1,c) da LAV;
3. Se a sentença não está devidamente fundamentada, em violação do art. 42º,1,3, ex vi do art. 46º,3,a,vi, ambos da LAV;

III
Todos os elementos necessários para a decisão resultam da leitura do processo de Reclamação nº 2215/2020, apenso a estes autos

IV
Decidindo.

1. A primeira questão colocada pela autora é a de ter havido violação do art. 30º,1,b da LAV, pois as partes não foram tratadas com igualdade, nem lhes foi dada oportunidade razoável de fazerem valer os seus direitos – mormente, à ora autora, cuja contestação não foi aceite, com o que foi postergado o princípio do contraditório, em violação do art. 3º CPC e 30º,1,c) da LAV.
Será assim?

O art. 30º,1 LAV dispõe

“1- O processo arbitral deve sempre respeitar os seguintes princípios fundamentais:
a) O demandado é citado para se defender;
b) As partes são tratadas com igualdade e deve ser-lhes dada uma oportunidade razoável de fazerem valer os seus direitos, por escrito ou oralmente, antes de ser proferida a sentença final;
c) Em todas as fases do processo é garantida a observância do princípio do contraditório, salvas as excepções previstas na presente lei”.

Da consulta do processo resulta desde logo que a autora foi citada para se defender, o que era o primeiro requisito para ser cumprido o contraditório.
Seguidamente, verifica-se o seguinte:

1. A autora, através da sua mandatária, foi notificada, no dia 4.12.2020, por carta registada com aviso de recepção, da tentativa de conciliação seguida de audiência de julgamento, a realizar no dia 16.12.2020 às 9h45m.
2. A reclamada X Comercial apresentou logo a sua contestação.
3. A reclamada e ora autora (ainda com a denominação de X Distribuição - Energia, SA) requereu o adiamento da audiência, com fundamento na complexidade técnica dos temas em causa, que não permitiram a recolha de todas as informações necessárias para a defesa.
4. Por despacho de 15.12.2020, o Juiz – Árbitro, invocando a aplicação analógica do disposto no art. 569º,5 CPC, deferiu ao requerido a adiou a audiência para 27.1.2021.
5. A autora foi notificada dessa decisão em 12.1.2021.
6. Por despacho de 22.1.2021, com fundamento na suspensão dos prazos judiciais em curso por causa do agravamento da pandemia de Covid-19, o Juiz – Árbitro cancelou a audiência agendada.
7. Posteriormente, foi a audiência agendada para o dia 28.4.2021.
8. A autora foi notificada desse agendamento a 13.4.2021.
9. Em 15.4.2021 a autora veio requerer o adiamento da audiência de julgamento, com fundamento em, na data designada, estar impedida noutra audiência de julgamento anteriormente marcada para o mesmo dia. Indicou datas alternativas.
10. Por despacho do Juiz-Árbitro de 21.4.2021, com fundamento em que a Advogada requerente não tinha sido constituída mandatária no processo, que são habitualmente vários os Advogados constituídos conjuntamente pela co-demandada X, e ainda tendo em atenção o princípio da especial celeridade que deve enformar um processo arbitral relativo a conflitos de consumo, o pedido de adiamento foi indeferido.
11. No mesmo dia 21.4.2021 a mandatária da autora veio juntar instrumento de substabelecimento, e renovar o requerimento para adiamento da audiência.
12. Desta feita foi proferido em 23.4.2021 despacho a deferir ao requerido, considerando justificado o impedimento, e adiando a audiência agendada.
13. Voltou a ser agendada a audiência, desta feita para o dia 30.6.2021, pelas 10:00.
14. A autora foi notificada a 14.6.2021.
15. A 17.6.2021 veio novamente a ora autora requerer o adiamento da audiência, com fundamento mais uma vez em impedimento por força de outro serviço judicial agendado para a mesma data.
16. Foi então proferido despacho, em 28.6.2021, com o seguinte teor:
Os adiamentos na jurisdição arbitral, incluindo os de conflitos de consumo, são ou devem ser limitados ou mesmo excepcionais considerando a natureza desses processos, enformados pelo princípio da celeridade e em que as faltas de qualquer das partes não são motivo impeditivo do prosseguimento do processo e prolação da decisão de harmonia com as provas apresentadas – cfr. art. 35º,3 LAV, aplicável por força do art. 19º,3 do Regulamento do TRIAVE.
No caso já ocorreu um adiamento a pedido da ora requerente e com fundamento idêntico ao ora invocado.
Pelo assim sumária mas suficientemente exposto, decide-se indeferir o pedido de adiamento formulado, e manter, nos precisos termos do respectivo despacho, a diligência marcada para a próxima quarta-feira, dia 30.6.2021”.
17. No dia 28.6.2021, pelas 22:41 foi apresentada, por correio electrónico, a contestação da ora autora.
18. O Sr. Juiz Árbitro considerou que a apresentação da contestação da ora autora era extemporânea. O despacho em causa, datado de 29.6.2021, tem o seguinte teor:
Através de comunicação electrónica enviada pelas 22:41 de 28.6.2021, a Ilustre mandatária forense da co-demandada X, distribuição de Electricidade, SA, veio apresentar contestação relativa ao pedido contra si formulado nestes autos pelo demandante A. F..
A contestação escrita, que foi a forma utilizada pela co-demandada, é ou deve ser apresentada até 48 horas antes da hora designada para a audiência, conforme disposto no art. 14º,5 do Regulamento deste Tribunal Arbitral e Centro de Arbitragem.
Ora, estando a audiência designada para o dia 30.6.2021, pelas 10:00, revela-se cristalinamente extemporânea a apresentação da contestação.
Pelo exposto, não é admitida a contestação e documentos com a mesma apresentados, tudo devendo ser desentranhado e devolvido após trânsito em julgado da sentença a proferir oportunamente”.
19. No dia 29.6.2021, pelas 00:41 a reclamada, por intermédio da sua mandatária, veio novamente requerer que fosse dada sem efeito a marcação da audiência de julgamento, com fundamento, entre outros argumentos, em que continua impedida por força de outro serviço judicial previamente agendado.
20. Este novo pedido de adiamento mereceu o despacho de 29.6.2021, com o seguinte teor:
Através de comunicação electrónica (mail) enviada pelas 00:47 de 29-6-2021, a ilustre mandatária forense da co-demandada X, SA veio, na sequência de despacho de 28.6.2021 apresentar o que se poderá designar por “exposição”, contendo ilações, críticas ou considerações, no mínimo pouco ortodoxas, relativas à decisão de indeferimento do pedido de adiamento de audiência de julgamento, concluindo pela mesma forma de anterior requerimento que apresentou e que foi entretanto decidido pelo sobredito despacho.
Se a requerente pretendeu ou pretendia pôr em causa a bondade ou a legalidade do despacho ou obter a sua revisão, escolheu, obviamente, uma forma ou via que não está consagrada na Lei.
Por outro lado, sempre se dirá que o direito, inquestionável, de representação da parte por advogado não é minimamente afectado pelo despacho porquanto e além do mais a senhora advogada requerente e impedida de comparecer, Senhora Dra., P. P., intervém no processo com substabelecimento, com reserva (sublinhado nosso), da mandatária para este processo constituída pela parte, Senhora Dra. S. S., através de procuração forense de 15.4.2021, com certidão registada, conforme resulta dos autos não constando estar esta última mandatária também impedida de comparecer.
Pelo exposto, nada mais há a decidir para além do que consta do citado despacho de 28.6.2021.
Notifique-se e aguarde-se depois o julgamento”.
21. A reclamada X não desistiu e apresentou requerimento, enviado por e-mail em 30.6.2021, às 00:47, no qual vem dizer que a sua contestação foi oferecida menos de 48 horas antes da data e hora designadas para a tentativa de conciliação e audiência de julgamento porque, atendendo aos sucessivos requerimentos para adiamento da audiência, a mandatária da então reclamada cria que o adiamento das ditas diligências não iria ser recusado. E era o que se impunha, atendendo aos princípios da cooperação, da boa-fé processual, do contraditório e da recíproca correcção. Pede novamente a admissão da contestação.
22. No dia 30.6.2021 teve lugar a audiência de julgamento, estando presente o reclamante e ausentes as reclamadas, devidamente notificadas. Na acta ficou o seguinte despacho: “não foram admitidos a contestação e os documentos apresentados pela reclamada X distribuição conforme despacho proferido em 29.6.2021. Tal decisão mantém-se por ausência de qualquer fundamento legal ou processual para a alterar”.

Pois bem.
Será que com base nesta descrição do processado se pode afirmar que a ora autora não foi tratada com igualdade, nem lhe foi dada uma oportunidade razoável de fazer valer os seus direitos, por escrito ou oralmente, antes de ser proferida a sentença final ?
A resposta é negativa.

O Prof. Menezes Cordeiro escreve o seguinte (1): “O princípio da igualdade é estruturante de toda a arbitragem. Dele derivam os princípios da citação, da audição efectiva e do contraditório. Como qualquer princípio, deve ser tomado em termos materiais e não formais. Além disso, decorrem da igualdade: prazos e condições iguais para o pagamento de preparos, intervenção de ambas as partes na indicação do colégio pericial, condições trabalho idênticas e facilidades similares para intervir no processo”.
E, mais adiante: “em termos práticos, sempre que uma parte peça seja o que for, o tribunal ouve a outra, antes de decidir. As testemunhas interrogadas por uma parte, devem poder ser instadas pela outra, ou, no caso de depoimentos escritos: ouvidas pela outra ou -não sendo possível- permitindo-se a contradita, por outros meios, do que tenham dito. A igualdade explicita a extensão deste princípio. O exercício adequado do contraditório surge, na prática, como a demonstração pública da igualdade”.
Ora, como ficou supra descrito, a autora não pode invocar a seu favor qualquer violação do princípio da igualdade, ou qualquer violação do contraditório. Repare-se que foi regularmente citada (nem sequer diz o contrário), foi notificada de todos os despachos, requereu por várias vezes o adiamento da audiência, o que lhe foi deferido por duas vezes, até que à terceira já não passou.
Dispõe o art. 34º,2 LAV que “as partes devem ser notificadas, com antecedência suficiente, de quaisquer audiências e de outras reuniões convocadas pelo tribunal arbitral para fins de produção de prova”. Anotando esta norma, o autor supracitado escreve: “Diz-se na gíria, que numa arbitragem tudo pode suceder, incluindo morrerem as partes, os advogados ou os árbitros: mas nunca alterar as datas prefixadas para a audiência. Uma vez marcadas, as audiências sobrepõem-se a todas as agendas: das partes, dos advogados, dos árbitros, dos peritos e das testemunhas. Assim, o espírito do 34º/2 é acatado”. E, apesar disso, a audiência ainda foi adiada duas vezes a pedido da ora autora. E quando, à terceira vez, o pedido teve de ser indeferido, tal foi feito de forma fundamentada, como vimos supra.
A autora igualmente apresentou a sua contestação, só que o fez de forma extemporânea, pelo que, por despacho devidamente fundamentado, tal peça foi recusada. Não há aqui qualquer violação do contraditório, pois deste apenas decorre que seja dada a oportunidade de apresentar a sua versão dos factos. Não que tenha mesmo de a apresentar. Dispõe o art. 139º,3 CPC que “o decurso do prazo peremptório extingue o direito de praticar o acto”. A explicação apresentada pela autora, que confiou que o seu requerimento de adiamento seria atendido, manifestamente não colhe, pois não tinha nenhuma razão válida e concreta para ter essa expectativa. E assim, se a autora deixou passar o prazo para apresentação da peça processual em causa, perdeu o direito de praticar esse acto. Sibi imputet.

2. De seguida, vem a autora invocar violação dos requisitos do art. 42º,1,3, ex vi do art. 46º,3,a,vi, ambos da LAV.

Vejamos primeiro o quadro legal.
A regra estruturante consta do art. 46º,1: “Salvo se as partes tiverem acordado em sentido diferente, ao abrigo do n.º 4 do artigo 39.º, a impugnação de uma sentença arbitral perante um tribunal estadual só pode revestir a forma de pedido de anulação, nos termos do disposto no presente artigo”.
E, de acordo com o nº 3, a sentença arbitral só pode ser anulada pelo tribunal estadual competente se a parte que faz o pedido demonstrar que (…) a sentença foi proferida com violação dos requisitos estabelecidos nos n.os 1 e 3 do artigo 42.º.
Ora: a sentença deve ser reduzida a escrito e assinada pelo árbitro ou árbitros (art. 42º,1 LAV). Este requisito foi cumprido, pois a sentença mostra-se assinada.
A sentença deve ser fundamentada, salvo se as partes tiverem dispensado tal exigência ou se trate de sentença proferida com base em acordo das partes, nos termos do artigo 41º (art. 42º,3 LAV).
Para fundamentar a invocação da violação destas normas, escreve a autora que, “por um lado, a fundamentação da sentença arbitral é obtusa, não permitindo às partes perceber o iter lógico que foi percorrido pelo tribunal arbitral; por outro porque o tribunal arbitral, na sua motivação, refere-se indistintamente às demandadas; por outro ainda porque há no silogismo feito na sentença uma quebra de raciocínio que não permite alcançar a razão pela qual o tribunal arbitral condena a ora autora ao pagamento de uma indemnização: parte da falta de instalação do contador, passa pela excepção do não cumprimento, para chegar ao direito a uma indemnização que, como se sabe, decorre do incumprimento definitivo e não da mora. Pois, o que poderia estar aqui em causa seria eventualmente a mora não imputável ao devedor, não o incumprimento. Ou seja, a fundamentação da decisão não é expressa – porque não demonstra minimamente o caminho lógico, ainda que sintético, percorrido – não é clara, nem coerente – porque não obedece a uma lógica de coerência e, portanto, não permite, nem sequer, inferir o iter percorrido – nem é suficiente – porque não se justifica a si mesma”.

Continuando a recorrer aos ensinamentos do Autor supracitado, “consumada a decisão arbitral, a lei admite, ainda, quatro tipos de reacção. São eles: a) os recursos, apenas quando previstos pelas partes, não havendo cláusula de equidade (39º/4), quanto aos ordinários, e sempre, tratando-se do recurso de revisão ou do recurso para o Tribunal Constitucional; b) a impugnação da decisão levada a cabo através de uma acção de anulação, nos termos do art. 46º, ora em anotação; c) a oposição à execução, da decisão arbitral, paralela, de certo modo, à acção de impugnação (48º); d) a recusa de reconhecimento, de decisões arbitrais estrangeiras, nos termos e situações constantes do 56º”.
Comentando a norma do art. 46º,1 LAV, escreve Menezes Cordeiro: “a exclusividade da acção de anulação advém do artigo 34º/1 da Lei-Modelo. Ela corresponde a uma dupla ordem de preocupações: (a) dar conteúdo à prescrição do art. 19º, segundo a qual os Tribunais do Estado só podem intervir nas arbitragens nos casos previstos na lei; ora, tal norma ficaria letra-morta se, depois, se admitisse uma hipótese geral de recorrer das decisões arbitrais; (b) consubstanciar a directriz actual de que os tribunais do Estado não intervêm, salvo em margens muito apertadas, na reponderação do mérito das decisões”.
Como mais adiante explicita este Professor, “pelas razões históricas aduzidas, incluindo a influência anglo-saxónica, a sindicância do Estado sobre os juízos arbitrais é-o de legalidade: não de mérito, salvo o resultado do 46º/3,b), ii) (2). Tal circunstância não deve, todavia, levar ao seu desvirtuamento: processo e substância estão interligados, fundindo-se na síntese final da decisão”.
Ou seja, a impugnação da sentença arbitral, para além de outras características, tem a natureza de contencioso de anulação (artigo 46.º da LAV. cfr. ainda Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, Vol. II, 1983, pág. 1213) e não, como sucede no processo civil, de substituição (artigo 665º do Código de Processo Civil; Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 6ª Edição, pág. 30); tal impugnação "conduz à cassação da decisão arbitral", pelo que no respectivo processo não pode haver qualquer solução idêntica à do artigo 662.º n.º 2 c) do Código de Processo Civil.
"A nulidade da sentença arbitral não deve (…) ser vista à luz do regime da sentença judicial fixado no CPC, não podendo, de modo algum, ser atacada senão por violação do dever de fundamentação de uma sentença do tipo arbitral e conforme as características do processo arbitral, despido assim do formalismo rígido da sentença do tribunal estadual. Mas, a sentença arbitral não pode deixar de cumprir o requisito da fundamentação adequada, de facto (…), nos termos que acima se deixam ditos." (Manuel Pereira Barrocas, Lei de Arbitragem Comentada, 2013, pág. 155)

Como já vimos, é fundamento de impugnação da decisão arbitral a inobservância do art. 42º,3. Recordemos: a decisão deve ser fundamentada, salvo acordo em contrário das partes ou excepto havendo transacção. Seguindo as palavras de Menezes Cordeiro, “devem ser equiparadas à falta de fundamentação as justificações fantasiosas, desconexas ou em contradição com a decisão. Este ponto, sindicado pela jurisprudência, confere uma especial seriedade às decisões arbitrais: exige-se-lhes cientificidade jurídica. A ideia, por vezes expressa na jurisprudência, de que só a falta total de justificação seria relevante, para efeitos de impugnação, não pode, à letra, ser acolhida: não é uma questão de quantidade de justificação: antes se requer um juízo de valor que nos diga, perante certa decisão, que não há uma justificação condigna para ela”.
Na jurisprudência, temos o Acórdão TRC de 21-04-2015 (Relator: Henrique Antunes; p. 3486/12.7TBLRA.C1, disponível em www.dgsi.pt), segundo o qual «[a] propositura da acção de anulação no tribunal estadual não confere a este órgão jurisdicional o poder de se pronunciar sobre o objecto do litígio. A acção de anulação tem efeitos puramente cassatórios ou rescisórios, não atribuindo competência substitutiva ao tribunal, dado que o objecto da acção é, simplesmente, a decisão arbitral e não a situação material litigada, ela mesma. Caso se verifique um fundamento de anulação, o tribunal estadual deve limitar-se a anular ou a cassar a decisão arbitral, não podendo substituí-la por outra. Essa anulação pode ser meramente parcial se o fundamento da anulação se verificar só relativamente a uma parte ou um objecto da decisão que seja dissociável ou destacável do conjunto. A convenção de arbitragem não caduca com o proferimento, tanto da decisão arbitral como da decisão anulatória, continuando em vigor, no caso de anulação, em relação à controvérsia que foi objecto da decisão anulada, embora pareça - em face da regra de que o poder jurisdicional dos árbitros se extingue com a notificação de depósito da decisão - que se tem de constituir um novo tribunal arbitral (artº 25 da LAV)».
Vejamos então se a sentença arbitral ora em crise padece desse vício de falta de fundamentação.
Lendo a mesma, verificamos que a sentença começa com o relatório, no qual identifica as partes, sendo autor ou demandante A. F. e rés ou demandadas X Comercial – Comercialização de Energia, SA, e X Distribuição Energia, SA, actualmente denominada X Distribuição de Electricidade, SA (a ora autora), elenca os pedidos formulados e a fundamentação que subjaz aos mesmos. No relatório pode ler-se que a X Comercial apresentou contestação contendo a sua defesa, na qual afirma ser parte ilegítima, e na qual impugna os factos alegados pelo autor, e que a ora autora, X também apresentou contestação escrita mas por o ter sido fora do prazo regulamentar não foi admitida, e também não esteve representada na audiência de julgamento.
Refere de seguida que no decurso da audiência de julgamento a prova produzida se limitou às declarações do demandante.
De seguida considerou as partes legítimas, indeferindo assim à excepção de ilegitimidade arguida pela X Comercial.
Segue-se a lista dos factos considerados provados, a motivação da decisão sobre matéria de facto, e a aplicação do Direito.
Em sede de aplicação do Direito, a sentença faz o enquadramento do litígio como emergente de uma relação contratual (contrato de aquisição e instalação dos painéis solares), explicando que o contrato foi celebrado entre o reclamante e a primeira reclamada, mas que a instalação dos painéis implicava o necessário equipamento de contagem de consumos, sendo que os procedimentos a esse respeito seriam desenvolvidos pela segunda reclamada, a ora autora. A sentença faz assim, na página 8, a apreciação de uma relação contratual tripartida, entre as 3 partes envolvidas naquele processo. Seguidamente aprecia o desenrolar da relação contratual, para concluir que houve incumprimento contratual, porque “faltou e continua a faltar o aparelho ou artefacto medidos dos consumos”. A partir daí a sentença incorpora no silogismo judicial o que dispõe o art. 428º CC, ou seja, a exceptio non adimpleti contractus, e analisa os pedidos formulados pelo autor, concluindo pela improcedência fundamentada do pedido de rectificação da facturação, bem como do pedido de indemnização de € 20,00 pela falta de comparência dos técnicos da ora autora nas datas designadas. De seguida, considera a sentença que houve incumprimento das duas demandadas, traduzido na não instalação do contador para controlo dos consumos e da produção eléctrica dos painéis, e afirma a existência do direito de resolver o contrato por parte do consumidor no caso de manutenção do incumprimento.
Na parte final da sentença, o pedido é julgado parcialmente procedente e o Juiz - Árbitro reconhece ao autor o direito a indemnização correspondente ao valor das prestações mensais vincendas relativas ao preço dos painéis e referidas em 1 dos factos provados, sempre porém limitado esse direito ao valor pedido de € 43,00/mês, direito que se manterá até ser instalado o contador de consumos adequado, ou, em alternativa, reconhecendo ao autor o direito à resolução do contrato por incumprimento, com todas as consequências legais e contratuais.
Aqui chegados, podemos dizer ser errada, para além de deselegante, a afirmação da autora de que a fundamentação da sentença arbitral é obtusa, não permitindo às partes perceber o iter lógico que foi percorrido pelo tribunal arbitral. A fundamentação da sentença é clara, e assente nas disposições legais nela citadas.
O facto de na motivação o tribunal arbitral se referir indistintamente às demandadas está explicado no texto da decisão.
Afirma a autora que “há no silogismo feito na sentença uma quebra de raciocínio que não permite alcançar a razão pela qual o tribunal arbitral condena a ora autora ao pagamento de uma indemnização: parte da falta de instalação do contador, passa pela excepção do não cumprimento, para chegar ao direito a uma indemnização que, como se sabe, decorre do incumprimento definitivo e não da mora”.
Porém, lendo com atenção a sentença arbitral, encontra-se facilmente o fundamento para a indemnização, que resulta da remissão que no facto provado nº 1 é feita para o contrato celebrado entre as partes, mais concretamente, acrescentamos nós, para a cláusula 6ª, nº 1 do mesmo.
Conforme refere Paula Costa e Silva (Estudo publicado na “ROA”, ano 52, pág. 938), ”pode dizer-se genericamente que uma sentença é provida de fundamentos sempre que seja possível compreender a motivação do árbitro. Assim, mesmo que tal motivação seja deficiente, medíocre ou errada, estaremos perante uma sentença motivada, devendo as deficiências da sua fundamentação, que não geram nulidade, ser arguidas em via de recurso. Só a falta absoluta de motivação implicará uma nulidade da sentença arbitral invocável através da acção de anulação. Sempre que a motivação seja deficiente e, não havendo lugar a anulação, deve essa deficiência ser suprida através de recurso...".
Assim, apenas tem esta Relação de reconhecer que a sentença arbitral está fundamentada, de facto e de direito.
Tudo o mais seria entrar na apreciação do mérito da decisão arbitral, coisa que o regime legal da arbitragem não admite, a não ser nos parâmetros muito limitados referidos supra. Recordemos a propósito que, quanto aos poderes conferidos ao tribunal estadual no âmbito do pedido de anulação de decisão arbitral, prevê o nº 9 do citado artigo 46º da LAV que “o tribunal estadual que anule a sentença arbitral não pode conhecer do mérito da questão ou questões por aquela decididas, devendo tais questões, se alguma das partes o pretender, ser submetidas a outro tribunal arbitral para serem por este decididas”.
E assim, a acção improcede na totalidade.

Sumário:
1. O princípio da igualdade é estruturante de toda a arbitragem. Dele derivam os princípios da citação, da audição efectiva e do contraditório. Ora, quando a autora foi regularmente citada, foi notificada de todos os despachos, requereu por várias vezes o adiamento da audiência, o que lhe foi deferido por duas vezes, até que à terceira já não passou, não se pode afirmar que tenha havido qualquer violação do princípio da igualdade.
2. Num processo de arbitragem, o adiamento da audiência de julgamento é verdadeiramente excepcional.
3. A recusa em aceitar a contestação, que foi apresentada fora de prazo, não configura qualquer violação do contraditório, pois deste apenas decorre que seja dada à parte a oportunidade de apresentar a sua versão dos factos. Ora, nos termos do art. 139º,3 CPC, “o decurso do prazo peremptório extingue o direito de praticar o acto”.
4. A impugnação da sentença arbitral tem a natureza de contencioso de anulação e não, como sucede no processo civil, de substituição. A sua procedência conduz à cassação da decisão arbitral, e não à substituição da decisão arbitral por outra.
5. A Relação não pode, salvo casos excepcionais (art. 46º,9 LAV), apreciar o mérito da decisão arbitral.

V- DECISÃO

Por todo o exposto, este Tribunal da Relação de Guimarães decide julgar a acção totalmente improcedente, absolvendo o réu do pedido.

Custas pela autora (art. 527º,1,2 CPC).

Data: 27/1/2022

Relator (Afonso Cabral de Andrade)
1º Adjunto (Alcides Rodrigues)
2º Adjunto (Joaquim Boavida)


1. Tratado da Arbitragem, Almedina, 2016, anotação ao artigo em causa.
2. “a sentença arbitral só pode ser anulada se (…) o tribunal verificar que o conteúdo da sentença ofende os princípios da ordem pública internacional do Estado português”.