PROCESSO DE INVENTÁRIO
CABEÇA DE CASAL
Sumário

No inventário em que apenas são herdeiros sobrinhos do inventariado, ainda que este estivesse interdito e incapaz de decidir onde vivia, o cabeçalato cabe ao sobrinho que vivia com o inventariado há mais de um ano à data da sua morte e não ao sobrinho mais velho.

Texto Integral

Recurso de Apelação
ECLI:PT:TRP:2021:959.21.4T8VNG.A.P1

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Sumário:
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Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório:
B..., contribuinte fiscal n.º ………, residente em …, Vila Nova de Gaia, instaurou processo de inventário para partilha da herança aberta por óbito de C…, falecido no dia 31.01.2021, com última residência na Rua …, nº … …, Vila Nova de Gaia, tendo deixado como únicos herdeiros três sobrinhos, irmãos entre si, dos quais o requerente é o mais velho, devendo por isso ser nomeado cabeça-de-casal.
Juntou certidão de óbito e escritura notarial de habilitação de herdeiros celebrada pelo próprio e na qual se apresenta como cabeça-de-casal «de acordo com a lei civil».
Imediatamente após a instauração do processo, o herdeiro D..., contribuinte fiscal n.º ………, residente na Rua …, n.º …, …, Vila Nova de Gaia, veio aos autos requerer a sua nomeação como cabeça-de-casal uma vez que, conforme fez constar em escritura notarial de habilitação de herdeiros que celebrou, o falecido residiu consigo entre 01.06.2012 e a data da sua morte, pelo que de acordo com o disposto o n.º 3 do artigo 2080.º do Código Civil, lhe cabe o exercício do cabeçalato.
O requerente do inventário foi ouvido e manifestou que por sentença judicial proferida em 23.10.2013 o inventariado tinha sido declarado interdito por anomalia psíquica, com efeitos desde 01.09.2007, passando a ter como tutora E..., mulher do herdeiro D…, e por isso não possuía capacidade de discernimento ou vontade própria para decidir o local onde deveria estabelecer a sua residência, tendo a decisão de fixar a sua residência no local da última morada sido tomada pela tutora, razão pela qual não se aplica o disposto no n.º 3 do artigo 2080.º do Código Civil.
A seguir foi proferida a seguinte decisão:
«Veio B... instaurar inventário para partilha dos bens deixados por C…, o qual terá deixado como únicos herdeiros os seus sobrinhos, entre os quais se conta o aqui requerente.
Na qualidade de sobrinho mais velho, defendeu o referido requerente competir-lhe a ele o cabeçalato.
De modo prévio à sua citação, e sem que ainda tivesse sido proferido despacho liminar por este Tribunal, veio D... defender que o inventariado vivia, à data da sua morte, com ele e com a sua esposa, em economia comum, há mais de um ano.
Juntou, para além do assento de óbito do inventariado atestando a ultima morada deste, uma declaração da Junta de Freguesia respectiva também a atestar uma tal situação e uma habilitação de herdeiros donde consta ser ele, e não o requerente do inventário, o cabeça de casal da herança cuja partilha ora se visa.
No exercício do seu contraditório, veio o requerente do inventário, embora sem colocar em causa de forma directa a realidade descrita pelo interessado D…, impugnar a valia probatória dos documentos juntos, nomeadamente da declaração emanada da Junta de Freguesia. Mais veio, e por outro lado, colocar em causa a possibilidade do inventariado poder ser considerado como alguém que vivia em comum com o interessado D…, em virtude daquele ser interdito e não ser por sua livre e espontânea vontade que fixou residência no local ora apontado.
Passando a decidir, de adiantar desde já que não cabe razão ao requerente deste inventário.
Com efeito, e antes do mais, e até em função do contraditório exercido, não vê o Tribunal razão para colocar em causa a alegação do interessado D... de que o inventariado estaria, à data da sua morte, a viver com ele e com a sua esposa, a tutora designada ao interdito, conforme resulta do documento junto pelo requerente do presente inventário.
E, a assim ser, entende o Tribunal que o cabeçalato no caso, incumbe ao interessado D..., à luz do disposto no artigo 2080º, n.º 3 do Código Civil.
Já no que se refere à circunstância do inventariado estar interdito e incapaz de escolher ou fixar a sua residência, também entende o Tribunal não assistir no caso razão ao requerente do inventário quanto ao que alega, na medida em que uma tal decisão foi tomada pela pessoa que tinha a seu cargo a representação do inventariado e que, por força de uma tal circunstância, a podia tomar, ou seja, a sua tutora – artigos 139º, 124º e 1878º do Código Civil, o primeiro na redacção vigente à data de declaração da interdição do inventariado.
Por tal razão, e em função do exposto, designo como cabeça de casal no caso D....»
Do assim decidido, o requerente do inventário interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
1. Vem o presente recurso interposto do douto despacho proferido pelo Tribunal a quo, datado de 28/05/2021, que designou o Requerido D... como cabeça de casal.
2. Salvo o merecido e devido respeito, que é muito, não merece a decisão proferida a anuência do Recorrente.
3. O total desacordo com o teor do douto despacho recorrido deve-se à circunstância de o critério adoptado ter sido o que decorre do nº 3 do artigo 2080.º, sem atentar nas particularidades do caso concreto, as quais, no entender do Recorrente, obrigam a que tivesse sido adoptada decisão distinta.
4. O douto despacho recorrido designou o Requerido D... como Cabeça de Casal, pelo facto de o perecido C... ter tido a última residência habitual, junto o Requerido D....
5. O tribunal a quo desconsiderou em absoluto o facto de o falecido C… ter sido declarado interdito, por anomalia psíquica, por sentença proferida em 23/10/2013, que determinou que a anomalia psíquica, que afectava o falecido, C…, retroagia já a 1 de Setembro de 2007.
6. Entende o Recorrente que para que possa ser aplicado o critério constante do artigo 2080.º, nº 3, do CC, é absolutamente necessário que exista uma vontade própria, uma decisão consciente de optar por ir residir com outrem.
7. Ou, em sentido inverso, um qualquer ato que traduza vontade em permitir, aceitar, autorizar que alguém com ele tenha ido residir, partilhando o domicílio.
8. Desconsiderou e desvalorizou o tribunal a quo que o falecido C… em momento algum teve ou foi capaz de ter capacidade de discernimento ou vontade própria para decidir o local onde deveria estabelecer a sua residência.
9. E tal ocorreu pela simples e elementar razão de sofrer de anomalia psíquica, motivo pelo qual foi declarado interdito.
10. Desconsiderou também o tribunal a quo que a decisão de alterar o domicílio, a residência do falecido, foi unilateral empreendida pela tutora, para a qual o falecido em nada contribuiu, já que não possuía capacidade de discernimento ou intenção volitiva para o efeito.
11. Entende o recorrente que o requerido, seu irmão D..., não deve beneficiar da prevalência legal que a lei defere no artigo 2080.º, nº 3 do CC.
12. O interdito falecido, estava na casa do requerido D..., como podia estar sujeito a um internamento compulsivo, institucionalizado num lar, ou outro.
13. De referir que o inventariado não permaneceu naquela residência de forma graciosa, a expensas da sua então tutora.
14. O inventariado não residiu naquele local por necessidade.
15. Já que todas as despesas incorridas com a sua alimentação, vestuário, assistência médica e medicamentos, e outros, foram suportadas pelos seus recursos próprios.
16. Ora, inexistindo ao inventariado aquele elemento volitivo, aquela vontade de habitar na sua última residência, que lhe foi imposta, entende o recorrente que não deveria ter sido designado o requerido D... para exercer o cargo de cabeça de casal,
17. Na medida em que não deve ser aplicado o artigo 2080.º, nº 3 do CC.
18. Por conseguinte, em face de tudo o que foi alegado, deve revogar-se o douto despacho recorrido do Tribunal a quo, determinando-se a designação do recorrente como cabeça de casal.
19. O douto despacho recorrido viola e não faz uma correta aplicação do artigo 2080.º do CC.
Nestes termos e nos melhores de direito, julgando-se totalmente procedente o presente recurso a revogando-se o douto despacho recorrido e ordenando-se a designação do recorrente para o exercício do cargo de cabeça de casal, tudo com as inerentes consequências legais, se fará sã, inteira, serena e objectiva Justiça.
O recorrido respondeu a estas alegações defendendo a falta de razão dos fundamentos do recurso e pugnando pela manutenção do julgado.
Após os vistos legais, cumpre decidir.

II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida se o critério de escolha do cabeça-de-casal indicado no n.º 3 do artigo 2080.º do Código Civil não tem aplicação quando o inventariado tiver sido declarado interdito por anomalia psíquica.

III. Os factos:
Os factos que relevam para a decisão a proferir são os constantes do relatório.

IV. O mérito do recurso:
A única questão suscitada no recurso é a de saber se no presente inventário o cargo de cabeça-de-casal deve ser exercido pelo sobrinho mais velho ou pelo sobrinho que vivia com o inventariado há pelo menos um ano à data da morte.
Não se discute, com efeito, nem o local onde o inventariado vivia há mais de um ano antes da data da morte, nem que esse local seja o do domicílio do sobrinho D... que por esse facto requer a sua nomeação para o cargo.
O artigo 2080.º do Código Civil estabelece as regras legais a que deve obedecer a atribuição do cargo de cabeça de casal dispondo o seguinte:
«1. O cargo de cabeça-de-casal defere-se pela ordem seguinte:
a) Ao cônjuge sobrevivo, não separado judicialmente de pessoas e bens, se for herdeiro ou tiver meação nos bens do casal;
b) Ao testamenteiro, salvo declaração do testador em contrário;
c) Aos parentes que sejam herdeiros legais;
d) Aos herdeiros testamentários.
2. De entre os parentes que sejam herdeiros legais, preferem os mais próximos em grau.
3. De entre os herdeiros legais do mesmo grau de parentesco, ou de entre os herdeiros testamentários, preferem os que viviam com o falecido há pelo menos um ano à data da morte.
4. Em igualdade de circunstâncias, prefere o herdeiro mais velho.»
Assente que os herdeiros são todos sobrinhos do inventariado, ou seja, parentes do mesmo grau, a questão consiste em definir se se aplica a regra do n.º 3 ou a regra do n.º 4, sendo certo que esta só é aplicável em «igualdade de circunstâncias», ou seja, desde que um dos sobrinhos não «vivesse com» o falecido há pelo menos um ano à data da morte».
Como se vê a norma estabelece uma hierarquia entre os critérios de designação, de modo que só se o primeiro não resolver o impasse se passa ao segundo e assim sucessivamente.
Qual é a razão de ser do n.º 3?
Claramente a razão de que o herdeiro que viva com o inventariado há pelo menos um ano terá, em princípio, mais conhecimento da vida financeira e patrimonial do inventariado e, portanto, estará em melhores condições para exercer o cabeçalato. Se assim é na prática ou não é algo que pode variar de caso para caso, mas esse é o critério eleito pela norma legal.
Não se trata, de modo algum, de presumir que se o inventariado vivia com aquele herdeiro a sua vontade conjecturável seria a de este herdeiro viesse a exercer as funções de cabeça de casal no futuro inventário para partilha do seu património. Se assim fosse então fazia sentido que a primeira regra estabelecida no artigo 2080.º fosse a da atribuição do cargo ao herdeiro designado, expressa ou tacitamente pelo inventariado, o que não sucede de todo.
Só se não houver um herdeiro do mesmo grau de parentesco nessas condições é que se recorre ao último critério: o da idade do herdeiro. Este surge como o último critério, aquele que à falta de melhor, resolve o impasse.
Ao contrário do que sustenta o recorrente o critério do n.º 3 nada tem a ver com o conceito de domicílio e muito menos com o conceito de domicílio voluntário. O critério é apenas o de haver entre o inventariado e o herdeiro uma relação de vida em comum. Não é necessário, porque a norma não o exige, que estejamos perante uma vida em economia comum, basta que estejamos perante uma vida na mesma habitação, no mesmo espaço, no fundo uma situação de convivência diária, quotidiana, normal, na medida em que essa convivência permite a partilha de informações que agilizarão o exercício do cargo.
O inventariado, independentemente de estar interdito, tinha um local onde habitava, que era a sua residência. Para efeitos da norma basta que ele de facto vivesse num local e que esse local fosse afinal de contas também o local onde vivia o seu herdeiros, em termos de se poder dizer que eles viviam um com o outro, em comum.
É, pois, absolutamente irrelevante para o efeito, independentemente do mérito da objecção, que não vislumbramos sequer, saber se o inventariado dispunha de condições mentais ou intelectuais para tomar uma decisão livre e consciente sobre esse aspecto e, portanto, se a escolha dessa habitação foi feita por ele, ou não dispunha de tais condições e essa decisão teve se der tomada pelo seu representante legal, no exercício dos poderes que lhe foram confiados para suprir a incapacidade do inventariado.
Em qualquer dessas hipóteses a regra do n.º 3 do artigo 2080.º do Código Civil aplica-se e arreda a regra do n.º 4, porque em qualquer delas se verifica de modo legítimo a situação factual que constitui a respectiva previsão e tanto basta para a sua aplicação.

V. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso improcedente e, em consequência, confirmam a decisão recorrida.
Custas do recurso pelo recorrente, o qual vai condenado a pagar ao recorrido, a título de custas de parte, o valor da taxa de justiça que suportou e eventuais encargos.
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Porto, 15 de Dezembro de 2021.
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Os Juízes Desembargadores
Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 651)
Francisca Mota Vieira
Paulo Dias da Silva

[a presente peça processual foi produzida com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas qualificadas]