I – O AUJ n.º 9/2015 de 14-05-2015 (processo n.º 1520/04.3TBPBL.C1.S1-A) fixou jurisprudência no seguinte sentido: “Se o autor não formula na petição inicial, nem em ulterior ampliação, pedido de juros de mora, o tribunal não pode condenar o réu no pagamento desses juros”.
II – Todavia, no caso dos autos não houve qualquer condenação para além do pedido suscetível de inquinar o acórdão da Relação de nulidade, nos termos da alínea e) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, na medida em que no pedido alternativo, em que o autor pede a restituição do dobro do sinal, requereu que este montante fosse acrescido de juros.
III – Do documento contratual junto aos autos resulta que o autor e a ré celebraram um contrato de cessão da posição contratual, inserido num contrato de promessa de compra e venda, em que a ré figurava como promitente compradora de um imóvel. Nesse contrato, a ré assumiu a obrigação perante o autor de indicar o nome deste para subscrever escritura pública na qualidade de adquirente ou comprador do imóvel prometido vender à ré.
IV – Não tendo a ré cumprido essa obrigação, e tendo recusado, de forma inequívoca e reiterada, transferir o direito de propriedade para o autor depois de o ter adquirido pela celebração do contrato definitivo com os proprietários, verificaram-se os pressupostos do incumprimento definitivo.
V – Equipara-se ao incumprimento definitivo da prestação, possível e com interesse para o credor, a manifestação expressa ou tácita por parte do devedor no sentido de que não cumprirá a obrigação, o que se infere, designadamente da falta injustificada da Ré à outorga da escritura pública.
VI – Os pagamentos feitos pelo autor à ré têm a natureza de sinal, tal como expressamente estipulado na cláusula 3.ª do texto do contrato, na qual consta que, “(…) no ato da assinatura deste contrato, o ora Autor entrega à ora Ré um cheque no valor de 860, 00 euros a título de sinal e princípio de pagamento; e que a restante parte do preço em dívida, ou seja, 84 140, 00 euros será entregue da seguinte forma: o ora Autor irá transferir para a ora Ré, mensalmente, até ao dia 8 de cada mês, a quantia de 430, 00 euros, a título de acréscimo de sinal que será subtraído ao valor global da respetiva venda”.
VII – Em consequência, aplica-se ao caso dos autos o regime do artigo 442.º, n.º 2 do Código Civil, que confere ao promitente adquirente fiel o direito de exigir o sinal em dobro, não constituindo esta solução qualquer abuso do direito, nos termos do artigo 334.º do Código Civil.
I - Relatório
1. AA impetrou ação declarativa de condenação, seguindo processo comum, contra Agenda Alerta, Unipessoal, Lda, pedindo na procedência da mesma, que o contrato-promessa de compra e venda, celebrado entre as partes em julho de 2014, seja considerado incumprido definitivamente, por culpa imputável à Ré e assim, proferida sentença que produza os efeitos da declaração negocial da Ré, declarando-se transmitido para o Autor, o direito de propriedade sobre a fração autónoma prometida, declarando-se ainda que, o Autor beneficia de direito de retenção sobre a fração autónoma em causa, havendo por parte do Autor lugar ao pagamento do valor em falta, para satisfação do preço acordado, cujos reforços irão manter-se até ao trânsito em julgado dos presentes autos; - seja reconhecido como sinal e princípio de pagamento, pago pelo Autor à Ré, até à presente data, a quantia de € 22.360,00 (vinte e dois mil trezentos e sessenta euros), sem prejuízo dos reforços mensais de pagamento que irá efetuar nos termos aludidos, os quais serão depositados na CGD, à ordem do processo; e, declarado a favor do Autor o direito de retenção sobre a fração prometida transacionar, desde a sua posse efetiva e fruição, em função da tradição verificada.
Em alternativa, pediu que seja determinada a restituição ao Autor do sinal em dobro, nos termos do artigo 442.º do Código Civil, que à presente data se contabiliza no montante de € 44.720,00 (quarenta e quatro mil setecentos e vinte euros), sem prejuízo dos valores vincendos de reforço de sinal a liquidar mensalmente até ao trânsito em julgado da sentença a ser proferida no presente pleito; ser reconhecido ter havido tradição da coisa, objeto do contrato-promessa de compra e venda (imóvel para habitação) a favor do Autor, cuja traditio deve ser qualificada como posse em nome próprio (“animus possidendi”), considerando as condições negociais verificadas, beneficiando do direito de retenção sobre o imóvel, pelo valor do sinal em dobro e juros, resultante do incumprimento definitivo do contrato pela promitente-vendedora, ora Ré, nos termos do artigo 442.º do Código Civil, retenção que se deve manter enquanto não se extinguir o crédito do Autor.
Para sustentar a sua pretensão alegou em síntese, que em 17 de julho de 2014 celebrou com a Ré contrato-promessa de compra e venda do bem imóvel identificado; que quanto ao preço acordado, no ato da assinatura entregou à Ré cheque no valor de 860, 00 euros, ficando o restante (84 140, 00 euros) de ser pago mediante transferência mensal do valor de 430, 00 euros até ao dia 8 de cada mês, a título de acréscimo de sinal, a ser subtraído ao valor global da venda; mais ficou consignado, que a escritura de compra e venda devia ser marcada pela Ré, pelo menos, com 10 dias de antecedência; com o pagamento daquele sinal, o imóvel foi entregue ao Autor e sua esposa para habitação própria e permanente destes; e o Autor foi pagando, a título de reforço de sinal, 430, 00 euros, mensais, pelo que já entregou o total de 21 500, 00 euros; o Autor veio a ser notificado pela Ré, por carta registada com Aviso de Receção de que se encontrava marcada a escritura para o dia 12 de julho de 2018, pelas 15 h, em certo Cartório Notarial; o Autor compareceu, mas, não a Ré, revelando-se afinal que a Ré não tinha marcado a escritura, assim, não cumpriu nem queria cumprir aquele contrato-promessa; pretende o Autor, o cumprimento de tal contrato-promessa, através da sua execução específica; ou, em alternativa, a restituição do sinal em dobro; mais invoca o seu direito de retenção sobre o imóvel para garantia desse crédito.
A Ré contestou, pugnando pela improcedência da ação e absolvição dos pedidos.
Em defesa por impugnação e exceção, alegou em suma que, a vontade real das partes no acordo celebrado, não foi de promessa de compra e venda, mas, de arrendamento; dado que, à data desse acordo, e pretendendo o Autor ocupar o imóvel, este ainda não era propriedade da Ré; que era mera promitente compradora desse mesmo imóvel, não lhe sendo, por isso, viável celebrar contrato de arrendamento com o Autor; tendo sido escolhida aquela forma por assim permitir ao Autor habitar o imóvel, e à Ré rentabilizar essa utilização de imóvel; de forma que se trata de uma simulação de contrato de arrendamento, o que leva à nulidade do contrato (artigo 241º do Código Civil). Mais alegou que, antes da celebração deste acordo, Autor e Ré já haviam celebrado contrato idêntico ao imóvel, em que o Autor aceitou tratar-se, na verdade, de um arrendamento, nada tendo reclamado nem pedido a transferência de tais valores para o novo apelidado “contrato-promessa”; mais defendendo a Ré, que a indicação da possibilidade de outorga de escritura e a indicação de preço, no contrato dos autos, serviu, apenas, para preencher requisito de contrato-promessa; e, o valor do cheque entregue corresponde exatamente a dois meses de renda e, não, a sinal; a agendada data de celebração da escritura corresponder à data do próprio contrato agora invocado pelo Autor; o que é revelador de que, na verdade, estava em causa outra obrigação diferente de contrato-promessa, bem sabendo aquele, que a Ré não iria marcar escritura de compra e venda em cumprimento de contrato-promessa de compra e venda, tendo a notificação expedida ao Autor se tratado de mero lapso; além do que, o Autor continua a pagar a quantia mensal acordada, o que é revelador de que sabe que se trata de uma renda, incompatível com o alegado incumprimento do “contrato-promessa”.
Na sua resposta o Autor pugnou pela improcedência da exceção da simulação e manteve o peticionado.
O tribunal de 1.ª instância decidiu pela improcedência da ação.
2. Inconformado, o Autor interpôs recurso de apelação da sentença que decidiu pela improcedência da ação, tendo o Tribunal da Relação julgado parcialmente procedente o recurso, nos termos do dispositivo que aqui se transcreve:
«Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação na procedência parcial da apelação e revogação da sentença, e em consequência, julgam a acção parcialmente procedente, declarando a resolução do contrato promessa ajuizado por incumprimento da Ré, e em consequência:
a) Condenar a Ré a pagar ao Autor a quantia de Euros de € 45.720,00, acrescida dos juros de mora vincendos à taxa legal;
b) Reconhecendo-se o direito de retenção do Autor sobre a fracção como garantia de satisfação integral daquele crédito.
As custas do recurso são a cargo da Ré e do Autor na respectiva proporção de decaimento».
3. Inconformado, o Réu interpôs recurso de revista, em cuja alegação formula as seguintes conclusões:
«A. Existe falta de fundamento legal do peticionado;
B. Na verdade, o Autor sabe à partida que o pedido principal de Execução específica se encontra cerceado pelo facto de o contrato outorgado não constituir um contrato promessa de compra e venda, mas apenas um contrato de cessão de posição contratual;
C. Ou seja, o Tribunal não pode substituir a declaração em falta, por esta não ser apta a constituir o efeito peticionado (transmissão da propriedade);
D. Pelo que, restará apenas apreciar o pedido alternativo formulado pelo Autor, que consiste no pedido de restituição do sinal em dobro, sendo que o valor de 430€ continuaria a ser pago até ao trânsito em julgado da sentença
E. Atendendo ao alegado pelas partes, entendeu o Tribunal e bem, interpretar a vontade expressa nas cláusulas contratuais;
F. Da leitura das referidas Cláusulas e dos factos dados como provados, a Ré/Recorrente retira outras conclusões;
G. A Recorrente entende que dos factos dados como provados não resulta a condenação da Ré no pedido, mas sim na Absolvição;
H. Isto porque, a Devolução de sinal em dobro peticionada pelo Autor e declarada em sede de Acórdão, depende do facto o contrato ter sido considerado válido;
I. Nos termos do artº 442º do CC, para existir a obrigação de restituir o sinal em dobro, é necessário alegar e provar que:
a. Foi realizado um contrato válido;
b. No âmbito desse contrato foram entregues quantias a título de sinal;
c. Existir um não cumprimento da obrigação prevista no contrato;
J. Nenhum dos factos dados como provados na presente acção é apto a ser considerado constitutivo do Direito de restituição do sinal em dobro alegado pelo Autor;
K. O que resulta dos autos é que o contrato está longe de ser válido, pois confere uma mera detenção e não posse, não tem as assinaturas reconhecidas, tem prazos/sinalagmas de cumprimento fisicamente impossível;
L. O que permite concluir que o contrato é nulo nos termos do artº 280º/ 1 do CC;
M. Nulidade essa que se argui para os devidos efeitos legais e que determina a improcedência do pedido formulado pelo Autor;
N. Nos termos do artº 289º/1 do CC, regime ignorado pela decisão ora recorrida, mas que entendemos ser aqui aplicável ao caso concreto, sendo o contrato nulo, diferente é a solução;
O. Não se aplicando o regime indemnizatório referente ao contrato promessa validamente celebrado, mas sim o regime do contrato ferido de nulidade mas cujos efeitos se produziram por um dado lapso de tempo.
P. Dos factos elencados como provados (Ponto 13.) resulta que o “sinal” mensal é a contrapartida acordada pelas partes, do facto de o Autor habitar o imóvel até hoje;
Q. Derrogando assim a presunção legal de que todos os valores dados pagos em sede de contrato promessa de compra e venda devem ser considerados sinal e princípio de pagamento;
R. Resultando provado também que, não sendo um sinal, mas sim a contrapartida pelo uso e habitação, não é passível de devolução em dobro nos termos do artº 442º/2 do CC, nos termos peticionados;
S. Conclui-se também que da leitura do contrato concluímos que o sinalagma, ou seja a obrigação assumida pelas partes não era a transmissão da propriedade do imóvel, mas sim a cessão da posição contratual no contrato celebrado com terceiro;
T. O pedido alternativo, além de contraditório constitui em si um abuso de direito, porquanto da condenação neste pedido resulta uma vantagem ilegítima para o Autor que ficou a usufruir do imóvel durante 6 anos pagando um montante que ora lhe será restituído em dobro;
U. Nesse sentido a condenação da Ré nos termos expostos na decisão ora recorrida constitui um verdadeiro abuso de direito que não pode ser legitimado por sentença;
V. Relativamente ao pedido de reconhecimento de direito de retenção, o mesmo não tem acolhimento legal;
W. Tendo ficado provado nos autos que o Autor habita o imóvel desde 2014 até à presente data, a troco da quantia mensal de 430€, não existe sinal a restituir mas sim uma renda a pagar pela utilização do imóvel
X. Nesse sentido, não poderá ser reconhecido o direito de retenção peticionado pelo Autor, o qual constitui uma garantia de cumprimento de uma obrigação inexistente, no âmbito de um contrato nulo;
Y. Sendo o contrato declarado nulo, nos termos do artº 289º/1 do CC, tal nulidade tem efeitos retroactivos, pelo que, terá de ser devolvido tudo quanto prestado, e não sendo possível restituir o uso do locado à Ré, terá o Autor de suportar o valor correspondente ao benefício que assim obteve
Z. Pela mesma razão, o direito de retenção é um direito de garantia e não um direito parcelar de propriedade (Dtº de Gozo);
AA. Razão pela qual é nosso entender que, o facto de o Autor habitar o imóvel até hoje, sabendo que, na sua versão, o contato foi incumprido em Julho de 2018, mesmo pagando o correspondente valor, tornando a fricção ilícita, não lhe deverá conceder o direito de retenção, mas sim o dever de restituir o que indevidamente recebeu, nos termos do artº 759º/1 e 2 e 473º/1 todos do CC
BB. Da leitura da parte decisória do Acórdão, ora recorrido, ressalta ainda que foi a Ré condenada em Juros vincendos, os quais não foram peticionados pelo Autor, ultrapassando assim os limites do poder de decisão do Tribunal, violando o disposto no artº 615º/1 e) do CPC, determinando a nulidade da sentença, a qual desde já se argui, para os devidos efeitos legais;
CC. Tal condenação não é legalmente possível pois, aplicando o regime do contrato promessa, conforme expresso no douto acórdão, no âmbito da indemnização prevista no artº 442º/2 do CC em que a Ré foi sentenciada, já está incluído os juros vincendos até integral pagamento (artº 564º/1 e 442º/4 do CC).
Normas Violadas:
- Artº 280º/1, artº 289º/1, artº441º/1, artº442º/1, 2 e 4, artº 334º/1, artº 473º/1, artº 564º/1, artº 759º/1 e 2 todos do CC
-Artº 615º/1 do CPC;
Termos em que deverá a decisão proferida pela Relação ..., ora recorrida, ser revogada e proferida decisão de declaração de nulidade do contrato e consequentemente serem as partes condenadas a restituir todo o recebido no âmbito do contrato declarado nulo, nomeadamente ser o Autor condenado a devolver o imóvel, e a Ré a devolver as quantias que recebeu. Não sendo possível ao Autor devolver o uso e fruição do imóvel nos últimos 6 anos, deverá liquidar os valores correspondentes ao benefício que obteve, no montante de 430 € por cada mês que habite o imóvel, com início desde 17 de julho de 2014, com o que se fará
Verdadeira Justiça!».
4. Sabido que é pelas conclusões que se delimita o objeto do recurso, as questões a decidir são as seguintes:
a) Nulidade do acórdão recorrido por condenação em quantidade superior ao pedido (artigo 615.º, n.º 1, al. e), do CPC), por ter sido a ré condenada no pagamento de juros vincendos que alegadamente não foram peticionados pelo autor;
b) Nulidade do contrato-promessa celebrado entre as partes por vício de forma e por impossibilidade do objeto, apreciando-se, caso se verifique esse vício, os respetivos efeitos;
c) Interpretação do negócio jurídico celebrado entre as partes e qualificação jurídica do mesmo;
d) Apreciação do incumprimento do referido contrato pela ré;
e) Qualificação da prestação pecuniária paga pelo autor à ré como “sinal”;
f) Alegado abuso de direito do autor ao exigir na presente ação a restituição do sinal em dobro.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
A – Os factos
1. As instâncias deram por provados os seguintes factos:
1. A Ré “AGENDA ALERTA, UNIPESSOAL, LDA.” tem como principal atividade a compra e venda de bens imobiliários.
2. Com data de 17 de julho de 2014, os ora Autor e Ré assinaram o escrito que se mostra junto aos autos a fls. 13 e 14, denominado “Contrato-Promessa de Compra e Venda”.
3. Neste escrito, sob a sua “cláusula 1ª”, consta que a aqui Ré, “AGENDA ALERTA, UNIPESSOAL, LDA.” celebrou com BB e CC um “Contrato-Promessa de Compra e Venda” onde a “AGENDA ALERTA, UNIPESSOAL, LDA.” está referenciada como promitente compradora do imóvel objeto deste contrato e autorizada a indicar um terceiro para a outorga da escritura da fração autónoma destinada à habitação, designada pela letra A, correspondente à ... esquerda do prédio urbano sito na Av...., ..., freguesia da ..., concelho da ..., inscrita na matriz predial sob o art. ...54º e descrito na Conservatória do Registo Predial da ... sob o nº ...70 da mesma freguesia.
4. Deste mesmo escrito, sob a “cláusula 2ª” consta que, por este contrato ora em apreço, a “Agenda Alerta, Unipessoal, Lda.” promete indicar aos srs. BB e CC, AA, para a outorga da escritura da fração autónoma acima indicada, livre de ónus e encargos; e este último, promete aceitar essa indicação pelo preço de 85 000, 00 euros.
5. Da cláusula 3ª deste mesmo escrito consta que, no ato da assinatura AA entrega à Agenda Alerta UP, Ld.ª, um cheque no valor de 860, 00 euros a título de sinal e princípio de pagamento; e que a restante parte do preço em dívida, ou seja, 84 140, 00 euros será entregue da seguinte forma: o ora Autor irá transferir para a ora Ré, mensalmente, até ao dia 8 de cada mês, a quantia de 430, 00 euros, a título de acréscimo de sinal que será subtraído ao valor global da respetiva venda.
6. Da “cláusula 6ª” do mesmo contrato consta que “a escritura definitiva de compra e venda” deverá ser celebrada no máximo até ao dia 17 de julho de 2014, e será marcada pela ora Ré que avisará o aqui Autor, através de carta registada com aviso de receção com, pelo menos, 10 (dez) dias de antecedência.
7. A partir da sobredita data, o Autor e sua esposa passaram a habitar na identificada fração.
8. O Autor foi pagando, mensalmente, a quantia acima referida, de 430, 00 euros.
9. O Autor recebeu da Ré, carta registada com AR, através da qual o informa, que se encontra marcada a escritura de compra e venda da fração, para o dia 12 de julho de 2018, pelas 15 Horas, no Cartório Notarial de DD; e com menção de que se tal contrato definitivo não se realizar por culpa do ora Autor, se considera definitivamente incumprido o contrato-promessa da fração em referência.
10. O Autor, acompanhado da sua esposa compareceu no dia, hora e local designado para a realização da escritura de compra e venda, mas, chegada a hora a que se alude na sobredita missiva, a Ré não compareceu, nem na hora por si designada, nem em hora posterior.
11. A Ré não havia marcado tal escritura de compra e venda; e não veio a marcá-la posteriormente.
12. Da cláusula 6ª/2 do suprarreferido contrato, consta que o não pagamento pelo Autor do valor de 84 140, 00 euros consubstancia incumprimento definitivo do contrato imputável ao Autor e constitui causa justificativa para a não celebração da escritura pela ora Ré, fazendo suas todas as importâncias recebidas e entregues a título de sinal.
13. Autor e Ré acordaram que o Autor receberia da Ré, para sua habitação, a fração autónoma acima identificada, com a contrapartida do pagamento da quantia de 860, 00 euros na data desse acordo, em julho de 2014; e do pagamento subsequente da quantia mensal de 430, 00 euros.
2. O Tribunal da Relação eliminou o ponto 1. dos factos não provados, entendendo que “(…) o ponto 1. NP da sentença não enuncia um “facto”, no sentido conceptualizado no artigo 607º, nº 4, do Código de Processo Civil. Trata-se, outrossim de asserção do julgador com carácter manifestamente conclusivo e a retirar a jusante na apreciação jurídica dos factos recolhidos. (…) “(…) deverá então ser suprimida a matéria constante do elenco dos factos (provados e não provados) susceptível de ser qualificada como questão de direito, conceito que, como vem sendo também pacificamente aceite, integra por analogia juízos de valor ou conclusivos”.
B – O Direito
1. Nulidade do acórdão recorrido por condenação em quantidade superior ao pedido (artigo 615.º, n.º 1, al. e), do CPC)
1.1. Nas suas alegações, a recorrente/ré invoca a nulidade do acórdão recorrido por condenação em quantidade superior ao pedido, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Civil (CPC). Alega para o efeito que foi condenada no pagamento de juros vincendos, os quais não foram peticionados pelo autor, pelo que a Relação ultrapassou, assim, os limites do seu poder de decisão. Mais sustenta a ré que tal condenação não é legalmente possível pois, aplicando-se o regime do contrato promessa, na indemnização prevista no artigo 442.º, n.º 2, do Código Civil já estão incluídos os juros vincendos até integral pagamento (artigo 442.º, n.º 4, do Código Civil).
No acórdão recorrido, a ré foi condenada a pagar ao Autor a quantia de € 45 720,00, “acrescida dos juros de mora vincendos à taxa legal”.
Compulsado o teor do pedido alternativo formulado pelo autor na petição inicial, verificamos que o mesmo peticionou o seguinte:
“a) Que seja determinada a restituição ao Autor do sinal em dobro, nos termos do art.º 442.º do Código Civil, que à presente data se contabiliza no montante de € 44.720,00 (quarenta e quatro mil setecentos e vinte euros), sem prejuízo dos valores vincendos de reforço de sinal a liquidar mensalmente até ao trânsito em julgado da sentença a ser proferida no presente pleito;
b) Concomitantemente, ser reconhecido ter havido tradição da coisa, objecto do contrato-promessa de compra e venda (imóvel para habitação) a favor do Autor, cuja traditio deve ser qualificada como posse em nome próprio (“animus possidendi”), considerando as condições negociais verificadas, beneficiando do direito de retenção sobre o imóvel, pelo valor do sinal em dobro e juros, resultante do incumprimento definitivo do contrato pela promitente-vendedora, ora Ré, nos termos do art.º 442.º do C.C., retenção que se deve manter enquanto não se extinguir o crédito do Autor”.
1.2. Sobre esta matéria, foi proferido o AUJ n.º 9/2015 de 14-05-2015 (processo n.º 1520/04.3TBPBL.C1.S1-A), que fixou jurisprudência no seguinte sentido: “Se o autor não formula na petição inicial, nem em ulterior ampliação, pedido de juros de mora, o tribunal não pode condenar o réu no pagamento desses juros.”
Conforme se lê na fundamentação desse AUJ, “não tendo sido formulado pedido de condenação em juros de mora (arts. 3º, nº 1, e 552º, nº 1, e), do CPC), o tribunal não poderia, oficiosamente, condenar nesses juros, pois tal traduz uma condenação para além do pedido, isto é, em quantidade superior ao que foi pedido (art. 609º, nº 1, do CPC). Fazendo-o, violou o princípio do pedido, como acima se expôs, ferindo de nulidade a sentença (art. 615º, nº 1, e), do CPC)”.
1.3. Porém, analisando o teor da petição inicial, na parte relativa ao pedido, verifica-se que, apesar do autor não ter indicado os juros de mora no momento em que pediu a indemnização correspondente ao sinal em dobro, peticionando, em acréscimo a esse montante, os “valores vincendos de reforço de sinal a liquidar mensalmente até ao trânsito em julgado da sentença a ser proferida no presente pleito”, quando peticionou o reconhecimento do direito de retenção, pediu quer a referida indemnização, quer o montante de juros sobre o respetivo montante, utilizando expressamente a expressão “juros”. Assim, interpretando o teor do referido articulado, podemos concluir que a vontade do autor foi a de peticionar os juros sobre a indemnização devida, pois caso quisesse prescindir desses juros, não faria sentido que os tivesse referido expressamente como estando abrangidos pelo direito real de garantia de cuja titularidade se arroga.
Assim, tendo o pedido de condenação no pagamento de juros sido formulado pelo autor, não se verifica qualquer nulidade por condenação para além do pedido.
Sobre a questão suscitada pelo recorrente de que na indemnização prevista no artigo 442.º, n.º 2, do Código Civil já estão incluídos os juros vincendos até integral pagamento (artigo 442.º, n.º 4, do Código Civil), importa referir que os juros de mora não constituem indemnização pelo incumprimento do contrato-promessa, pelo que, dessa forma, não se encontram abrangidos pela limitação prevista no n.º 4 do art. 442.º do Código Civil. Os juros de mora destinam-se a compensar o lesado pela demora no pagamento da indemnização prevista no n.º 2 do artigo 442.º (cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 03-07-2008, Revista n.º 1746/08, não publicado na DGSI). Em igual sentido, reconhecendo o pagamento de juros de mora sobre a indemnização correspondente ao sinal em dobro, afirmou este Supremo, no Acórdão de 26-01-2021 (Revista n.º 562/13.2TBVLN-A.G3.S1) que «Estando provado que foi celebrado entre exequente e executada um contrato-promessa de compra e venda, que posteriormente foi celebrado entre eles o contrato de compra e venda, que a ré incumpriu culposa e definitivamente esses dois contratos, que por virtude desse incumprimento foram declarados resolvidos os dois referidos contratos, e que daí emergiu o crédito exequendo, correspondente ao dobro do sinal prestado, e a que acrescem os juros de mora, a contar desde a citação, até efectivo e integral pagamento, está assente a existência do alegado direito de retenção». No mesmo sentido se pronunciou o Acórdão de 01-07-2003 (Revista n.º 1121/03), em que se afirmou que «Se o obrigado à restituição do sinal em dobro não o fizer tempestivamente, são devidos juros, contados desde a constituição em mora, a qual só tem início quando é exercida a faculdade de resolver o contrato», e ainda os acórdãos de 13-11-2003 Revista n.º 3066/03) e de 20-11-2003 (Revista n.º 3455/03), em que se concluiu que «São devidos juros de mora em relação à obrigação de pagamento do dobro do sinal, a tal não se opondo o art.º 442, n.° 4 do mesmo Código».
1.4. Assim, conclui-se que não se verifica qualquer nulidade do acórdão recorrido.
2. Nulidade do contrato-promessa celebrado entre as partes
2.1. Nas suas alegações, a recorrente invoca a nulidade do contrato celebrado entre as partes, alegando que o mesmo “confere uma mera detenção e não posse, não tem as assinaturas reconhecidas, tem prazos/sinalagmas de cumprimento fisicamente impossível”, concluindo que o contrato é nulo nos termos do artigo 280.º, n.º 1, do Código Civil.
Quanto ao facto de o contrato conferir uma mera detenção e não a posse do imóvel, não se vislumbra como tal poderá acarretar a nulidade do contrato, não tendo a recorrente fundamentado essa alegação.
Quanto ao suposto vício de forma, este não se verifica, pois, alegando a recorrente que o objeto do contrato consistiu apenas numa promessa de cessão da posição contratual, e não na promessa de venda de um bem imóvel, seria apenas exigível a forma escrita (artigo 410.º, n º 2, do Código Civil), que foi respeitada.
Argumenta ainda a recorrente que o acórdão recorrido errou ao não declarar a nulidade do contrato dos autos, por falta de forma, pois, mesmo que se entendesse que o contrato dos autos configurava um contrato-promessa de compra e venda, como entendeu o acórdão recorrido, sempre seria nulo, segundo a recorrente, por inobservância das formalidades previstas no artigo 410.º, n.º 3, do Código Civil.
Todavia, também neste ponto não tem razão.
A nulidade, por falta de forma, do contrato promessa de compra e venda de imóvel para habitação foi construída pelo legislador como uma nulidade atípica, destinada a proteger o promitente-comprador, restringindo, para o efeito, o círculo das pessoas legitimadas para a arguir, conforme tem sido entendimento da jurisprudência (por todos, vide, o acórdão deste Supremo Tribunal, de 07-10-2004, proc. n.º 04B2910, onde se sumariou que: «Tal vício, não é, todavia, de rotular de nulidade absoluta" tout curt", mas como uma nulidade mista, «sui generis» ou atípica - não invocável por terceiros nem conhecida oficiosamente pelo tribunal, ainda que possa ser arguida a todo o tempo. Isto porque não está em causa o interesse jurídico-público geral da invalidade do negócio, mas apenas o da tutela do específico interesse da protecção ao promitente comprador».
Com efeito, o regime consagrado no n.º 3 do artigo 410.º do Código Civil, prevê na sua parte final que o contraente que promete transmitir ou constituir o direito, ou seja, a aqui ré, ora recorrente, só pode invocar a omissão dos requisitos previstos nessa disposição legal, nomeadamente o reconhecimento presencial de assinaturas, quando a mesma tenha sido culposamente causada pela outra parte. Ora, não resultaram provados quaisquer factos que nos permitam concluir ser imputável ao autor recorrido a falta de observância dos requisitos legalmente previstos, pelo que não pode a ré invocar esse vício formal, improcedendo nessa parte a sua argumentação.
2.2. Invoca ainda a ré a nulidade do contrato, por impossibilidade do objeto do contrato, alegando o seguinte: “o conteúdo do contrato não é possível de ser cumprido, no que respeita à data de efeito, uma vez que, na sua cláusula sexta prevê que a escritura de compra e venda será celebrada até 17 de Julho de 2014, justamente a data em que foi assinado; Tornando assim impossível o cumprimento de qualquer dos prazos nele estabelecidos, ou seja, o contrato tem um cumprimento impossível, em termos de prazos; Conforme resulta do contrato outorgado, no dia em que foi outorgado (17 de Julho de 2014 – Ponto 2. Dos factos provados), o contrato encontrava-se já em incumprimento; Pois que, segundo o contrato de que o Autor se pretende fazer valer, a Ré, para cumprir o acordado teria de: 10 dias antes de outorgar o contrato, enviar uma carta registada com aviso de recepção a agendar a compra e venda onde o Autor apareceria como cessionário da posição contratual na aquisição do imóvel, sendo que essa data teria de ser a data da outorga do próprio contrato onde a Ré promete vender a sua posição contratual, ou seja 17 de Julho de 2014 (Cláusula sexta do contrato a fls. 13 dos autos);”.
Conforme refere Elsa Vaz de Sequeira (“Anotação ao artigo 401.º do Código Civil”, Comentário ao Código Civil – Direito das Obrigações, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2018, p. 39), a impossibilidade originária da prestação a que se refere o n.º 1 do artigo 280.º e o n.º 1 do artigo 401.º, ambos do Código Civil, deve ser:
a) “Originária, isto é, contemporânea à constituição da obrigação;
b) Absoluta, por ocorrer um obstáculo que insuperavelmente impede o devedor de cumprir;
c) Definitiva – visto a prestação ser irrealizável quer no presente, quer no futuro – ou temporária, que se caracteriza por a prestação não poder ser executada no presente, embora possa vir a sê-lo no futuro, numa altura, no entanto, em que o credor já não terá interesse nela”.
Ora, no presente caso, não se verificam estes requisitos no que respeita ao objeto do contrato celebrado entre as partes.
Apesar de ter sido convencionado um prazo para a celebração do contrato de compra e venda que termina precisamente no dia da celebração do contrato-promessa, inviabilizando à partida o cumprimento do prazo de antecedência de 10 dias previsto na cláusula 6.ª, tal não impossibilita de forma absoluta e definitiva o cumprimento do contrato. Tanto mais que o teor do acordo das partes evidencia que o prazo para a celebração do contrato prometido, coincidente com a data da própria assinatura, não foi estabelecido como termo essencial absoluto, ou seja, não resulta do contrato que as partes tenham pretendido dizer que para lá desse termo o contrato não lhes interessava (cfr. Acórdão de 28-09-1999, Revista n.º 508/99 - 6.ª Secção, não publicado na DGSI). Note-se que, apesar de terem convencionado aquele prazo, acordaram na cláusula 3.ª que: “no ato da assinatura AA entrega à Agenda Alerta UP, Ld.ª, um cheque no valor de 860, 00 euros a título de sinal e princípio de pagamento; e que a restante parte do preço em dívida, ou seja, 84 140, 00 euros será entregue da seguinte forma: o ora Autor irá transferir para a ora Ré, mensalmente, até ao dia 8 de cada mês, a quantia de 430, 00 euros, a título de acréscimo de sinal que será subtraído ao valor global da respetiva venda”. Ou seja, as próprias partes previram o reforço mensal do valor do sinal no período subsequente à data de assinatura do contrato, pressupondo naturalmente que o contrato de compra e venda não seria de imediato celebrado, mantendo-se vigente para além daquela data.
Sobre o conceito técnico-jurídico de impossibilidade originária da prestação como causa de nulidade, a jurisprudência deste Supremo Tribunal tem exigido pressupostos muito estritos para que esteja preenchido. Segundo o acórdão de 04-12-2012 (Revista n.º 3444/07.3TBVLG.P1.S1), «A prestação é, legalmente, impossível quando a lei, de todo, inviabiliza a sua realização, sendo certo que um verdadeiro e absoluto impedimento legal só pode existir quando se trate da produção de quaisquer efeitos jurídicos e, portanto, de concluir, validamente, qualquer negócio jurídico». O Supremo Tribunal de Justiça, de 15-10-2013 (Revista n.º 4739/05.6TBAMD.L1.S1) considerou que «Não é nulo, por impossibilidade do objecto, o contrato-promessa de venda de imóvel que ainda não tenha licença de construção ou de utilização, que tenha por objecto fracção de imóvel não constituído em regime de propriedade horizontal, de parte de imóvel ainda não destacado da unidade predial originária, ou de lote de terreno ainda não legalizado. (…) A circunstância de não existir licença de utilização na data da celebração do contrato-promessa, não constitui impossibilidade legal originária impeditiva da realização do contrato definitivo, se nada indiciar que não seja possível a obtenção de tal licença». Por último, nos termos do Acórdão de 09-12-2014 (Revista n.º 5048/06.9TBGMR-A.G2.S1), «O negócio jurídico – transacção – é nulo se o seu objecto for fisicamente impossível (art. 280.º do CC), isto é, se envolver uma prestação impossível no domínio dos factos, o que não resulta, pela própria natureza das coisas, da circunstância de a área global do terreno dos exequentes/recorridos, ali aceite como limite à construção, pelo executado/recorrente, de muros na parte restante do terreno, não corresponder ao seu real limite físico».
Assim, do exposto resulta que o contrato dos autos não configura uma situação de impossibilidade originária da prestação.
Improcedem, assim, as conclusões do recorrente, não padecendo o contrato de qualquer nulidade.
3. Interpretação das cláusulas do contrato celebrado entre o autor e a ré e qualificação jurídica do mesmo
3.1. Alega o recorrente que da leitura do contrato se conclui que “o sinalagma, ou seja, a obrigação assumida pelas partes não era a transmissão da propriedade do imóvel, mas sim a cessão da posição contratual no contrato celebrado com terceiro”.
Na fundamentação do acórdão recorrido pode ler-se a este respeito que: “Olhando ao conteúdo convencionado e ao que resultou provado compreende-se o preenchimento dos elementos definidores do contrato promessa de compra e venda - a Ré prometeu vender ao Autor a fracção identificada, vinculando-se a outorgar futuramente o respectivo contrato de compra e venda, pelo preço convencionado e a entrega imediata de sinal/princípio de pagamento. Esta é a economia base da convenção. Por outro lado, dado que a Ré ainda não era proprietária do imóvel, coexiste à vontade na celebração de promessa de compra e venda de bem futuro- cláusula 1ª. Por esta via se obtendo de igual modo a satisfação do interesse do promitente-comprador em adquirir o bem prometido vender, e, o cumprimento da obrigação do promitente-vendedor (de bem futuro).”
Concluiu a Relação que “as referidas cláusulas, a nosso ver, fazem sentido no âmbito de um verdadeiro contrato-promessa de compra e venda de coisa futura, que a Ré enquanto promitentes vendedoras, implicitamente se obrigou a adquirir.”
Importa, aqui, interpretar o conteúdo das declarações da vontade exaradas no contrato escrito celebrado entre as partes, sendo certo que na factualidade provada não resulta qual a vontade real das mesmas quanto ao objeto do contrato.
Constitui jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal de Justiça que a interpretação do negócio jurídico com recurso aos critérios legalmente fixados nos artigos 236.º e seguintes do Código Civil, quando as instâncias não apuraram a vontade real dos contraentes, é matéria de direito, estando, por isso, sujeita ao controlo deste Supremo Tribunal (Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 07-11-2019, Revista n.º 314/11.4TCFUN.L2.S1; de 02-06-2020, Revista n.º 17583/15.3T8LSB.L1.S1; de 18-03-2021, Revista n.º 1542/19.0T8LRA.C1.S1); de 22-02-2018 (Revista n.º 329/14.0TBPSR-E.E1.S1).
Em síntese, nos termos dos Acórdãos deste Supremo Tribunal, de 22-11-2012 (proc. n.º 1758/10.4TBVLG-A.P1.S1) e de 14 de julho de 2020 (proc. nº 264/17.0T8FAF.G1.S1), «Constitui jurisprudência firme deste Supremo Tribunal, que não cabe nos seus poderes de cognição a fixação do sentido real da vontade das partes constituindo esta matéria de facto. Todavia, já se encontra dentro do âmbito de competência cognitiva deste Órgão, verificar se foram ou não observados os parâmetros legais condicionantes da função interpretativa da declaração negocial que é cometida ao Tribunal, na sua função jurisdicional de indagação, interpretação e aplicação das regras de direito».
3.2. Vejamos.
Resultou provado o seguinte:
a) “Com data de 17 de julho de 2014, os ora Autor e Ré assinaram o escrito que se mostra junto aos autos a fls. 13 e 14, denominado “Contrato-Promessa de Compra e Venda”.
b) Neste escrito, sob a sua “cláusula 1ª”, consta que a aqui Ré, “AGENDA ALERTA, UNIPESSOAL, LDA.” celebrou com BB e CC um “Contrato-Promessa de Compra e Venda” onde a “AGENDA ALERTA, UNIPESSOAL, LDA.” está referenciada como promitente compradora do imóvel objeto deste contrato e autorizada a indicar um terceiro para a outorga da escritura da fração autónoma destinada à habitação, designada pela letra A, correspondente à ... esquerda do prédio urbano sito na Av...., ..., freguesia da ..., concelho da ..., inscrita na matriz predial sob o art. ...54º e descrito na Conservatória do Registo Predial da ... sob o nº ...70 da mesma freguesia.
c) Deste mesmo escrito, sob a “cláusula 2ª” consta que, por este contrato ora em apreço, a “Agenda Alerta, Unipessoal, Lda.” promete indicar aos srs. BB e CC, AA, para a outorga da escritura da fração autónoma acima indicada, livre de ónus e encargos; e este último, promete aceitar essa indicação pelo preço de 85 000, 00 euros.”
De acordo com o disposto no artigo 236.º, n.º 1, do Código Civil, que consagra a chamada teoria da impressão do destinatário, “a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele”. Tratando-se de um negócio formal, nos termos do disposto no artigo 238.º, n.º 1, do Código Civil, “não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso.”
Conforme orientação defendida no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12-11-2019 (Proc. n.º 1494/17.0T8MMN-A.E1.S1), os critérios que presidem à interpretação da declaração negocial são os seguintes:
«(1) o contexto negocial em que a declaração aparece; (ii) eventuais antecedentes próximos ou elementos preparatórios; (iii) o ambiente ou contexto externo, de facto e jurídico, em que a declaração é emitida; (iv) a finalidade da declaração (ou negócio); (v) o tipo de negócio em causa, bem como os valores e interesses em jogo; (vi) a anterior e subsequente prática negocial entre declarante e declaratário, se existir; (vii) o modo como a declaração ou o negócio em que se integra vem sendo executado» (cf. Evaristo Mendes/Fernando Sá, “Anotação ao artigo 236.º”, in Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2014, p. 538)».
Segundo o acórdão de 14 de julho de 2020 (proc. nº 264/17.0T8FAF.G1.S1), «Nos negócios formais, além do contexto, da finalidade e dos usos, deve ainda o Supremo Tribunal de Justiça apreciar a exegese das cláusulas neles contidas, por ter particular peso o elemento literal ou objetivo de interpretação, na medida em que o sentido imputado à declaração deve ter um mínimo de correspondência no texto do respetivo documento, conforme exigido pelo artigo 238.º, n.º 1, do CC».
No caso dos autos, importa salientar, em primeiro lugar, que, no contrato escrito celebrado entre as partes, surge logo na sua cláusula 1.ª a indicação de um anterior contrato-promessa de compra e venda celebrado entre a ré e terceiros em que aquela está referenciada como promitente-compradora da fração autónoma que é objeto do contrato destes autos e autorizada a indicar um terceiro para a outorga da escritura definitiva de compra e venda desse imóvel.
Na cláusula seguinte do contrato, consta expressamente que a aqui ré promete indicar aos Srs. BB e CC, com quem celebrou o referido contrato-promessa de compra e venda indicado na cláusula 1.ª, o nome do aqui autor para a outorga da escritura de compra e venda da fração autónoma, livre de ónus e encargos; prometendo o aqui autor aceitar essa indicação pelo preço de 85 000, 00 euros.
Neste quadro factual e jurídico, a conclusão do acórdão recorrido de que a ré implicitamente se obrigou a adquirir o imóvel em causa, prometendo vendê-lo ao aqui autor, podendo o contrato dos autos ser classificado como um contrato de promessa de compra e venda de um bem futuro, porque ainda não existente na esfera jurídica do promitente vendedor, extravasa da factualidade que ficou assente. O sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, pode deduzir do texto das referidas cláusulas é precisamente o oposto do sentido preconizado pelo acórdão recorrido; ou seja, o sentido da declaração de vontade da aqui ré, exarada no texto do contrato, é o de que a mesma não se obrigou a adquirir o imóvel, mas apenas a indicar o nome do autor aos promitentes-vendedores para que aquele autor figurasse como comprador no futuro contrato de compra e venda. Este é o único sentido que tem correspondência com o texto do contrato e com o qual o qual o declaratário podia razoavelmente contar. Ainda que o interesse e a finalidade do autor ao celebrar o contrato seja o de adquirir a propriedade da fração autónoma, o modo de alcançar esse objetivo, de acordo com o teor do contrato, não seria através da transmissão direta pela ré do direito de propriedade sobre o bem, mas pela indicação feita por essa ré do nome do aqui autor para figurar no contrato definitivo de compra e venda, no âmbito de um outro contrato-promessa celebrado anteriormente e que é identificado expressamente na cláusula 1.ª do contrato que é objeto dos autos.
Julgamos, assim, que nesta parte assiste razão à recorrente quando afirma que o contrato dos autos não pode ser qualificado como um contrato-promessa de compra e venda, mas antes como um contrato-promessa de cessão da posição contratual.
4. Apreciação do incumprimento contratual da ré
4.1. Porém, não tem a recorrente razão que respeita às consequências que retira dessa qualificação jurídica, e que foram também as retiradas pelo tribunal de 1.ª instância.
Afirma a recorrente, na esteira da fundamentação da sentença proferida pela 1.ª instância, que: “tratando-se de um contrato de promessa de cessão de posição contratual, não foram alegados nem provados os factos constitutivos do possível incumprimento; aliás, o incumprimento da obrigação assumida não é sequer alegado pelo Autor, que erroneamente trata o contrato, ab initio como um contrato de promessa de compra e venda de imóvel; ou seja, o pedido formulado pelo Autor a título alternativo, não poderá nunca ser dado como procedente perante os factos dados como provados.”
Na sentença de 1.ª instância, a propósito do pedido alternativo de restituição do sinal em dobro, afirmou-se que “pelo facto de a Ré não ter celebrado com o Autor escritura de compra e venda da fração em causa, não incorreu em incumprimento do “contrato-promessa”, porque (conforme já afirmado acima e tal como revelado pelo elenco dos factos provados e não provados) não se mostra provado que a Ré tenha prometido ao Autor vender-lhe tal fração e que o Autor se tenha comprometido a comprá-la. Não se mostrando assente tal incumprimento de contrato promessa de compra e venda da fração autónoma, por parte da Ré (desde logo porque não logrou provar-se a celebração de tal contrato-promessa de compra e venda) inexiste fundamento para o pedido de condenação desta na restituição do sinal em dobro, com fundamento no incumprimento definitivo do contrato-promessa de compra e venda.”
4.2. Todavia, o tribunal não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (artigo 5.º, n.º 3, do CPC).
Resulta dos factos alegados na petição inicial que as partes celebraram um contrato escrito, consistindo a prestação a cargo da ré na emissão de uma declaração de vontade (indicar o nome do aqui autor na futura celebração do contrato de compra e venda da fração autónoma identificada no contrato).
Alega o autor que tal acordo não foi cumprido pela ré, pretendendo, como pedido alternativo, que a ré seja condenada no pagamento da indemnização correspondente ao valor do sinal em dobro pelo incumprimento daquele contrato.
Ao contrário do que é referido na sentença de 1ª instância, julgamos que os factos assentes nos autos permitem concluir pela viabilidade da pretensão do autor.
Consta dos autos a certidão de registo predial da fração autónoma e segundo o teor de tal documento, pela Apresentação ... de 04-05-2018, foi registada a aquisição do direito de propriedade sobre a fração, que é objeto do contrato destes autos, a favor da aqui ré, por compra realizada a BB e CC. Tais factos tornam evidente que a ré, ao adquirir para si a propriedade do imóvel em causa, incumpriu o contrato celebrado com o autor mediante o qual se obrigou a indicar o seu nome para celebrar o referido contrato definitivo de compra e venda.
Mais se provou que “o ora Autor recebeu, da Ré, carta registada com AR, através da qual a Ré o informa que se encontra marcada a escritura de compra e venda da fracção, para o dia 12 de julho de 2018, pelas 15 Horas, no Cartório Notarial de DD; e com menção de que se tal contrato definitivo não se realizar por culpa do ora Autor, se considera definitivamente incumprido o contrato-promessa da fração em referência. O Autor, acompanhado da sua esposa compareceu no dia, hora e local designado para a realização da escritura de compra e venda, mas, chegada a hora a que se alude na sobredita missiva, a Ré não compareceu, nem na hora por si designada, nem em hora posterior. A Ré não havia marcado tal escritura de compra e venda; e não veio a marcá-la posteriormente.”
Não sendo já possível à ré cumprir a prestação a que se obrigou – indicar o nome do autor para celebrar o contrato de compra e venda com os anteriores proprietários – uma vez que foi a própria ré a adquirir o direito de propriedade sobre o imóvel, poderia agora realizar a prestação que permitisse ao autor atingir a mesma finalidade pretendida com a celebração do contrato em disputa nos autos.
A partir da data mencionada no registo predial, 12-07-2018, a ré estaria em condições, como titular do direito de propriedade sobre o imóvel, de transmitir ao autor este direito real, garantindo, assim, o resultado do contrato de promessa, que celebrara com o autor, de indicação do nome deste para subscrever a escritura de compra e venda na qualidade de adquirente/comprador do imóvel.
Não o tendo feito, verifica-se um incumprimento contratual. Resta apenas apreciar se o mesmo se reconduz a simples mora ou se já se converteu em incumprimento definitivo.
4.3. Compulsado o teor do contrato escrito celebrado pelas partes, anexo à petição inicial, consta da respetiva cláusula 6.ª que: “no caso de a mora perdurar por mais de 30 dias desde a data em que foi marcada a respectiva escritura, converter-se-á em incumprimento definitivo do contrato-promessa de compra e venda sem necessidade de qualquer outra interpelação pelo primeiro outorgante como condição resolutiva convencional nos termos do art. 432.º do CC.”
Resulta, assim, do texto do contrato, uma cláusula resolutiva expressa que permite concluir, atento o período temporal já decorrido, que a mora da ré se converteu já em incumprimento definitivo, sem necessidade de qualquer interpelação admonitória.
Acresce que é ajustada a conclusão do acórdão recorrido de que “Em resumo, sendo a realização do contrato definitivo de compra e venda da casa possível, mantendo o Autor fiel outorgante o interesse na sua compra, existe incumprimento definitivo e culposo da Ré que injustificadamente faltou à escritura para a qual o convocou, deflui a manifestação inequívoca no sentido da recusa e não intenção cumprir a obrigação - cfr. pontos 9.,10. e 11. dos factos provados- em coerência com a sua defesa da simulação do contrato.”
Na verdade, a ré nunca manifestou interesse no cumprimento do contrato que celebrou com o autor, tendo nestes autos pugnado pela declaração de nulidade do mesmo, decorrendo claramente do seu comportamento uma firme vontade em não cumprir com a sua prestação.
Conforme se defendeu em acórdão deste Supremo Tribunal, de 17-11-2015 (Revista n.º 2545/10.5TVLSB.L1.S1), é de admitir “a resolução do contrato por recusa de cumprimento decorrente de um comportamento concludente, quando este se insere num quadro de comportamentos sintomáticos que, sem colocarem diretamente em causa o cumprimento, o tornam improvável e de molde a criar no declaratário a convicção que o devedor não realizará a prestação no prazo fixado ou no decurso de uma subsequente interpelação admonitória”.
A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem adotado esta posição como decorre dos seguintes acórdãos:
- Acórdão de 14-07-2021 - Revista n.º 82/20.9T8VFC.L1.S1: «Quando uma declaração de resolução deva qualificar-se como ilícita e representar-se como uma declaração definitiva e peremptória de recusa de cumprimento, a contraparte dispõe do direito potestativo de resolução do contrato cuja cumprimento tenha sido recusado».
- Acórdão de 06-01-2020 - Revista n.º 681/14.8TBOER.L1.S2: «Havendo por parte dos promitentes vendedores uma recusa de cumprimento que os constituiu em incumprimento definitivo, e não sendo, por isso, a não concretização do contrato de compra e venda devida a não estar demonstrado o pagamento do imposto por ela devido, a não celebração da escritura é imputável aos promitentes vendedores».
- Acórdão de 18-02-2016 - Revista n.º 136/12.5TBMSF.G1.S1: «I - O inadimplemento do contrato-promessa que derive da recusa de celebração do contrato prometido ou mesmo de outras causas, encontra-se submetido ao regime geral do não cumprimento das obrigações. II - Só o incumprimento definitivo justifica a resolução do contrato e a exigência do sinal em dobro ou a perda do sinal passado. III - A situação de mora ou retardamento da prestação, ainda possível e com interesse para o credor, pode evoluir para uma situação de incumprimento definitivo nos casos referidos no art. 808.º, n.º 1, do CC, tendo tal situação de ser apreciada objectivamente. IV - Não se provando uma situação clara e inequívoca de recusa de cumprimento por parte dos réus promitentes-vendedores, mas tão-só que estes não compareceram na escritura pública, e sendo insuficiente a matéria de facto para concluir pela perda do interesse dos autores promitentes-compradores, a quem cabia fazer essa demonstração (art. 342.º, n.º 1, do CC), é de julgar improcedente o pedido de resolução do contrato-promessa de compra e venda de imóvel».
- Acórdão de 29-11-2016 - Revista n.º 7825/11.0TBCSC.L1.S1: «X - O incumprimento definitivo do contrato-promessa caracteriza-se por, pelo menos, uma de quatro situações: recusa de cumprimento (“repudiation of a contract”; “riffuto di adimpieri”); termo essencial ou prazo fatal; cláusula resolutiva expressa, a impor irretractibilidade; perda do interesse na prestação. XI - Para relevar, a recusa de cumprimento (“antecipatory breach of a contract”) tem de traduzir-se numa declaração absoluta, peremptória e inequívoca do propósito de não outorgar o contrato prometido, sem deixar que sobre essa vontade e propósito subsistam quaisquer dúvidas».
- Acórdão de 05-02-2015 - Revista n.º 1952/08.8TBFIG.C1.S1: «Na falta de convenção das partes, a resolução de um contrato de fornecimento pressupõe a verificação de uma situação de incumprimento definitivo decorrente da falta de interesse objectivo na prestação, do decurso de um prazo inderrogável, da transformação de uma situação de mora em incumprimento definitivo ou de uma actuação que traduza uma antecipada recusa de cumprimento».
Concluímos, portanto, pela verificação de um incumprimento definitivo, por parte da aqui ré, da prestação a que estava vinculada no contrato-promessa em causa nos autos.
5. Qualificação da prestação pecuniária paga pelo autor à ré como “sinal”
A recorrente alega também que que “dos factos elencados como provados (Ponto 13.) resulta que o “sinal” mensal é a contrapartida acordada pelas partes, do facto de o Autor habitar o imóvel até hoje; derrogando assim a presunção legal de que todos os valores dados pagos em sede de contrato promessa de compra e venda devem ser considerados sinal e princípio de pagamento”.
Conclui a recorrente que “resultando provado também que, não sendo um sinal, mas sim a contrapartida pelo uso e habitação, não é passível de devolução em dobro nos termos do artº 442º/2 do CC, nos termos peticionados”.
A qualificação das quantias monetárias entregues pelo autor à ré como “sinal” depende da interpretação da vontade das partes (cfr. Acórdão de 13-09-2018, Revista n.º 1937/13.2TBPVZ.P1.S1). No presente caso, não sendo o contrato-promessa celebrado pelas partes um contrato-promessa de compra e venda, como acima referimos, não se aplica a presunção prevista no artigo 441.º do Código Civil.
Aplica-se, assim, o disposto no artigo 440.º do Código Civil, segundo o qual: “se ao celebrar-se o contrato ou em momento posterior, um dos contraentes entregar ao outro coisa que coincida, no todo ou em parte, com a prestação a que fica adstrito, é a entrega havida como antecipação total ou parcial do cumprimento, salvo se as partes quiserem atribuir à coisa entregue o carácter de sinal.”
A recorrente alega que as quantias monetárias entregues pelo autor à ré consistiram na contrapartida acordada pelas partes pelo facto de o autor habitar o imóvel até hoje. Provou-se efetivamente que “Autor e Ré, pelo menos, acordaram que o ora Autor receberia da Ré, para sua habitação, a fração autónoma acima identificada, com a contrapartida do pagamento da quantia de 860, 00 euros na data desse acordo, em julho de 2014; e do pagamento subsequente da quantia mensal de 430, 00 euros.”
No entanto, no texto do contrato celebrado entre as partes, em especial da cláusula 3.ª consta expressamente que as referidas quantias monetárias assumem também a natureza de “sinal”. Resultou provado que “da cláusula 3ª deste mesmo escrito consta que, no ato da assinatura deste contrato, o ora Autor entrega à ora Ré um cheque no valor de 860, 00 euros a título de sinal e princípio de pagamento; e que a restante parte do preço em dívida, ou seja, 84 140, 00 euros será entregue da seguinte forma: o ora Autor irá transferir para a ora Ré, mensalmente, até ao dia 8 de cada mês, a quantia de 430, 00 euros, a título de acréscimo de sinal que será subtraído ao valor global da respetiva venda.”
Assim, recorrendo aos critérios legais de interpretação da vontade das partes previstos nos artigos 236.º e seguintes do Código Civil, um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, deduziria do teor da referida cláusula, em conjugação com os demais factos provados, que as quantias monetárias entregues pelo autor à ré, além de constituírem a contrapartida da tradição da coisa, também visaram garantir a realização do contrato prometido, tendo por isso natureza confirmatória, “(…) dando para o exterior uma prova ou sinal da celebração e existência de tal contrato e garantir ou reformar o vínculo negocial e o cumprimento das obrigações assumidas, sendo inclusive princípio de cumprimento (…)” (cfr. Calvão da Silva, Sinal e Contrato-Promessa, 8.ª ed., Almedina, 2007, p. 96).
O vocábulo “sinal” utilizado num contrato-promessa tem o significado comum de se referir a dinheiro ou valores que o comprador dá ao vendedor, para segurança do contrato.
Sendo que num contrato-promessa com tradição da coisa, é normal que o sinal entregue, além de ter como finalidade a garantia de cumprimento do contrato, também se destine a remunerar a imediata disponibilidade do gozo e fruição da coisa.
Julgamos, assim, que improcede a argumentação do recorrente, não merecendo reparo o acórdão recorrido na parte em que qualificou as quantias monetárias entregues como sinal nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 442.º do Código Civil.
6. Abuso do direito do autor de exigir a restituição do sinal em dobro
6.1. Por último, a recorrente alega que “o pedido alternativo, além de contraditório constitui em si um abuso de direito, porquanto da condenação neste pedido resulta uma vantagem ilegítima para o Autor que ficou a usufruir do imóvel durante 6 anos pagando um montante que ora lhe será restituído em dobro”.
Mas não lhe assiste razão.
O instituto do abuso do direito, regulado no artigo 334.º do Código Civil, foi pensado, desde a sua origem, para obstar a injustiças clamorosas ou a um resultado que ferisse o sentimento moral dominante.
A doutrina, com a finalidade de a aplicação do abuso do direito não se tornar arbitrária e subjetiva, tem densificado os requisitos do instituto, sendo entendimento doutrinal e jurisprudencial que «A aplicação do instituto do abuso do direito tem uma natureza subsidiária, só a ele sendo lícito recorrer na falta de uma norma jurídica que resolva, de forma adequada, a questão em causa» (cfr. Acórdãos deste Supremo Tribunal, de 16-11-2021 – proc. n.º 21827/17.9T8SNT-A.L1.L1.S1) e que o recurso à figura se faz, não através da invocação de sentimentos genéricos de justiça, mas por referência a modelos sedimentados na jurisprudência e aprofundados pela doutrina, cujos pressupostos têm de ser rigorosamente comprovados (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12-01-2021 (proc. n.º 2689/19.8T8GMR-B.G1.S1), onde se sumariou que «O abuso de direito não significa uma desaplicação de normas com base numa remissão genérica para sentimentos de justiça. Os tribunais exigem a prova rigorosa dos seus elementos constitutivos e a ponderação dos valores sistemáticos em jogo, de acordo com modelos experimentados ao longo da história pelo labor da jurisprudência».
Ora, o exercício do direito a exigir a restituição do sinal em dobro decorre da lei, mais concretamente do disposto no n.º 2 do artigo 442.º do Código Civil, e não do convencionado entre as partes.
6.2. A recorrente funda o alegado abuso do direito numa pretensa desproporção entre o sacrifício que lhe é imposto e a vantagem obtida pelo autor recorrido. Porém, a obtenção desta vantagem pelo autor, equivalente ao dobro do sinal prestado, era facilmente evitável por parte da ré recorrente, bastando-lhe cumprir o contrato-promessa ao invés de se recusar de forma persistente e reiterada ao seu cumprimento.
O regime indemnizatório gravoso previsto no artigo 442.º, n.º 2, 2.ª parte tem um caráter geral e aplica-se a todos os contratos promessa e não apenas aos contratos de promessa de compra e venda (ou outros contratos onerosos) de imóvel para habitação regulados no n.º 3 do artigo 410.º (cfr. Calvão da Silva, Sinal e Contrato Promessa, ob. cit., p. 105). A finalidade do regime é coercitiva e sancionatória, pretendendo o legislador reforçar a obrigação e dissuadir as partes do incumprimento. O sinal visa precisamente garantir ou reformar o vínculo negocial e o cumprimento das obrigações assumidas, pelo que o regime legal do n.º 2 do artigo 442.º, ao impor a restituição do sinal em dobro, mais não faz do que explicitar o valor ético jurídico do cumprimento pontual das obrigações e da tutela da confiança, refletindo princípios fundamentais do direito dos contratos e valorações sociais e económicas que nada têm de abusivo e que, de todo o modo, estão expressas na lei. Ademais, tendo havido tradição da coisa e tendo o autor cumprido as prestações a que estava vinculado, maior foi a confiança por ele depositada na aquisição do direito de propriedade sobre o imóvel, que gozava e fruía desde julho de 2014, confiança essa que a lei quis especialmente proteger quando está em causa um imóvel para habitação que o promitente adquirente terá de abandonar, em virtude do incumprimento definitivo da contraparte do contrato, a ré, agora recorrente. Recorde-se que, apesar de não estarmos perante um contrato promessa de compra e venda para habitação, mas perante um contrato promessa em que a ré, cedendo a sua posição contratual de promitente compradora ao autor, prometeu indicar o seu nome para que este subscrevesse a escritura de compra e venda, como comprador, e se tornasse proprietário do imóvel que a recorrente tinha prometido comprar. Ou seja, visou-se com esta fórmula contratual obter o mesmo resultado – aquisição da propriedade – que um contrato promessa de compra e venda visa prosseguir.
Acresce que, resultando o contrato-promessa celebrado entre as partes do exercício da sua autonomia privada, e não se vislumbrando que se quisesse alcançar um resultado que, à luz da inspiração dos valores jurídicos fundamentais, fosse de considerar ilegítimo, não constitui o mesmo um contrato leonino (cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 08-10-2020, Revista n.º 767/19.2T8PVZ.S1) ou desequilibrado para as partes. Não se pode esquecer que estamos perante um contrato entre uma pessoa coletiva, a recorrente, especializada na atividade lucrativa da compra e venda de imóveis, e um cidadão comum que visa com o contrato satisfazer uma necessidade fundamental de habitação e que por isso não está, nas situações sociais típicas como a destes autos, em condições de discutir o conteúdo dos contratos que assina, formulados unilateralmente pela empresa que disponibiliza o acesso ao gozo do imóvel.
Não se vislumbra, assim, qualquer exercício abusivo por parte do autor ao exigir a restituição do sinal em dobro, nos termos da lei (artigo 442.º, n.º 2, do Código Civil), pelo que também aqui improcede a argumentação da recorrente.
6.3. Assim sendo, nega-se a revista e confirma-se o acórdão recorrido, embora com fundamento distinto.
7. Anexa-se sumário elaborado de acordo com o artigo 663.º, n.º 7, do CPC:
I – O AUJ n.º 9/2015 de 14-05-2015 (processo n.º 1520/04.3TBPBL.C1.S1-A) fixou jurisprudência no seguinte sentido: “Se o autor não formula na petição inicial, nem em ulterior ampliação, pedido de juros de mora, o tribunal não pode condenar o réu no pagamento desses juros”.
II – Todavia, no caso dos autos não houve qualquer condenação para além do pedido suscetível de inquinar o acórdão da Relação de nulidade, nos termos da alínea e) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, na medida em que no pedido alternativo, em que o autor pede a restituição do dobro do sinal, requereu que este montante fosse acrescido de juros.
III– Do documento contratual junto aos autos resulta que o autor e a ré celebraram um contrato de cessão da posição contratual, inserido num contrato de promessa de compra e venda, em que a ré figurava como promitente compradora de um imóvel. Nesse contrato, a ré assumiu a obrigação perante o autor de indicar o nome deste para subscrever escritura pública na qualidade de adquirente ou comprador do imóvel prometido vender à ré.
IV – Não tendo a ré cumprido essa obrigação, e tendo recusado, de forma inequívoca e reiterada, transferir o direito de propriedade para o autor depois de o ter adquirido pela celebração do contrato definitivo com os proprietários, verificaram-se os pressupostos do incumprimento definitivo.
V – Equipara-se ao incumprimento definitivo da prestação, possível e com interesse para o credor, a manifestação expressa ou tácita por parte do devedor no sentido de que não cumprirá a obrigação, o que se infere, designadamente da falta injustificada da Ré à outorga da escritura pública.
VI – Os pagamentos feitos pelo autor à ré têm a natureza de sinal, tal como expressamente estipulado na cláusula 3.ª do texto do contrato, na qual consta que, “(…) no ato da assinatura deste contrato, o ora Autor entrega à ora Ré um cheque no valor de 860, 00 euros a título de sinal e princípio de pagamento; e que a restante parte do preço em dívida, ou seja, 84 140, 00 euros será entregue da seguinte forma: o ora Autor irá transferir para a ora Ré, mensalmente, até ao dia 8 de cada mês, a quantia de 430, 00 euros, a título de acréscimo de sinal que será subtraído ao valor global da respetiva venda”.
VII – Em consequência, aplica-se ao caso dos autos o regime do artigo 442.º, n.º 2 do Código Civil, que confere ao promitente adquirente fiel o direito de exigir o sinal em dobro, não constituindo esta solução qualquer abuso do direito, nos termos do artigo 334.º do Código Civil.
III – Decisão
Pelo exposto, decide-se na 1.ª Secção deste Supremo Tribunal de Justiça, negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.
Custas pela recorrente.
Lisboa, 18 de janeiro de 2022
Maria Clara Sottomayor (Relatora)
Pedro de Lima Gonçalves (1.º Adjunto)
Fernando Samões (2.º Adjunto)