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DIREITO DE RETENÇÃO
CONTRATO-PROMESSA
Sumário
I- O direito de retenção é um direito real de garantia de créditos, de dívidas de dinheiro ou de valor, conferindo ao seu titular (credor), que se encontra na posse de certa coisa pertencente ao devedor, o direito de executar a coisa retida e de se pagar à custa do valor dela, com preferência sobre os demais credores. II- No contrato-promessa, o direito de retenção pressupõe, para além, obviamente, da traditio, a existência de um crédito do retentor (promitente comprador) resultante do não cumprimento ou incumprimento definitivo imputável à outra parte.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I.
B......... e mulher C....... deduziram embargos de terceiro contra D........ e E........, LDA alegando, em síntese, que:
Em 15 de Dezembro de 2004, os embargantes tiveram conhecimento de que em 26.02.04 foram penhoradas, no processo de execução a correr termos na ....ª Vara Mista de Vila Nova de Gaia com o nº ...../03.6, as fracções designadas pelas letras "AL" (habitação sita no 1º andar esquerdo) e "BO" (uma garagem com arrumo) do prédio sito na Rua ......, nºs 100, 114, 116 e 122 e Rua ......, nºs 37, 53, 69 e 83, da freguesia de ......, VN de Gaia, ambas propriedade da executada, fracções essas oneradas com hipotecas;
Por contrato-promessa outorgado em 11 de Janeiro de 1998, os embargantes prometeram comprar e a executada prometeu vender-lhes, livres de ónus, encargos ou hipotecas, as referidas fracções;
No contrato não se fixou a data da efectivação da escritura, ficando apenas estabelecido que a mesma seria “realizada no prazo de 15 dias após a apresentação do pedido de licença de habitabilidade pela promitente vendedora que se prevê venha a acontecer durante o mês de Junho de 1999”.
Os embargantes já pagaram a totalidade do preço (18.000.000$00) estabelecido pelas partes no dito contrato-promessa;
Numa das cláusulas do contrato foi estabelecido que embargantes e executada lhe atribuíram “os efeitos da execução especifica”, nos termos do artigo 830º do C. Civil.
Por carta registada com aviso de recepção, de 09 de Julho de 2003, o embargante marido comunicou à executada que devia proceder à marcação da escritura de compra e venda no prazo de um mês. A executada não deu qualquer resposta à carta do embargante marido, nem marcou a solicitada escritura;
Em 15 de Outubro de 2003, os embargantes interpuseram uma acção especial de fixação judicial de prazo para que a executada outorgasse a escritura no prazo de 30 dias, processo que culminou com um acordo, homologado por sentença, nos termos do qual a executada se obrigou a outorgar a escritura pública de compra e venda no prazo de 30 dias a contar de tal data;
Até ao momento, a executada não deu cumprimento às obrigações a que estava adstrita;
Os embargantes pretendem que, declarado o incumprimento definitivo pela executada, seja a falta desta suprida mediante sentença, nos termos do artigo 830º do Código Civil e, assim, se efective o contrato prometido;
Desde Janeiro de 1999 que os embargantes vivem (dormem, fazem as refeições, convivem com amigos, recebem a correspondência, etc) na fracção referida e pagam as quotas mensais do condomínio;
Exercendo assim, sobre tais fracções e desde aquela data uma posse pública, pacífica, continuada e de boa fé, na convicção segura de que são os únicos e exclusivos possuidores desde a data referida e simultaneamente de que sobre os ditos imóveis têm o “animus” de virem a tornar-se proprietários.
Concluíram pedindo que:
Seja a exequente condenada a reconhecer que os embargantes gozam do direito de retenção sobre as fracções " AL e "BO" do prédio sito na Rua ...... nºs 100, 114, 116 e 122 e Rua ......, nºs 37, 53, 69 e 83, freguesia de ....., concelho de Vila Nova de Gaia;
Que a executada seja condenada a ver declarado incumprido de forma definitiva, por facto só a si imputável, o contrato-promessa celebrado com os embargantes;
Que a executada seja condenada a ver transferida para os embargantes a plena propriedade das fracções “AL” e “BO” supra identificadas, devendo ser proferida sentença que produza os efeitos da declaração negocial da faltosa;
subsidiariamente, para o caso de se vir a apurar a impossibilidade da execução específica do contrato, por motivo imputável à executada, pediram a condenação desta a pagar-lhes a quantia de 179.566,04 euros, correspondente ao sinal em dobro, como indemnização pelo incumprimento.
Recebidos os embargos, a exequente/embargada contestou, impugnando a alegada traditio e posse dos embargantes; alegando que a posse invocada é de natureza precária, não tutelada pelos embargos de terceiro; e que, não tendo havido incumprimento definitivo do contrato-promessa e não estando reconhecida a existência de um crédito resultante do incumprimento, não podem os embargantes deduzir embargos de terceiro com fundamento no direito de retenção.
Concluiu pela improcedência dos embargos.
No despacho saneador, o Sr. Juiz a quo, após considerar que “ao retentor não é possível deduzir embargos de terceiro contra o acto da penhora da coisa retida, dado que o seu direito – de retenção – não é afectado por tal acto (...)”, tendo, porém, a “faculdade de na acção executiva (...) reclamar o seu direito de crédito (...)”, julgou os embargos improcedentes.
Inconformados, apelaram os embargantes, tendo terminado a sua alegação com as seguintes conclusões:
Os recorrentes gozam do direito de retenção sobre as fracções “AL” e “BO” do prédio identificado nos autos;
Deve ser proferida sentença que atribua a titularidade do direito de propriedade das fracções do imóvel supra referido aos recorrentes.
Contra-alegou a exequente/embargada, pugnando pela confirmação da decisão recorrida.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
II.
Como é sabido, os recursos destinam-se a reapreciar questões já decididas e o âmbito do seu objecto é delimitado pelas conclusões da alegação dos recorrentes, não podendo o Tribunal superior conhecer de qualquer questão que não tenha sido aflorada nas conclusões, salvo se estiver em causa matéria de conhecimento oficioso (arts. 684º, nº 3 e 690º, nº 1, ambos do CPC; Ac. do STJ, de 12.1.95, CJ/STJ, 1995, I; 20, entre muitos outros).
No caso sub judice, uma das “conclusões” formuladas pelos apelantes é a de que seja “proferida sentença que atribua a titularidade do direito de propriedade das fracções do imóvel supra referido aos recorrentes”.
Em bom rigor, não se trata de uma verdadeira “conclusão”, já que as “conclusões” consistem, como reza o nº 1 do art. 690º do CPC, na indicação, de forma sintética, dos fundamentos por que se pede a alteração ou anulação da decisão, ou seja, na enunciação, em forma abreviada, dos fundamentos ou razões jurídicas com que se pretende obter o provimento do recurso (Rodrigues Bastos, Notas ao CPC, 3º, 299).
Ora, os recorrentes não indicam a razão ou razões por que formulam aquela pretensão. Aliás, nem no corpo da alegação lhe fazem a mínima referência, pelo que, se de verdadeira conclusão se tratasse, não poderia ser atendida, dado que, como se escreveu no Ac. do STJ, de 2.2.93, CJ/STJ, 1993, a pág. 116, “não pode atender-se a fundamento só mencionado nas “conclusões”, por estas deverem ser um resumo do exposto na alegação” (cf. ainda Ac. do STJ, de 2.12.88, BMJ, 382º-497).
Dir-se-á, ainda, que se os apelantes, com aquele “pedido”, pretendem que seja proferida decisão a julgar procedente o pedido de execução específica do contrato-promessa (pedido formulado na petição inicial dos embargos), dele também não poderá conhecer-se, desde logo porque o Sr. Juiz a quo também sobre ele não se pronunciou, e a nulidade decorrente da omissão de pronúncia (art. 668º, nº 1, d) do CPC), que não é de conhecimento oficioso, não foi arguida pelos recorrentes.
Aliás, um tal pedido, assim como os demais formulados contra a executada na petição inicial, não tem sequer cabimento num processo desta natureza.
Com efeito, os embargos de terceiro eram, antes da reforma processual de 1995/1996, um processo especial regulado pelos arts. 1037º e segs.
Actualmente, estão inseridos no capítulo relativo aos incidentes da instância.
São legalmente definidos como um incidente da instância, não obstante a sua estrutura seja a de uma acção declarativa (de mera apreciação) - como defende Lebre de Freitas, A Acção Executiva, 2ª ed., 242. E “através deste meio de oposição o terceiro apenas pode - fundadamente - pretender tutelar situações possessórias ou direitos insusceptíveis de serem atingidos pelo processo executivo” (Miguel Mesquita, Apreensão de bens em Processo Executivo e Oposição de Terceiro, 103). É isso o que claramente resulta do art. 351º.
Nos embargos de terceiro com função repressiva, de natureza possessória, como os presentes, o seu fim imediato é o levantamento da diligência judicial anteriormente ordenada e a consequente restituição da posse.
Face à actual inserção dos embargos de terceiro nos incidentes da instância, é inadmissível a formulação/cumulação dos referidos pedidos. A finalidade dos embargos (e sem prejuízo da possibilidade do pedido de reconhecimento do direito de propriedade nos casos previstos no nº 2 do art. 357º), cingir-se-á, pois, à defesa da posse ou de qualquer direito de conteúdo patrimonial ilegalmente afectado pela diligência judicial de tipo executivo.
E daí que os embargos não devessem sequer ter sido recebidos, pelo menos quanto àqueles pedidos (vd. arts. 470º, nº 1 e 199º do CPC).
Apreciemos, agora, a matéria da outra conclusão, ou seja, o alegado direito de retenção dos apelantes.
Notar-se-á, antes de mais, que ora não se pode considerar como provado que tenha havido traditio das fracções prometidas comprar e vender e que os embargantes estejam na sua posse. Com efeito, tendo essa matéria sido alegada pelos embargantes nos arts. 25º a 27º da petição inicial, foi ela impugnada pela exequente/embargada no art. 2º da contestação.
Apreciemos, porém, o alegado direito de retenção, admitindo-se que tenha havido tradição.
De acordo com o nº 2 do art. 442º do CC, o promitente comprador que tenha constituído sinal, e a quem o promitente vendedor haja concedido a tradição do imóvel a que respeita o contrato prometido, goza do direito à execução específica do contrato, nos termos do nº 3 do mesmo art. 442º, bem como à indemnização, em alternativa, prevista no citado art. 442º, nº 2, no caso de o promitente vendedor faltar culposamente ao cumprimento do contrato. E como garantia deste crédito à dupla indemnização, em alternativa, goza o promitente comprador do direito de retenção sobre o imóvel coberto pelo contrato prometido - art. 755º, nº 1, al. f) do CC (A. Varela, Das Obrigações em geral, I, 9ª ed., 370).
O direito de retenção é um direito real de garantia de créditos, de dívidas de dinheiro ou de valor, conferindo ao seu titular (credor), que se encontra na posse de certa coisa pertencente ao devedor, o direito de executar a coisa retida e de se pagar à custa do valor dela, com preferência sobre os demais credores (vd. Ac. do STJ, de 26.2.92, www.dgsi.pt, proc. 081497, e A. Varela, Das Obrigações em geral, II, 7ª ed., 579).
No contrato-promessa, o direito de retenção pressupõe, para além, obviamente, da traditio, a existência de um crédito do retentor (promitente comprador) resultante do não cumprimento ou incumprimento definitivo imputável à outra parte (citado art. 755º, nº 1, al. f).
Como se entendeu no já citado Ac. do STJ, de 26.2.92, “o promitente comprador para quem foi transferida a coisa objecto da promessa, em contrato-promessa sem eficácia real, não goza do direito de retenção sem previamente demonstrar que é titular de um crédito contra o promitente vendedor, resultante de não cumprimento da promessa imputável a este, o que não pode ser discutido em embargos de terceiro por ele deduzidos a execução movida ao promitente vendedor” (vd., também, Ac. do STJ, de 27.04.2004, www.dgsi.pt, proc. 04A1037, onde se escreveu que, para invocar com eficácia o direito de retenção, necessário seria que os embargantes tivessem vindo alegar que eram credores de indemnização resultante do não cumprimento imputável à outra parte). É que o direito de retenção existe precisamente “para garantia do crédito resultante do não cumprimento imputável à parte que promete transmitir ou constituir um direito real. Vale por dizer, por outras palavras, que está em causa o crédito (dobro do sinal, valor da coisa, indemnização convencionada nos termos do nº 4 do art. 442º) derivado do incumprimento definitivo” (Calvão da Silva, Sinal e Contrato-Promessa, ed. de 1988, p. 111).
Ora, no caso em apreço, os embargantes não alegam sequer serem titulares de qualquer crédito sobre a executada, podendo, até, concluir-se do teor da petição que o não são, tanto mais que - segundo referem - pretendem, em primeira via, obter a execução específica do contrato. O que desde logo significa que o contrato não foi resolvido (por incumprimento definitivo imputável à promitente vendedora) e, consequentemente, ainda lhes não foi atribuído qualquer crédito sobre aquela.
Como escreve Lebre de Freitas, A Acção Executiva, 2ª ed., pág. 231, nota 24, “direito de retenção sobre a coisa só o tem o beneficiário da promessa que, após o incumprimento definitivo, tenha optado pela indemnização compensatória, nos termos dos arts. 442-2 e 755-f CC”. O que não é o caso.
Acresce que, ainda que os apelantes gozassem do direito de retenção, entendemos - no seguimento da doutrina e jurisprudência que cremos ser maioritária – que tal direito não legitimaria o uso de embargos de terceiro.
Escrevia, a propósito, o recentemente falecido Prof. A. Varela, in Das Obrigações em geral, I, 9ª ed., 371:
“É evidente que o imóvel, continuando na titularidade do devedor executado, não obstante o direito de retenção do promitente-comprador que sobre ele venha a recair, pode ser penhorado. Como evidente é que, na hipótese de a penhora se efectuar, contra ela não procedem os embargos de terceiro eventualmente deduzidos pelo promitente comprador, com base no seu direito de retenção.
É que por detrás do direito de retenção do promitente-comprador não há nenhum direito real de gozo que a penhora dos credores ofenda, mas um simples direito real de garantia (...)”.
Também o Cons. Salvador da Costa escreve (em Os Incidentes da Instância, pág. 85) que “inexiste incompatibilidade justificativa da dedução de embargos de terceiro entre o acto de penhora e o direito de retenção (...) porque o respectivo titular pode realizar o conexo direito de crédito de que seja titular no quadro do concurso de credores, através do mecanismo da reclamação de créditos.
Assim, não pode embargar de terceiro (...) o titular do direito real de garantia, por exemplo o titular do direito de penhor ou de retenção, porque pode realizá-lo na acção executiva por via do concurso de credores”.
E no mesmo sentido se pronunciam Lebre de Freitas, ob. cit, p. 234, e Miguel Mesquita, in Apreensão de Bens em Processo Executivo e Oposição de Terceiro, pp. 160/161.
Sendo até de notar que, porque a reclamação de créditos na execução tem de assentar num título exequível, o promitente comprador, caso não disponha desse título, pode requerer, dentro do prazo facultado para a reclamação, que a graduação de créditos – relativamente ao objecto da sua garantia – fique a aguardar a obtenção de uma sentença (art. 869º, nº 1 do CPC).
Na jurisprudência, pronunciando-se no sentido de que o direito de retenção não legitima o recurso aos embargos de terceiro, podem ver-se, entre outros, e para além dos já citados Acs. do STJ, de 26.02.1992 e 27.04.2004, os Acs. do STJ, de 26.02.2004, in www.dgsi.pt, proc. 03B4296, de 29-06.95, in BMJ, 448º-314 e de 31.03.93, CJ/STJ, 1993, II, 44; e Ac. da RP, de 28.03.2001, in www.dgsi.pt, proc. 0130362.
Conclui-se, assim, que o recurso não pode proceder.
III.
Nestes termos, julga-se improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pelos apelantes.
Porto, 26 de Janeiro de 2006
Estevão Vaz Saleiro de Abreu
Fernando Manuel de Oliveira Vasconcelos
Gonçalo Xavier Silvano