FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
DESPACHOS
ELEMENTOS SUBJECTIVOS
Sumário

Ao contrário do regime recursivo em sede de sentença final, em que é permitido invocar a nulidade decorrente da falta de fundamentação nos termos do disposto no artigo 379.º n.º 2 CPP, a eventual falta ou insuficiência de fundamentação de um despacho judicial, constituindo uma irregularidade, não é idóneo para ser invocado como fundamento de um recurso, antes devendo ser suscitada perante o tribunal que a praticou, sob pena de se considerar sanada nos termos do artigo 123.º do Código de Processo Penal.

Os elementos subjetivos do crime são expressos na acusação por uma fórmula em que se imputa ao agente o ter atuado de forma livre - isto é, podendo ele agir de modo diverso, em conformidade com o direito ou o dever-ser jurídico-, voluntária ou deliberadamente-querendo a realização do facto-, conscientemente -isto é, tendo representado na sua consciência todas as circunstâncias do facto e sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei -consciência da proibição como sinónimo de consciência da ilicitude.

Texto Integral

Acordam os Juízes, na 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa


I–RELATÓRIO:


1.1.–No âmbito do Processo Abreviado, processo número 3105/21.0T9AMD, a correr termos pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Amadora - JL Criminal – Juiz 4, em que é arguido AMQ______, com os demais sinais dos autos, por despacho datado de 1.10.2021 (referência 132935251), foi rejeitada a acusação deduzida pelo Ministério Público, por manifestamente infundada nos termos do art. 311º nº 3 al. b) do CPPenal.

***

1.2.–O MP não se conformou com o despacho proferido e interpôs recurso, tendo, para esse efeito, formulado as seguintes conclusões:

I.- Foi deduzida acusação pelo Ministério Público, nos autos 3105/21.0T9AMD, nos seguintes termos (transcrição):

“No dia 13/06/2021, pelas 01h00m, na Praça ... ..., na A_____, o arguido conduzia o veículo ligeiro de passageiros, de matrícula XX-XX-XX, de marca BMW, quando foi sujeito a fiscalização rodoviária.
Submetido ao exame de pesquisa de álcool através de exame toxicológico, apresentava uma TAS de 2,19 g/l.
O arguido sabia que estava sob a influência do álcool mas, ainda assim conduziu o veículo nas circunstâncias de tempo e lugar acima mencionadas, bem sabendo que a sua conduta era e é proibida e punida por lei.
Agiu de forma livre, voluntária e consciente.”
II.- Remetidos os autos à distribuição, em 01.10.2021, foi proferido despacho, que decidiu não receber a acusação supra, “por ser omissa na descrição de factos essenciais, que não podem ser completados pelo Tribunal, considerando a doutrina do AUJ 1/2015 (…)”.
III.- Em súmula, é apontado como fundamento da rejeição do despacho de acusação, o facto da mesma ser omissa na descrição de factos que configuram o elemento volitivo do dolo do tipo, acrescentando-se que nada se diz se a realização do tipo é o fim último ou uma consequência necessária ou meramente eventual da conduta do arguido.
IV.- Com o devido respeito, entende o Ministério Público, que inexistem fundamentos para a não aceitação da acusação proferida e que o despacho ora recorrido padece de vícios formais e substanciais.
Porquanto,
V.- O douto despacho não é claro no que respeita à aplicação da lei, acabando o seu leitor por não perceber ao abrigo de que norma ou dispositivo legal foi rejeitada a acusação; fazendo-se vaga referência ao art.º 311.º, do CP, mas fundamentando a rejeição no AUJ n.º 1/2015, violando-se assim o disposto no art.º 97.º, n.º 5 do CPP, o qual dispõe que: “os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão.”
Mas ainda que se entenda que se basta a lei processual com uma possibilidade efectiva de compreensão do raciocínio exposto; ainda assim se dirá, também, em termos substanciais:
VI.- No despacho de acusação, ora em apreço, foi imputado ao arguido, a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo art.º 292.º e 69.º, ambos do CP, para julgamento em processo especial abreviado e por tribunal singular.
VII.-O despacho de acusação respeita e observa todos os pressupostos formais e materiais exigidos pelos arts.º 391.º-A e 391.º-B, n.º 1, do CPP.
VIII.- Ora, por remissão do art.º 391.º B, n.º 1 do CPP, exige-se que a acusação contenha os elementos a que se refere o n.º 3 do artigo 283.º, sendo que, a identificação do arguido e a narração dos factos, podem ser efectuadas, no todo ou em parte, por remissão para o auto de notícia.
IX.- E nestes termos bastaria, na acusação em apreço, que a narração dos factos fosse efectuada, no todo ou em parte, para o auto de notícia, ficando assim preenchido desde logo, em absoluto, todas as exigências legais vertidas no art.º 283.º, n.º 3, ex vi, art.º 391.º-B, n.º 1, do CPP.
X.- Mas foi mais além a referida acusação, não se limitando a remeter os autos a julgamento por remissão para o auto de notícia, mas antes, narrando também os factos integradores dos elementos objectivos e subjetivos do tipo imputado, em despacho (de acusação) autónomo.
XI.- Outrossim, ainda que não bastasse a simples remessa para o auto de notícia no que respeita aos factos - sobre a descrição do dolo - a acusação aqui rejeitada, foi explícita na imputação dolosa do tipo ao agente.
Senão, veja-se:
XII.- O crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. no art.º 292.º, do CP, reveste a natureza de crime comum, formal e de perigo abstrato, que tutela entre outros o bem jurídico segurança rodoviária; e tem como elementos constitutivos do respectivo tipo:
i)- Do Tipo objectivo (a ação típica): a condução de veículo com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l; e ii) Do Tipo subjectivo: O dolo, como o conhecimento e vontade de praticar o facto com consciência da sua censurabilidade (em qualquer uma das modalidades previstas no art.º 14.º do C. Penal) ou a mera negligência, como a omissão voluntária do dever de cuidado imposto pelas concretas circunstâncias.
XIII.-A acusação em apreço imputou ao agente a prática do crime a título doloso, e daí resulta que:

i)- Dos elementos objectivos:
“No dia 13/06/2021, pelas 01h00m, na Praça ... ... , na A_____, o arguido conduzia o veículo ligeiro de passageiros, de matrícula XX-XX-XX, de marca BMW, quando foi sujeito a fiscalização rodoviária.
Submetido ao exame de pesquisa de álcool através de exame toxicológico, apresentava uma TAS de 2,19 g/l.” ii) Dos elementos subjetivos:
“O arguido sabia que estava sob a influência do álcool mas, ainda assim conduziu o veículo nas circunstâncias de tempo e lugar acima mencionadas, bem sabendo que a sua conduta era e é proibida e punida por lei.
Agiu de forma livre, voluntária e consciente.
XIV.- O <dolo> consiste no propósito de praticar o facto descrito na lei penal e é composto por dois elementos: i) um elemento intelectual ou cognoscitivo, que se traduz no conhecimento material de todos os elementos do tipo; e ii) um elemento volitivo ou emocional, que se traduz na especial direcção da vontade em realizar o facto ilícito previsto e conhecido pelo agente.
XV.- Por sua vez, o elemento volitivo, dará lugar aos diferentes tipos de dolo, consoante assim seja determinada a vontade do agente. i) No dolo directo, o agente quer e deseja o resultado da conduta típica, sendo a sua vontade plena; ii) No dolo necessário, a vontade do agente é determinada pela necessidade do fim almejado; e, iii) No dolo eventual, a vontade do agente não é directa quanto ao resultado da ação mas este assume o risco de produzir o resultado e não o repugna a sua verificação.
XVI.-Na acusação rejeitada, verificamos que o <dolo>, enquanto elemento subjectivo do tipo, é constituído por factos aí narrados e é um dolo directo.
XVII.- Os factos narrados traduzem o conhecimento (o saber) e a vontade (o querer) do agente.
XVIII.- Dissecando, exige-se, quanto ao dolo:
iii)- a narração/indicação do elemento intelectual ou cognoscitivo (o conhecimento material de todos os elementos do tipo); E lê-se na acusação:
O arguido sabia que estava sob a influência do álcool, mas, ainda assim conduziu o veículo nas circunstâncias de tempo e lugar acima mencionadas, bem sabendo que a sua conduta era e é proibida e punida por lei. Agiu de forma (…) consciente
iv)- a narração do elemento volitivo ou emocional (a especial direcção da vontade em realizar o facto ilícito previsto e conhecido pelo agente):
E lê-se na acusação:
O arguido sabia que estava sob a influência do álcool, mas, ainda assim conduziu o veículo nas circunstâncias de tempo e lugar acima mencionadas, bem sabendo que a sua conduta era e é proibida e punida por lei.
Agiu de forma livre, voluntária (…).
XIX.-Sendo que, agir de forma livre, voluntária, significa que alguém de forma deliberada quis determinada ação; que não foi compelido a tanto, que não se tratou de um lapso, de um erro, de uma ação natural, ou de uma imposição de terceiro. Ou seja, a ação foi praticada com livre arbítrio e com plena consciência pelo próprio, querendo aquele resultado.
XX.-E afirmar que o arguido sabia que estava sob a influência do álcool, mas ainda assim conduziu, e que o fez de forma voluntária, são factos que integram a sua vontade e que preenchem o elemento volitivo… a vontade, o agir, o querer, o deliberado, o propósito de o decidir (na verdade tudo sinónimos).
XXI.-Ademais, podendo o dolo revestir diversas modalidades (dolo directo, necessário ou eventual); nem sempre o narrador da história percebe de imediato o que se passou dentro da cabeça, ou da segura intenção do agente naquele momento. O que o terá levado a agir? O narrador é apenas confrontado com factos que mostram a circunstância deste ter agido de forma livre, consciente e voluntária, ao praticar aquela ação; i.e. de forma dolosa, tal-qualmente vem descrito no art.º 14.º, n.º 1, do CP.
XXII.-Se o resultado, na perceção do seu autor, era directo, necessário ou eventual, na maioria das vezes (quando não, sempre) apenas só o próprio agente poderá contribuir para apurar.
XXIII.- Não podemos ser mais exigentes do que a lei, que afirma que o tipo é punido quer a título negligente quer a título doloso (e não diz qual o tipo de dolo que é preciso verificar, se directo, se necessário ou se eventual); ao ponto de numa acusação se exigir que seja logo limitado o tipo de dolo, quando dos elementos exteriores que temos, apenas nos é permitido inferir o dolo como directo.
XXIV.- E ainda que persista o entendimento, que será necessário dizer ou concretizar o tipo de dolo, também sempre se poderá firmar que os factos descritos integram o tipo de dolo directo e é esse que é imputado.
XXV.-Dizermos mais, para além de que o arguido agiu com vontade plena, e dizer-se, por ex.:
- que o arguido previu o facto criminoso como consequência necessária da sua conduta voluntária e não se absteve ainda assim da sua prática; ou
- o arguido ao actuar, fê-lo conformando-se como possível que se viesse a realizar o facto criminoso como consequência da sua conduta e assumiu o risco de produzir o resultado, não lhe repugnando a sua verificação seria entrar no campo das suposições - ou estar dentro da mente do agente naquele momento, ou se pudéssemos entrevistar os personagens que estão dentro da nossa cabeça, tal-qualmente, aparecem no filme “Divertidamente “Inside out”.
A verdade é que em factos está descrita a vontade directa do agente e o elemento intelectual e volitivo do dolo puro.
XXVI.- Se depois, e em sede de produção de prova, o arguido quiser esclarecer o seu móbil interior, nomeadamente, se agiu conformando-se com o resultado, se agiu tomando como previsível o resultado ou se agiu assumindo o risco desse resultado, tudo isso já será valorado na forma da intensidade do dolo (cfr. dispõe o art.º 71.º, n.º 2, al. b), do CP).
Mas a conduta não deixa de lhe ser imputável a título de dolo.
XXVII.- No limite, o próprio AUJ invocado no douto despacho ora recorrido chega a defender que o dolo deve ser expresso na acusação na seguinte fórmula: "uma actuação de forma livre (isto é, podendo ele agir de modo diverso, em conformidade com o direito ou o dever-ser-jurídico), voluntária ou deliberadamente (querendo a realização do facto), conscientemente (isto é, tendo representado na sua consciência todas as circunstância do facto) e sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei (consciência da proibição como sinónimo de consciência da ilicitude).”
XXVIII.- E considerar que o elemento volitivo do dolo não se basta, até, com a menção a uma actuação voluntária por parte do agente, extravasa o disposto e o pretendido no invocado AUJ.
XXIX.-Resultando, em nosso entender, da simples leitura e interpretação de todo o libelo acusatório, que o arguido conhecia todas as circunstâncias e elementos integradores do tipo, e que queria aquele resultado.
Nestes termos e nos demais de Direito, que doutamente se suprirá, deverá o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser revogada a decisão ora recorrida e determinado que a mesma seja substituída por decisão de admissão da acusação, nos termos do disposto nos art.ºs 312.º e 313.º do CPP.

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1.3.–O arguido não respondeu ao recurso.

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1.4.–Remetido o processo a este Tribunal da Relação, na vista a que se refere o art. 416º do CPP, o Exmo. Sr. Procurador da República emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.

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1.5.–Cumprido o disposto no artigo 417º, número 2, do Código Processo Penal não houve resposta ao parecer.

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1.6.–Colhidos os vistos legais e realizada a conferência prevista nos art.ºs 418º e 419º nº 3 al. c) do CPP, cumpre decidir.

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II–OBJETO DO RECURSO

2.1.–De acordo com o preceituado nos arts. 402º; 403º e 412º nº 1 do CPP, o poder de cognição do tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, já que é nelas que sintetiza as razões da sua discordância com a decisão recorrida, expostas na motivação.
Além destas, o tribunal está obrigado a decidir todas as questões de conhecimento oficioso, como é o caso das nulidades insanáveis que afetem o recorrente, nos termos dos arts. 379º nº 2 e 410º nº 3 do CPP e dos vícios previstos no art.º 410º nº 2 do CPP, que obstam à apreciação do mérito do recurso, mesmo que este se encontre limitado à matéria de direito Acórdão do Plenário das Secções do STJ nº 7/95 de 19.10.1995, in Diário da República, I.ª Série-A, de 28.12.1995 e o AUJ nº 10/2005, de 20.10.2005, DR, Série I-A, de 07.12.2005. .
Umas e outras definem, pois, o objeto do recurso e os limites dos poderes de apreciação e decisão do Tribunal Superior Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335;
Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág. 113; Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do CPP, à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª edição atualizada, Universidade Católica Editora, 2011, págs. 1059-1061. .
E o Tribunal Superior apenas tem de guiar-se pelas conclusões constantes do recurso para determinar, com precisão, o objeto do thema decidum; só deve conhecer, pois, das questões ou pontos compreendidos nas conclusões, pouco importando a extensão objetiva que haja sido dada ao recurso, no corpo da motivação, sendo que tudo o que conste das conclusões sem corresponder à matéria explanada na motivação propriamente dita, não pode ser considerado e não é possível tomar conhecimento de qualquer questão que não esteja contida nas conclusões, ainda que versada na respectiva motivação.
Assim, perante o aludido enquadramento normativo, esta Relação considerará, apenas, as concretas questões agora suscitadas que respeitem aquelas exigências e relevem para a decisão a proferir.
Seguindo esta ordem lógica, no caso concreto e atentas as conclusões, as questões a apreciar são as seguintes:
a)-Nulidade do despacho por violação do disposto no artigo 97º, número 5 do Código Processo Penal;
b)-A acusação contém, ou não, os factos relativos ao elemento volitivo ou emocional do dolo que determinaram a sua rejeição.

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III–O DESPACHO RECORRIDO

3.1.–O teor do despacho recorrido é o seguinte:
Nos presentes autos, o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido imputando-lhe a prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo art.º 292.º, n.º 1, do CP.
Nos termos do disposto no artigo 311.º, do CPP, considerando a remissão do art.º 386.º do CPP, recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer.
Acrescenta o n.º 2 do citado normativo que se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente rejeita a acusação se a considerar manifestamente infundada (al. a)), considerando-se como tal aquela que, além do mais, não contenha a narração dos factos (artigo 311.º, n.º 3, al. b), do CPP).
Relativamente ao estatuído na última alínea do nº 3 do preceito acabado de citar, tem entendido a doutrina e a jurisprudência atuais que a rejeição da acusação somente pode ocorrer quando manifestamente inexistam factos que correspondam à prática de um ilícito criminal, i. e., quando diante do texto da acusação faltem elementos típicos objectivos e subjetivos de qualquer ilícito criminal da lei penal portuguesa ou quando se trate de conduta penalmente irrelevante (neste sentido vide Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica, 2008, p. 791, n. 8).
Do ponto de vista subjectivo, o crime de condução em estado de embriaguez é um crime doloso.
Para que o dolo do tipo se afirme é necessário que o agente conheça, saiba, represente correctamente ou tenha consciência das circunstâncias do facto.
Ou seja, para que se possa afirmar a actuação dolosa necessário se monstra que o “agente conheça tudo quanto é necessário a uma correcta orientação da sua consciência ética para o desvalor que concretamente se liga à ação intentada, para o seu caráter ilícito”- Figueiredo Dias, Doutrina Geral do Crime, Lições do 3.º ano da Faculdade de Direito, Coimbra, 2001, pág. 90.- Elemento intelectual do dolo.
Mas o dolo não se basta com o conhecimento das circunstâncias do facto e da sua configuração jurídica, antes sendo igualmente necessário a “verificação no facto de uma vontade dirigida à sua realização” - o elemento volitivo do dolo do tipo, o qual pode assumir a forma de dolo directo, dolo necessário ou dolo eventual - artigo 14.º do CP.
Por outro lado, um facto ilícito só é punível se culposo, ou seja, se for reprovável porque o agente não “motivou na norma, sendo-lhe exigível, nas circunstâncias em que agiu, que nela se motivasse. Ao não se ter motivado na norma, quando poderia e lhe era exigível que o fizesse, o autor mostra uma disposição interna contrária ao direito (…)
A culpabilidade representa, pois, um juízo de censura do agente por não ter agido em conformidade com o dever ser jurídico, embora tivesse podido conhecê-lo, motivar-se por ele e realizá-lo, mas significa também o conjunto de pressupostos desse juízo de reprovação jurídica. (…)- Germano Marques da Silva, Direito Penal Português Parte Geral, III, Verbo, páginas 149 a 150.
Compulsado o teor da acusação constatamos que o Ministério Público formulou a culpa, ao enunciar que o arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente.
Mas, no que ao concerne ao dolo do tipo, apenas enunciou o elemento intelectual, sendo a acusação omissa na descrição de factos que configuram o elemento volitivo.
Ou seja, nada se diz se a realização do tipo é o fim último ou uma consequência necessária ou meramente eventual da conduta do arguido.
Ora, como foi decidido no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 1/2015, in DR, série I, de 27/01/2015, “a acusação tem de descrever os elementos em que se analisa o dolo, ou seja: o conhecimento (ou representação ou, ainda, consciência em sentido psicológico) de todas as circunstâncias do facto, de todos os elementos descritivos e normativos do tipo objectivo do ilícito; a intenção de realizar o facto, se se tratar de dolo directo, ou a previsão do resultado danoso ou da criação de perigo (nos crimes desta natureza) como consequência necessária da sua conduta (tratando-se de dolo necessário), ou ainda a previsão desse resultado ou da criação desse perigo como consequência possível da mesma conduta, conformando-se o agente com a realização do evento (se se tratar de dolo eventual). A acrescer a esses elementos teríamos o tal elemento emocional, traduzido na atitude de indiferença, contrariedade ou sobreposição da vontade do agente aos valores protegidos pela norma e fazendo parte, como vimos, do tipo de culpa doloso” (sublinhado nosso).
Mais entendeu o STJ que “a falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal”.
Pelo exposto, por ser omissa na descrição de factos essenciais, que não podem ser completados pelo Tribunal, considerando a doutrina do AUJ 1/2015 atrás citado, não recebo a acusação e ordeno a remessa aos serviços do Ministério Público para os efeitos tidos por convenientes.
Notifique.

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IV–FUNDAMENTAÇÃO

4.1.–Da nulidade do despacho por violação do disposto no artigo 97º, número 5 do Código Processo Penal
Argumenta o MP que não obstante resultar da leitura do despacho recorrido “a forma clara e concisa o raciocínio efetuado sobre a questão apreciada (falta de indicação de factos que integrem o elemento volitivo do dolo na acusação); entendemos, ainda assim, que o douto despacho não é claro no que respeita à aplicação da lei, acabando o seu leitor, por não perceber ao abrigo de que norma ou dispositivo legal foi rejeitada a acusação.”.

Cremos que não lhe assiste razão.

Vejamos porquê:
Sobre esta questão, importa trazer à colação uma decisão sumária Proc. 401/19.OPLLRS.L1-9, datado de 1.03.2021 in www.dgsi.pt
proferida por este Tribunal ad quem que sobre questão semelhante decidiu:
Ao contrário do regime recursivo em sede de sentença final, em que é permitido invocar a nulidade decorrente da falta de fundamentação nos termos do disposto no artigo 379.º n.º 2 do Código Processo Penal, a eventual falta ou insuficiência de fundamentação de um despacho judicial, constituindo uma irregularidade, não é idóneo para ser invocado como fundamento de um recurso, antes devendo ser suscitada perante o tribunal que a praticou, sob pena de se considerar sanada nos termos do artigo 123.º do Código de Processo Penal.

Concorda-se integralmente não só com o texto do sumário transcrito, mas, também, com os fundamentos aduzidos no seu texto.
Assim:
(…)
Estabelece o artigo 97.º, n.º 5, do C.P.P.:
«Os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão.»
Como aponta Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário ao Código de Processo Penal, Ed. Univ. Católica, pág. 268, a fundamentação “é um raciocínio argumentativo que possa ser entendido e reproduzido (nachvollziehbar) pelos destinatários da decisão”.
Diz-se no acórdão da Relação do Porto, de 15/02/2019, que a fundamentação de um acto decisório deve estar devidamente exteriorizada no respectivo texto, de modo que se perceba qual o seu sentido, ainda que não se deva exigir que “no acto decisório fiquem exauridos todos os possíveis posicionamentos que se colocam a quem decide, esgotando todas as questões que lhe foram suscitadas ou que o pudessem ser”, pois “não pode escamotearse que, a ser assim, ou seja, a exigir-se uma tão exaustiva fundamentação a todos os despachos judiciais como a imposta para as sentenças finais, estar-seia a postergar a almejada celeridade processual que, como é consabido, é pedra de toque no nosso processo penal.” E acrescenta-se:
“O que importa é que a motivação seja necessariamente objetiva e clara, e suficientemente abrangente em relação às questões aí suscitadas, de modo que se perceba o raciocínio seguido. Motivação da fundamentação e prolixidade não são sinónimos, sendo que esta apenas serve para confundir ou obnubilar a compreensibilidade que deve ser uma característica daquela.”
Constitui entendimento pacífico o de que a falta de fundamentação das decisões judiciais, situação que se traduz na falta de especificação dos motivos de facto e de direito da decisão (artigos 205.°, n.º 1, da C.R.P. e 97.º, n.º 5, do C.P.P.), constitui mera irregularidade (artigo 118.º, n.ºs 1 e 2), a menos que se verifique na sentença, acto processual que, conhecendo a final do objeto do processo (artigo 97.º, n.º 1, al. a), do C.P.P.), a lei impõe obedeça a fundamentação especial, sob pena de nulidade (artigos 379.º, n.º 1, al. a), e 374.º, n.º 2, do mesmo diploma legal), ou que se verifique no despacho que decreta uma medida de coação ou de garantia patrimonial (artigo 194.º, n.º 6, do C.P.P.) ou no de pronúncia (artigos 308.º, n.º 2 e 283.º, n.º 3, do mesmo diploma), em que o legislador igualmente comina a falta de observância do específico dever de fundamentação desses actos com nulidade.
No caso em apreço não estamos perante uma sentença, mas sim um mero despacho sendo certo que este não sendo de mero expediente exige fundamentação, mas a falta de fundamentação, dos despachos judiciais não se mostra cominada com a sanção da nulidade, razão pela qual constitui, como já se disse, mera irregularidade.
De facto, o art. 118 nº 1 do CPP diz que a violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei.
Não havendo norma que, genericamente, determine a nulidade dos actos decisórios não fundamentados (cfr. arts. 119 e 120 do CPP), estes só serão nulos nos casos em que a lei o diga expressamente, como acontece em relação à sentença – arts. 374 e 379 nº 1 do CPP.
Nos demais casos, a falta de fundamentação constitui irregularidade, submetida ao regime do art. 123 do CPP – v. Maia Gonçalves, em anotação ao art. 97 do CPP.
Não tendo o recorrente arguido a invalidade do acto no prazo indicado no art. 123 nº 1 do CPP, requerendo que o despacho (e no seu entendimento) seja fundamentado, sempre teria ficado sanada a irregularidade, se houvesse, uma vez que esta não foi arguida nos termos legais, não podendo pretender saná-la por via do presente recurso, quando já exauriu o prazo legal para a arguir e ainda sendo certo que a mesma deveria ter sido suscitada perante o Tribunal “ a quo”.
(…)

Mas ainda que assim se não entendesse, este segmento do recurso interposto pelo MP sempre seria de improceder porquanto da leitura do despacho recorrido constata-se que está suficientemente fundamentado, sem desdouro para o esforço argumentativo do MP por entendimento contrário, pois está muito claro no referido despacho que a rejeição da acusação está sustentada no disposto do artigo 311.º, n.ºs 2, alínea a) e 3, al. b), do Código Processo Penal.

Improcede, pois, esta parte do recurso.

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4.2.–A acusação contém, ou não, os factos relativos ao elemento volitivo ou emocional do dolo que determinaram a sua rejeição.

Para uma melhor apreensão da questão suscitada, importa transcrever o teor da acusação, que é o seguinte:
O Ministério Público junto deste Tribunal ACUSA, nos termos dos arts. 391.º-A do Cód. Proc. Penal, para julgamento em processo especial Abreviado, por Tribunal singular, AMQ______melhor identificado nos autos,
Porquanto:
No dia 13/06/2021, pelas 01h00m, na Praça ... ..., na A_____, o arguido conduzia o veículo ligeiro de passageiros, de matrícula XX-XX-XX , de marca BMW, quando foi sujeito a fiscalização rodoviária.
Submetido ao exame de pesquisa de álcool através de exame toxicológico, apresentava uma TAS de 2,19 g/l.
O arguido sabia que estava sob a influência do álcool mas, ainda assim conduziu o veículo nas circunstâncias de tempo e lugar acima mencionadas, bem sabendo que a sua conduta era e é proibida e punida por lei.
Agiu de forma livre, voluntária e consciente.
Pelo exposto, cometeu o arguido, AMQ______, em autoria material e na forma consumada, um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo art. 292.º e 69.º ambos do Cód. Penal.
(…)

Ora, em face desta factualidade imputável ao arguido é de concluir:
a)-Que o arguido sabia e tinha conhecimento, bem como estava consciente, que conduzia o veículo sob a influência do álcool.
b)-Que o arguido conduziu o veículo automóvel de forma livre, voluntária e consciente.

A atuação de forma livre, voluntária e consciente nada mais é que uma atuação livremente determinada, e se o agente atuou com vontade livremente determinada é porque a sua conduta foi desejada.

Dito de outra forma, se o arguido atua de forma livre, voluntária e consciente é porque tomou a resolução/deliberou conduzir aquele veículo e conduziu-o, nas circunstâncias descritas na acusação, ou seja, voluntariamente, porque assim quis.

É sabido e pacifico que os elementos subjetivos do crime são expressos na acusação por uma fórmula em que se imputa ao agente o ter atuado de forma livre (isto é, podendo ele agir de modo diverso, em conformidade com o direito ou o dever-ser jurídico), voluntária ou deliberadamente (querendo a realização do facto), conscientemente (isto é, tendo representado na sua consciência todas as circunstâncias do facto e sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei (consciência da proibição como sinónimo de consciência da ilicitude). E lendo a acusação verificamos que a mesma contém todos estes elementos que integram o denominado elemento subjectivo do tipo de ilícito imputado ao arguido.

Em suma, o MP ao fazer constar da acusação que o arguido conduziu um veículo ligeiro de passageiros num determinado dia, hora e local com uma taxa de álcool no sangue de 2,19 g/l, e que o fez de forma deliberada, então, é porque ponderou na conduta referida e que a quis levar a cabo. É o necessário para que se considere preenchido o elemento volitivo do dolo. Mais:

Refere também a acusação que o arguido actuou de forma consciente, bem sabendo que a sua conduta era e é proibida e punida por lei. Ou seja, com consciência da ilicitude.

Pelo exposto, contrariamente à argumentação expendida no despacho recorrido, constam da acusação os elementos objectivos e subjetivos do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo art. 292.º e 69.º ambos do Cód. Penal, pelo que se impõe revogar o despacho recorrido.
Procede, pois, o recurso interposto pelo MP.

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IV–DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes da 3ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, revogar o despacho recorrido e determinar que seja substituído por outro que dê seguimento ao processo.
Sem custas.
Notifique.

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(Tribunal da Relação de Lisboa, data e assinatura eletrónica)


Processado por computador e revisto pelo primeiro signatário (art. 94°, n.º 2 do C.P.P.)



Lisboa,2-2-2022


Alfredo Costa
Rosa Vasconcelos