CRIME DE CONDUÇÃO PERIGOSA DE VEÍCULO RODOVIÁRIO
ACÇÃO TÍPICA
ELEMENTO SUBJECTIVO
Sumário

I - A ação típica do crime de condução perigosa de veículo rodoviário traduz-se na condução perigosa de veículo, que se verifica sempre que o condutor:
- não se encontrar em condições de dirigir o veículo com segurança, o que ocorre nas circunstâncias, taxativas, de o agente se “encontrar em estado de embriaguez ou sob influência de álcool, estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo” ou em virtude de o agente se encontrar com “deficiência física ou psíquica ou fadiga excessiva”; ou
- violar grosseiramente as regras estradais, ultrapassando as fronteiras do risco permitido rodoviário, entendendo-se por “violação grosseira das regras de circulação rodoviária” a “violação de elementares deveres de condução, suscetível de traduzir carácter particularmente perigoso do comportamento para a segurança do tráfego e para os bens jurídicos pessoais envolvidos”.
II - Não basta, pois, a violação das regras da circulação rodoviária, exigindo-se que se trate de uma violação grosseira dessas mesmas regras.
III - Neste tipo de crime é essencial a existência de um nexo de causalidade entre as causas de condução perigosa e a produção de um perigo para a vida, integridade física ou bens patrimoniais de outrem.
IV – Trata-se de crime de perigo concreto na medida em que da conduta do agente terá de resultar um perigo real e efetivo para a vida, integridade física ou bens patrimoniais de outrem, sendo que a situação de perigo, em si, é elemento do tipo legal de crime, apresentando-se como o resultado típico da violação da norma.
V – O facto típico deve-se ter por consumado logo que se verifique o risco (efetivo) de lesão de qualquer dos bens jurídicos que se visam proteger, desde que esse risco advenha de uma condução perigosa de veículo rodoviário (em via pública ou equiparada).
VI - Ao nível do tipo subjetivo, o art. 291.º do CP tem três números, os quais correspondem a três situações diferentes relacionadas com o elemento subjetivo da infração:
- no n.º 1, o comportamento do agente e a criação do perigo são intencionais, bastando-se com o dolo eventual;
- no n.º 2, a conduta é dolosa, mas o dolo do agente não compreende o perigo concreto criado, afirmando-se quanto a este, negligência do condutor;
- o n.º 3, abarca as situações de conduta negligente do agente e de criação negligente do perigo.

Texto Integral

Processo: 604/20.5GBAGD
Recurso penal

Acordam, em conferência, na Segunda Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

1. RELATÓRIO
Após realização da audiência de julgamento no Processo 604/20.5GBAGD do Juízo Local Criminal de Águeda, foi em 16 de junho de 2021 proferida sentença, e na mesma data depositada, na qual – além do mais - se decidiu:
a) julgar a acusação pública procedente por provada e, consequentemente, condenar o arguido B..., como autor material de:
- um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelo art. 291º, n.º 1, al. b), do C.P. na pena de 300 (trezentos) dias de multa, à taxa diária de €5,50 (cinco euros e cinquenta cêntimos), o que perfaz o quantitativo global de € 1.650,00 (mil seiscentos e cinquenta) euros, acrescida da pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor pelo período de 10 (dez) meses, nos termos do art.69º, n.º 1, al. a), do CP.

Inconformado com esta decisão, dela interpôs recurso o arguido, para este Tribunal da Relação do Porto, pugnando pela sua revogação e consequente absolvição do recorrente, com os fundamentos descritos na respetiva motivação e contidos nas seguintes “conclusões” (…)

*
Por despacho foi o recurso regularmente admitido.

Respondeu o Ministério Público junto do tribunal a quo às motivações de recurso vindas de aludir, entendendo que deve ser julgado totalmente improcedente, mantendo-se integralmente a decisão proferida.

Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no qual, acompanhando os considerandos constantes desta resposta, pugna pela improcedência do recurso, confirmando-se a decisão recorrida.

Na sequência da notificação a que se refere o art. 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, o arguido nada disse.

Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
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2. FUNDAMENTAÇÃO
Sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada que se delimita o objeto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior - artigo 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal) [1].
O essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões, excetuadas as questões de conhecimento oficioso” – cfr. Ac. do STJ, de 15.04.2010, in http://www.dgsi.pt. [2].
Posto isto,
as questões a conhecer oficiosamente e/ou submetidas ao conhecimento deste tribunal são:
1ª Do erro de julgamento ao erro de direito: a) insuficiência para a decisão da matéria de facto provada
2ª Da violação dos princípios da livre apreciação da prova e in dubio pro reo: a discordância do arguido relativamente à sentença recorrida quanto à matéria de facto dada como provada centra-se nos pontos 2, 3, 4, 5, 6, 8, 9 e 10, a qual – no entender do recorrente – deve considerar-se como não provada.
3ª Da medida concreta da pena principal e acessória

Com relevo para a resolução das questões objeto do recurso importa recordar
a fundamentação de facto da decisão recorrida, que é a seguinte (transcrição):
Factos provados
1. No dia 07 de Setembro de 2020, cerca das 02H20, na Estação de Serviço da “C…”, sita em …, o arguido iniciou a marcha do veículo automóvel, ligeiro de passageiros, com a matrícula ..-..-EX, levava consigo D…, que estava sentada ao seu lado direito.
2. O arguido, ao avistar os Militares da GNR, que estavam devidamente uniformizados, no exercício das suas funções, porque não queria ser intercetado, apagou as luzes do seu veículo, acelerou a respetiva marcha do mesmo, e entrou na via pública, sem parar como lhe era exigido, pois ali encontrava-se o sinal vertical de paragem obrigatória -“STOP”.
3. Os Militares da GNR foram no seu encalço, no carro patrulha, através dos sinais sonoros e luminosos, foi-lhe ordenado que imobilizasse aquele veículo automóvel, mas o arguido não acatou aquela ordem, e seguiu a marcha em velocidade não concretamente apurada, mas excessiva para aquela via.
4. O arguido seguiu cerca de dois quilómetros, circulando na Estrada Nacional Número . , com as luzes do veículo apagadas, impregnando naquele veículo uma velocidade superior a 120 Km/hora, quando naquela via a velocidade máxima se cifra em 50 Km/h.
5. O arguido não reduziu a velocidade nem imobilizou o veículo, como se lhe impunha, ao aproximar-se do semáforo com o sinal vermelho, seguiu a sua marcha, desrespeitando a obrigação de paragem imposta por aquele sinal, sendo que um veículo que estava no cruzamento, do lado direito, teve que parar para não embater no carro do arguido.
6. O arguido impregnando velocidade excessiva para aquela via, circulou fora dos limites da faixa de rodagem, ao chegar à rotunda da …, em …, Águeda, próximo do supermercado “E…”, não efetuou qualquer sinalização de mudança de direção, perdeu o controlo do veículo e embateu no lancil à sua direita, capotando o veículo na vala, ao quilómetro 230,200 da EN..
7. O arguido sofreu ferimentos e recebeu tratamento médico-hospitalar.
8. Com a supra descrita condução, o arguido violou, de forma grosseira, regras estradais, tal como supra descritas, com isso criou perigo para os veículos que com ele se cruzaram, e que foram forçados a imobilizarem-se, sob pena de serem embatidos pelo arguido, sob pena de lhes provocar estragos alheios de valor elevado, bem como colocou em perigo a integridade física e mesmo a vida da ocupante, que com o arguido seguia naquele veículo automóvel.
9. O arguido agiu de modo deliberado, livre e consciente.
10. O arguido sabia da natureza reprovável e proibida da sua conduta.
11. O arguido encontra-se desempregado desde fevereiro de 2021.
12. Não recebe qualquer subsídio de desemprego.
13. Mora com um irmão mais velho, na casa que era dos pais.
14. Tem sido o irmão mais velho a ajudar o arguido nas despesas diárias.
15. O arguido estudou até ao 6º ano de escolaridade.
16. Tem duas filhas, de 13 e 11 anos de idade, a morar com a mãe, a quem o arguido paga de pensão de alimentos a quantia mensal de €108.00.
17. O arguido tem os seguintes antecedentes criminais:
- por factos praticados em 12.11.2008 foi condenado pelo crime de condução sem habilitação legal na pena de 85 dias de multa, por decisão transitada em julgado em 18.5.2009;
- por factos praticados em 16.5.2010 foi condenado pelo crime de condução sem habilitação legal na pena de 110 dias de multa, por decisão transitada em julgado em 24.10.2011;
- por factos praticados em 17.10.2017 foi condenado pelo crime de falsidade de testemunho, perícia, interpretação ou tradução na pena de 350 dias de multa, por decisão transitada em julgado em 15.6.2020.
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Foram estes os factos provados, mais nenhum outro se provou com relevância para a decisão da causa, nomeadamente.
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Os demais factos, não especificamente dados como provados ou não provados estão em oposição ou constituem a negação de outros dados como provados ou não provados, ou contém expressões conclusivas ou de direito, ou são irrelevantes para a decisão da causa.
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A convicção do tribunal para dar tais factos como provados alicerçou-se na análise global da prova produzida em audiência, nomeadamente nas declarações do arguido, o qual confirmou a condução, o veículo e o motivo pelo qual não parou no STOP à saída das bombas de gasolina (por o carro não ter inspecção nem seguro e ter visto a GNR nas bombas), bem como a ida à valeta e o despiste.
Quanto à forma como conduziu, aos locais por onde circulou, à não paragem no sinal vermelho, à circunstância de seguir com as luzes do veículo desligadas, a velocidade a que circulava, foram devidamente analisados e sopesados os depoimentos das testemunhas F... e G..., os dois militares da GNR que seguiram no encalço do arguido e que descreveram, de forma coerente, consentânea e objectiva que lhe fizeram sinal de paragem nas bombas de gasolina e que o mesmo logo arrancou, que à saída das bombas não parou no sinal STOP, que o seguiram pela N. e que o arguido desligou as luzes do veículo, que o arguido circulava a alta velocidade porquanto o carro patrulha seguia a 170Km/h e ainda assim não o conseguiram alcançar, que no cruzamento onde existem semáforos vinha um carro do lado direito (do lado da localidade de …) e que o mesmo teve que parar, apesar de ter sinal verde, porque o arguido não parou no sinal vermelho e que, depois, o arguido na rotunda, não conseguiu contorná-la, tendo-se vindo a despistar na valeta.
Além destes dois depoimentos, foi ainda valorado positivamente o depoimento da testemunha D..., ocupante da viatura e que confirmou que o arguido mal viu os militares da GNR nas bombas de gasolina, logo começou a acelerar, que seguiu sempre muito depressa, sem nunca travar ou abrandar, sem luzes ligadas, que a testemunha se agarrou ao cinto e seguiu com muito medo, pedindo ao arguido para parar (sem que o mesmo tenha anuído ao seu pedido) até que se despistaram. Referiu ainda já não ter a certeza que passaram por algum sinal vermelho mas logo esclareceu que, se tivessem passado por um, que o arguido não pararia dada a velocidade a que seguia e o seu desígnio, que era fugir aos militares da GNR. Esta testemunha apresentou um discurso claro e esclarecedor, sendo notório do mesmo, o perigo em que a mesma esteve e o medo que sentiu, dada a condução desajustada que o arguido fez.
Ou seja, da conjugação destes depoimentos, não resultou qualquer dúvida ao Tribunal em dar por provados os factos constantes da acusação.
Valorado ainda o CRC do arguido de fls. 69 e ss..
Quanto às condições pessoais e familiares do arguido, valoradas as suas próprias declarações”.
***
Conhecendo as questões suscitadas, cumpre decidir.

1ª Do erro de julgamento ao erro de direito sobre a matéria de facto
a) insuficiência para a decisão da matéria de facto provada
(…)
Do Crime rodoviário: condução perigosa
O arguido foi condenado, tal qual vinha acusado, pela prática de um crime de condução perigosa de veiculo rodoviário, p.p. pelo art.291º nº 1 al. b), do Código Penal, no qual incorre: “Quem conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, violando grosseiramente as regras da circulação rodoviária relativas à prioridade, à obrigação de parar, à ultrapassagem, à mudança de direcção, à passagem de peões, à inversão do sentido de marcha em auto-estradas ou em estradas fora de povoações, à marcha atrás em auto-estradas ou em estradas fora de povoações, ao limite de velocidade ou à obrigatoriedade de circular na faixa de rodagem da direita, e criar deste modo perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado.
Tal crime é punível com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
A ação típica do crime de condução perigosa de veículo rodoviário é, como o próprio nome indica, a condução perigosa que ocorre sempre que o condutor:
- não se encontra em condições de dirigir o veículo com segurança, o que ocorre nas circunstâncias, taxativas, de o agente se “encontrar em estado de embriaguez ou sob influência de álcool, estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo” ou em virtude de o agente se encontrar com “deficiência física ou psíquica ou fadiga excessiva”; ou
- quando viola grosseiramente as regras estradais, ultrapassando as fronteiras do risco permitido rodoviário, entendendo-se por “violação grosseira das regras de circulação rodoviária” a “violação de elementares deveres de condução, suscetível de traduzir carácter particularmente perigoso do comportamento para a segurança do tráfego e para os bens jurídicos pessoais envolvidos” [3]. Para que ocorra a previsão deste preceito não basta que se violem regras da circulação rodoviária, sendo necessário que se trate de uma violação grosseira dessas mesmas regras (exigência que se mantém na atual redação da al. b) do n.º 1 do cit. art.291º, que, no entanto, agora, especifica as regras da circulação rodoviária a cuja violação grosseira se liga tipicamente o perigo a que se refere a parte final do normativo.
Neste tipo de crime é essencial a existência de um nexo de causalidade entre as causas de condução perigosa e a produção de um perigo para a vida, integridade física ou bens patrimoniais de outrem.
Mas, é sabido que o crime de condução perigosa de veículo rodoviário p. e p. pelo art.291º, do C. Penal é um crime de perigo concreto na medida em que da conduta do agente terá de resultar um perigo real e efetivo para a vida, integridade física ou bens patrimoniais de outrem ([4]).
O crime de perigo concreto caracteriza-se pelo facto de a situação de perigo ser em si um elemento do tipo legal de crime, apresentando-se como o resultado típico da violação da norma.
Tal facto típico deve-se ter por consumado, pois, logo que se verifique o risco (efetivo) de lesão de qualquer dos bens jurídicos que se visam proteger, desde que esse risco advenha de uma condução de veículo rodoviário (em via pública ou equiparada) ([5]).
Mas o que tem de ser concreto é o perigo (maior ou menor) de tal ocorrer, não sendo necessário que se verifique efetivamente a lesão ou sequer contacto físico, bastando o perigo de aquela ocorrer ([6]).
Daí que ao preenchimento do tipo base seja irrelevante saber se ocorreram lesões efetivas ([7]), o que contanto que essa possibilidade e consequente lesão se mostre iminente para o corpo e saúde de outrem, como aqui ocorreu, única circunstância também exigível ao preenchimento do elemento subjetivo do crime de condução perigosa de veículo rodoviário.
Ao nível do tipo subjetivo, o art. 291.º do CP tem três números, os quais correspondem a três situações relacionadas com o elemento subjetivo da infração:
- no n.º 1, o comportamento do agente e a criação do perigo são intencionais, bastando-se com o dolo eventual;
- no n.º 2, a conduta é dolosa, mas o dolo do agente não compreende o perigo concreto criado, afirmando-se quanto a este, negligência do condutor;
- o n.º 3, abarca as situações de conduta negligente do agente e de criação negligente do perigo.
Retomando o caso dos autos sobressai desde logo a total falta de concretização do dito “valor elevado” do veiculo [8], aliás, não caracterizado minimamente, que foi forçado a parar para não embater no carro do arguido.
Insuficiência do elemento objetivo típico que vinha da acusação e que importa ao preenchimento do segmento típico atinente ao perigo para bens patrimoniais alheios de valor elevado.
Contudo, da simples leitura dos factos provados resulta claro que, por força da violação das regras estradais relativas à prioridade, à obrigação de parar, à mudança de direção e ao limite de velocidade, o arguido criou uma situação de perigo real e efetivo para a vida e a integridade física de outrem, no caso D…, ocupante da viatura que o arguido conduzia e cujo controlo perdeu, vindo a embater num lancil e capotar na vala ([9]).
Perigo esse que no caso se traduziu numa situação de risco proibido (num aumento intolerável do risco permitido inerente à própria circulação rodoviária) de produção do resultado (previsível e não uma ocorrência fortuita) de ofensa à vida e/ou integridade física de outrem.
Essa possibilidade séria (perigo real e efetivo) de causar lesões no corpo e saúde de outros, concretização do aludido risco (proibido) criado pela atuação do arguido, é evidenciada no caso concreto.
Tanto mais que do quadro factual descrito é de aferir que, na sequência da conduta do arguido e por força dela, ocorreu um sinistro rodoviário ([10]) .
Perante este quadro o arguido criou uma situação de perigo real e efetivo para a vida e/ou integridade física de outrem.
A possibilidade e consequente lesão no corpo e saúde de outrem foi iminente ([11]), circunstância também exigível ao preenchimento do elemento subjetivo do crime de condução perigosa de veículo rodoviário.
Contudo, não de somenos importância, interessava ao preenchimento do tipo de condução perigosa de veiculo rodoviário, p.p. nos arts. 291º nº 1 al. a), do Código Penal, a alegação na acusação e a prova em julgamento de que o arguido tinha vontade e perfeita consciência de estar conduzindo o veículo na via pública, nas sobreditas condições, em consequência do que provocou aquele perigo concreto, o que também quis e representou.
Como se escreve na sentença recorrida, no que concerne ao tipo subjetivo de ilícito penal, na modalidade prevista no n.º 1 do artigo, exige-se o dolo relativamente a todos os elementos do tipo legal objetivo, incluindo, assim, a criação de perigo para os bens jurídicos indicados na norma, sendo suficiente o dolo eventual (artigo 14º, do C.P.) bastando portanto que o agente tenha a consciência de que da sua conduta é possível decorrer perigo para outras pessoas ou para bens alheios de valor elevado e se tenha conformado com essa situação.
Ora, no caso dos autos, vista a decisão recorrida, falta indubitavelmente no elenco dos factos provados a concretização desse elemento subjetivo (dolo).
Vista a acusação e a sentença não se lê em parte alguma qualquer referência factual ao elemento cognitivo e volitivo do arguido sobre o dolo de ação e o dolo de perigo.
Constatando-se, assim, que tal insuficiência vinha da acusação pública, a introdução na sentença desse elemento factual era proibida, já que não autorizada pelos sujeitos processuais.
Com efeito, a introdução na sentença desse facto, ex novo, relativo ao preenchimento do tipo subjetivo do arguido constituiria uma inadmissível alteração substancial, não consentida nos termos e para efeitos do art.359º, do C. Proc. Penal.
Consabidamente, o Acórdão Uniformizador (STJ) nº 1/2015 veio impedir o recurso ao mecanismo do art.358º, nº 1 do C. Processo Penal para integrar a deficiente descrição, por omissão narrativa, do tipo subjetivo do crime imputado[12].
O aditamento em audiência de julgamento dos elementos subjetivos do tipo não se traduz numa alteração inócua, antes daria plena satisfação à necessidade ‘prática’ de remediar uma deficiente descrição (por omissão de elemento essencial) do tipo subjetivo de ilícito levada ao despacho de pronúncia.
Ora, o reenvio do processo com fundamento na insuficiência da matéria de facto provada para a decisão não pode significar uma alteração substancial da acusação imposta pelo tribunal de recurso. Os factos a que se amplia a investigação, em sede de reenvio por força daquele vício da matéria de facto, não podem conduzir à subversão das regras prevista no art.359º, do Código Processo Penal, atinentes à vinculação temática do objeto do processo [13].
Daí que o vício de insuficiência para a decisão apenas ocorra quando o Tribunal omite pronúncia sobre a matéria de facto objeto do processo, omitindo o apuramento de factos que podia e devia investigar.
Não será esse o caso se o tribunal a quo estava impedido, por força da alteração substancial, de investigar e se pronunciar sobre factos não contidos na acusação e/ou na pronúncia.
A sentença recorrida não enferma do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, se for esgotado o objeto do processo definido na acusação. Se é certo ter a sentença reconhecido a falta de invocação de um facto, não se pode dizer que incorreu no vício da alínea a) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP, pois esgotou o objeto do processo definido na acusação. O que aconteceu foi o julgador ter considerado na decisão de direito um facto não constante do elenco dos provados – cfr. RE 26.05.2020 (Beatriz Marques Borges) www.dgsi.pt.
Assim, como aqui acontece, não constitui insuficiência para a decisão da matéria de facto a omissão de factos constitutivos do crime na acusação (manifestamente infundada) que justificaria o seu não recebimento [14].
Não haverá insuficiência para a decisão da matéria de facto se o tribunal a quo averiguou toda a matéria da acusação/defesa pertinente, ou seja, o objeto do processo, ainda que a tenha dado como não provada.
Ao contrário, tal vício ocorrerá se o tribunal a quo deixou de dar resposta a um facto essencial postulado pelo objeto do processo, isto é, deixou por esgotar o thema probandum [15].
No caso concreto, a matéria de facto é insuficiente para a condenação, mas sem que tivesse havido insuficiência de investigação dos factos descritos na acusação.
O que aconteceu foi que o tribunal a quo errou na aplicação do direito aos factos provados.
Com efeito, a narração dos factos vinda da acusação, todos eles investigados e com pronúncia pelo julgador a quo nos limites da vinculação temática, era já insuficiente para qualquer decisão (condenação ou absolvição), devendo ter sido oportunamente rejeitada por manifestamente infundada (art.311º, nº2, al.a), do Código Processo Penal).
Faltando na sentença recorrida qualquer referência factual ao elemento cognitivo e volitivo do arguido sobre o dolo de ação e o dolo de perigo atinente ao tipo que lhe vem imputado, sendo tal omissão substancial e irremediável, impõe-se a absolvição daquele.

Nessa sequência ficam prejudicadas as restantes questões do recurso relativas à impugnação de facto (dos pontos 2, 3, 4, 5, 6, 8, 9 e 10 dos factos provados) e à medida concreta da pena principal e acessória.
***
3. DECISÃO
Nesta conformidade, acordam os juízes desta Segunda Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido e consequentemente, revogando a decisão recorrida, absolver aquele do crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelo art. 291º, n.º 1, al. b), do Código Penal, que lhe vem imputado.

Sem custas.
Notifique.

Acórdão elaborado pelo primeiro signatário em processador de texto que o reviu integralmente (art. 94º nº 2 do CPP), sendo assinado pelo próprio e pelo Excelentíssimo Juíz Adjunto.

Porto, 24.11.2021
João Pedro Pereira Cardoso
Raúl Cordeiro
__________________________________
[1] Diploma a que se referem os normativos legais adiante citados sem indicação da respetiva origem.
[2] Como é jurisprudência pacífica, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – detecção de vícios decisórios ao nível da matéria de facto emergentes da simples leitura do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, referidos no art. 410.º, n.º 2, do CPP – Ac. do Plenário da Secção Criminal n.º 7/95, de 19-10-95, Proc. n.º 46580, publicado no DR, I Série-A, n.º 298, de 28-12-95, que fixou jurisprudência então obrigatória (É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no art. 410.º, n.º 2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito) e verificação de nulidades que não devam considerar-se sanadas, nos termos dos arts. 379.º, n.º 2, e 410.º, n.º 3, do CPP – é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões do pedido (art. 412.º, n.º 1, do CPP), que se delimita o objecto do recurso e se fixam os limites do horizonte cognitivo do Tribunal Superior.
O STJ apenas pode sindicar a existência de eventuais nulidades, insanáveis, ou por omissão ou excesso de pronúncia, ou de produção de prova, ou meios de obtenção de prova, proibidos por lei (art. 410.º, do CPP) – cfr. STJ 2016-11-23 (Pires da Graça) in www.dgsi.pt.
[3] Paula Ribeiro de Faria, Comentário Conimbricense do Código Penal, II, págs. 1066 e 1082.
[4] Como se escreve Paula Ribeiro de Faria, in Comentário Conimbricense do Código Penal, parte especial, tomo II, Coimbra Editora, 1999, pg.1079-80, com a incriminação em referência pretendeu-se conter a sinistralidade rodoviária "punindo todas aquelas condutas que se mostrem susceptíveis de lesar a segurança deste tipo de circulação, e que, ao mesmo tempo, coloquem em perigo a vida, a integridade física ou bens patrimoniais alheios de valor elevado", erigindo como bem jurídico tutelado pela norma a segurança rodoviária.
Todavia, trata-se de um crime de perigo concreto, porquanto da conduta do agente terá que resultar um perigo real e efectivo para a integridade física ou bens patrimoniais de valor elevado, alheios.
[5] O perigo de que aqui se trata (perigo concreto) traduz-se na forte probabilidade de ocorrência de dano ou do resultado desvalioso que a norma pretende evitar se desencadeie ou, pelo menos, na colocação em causa da segurança dos bens jurídicos tutelados (vida, integridade física e bens patrimoniais de valor elevado) de tal modo que a sua lesão não fica dependente do acaso (Cfr. neste sentido Rui Carlos Pereira, “O Dolo de perigo”, 1995, pg.32, defende haver perigo (concreto) quando a segurança do bem jurídico é posta em causa de tal modo que a sua lesão ou não lesão depende do acaso.
Para Oliveira Mendes, O Direito à Honra e a sua Tutela Penal, 2000, pg.45, haverá uma situação de perigo sempre que a produção do resultado desvalioso, isto é, o previsto pela norma, mediante a formulação de um juízo de experiência, é mais provável que a sua não produção; ou pelo menos ocorre uma forte probabilidade de o resultado desvalioso se vir a desencadear ou a acontecer. Também Faria Costa, “O Perigo em Direito Penal”, 1992, pg.580 ss.
No dizer de Germano Marques da Silva in Crimes Rodoviários, Universidade Católica Editora, Lisboa, 1996, pg.18, “uma conduta ou situação é perigosa quando segundo as regras da experiência cria uma forte probabilidade de produzir um resultado desvalioso, se existir uma possibilidade não negligenciável de vir a causar um dano. Também J. Marques Borges, Dos Crimes de Perigo Comum e dos Crimes Contra a Segurança das Comunicações, pg.24.
Figueiredo Dias, in Direito Penal, Sumários, pg.145, define os crimes de perigo concreto como sendo aqueles em que o perigo surge como “evento típico”, destacado da própria acção perigosa, pelo que ao nível da imputação objectiva é exigível a demonstração da existência de um vínculo causal entre a acção e uma situação destacável, em que a lesão do bem jurídico se afigure possível ou provável, nos termos já aludidos”.
No entendimento de Paulo Sérgio Pinto de Albuquerque, in Crimes de Perigo e Contra a Segurança das Comunicações – Jornadas de Direito Criminal, CEJ, II, 1998, pg.265, só deve considerar-se que há perigo concreto se se verificarem cumulativamente as seguintes condições: a existência de um objecto de perigo (a vida ou a integridade física de alguém ou um ou mais bens patrimoniais de valor elevado), a entrada do objecto do crime no circulo de perigo e a não ocorrência da lesão por força de circunstâncias inesperadas ou de esforços extraordinários e não objectivamente exigíveis de terceiros ou do ameaçado ou devido a circunstancias criadoras de hipóteses de salvamento incontroláveis e irrepetíveis”.
E logo acrescenta que em termos de intensidade é penalmente relevante qualquer grau menor de perigo (concreto) nos termos da dogmática da tentativa.
[6] Cfr. RP 13.06.2001 (Correia de Paiva) www.dgsi.pt.
[7] Sob pena de se transformar este crime de perigo num crime de resultado.
[8] Da leitura da sentença fica ainda a contradição sobre o número de veículos em perigo.
[9] Perigo esse entendido como uma situação de risco proibido (num aumento intolerável do risco permitido inerente à própria circulação rodoviária) de produção do resultado (previsível e não uma ocorrência fortuita) de ofensa à integridade física.
[10] De sublinhar que esse perigo concreto não exige, (embora seja aconselhável) uma minuciosa identificação dos factores potenciadores do risco (velocidade a que se circulava, rastos de travagem a largura da via, número de veículos em circulação etc.), sendo suficiente a descrição duma determinada conduta que, segundo os padrões do condutor médio e as regras da experiência comum, permitam concluir pela existência desse perigo concreto – cfr. RC 24.11.2004 (Desemb. João Trindade) www.dgsi.pt.
[11] Como podemos ler no Ac. RL 19.10.2004 (Desemb. Simões de Carvalho), www.dgsi.pt: “Em si a noção de perigo traduz a situação relacional que, num quadro racional, se estabelece entre a conduta e as circunstâncias que a acompanham por modo a revelar uma provável e virtual ofensa ou violação ” – cfr. também Oliveira Mendes, O Direito à Honra …, pg.46.
Assim, em face da norma supra mencionada haverá perigo sempre que da actuação do agente resulte a iminência de lesão da vida, integridade física ou de bens patrimoniais alheios de valor elevado.
Desta forma, a verificação de um perigo concreto não se cumpre com a circunstância de existirem pessoas ou coisas na "zona de perigo" criada pelo agente, pois não basta que a conduta seja abstracta e objectivamente perigosa e nessa medida idónea a provocar uma lesão, é essencial que a sua potencialidade lesiva se revele nas circunstâncias do caso – cfr. Paula Ribeiro de Faria, in Comentário…, pg.1087.
[12] Com efeito, segundo a jurisprudência fixada no Acórdão Uniformizador nº 1/2015 de 27 de Janeiro (in DR, 1ª Série, nº 18, de 27 de Janeiro de 2015, “a falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do Código de Processo Penal.»
[13] Albuquerque, Paulo Pinto de. Comentário do Código de Processo Penal, 3ª ed., 2009,. Universidade Católica Editora, anotação ao art.410, n.20., pg.1052.
[14] Albuquerque, Paulo Pinto de. Comentário do Código de Processo Penal, 3ª ed., 2009,. Universidade Católica Editora, anotação ao art.410, n.16., pg.1051., acompanhando a jurisprudência do Ac STJ 14.02.96 BMJ 454/519.
No mesmo sentido o Ac STJ 10.07.91 BMJ 409/379, concluindo não haver insuficiência da matéria de facto quando os factos a provar não constam da acusação, não foram alegados pela defesa nem resultam da discussão.
[15] António da Silva Henriques Gaspar e outros, Código Processo Penal Comentado. Almedina, anotação ao art.410, pg.,