DECISÃO NO SANEADOR
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
Sumário


- A opção por decidir de mérito no saneador com base no estado dos autos é do julgador. Não está na disponibilidade das partes. Trata-se de um critério de julgamento. Não pode a parte impor uma audiência de julgamento quando o juiz a considere dispensável ou inútil, face à suficiência probatória dos autos e tendo ele o poder/dever de dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere (art. 6º CPC).
- Essa opção de julgamento imediato não poderá postergar o direito das partes à discussão e à prova, devendo o julgador assegurar-se que as partes tiveram a possibilidade de discutir e de produzir prova nos momentos disciplinados pela lei processual.
- O julgador nem sempre consegue antever com a necessária segurança o resultado decisório do litígio, sem antes percorrer o processo intelectual decisório, que é, por regra um processo de resolução de dúvidas, seletivo e dialético, logo, um processo que reclama um tempo e um modo de ponderação próprios.
- A opção pelo “julgamento imediato” não tem de ser pré-anunciado às partes como uma certeza, mas deve ser anunciada como uma possibilidade.

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Évora:


I

1. Por apenso à execução sumária que a Caixa Geral de Depósitos SA, em 09-07-2019, veio instaurar contra A…, M…., C…, (entretanto falecida), R…. e, sociedade S… e Outro, Lda (representada pelos sócios-gerentes A.… e M….) para deles haver a quantia de 1.851.389,73€, titulada por escritura pública de hipoteca e documento complementar nela integrado, veio a executada sociedade S… e Outro, Lda, em 07-01-2020, deduzir embargos de executado.

2. Alegando, em síntese que, no título, nenhuma evidência se encontra de ter sido efetuada a entrega ou disponibilização do montante alegadamente mutuado, sendo os documentos que o integram insuficientes para vincular os mutuários à obrigação de restituir a ‘coisa’ mutuada. Também não foram juntos quaisquer extratos de conta corrente associados ao referido contrato de mútuo, donde resulte a disponibilização do montante mutuado, nem a utilização ou mobilização do mesmo pelos mutuários, não sendo por isso determinável o quantum da importância em dívida. Conclui ser o título executivo inexistente, além de que, tendo a ora embargante sido, tão só, uma prestadora de garantia dando de hipoteca o seu imóvel, e não uma mutuária, desconhece as concretas condições do negócio.

Por isso, sendo o título executivo insuficiente ou ausente, não pode a execução prosseguir, devendo ser declarada extinta, determinando-se o levantamento da penhora sobre o imóvel hipotecado, efetuada nos autos principais.

3. A exequente contestou, impugnando os fundamentos dos embargos.

Alegou em suma que o título dado à execução é uma escritura pública de “mútuo com hipoteca”, na qual os executados mutuários, na escritura identificados como “parte devedora”, se “confessam, desde já, solidariamente devedores” do montante de 1.500.000,00€.

A escritura pública dada à execução nos autos principais é, nos termos da lei aplicável, quer à data em que foi celebrada [31/12/2010], quer à data em que a mesma deu entrada em juízo, título executivo bastante (art.º 46.º, n.º1-b) do CPC/1961 e art.º 703.º, n.º 1-b) do NCPC).

Resultando da mesma, a imediata disponibilização do capital aos mutuários, o que aconteceu.

Por sua vez, os executados A…. e R…. intervieram na escritura numa dupla qualidade: em nome próprio, como mutuários e, ainda, na qualidade de representantes legais da sociedade embargante, que nela interveio como dadora de hipoteca, pelo que, nessa dupla qualidade aceitaram que “os documentos que representam os créditos da Caixa constituirão títulos referidos a este contrato e dele fazem parte integrante para fins de execução, se for caso disso” e ainda que “o extrato de conta do empréstimo e os documentos de débito emitidos pela Caixa e por ela relacionados com este empréstimo serão havidos, para todos os efeitos legais e, designadamente, para efeitos do disposto no art.º 50 do Código de Processo Civil, como documentos suficientes para prova e determinação dos montantes em dívida, tendo em vista a exigência, justificação ou reclamação judicial dos créditos que deles resultarem, em qualquer processo”, não podendo a sociedade embargante invocar que ignora as concretas condições do negócio.

4. Por despacho de 18-09-2020, o tribunal a quo ordenou a notificação das partes para se pronunciarem quanto à possibilidade de não se oporem a que seja dispensada a realização de audiência prévia, considerando o aumento de casos de contágio por COVID-19, a situação de contingência em todo o território nacional continental, com efeitos desde 15.09.2020 declarada em Conselho de Ministros (Resolução n.º 70-A/2020, publicada no DRE n.º 178, 1.ª série de 11.09.2020) e, o facto de as partes já terem exercido o contraditório relativamente às questões suscitadas, tendo já apresentado os respetivos requerimentos probatórios.

Entendendo o Tribunal, em tal despacho que “os autos poderão prosseguir os seus ulteriores trâmites, com prolação de despacho saneador por escrito, incluindo com conhecimento de mérito, sem necessidade de designar data para realização da audiência prévia, podendo as partes nos 10 dias subsequentes alterar os respetivos requerimentos probatórios, ou prescindir de tal prazo (…) Anuindo, mais se convidam as mesmas para nesse mesmo prazo indicar os períodos (manhãs ou tardes), consideram necessários para a produção da respetiva prova, de modo a permitir a programação da audiência de julgamento que venha a ter lugar.”

5. Em 28-09-2020 veio a embargada Caixa Geral de Depósitos informar nada ter a opor à tramitação processual proposta, mais informando, para efeitos de eventual agendamento da audiência de julgamento, ser suficiente um período de manhã ou de tarde para ouvir as testemunhas por si arroladas.

6. Na mesma data de 28-09-2020 veio a embargante Silveira & Outro, Lda, declarar “que não anui a que a decisão de mérito seja tomada de imediato, nos termos do disposto no art. 597º, nº 1, alínea d), do Cód. Proc. Civil, procedendo-se à adequação formal dos autos”, fundamentando essa não anuência, no facto de, pretender discutir uma nova questão, até aí não suscitada.

Invocou então que no contrato de mútuo e hipoteca e no documento complementar que o integra, se ter clausulado como obrigação da parte devedora (mutuários), manter um seguro de vida durante toda a vigência do empréstimo, para garantir o capital em dívida em caso de morte. Sucede que, a outorgante mutuária C…. falecera no dia 24-10-2019, não tendo a ora embargante conseguido identificar a apólice de seguro de vida em causa, pelo que, em 08-09-2020 solicitou à Autoridade de Supervisão de Seguros, a identificação da Companhia Seguradora tomadora do Seguro para, eventual, promoção da sua Intervenção Principal nos autos.

Mais requereu a notificação da embargada para juntar cópia da referida Apólice e/ou pronunciar-se sobre o peticionado.

7. Em resposta a tal requerimento veio a embargada CGD alegar que o óbito da executada mutuária C…. ocorreu um ano antes da apresentação dos embargos, não tendo qualquer relevância para o prosseguimento destes.

8. Em 03-01-2021 a embargante veio reafirmar o seu anterior requerimento e pedido de que fosse notificada a Embargada/Exequente para vir juntar cópia da Apólice referenciada no contrato de mútuo, a fim de identificar a Seguradora que se constituiu garante em caso de morte de mutuário, de modo a chamá-la à presente demanda.

9. Em 08-01-2021 a Embargada veio informar que, não obstante todos os executados se terem obrigado a manter um seguro de vida, durante toda a vigência do empréstimo, que garantisse o capital em dívida em caso de morte ou invalidez permanente, por razões que só eles poderão esclarecer, a falecida executada C…. não cumpriu o disposto nessa cláusula pelo que não existe qualquer apólice.

10. Por despacho de 03-02-2021 o tribunal a quo veio pronunciar-se, consignando o seguinte: “Considerando a posição assumida pela embargante ao convite de adequação processual dirigido às partes importa o prosseguimento dos autos com designação de data para realização da audiência prévia – cfr. art. 732º n.º2 e 591.º NCPC -, a qual será oportunamente agendada, considerando que, face ao disposto no art. 6.º B n.º1 da L 1-A/2020, de 19.03, na redação dada pela L. 4-B/2021, de 01.02, estão suspensas todas as diligências e todos os prazos para a prática de atos processuais”, relegando para momento ulterior essa marcação.

11. Por despacho de 09-04-2021 veio o tribunal designar data para a realização de audiência prévia, destinada aos seguintes fins que elencou: a) realizar tentativa de conciliação b) facultar às partes a discussão de facto e de direito, nos casos em que ao juiz cumpra apreciar exceções dilatórias ou quando tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa; c) discutir as posições das partes, com vista à delimitação dos termos do litígio, e suprir as insuficiências ou imprecisões na exposição da matéria de facto que ainda subsistam ou se tornem patentes na sequência do debate; d) proferir despacho saneador; e) determinar, após debate, a adequação formal, a simplificação ou a agilização processual, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 6.º e no artigo 547.º NCPC; f) proferir, após debate, o despacho previsto no n.º 1 do artigo 596.º NCPC e decidir as reclamações deduzidas pelas partes; e g) prover pela audição dos mandatários nos termos e para efeitos da programação da audiência final.”

12. Resulta da ata de audiência prévia (realizada em12-05-2021) ter sido tentada a conciliação entre as partes (art. 591.º, n.º 1, al. a), do NCPC), “que não se mostrou possível, resultando a mesma infrutífera, mantendo as partes as posições já vertidas nos articulados”, ter sido concedida a palavra aos Ilustres Mandatários das partes para os efeitos do disposto no artigo 594.º, n.º 4 (razões para persistência do litígio), do CPC, sendo que “Por ambos foi dito que oferecem o merecimento dos autos”, tendo de seguida sido facultada às partes a discussão de facto e de direito nos termos e para os efeitos previstos no art. 591.º n.º1 al. b) do NCPC, tendo ambos os mandatários, “mantido tudo quanto haviam alegado nos articulados/requerimentos respetivos. Após o que, foi dada a palavra às partes para discutirem as respetivas posições com vista à delimitação dos termos do litígio nos termos do art. 591.º n.º1 al. c) NCPC, tendo os Ils. Mandatários dado por reproduzido o já alegado nos articulados/requerimentos”.

Mais resulta da ata despacho a prevenir que face à complexidade das questões a resolver, o despacho saneador será proferido por escrito, sendo lavrado para o efeito termo de conclusão”.

Acrescentando a Mmª Juíza a quo “Considerando que a prolação do despacho saneador precede, pela ordem lógica constante do n.º 1 do artigo 594.º[1] do CPC, as demais questões a abordar em sede de audiência prévia, em face das disposições conjugadas dos arts. 6.º n.º1 e 547.º NCPC ficam as partes notificadas para dizerem se anuem à dispensa, no mais, da audiência prévia, sendo bem assim por escrito - se a ação houver de prosseguir - proferido despacho a identificar o objeto do litígio e a enunciar os temas da prova, sem prejuízo de posteriormente à prolação de tais despachos, deduzirem, caso entendam, reclamações e requererem a alteração dos requerimentos probatórios respetivos.”

13. Por ambos os mandatários foi dito anuírem à tramitação nos termos propostos pela Mm.ª Juíza de Direito.

14. Em 16-06-2021 o tribunal a quo proferiu saneador sentença, no qual, em suma e no que se mostra relevante, decidiu:

Quanto ao requerimento/articulado deduzido em 28-09-2020:

“Os presentes configuram oposição à execução mediante embargos, cuja tramitação se encontra regulada nos arts. 728.º e ss. CPC.

Ora, do disposto no art. 732.º n.º2 NCPC resulta que os embargos apenas importam dois articulados: petição de embargos e contestação, “seguindo-se sem mais articulados, os termos do processo comum declarativo”.

Mais resulta do disposto no art. 731.º NCPC, aplicável ao caso dos autos, que além dos fundamentos previstos para oposição à execução baseada em sentença (art. 729.º) podem ser alegados quaisquer outros que possam ser invocados como defesa no processo de declaração.

Ora, em face do que vai dito, por si só resultaria à saciedade que o requerimento em apreço de 28.09.2020 não teria cabimento legal.

Com efeito, à embargante cabe em sede de oposição invocar todos os fundamentos de que pretenda lançar mão, concentrando a sua defesa nesse articulado – nesse sentido cfr. Ac. STJ de 19.03.2019, P. 751/16.8T8LSB.L2.S1, in www.dgsi.pt.

Ao alegar nos termos em que o fez a 28.09.2020 a embargante vem aduzir novo meio de defesa, pois pretende pôr em crise a exigibilidade da obrigação exequenda.

Tanto bastaria para não admitir o alegado em tal requerimento e bem assim o consequente pedido de junção de apólice e chamamento de eventual seguradora.

Sem prejuízo, ainda poderia o Tribunal admitir o mesmo atento o disposto no art. 588.º CPC[2]. Sucede que, como é bom de ver, face aos documentos juntos aos autos, a embargante - porque parte no acordo dado à execução como título executivo - já conhecia as cláusulas do mesmo ínsitas, nomeadamente aquela a que se refere no requerimento de 28.09.2020, aquando da oposição. Por outro lado, também o óbito de C…. é anterior à oposição deduzida, datando a certidão que embargante juntou para alegar tal facto de 31.01.2019, o que significa que a embargante há muito tinha conhecimento de tal facto e, ainda que assim não fosse, não veio alegar nada no que respeita a uma eventual superveniência do seu conhecimento.

Pelo que, não resta senão concluir pela inadmissibilidade do articulado junto a 28.09.2020 quanto ao alegado de 1. a 5. e consequentes pedidos a esse propósito, ficando bem assim prejudicado qualquer chamamento de terceiros com esse fundamento, apenas não se ordenando o seu desentranhamento e devolução ao apresentante, atento o consignado no seu introito.”

Quanto ao mérito:

“Dado que o estado dos autos permite desde já conhecer do mérito da causa, pois que tal não depende de prova a produzir, passa-se a decidir (cfr. art. 596.º n.º1 al. b), 595.º n.º1 al. b) e 2 e 3, parte final ex vi art. 732.º n.º2 CPC).”

(…)

Nestes termos as questões a decidir consistem em determinar:

a) se se verifica a inexistência ou inexequibilidade do título;

b) se ocorre iliquidez da obrigação exequenda, não suprida na fase introdutória da execução e, em caso afirmativo de verificação de alguma das hipóteses, qual a consequência daí a extrair.”

Em tal despacho, após elencar os factos provados e não provados e a respetiva motivação probatória, assente no acordo das partes, ou na ausência do mesmo, no teor dos documentos juntos aos autos, fundamentou e decidiu de direito, julgando os embargos improcedentes.

Inconformada com tal decisão veio a embargante recorrer concluindo do seguinte modo as suas alegações de recurso:

A. Na primeira parte da ATA de Audiência Prévia, a fls. 2, consta: “De seguida, pela Mm.ª Juiz de Direito foi tentada a conciliação entre as partes (art. 591.º, n.º 1, al. a), do NCPC), que não se mostrou possível, resultando a mesma infrutífera, mantendo as partes as posições já vertidas nos articulados.”

B. Foi considerado relevante, vide fls. 2 e 3, do Despacho “Ao abrigo do disposto no art. 595.º n.º2 NCPC, em face da complexidade das questões a resolver, o despacho saneador será proferido por escrito.”

C. Mais, “(…) as demais questões a abordar em sede de audiência prévia, em face das disposições conjugadas dos arts. 6.º n.º1 e 547.º NCPC ficam as partes notificadas para dizerem se anuem à dispensa, no mais, da audiência prévia, sendo bem assim por escrito - se a ação houver de prosseguir - proferido despacho a identificar o objeto do litígio e a enunciar os temas da prova, sem prejuízo de posteriormente à prolação de tais despachos, deduzirem, caso entendam, reclamações e requererem a alteração dos requerimentos probatórios respetivos”.- negrito nosso

D. No Despacho Saneador Sentença a posição da Mª Juiz considera a posição da Embargada quanto ao título Executivo – contrato de mútuo – na sua vertente da indicação da quantia exequenda.

E. Todavia, escamoteia a posição da Embargante apesar de identificar a sua posição, as diligências para a obtenção da identificação da Apólice de Seguro e/ou a pronuncia da Embargada.

F. E, sem que nada o fizesse prever a M.ª Juiz determina a inadmissibilidade do requerimento (qualificado de articulado).

G. Existe manifesta contradição entre os documentos em apreço quando se afirma no Saneador “Dado que o estado dos autos permite desde já conhecer do mérito da causa, pois que tal não depende de prova a produzir, passa-se a decidir…) e consta da ATA que será “proferido despacho a identificar o objeto do litígio e a enunciar os temas da prova”.

H. Na Audiência Prévia nada consta quanto aos autos terminarem sem ser concedida à Embargante a faculdade de entregar os meios de prova (aliás mencionados no contrato dado à execução) e solicitar o demais sobre a Apólice do Seguro atenta a prova do óbito e o requerimento da Executada de Inutilidade Superveniente da Lide da exequente quanto à C…., por ter falecido no dia 24 de Janeiro de 2019, cfr. Certidão de Óbito junta aos autos como Doc. n.º 2.

I. Não resulta justificada a existência de título executivo com a afirmação da Meritíssima Juiz: “Por outro lado, resulta do disposto nos arts. 729.º NCPC e 731.º do mesmo diploma que não se baseando a execução em sentença mas noutro título (…) a oposição pode ter algum dos fundamentos seguintes: “a) inexistência ou inexequibilidade do título; (...) e) incerteza, inexigibilidade ou iliquidez da obrigação exequenda, não supridas na fase introdutória da execução (...)”.

J. Afirma a Mª Juiz que… [Será] proferido despacho a identificar o objeto do litígio e a enunciar os temas da prova, sem prejuízo de posteriormente à prolação de tais despachos, deduzirem, caso entendam, reclamações e requererem a alteração dos requerimentos probatórios respetivos – vide ATA de Audiência Prévia.

K. Todavia, o Tribunal a quo decidiu extinguir a instância por Despacho Saneador-Sentença embora informadas as partes que os autos tinham condições para prosseguir e de que oportunamente podiam “(…) deduzirem, caso entendam, reclamações e requererem a alteração dos requerimentos probatórios.”

L. Tendo o Tribunal entendimento diverso, de tal devia a Mª Juiz notificar as partes para, no exercício do contraditório, sobre tal se pronunciarem.

M. O princípio do contraditório, ínsito no direito fundamental de acesso aos tribunais, proíbe a prolação de decisões surpresa, mesmo que de conhecimento oficioso, e garante a participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, em termos de, em plena igualdade, poderem influenciar todos os elementos que se encontrem em ligação, direta ou indireta, com o objeto da causa e que, em qualquer fase do processo, apareçam como potencialmente relevantes para a decisão.

N. Violando o princípio do contraditório, o Tribunal a quo proferiu decisão surpresa, que é ilegal, e cometeu uma nulidade, pois omitiu a prática de um ato a que lei obriga, com influência decisiva no sentido da decisão da causa.

O. Tanto mais que as partes fizeram consignar expressamente no contrato de mútuo, concretamente no Documento Complementar elaborado nos termos do n.º 2 do artigo 64.º do CN, fls. 15 e 16, junto aos autos como Doc. n.º 1, artigo 12.º que a PARTE DEVEDORA tem, entre outras, a obrigação de “(…) manter um seguro de vida, durante toda a vigência do empréstimo, que garanta o capital em divida em caso de morte (…)”.

P. Quando o mutuante impõe ao mutuário a celebração de contrato de seguro que assegure a obrigação de restituição do capital mutuado e a remuneração acordada, deve entender-se que a vontade usual das partes será a de que o mutuante se pague primeiro à custa do segurador, pelo que se o mutuante executa o mutuário, este pode, com sucesso, deduzir oposição à execução, cfr. Douto Acórdão do Tribunal da Relação da Relação de Coimbra de 02-06-2020, proferido no Processo n.º 2212/19.4T8CBR-A.C1 [FONTE RAMOS].

Q. O princípio do contraditório não se basta com a garantia de que as partes tenham a possibilidade de intervir no processo, tendo conhecimento e possibilidade de pronúncia quanto aos pedidos que deduzem ou contra si são deduzidos; implica ainda que as partes possam pronunciar-se quanto a questões determinantes para a decisão a proferir e que, constituindo novidade no processo, não tenham sido objeto de pronúncia no decurso do normal contraditório previsto na tramitação processual.

R. O princípio do contraditório assume-se como garantia de participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, Processo n.º 12841/19.08T8LSB.L2-6 (ANA DE AZEREDO COELHO).

S. Foi, assim, violado o princípio da tutela jurisdicional efetiva, previsto no artigo 20.º da Constituição, por ser inadmissível que um procedimento seja decidido ao arrepio do mais elementar direito à igualdade de armas, já de si comprometido, atenta a dimensão e desproporção dos intervenientes na lide: Caixa Geral de Depósitos Vs Sociedade Comercial de índole familiar;

T. A violação do princípio da tutela judicial efetiva é manifestamente injusta, pois tem como consequência a denegação do direito de ação «embargos de executado».

U. Violou o Tribunal garantias constitucionais da Embargante, alheando-se da condução e tramitação dos autos em consonância com os procedimentos legalmente previstos.

V. O Despacho Saneador/Sentença em crise é da exclusiva lavra do Tribunal, não podendo ser desaplicado o disposto no n.º 3 do artigo 3.º do Código de Processo Civil, constituindo a sua violação também vicio de inconstitucionalidade.

W. O juiz deve observar e fazer cumprir – em todo o processo - o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.

X. As ulteriores diligências para carrear meios de prova sobre o seguro de vida e companhia seguradora, nos termos contratualmente previstos por Embargante e Embargada será essencial para a boa decisão da causa com vista a que seja feita Justiça.

Y. Temos, pois, que o Tribunal a quo não só violou o n.º 3 do artigo 3.º do Código de Processo Civil, como incorreu na prática de uma nulidade, nos termos do disposto no artigo 195.º do Código de Processo Civil e inconstitucionalidade por violação do artigo 20.º da CRP.

Pede a final seja revogado o Despacho Saneador/Sentença recorrido e substituído por Acórdão que dê acolhimento ao invocado pedido de tramitação dos autos, nos termos alegados, em consonância com os cânones legais.

Deduzindo contra-alegações veio a embargada dizer:

1) O presente recurso foi interposto pela Recorrente na sequência da proferição do douto despacho saneador-sentença de 16/06/2021, que julgou totalmente improcedentes, por não provados, os Embargos de Executado deduzidos por apenso aos presentes autos.

2) Invoca a Recorrente a nulidade daquele despacho, ao abrigo do disposto no art.º 195.º do C.P.C, bem como a inconstitucionalidade do mesmo por violação do art.20.º da C.R.P..


3) Por, alegadamente, a ata de audiência prévia se encontrar em oposição com factos enunciados no despacho saneador, e por considerar que o dito despacho consubstancia uma “decisão-surpresa”.

4) Salvo o devido e merecido respeito, não pode a Recorrida sufragar este entendimento, uma vez que não assiste qualquer razão à Recorrente.

5) Em 28/09/2020, veio a Recorrente alegar que a mutuária C…. faleceu em 24/01/2019, e que, do contrato de mútuo executado e do documento complementar ao mesmo, resultava que a devedora se obrigava a manter um seguro de vida ativo que garantisse o pagamento do capital em dívida, em caso de falecimento, tendo, consequentemente, requerido a junção da apólice do seguro, com vista ao eventual acionamento da Seguradora.

6) Ora, a mutuária C… já havia falecido há um ano, quando a Recorrente deduziu os presentes Embargos de Executados.

7) Também a Recorrente foi parte no contrato dado como título executivo, pelo que tinha obrigação de conhecer as cláusulas constantes do mesmo.

8) Nessa medida, nenhuma das questões suscitadas pela Recorrente no articulado de 28.09.2020 são supervenientes.

9) Pelo que andou bem o tribunal a quo ao não admitir tal articulado, por extemporâneo.

10) Pois, toda a defesa do Embargante deve resultar da petição de Embargos, exceto se se tratar de matéria superveniente (art. 728.º/2 do C.PC.) – o que não sucede no caso dos autos!

11) Importa também salientar que o alegado no articulado de 28.09.2020 pela embargante constitui um novo meio de defesa, pondo em causa a exigibilidade da quantia exequenda.

12) Não sendo por isso admissível, quando anteriormente já haviam sidos deduzidos Embargos de Executados.

13) Posto isto, e ainda que não tenha sido alegado pela Recorrente, não se verifica qualquer superveniência, quer subjetiva quer objetiva, dos factos alegados no articulado de 28/09/2020.

14) Pelo que o douto despacho recorrido não merece qualquer censura a este propósito.

15) Por outro lado, alega a Recorrente que o despacho saneador-sentença


constitui uma “decisão surpresa”, em violação direta do princípio do contraditório, previsto no n.º 3 do art. 3.º do C.P.C..

16) Ora, não corresponde à verdade o alegado pela Recorrente quanto ao “Tribunal a quo decidiu extinguir a instância por Despacho Saneador Sentença apesar de antes ter informado as partes que os autos tinham condições para prosseguir”.

17) Do Despacho constante da ata de audiência prévia resulta que “Considerando que a prolação do despacho saneador precede, pela ordem lógica constante do n.º 1 do artigo 594.º do CPC, as demais questões a abordar em sede de audiência prévia, em face das disposições conjugadas dos arts. 6.º n.º1 e 547.º NCPC ficam as partes notificadas para dizerem se anuem à dispensa, no mais, da audiência prévia, sendo bem assim por escrito - se a ação houver de prosseguir - proferido despacho a identificar o objeto do litígio e a enunciar os temas da prova, sem prejuízo de posteriormente à prolação de tais despachos, deduzirem, caso entendam, reclamações e requererem a alteração dos requerimentos probatórios respetivos.” – negrito e sublinhado nosso.

18) Sendo por demais evidente que o tribunal a quo deixou bem claro que iria ainda analisar se a ação haveria de prosseguir ou não, podendo ser de imediato conhecido o mérito da causa – o que veio a suceder!

19) Assim, encontrando-se reunidos todos os elementos que permitissem conhecer do mérito da causa, nada obstava a que o fizesse mediante a prolação de um saneador-sentença, conforme previsto na alínea b) do n.º 1 do art. 595.º do C.P.C..

20) Sem, com tal decisão, violar o princípio do contraditório, tal como alega a Recorrente.

21) Não colhe também a argumentação expendida pela Recorrente de que, com a prolação do saneador-sentença, foi-lhe vedada a hipótese de juntar aos autos os meios de prova requeridos no articulado de 28/09/2020, mormente, a junção da apólice de seguro, bem como a eventual intervenção da Seguradora nos autos.

22) Na sequência da não admissão do articulado de 28.09.2020, a defesa da Recorrente está assim exclusivamente concentrada na petição de Embargos, sendo certo que pela mesma não foi aí requerida qualquer produção de prova.

23) Pelo que, estando em discussão apenas matéria de direito, sem necessidade de produção de prova, estava na disponibilidade do tribunal a quo conhecer de imediato do mérito em causa (cfr. art. 596.º, n.º 1, al. b) e art. 595.º, nº 1, al. b)).

24) Assim sendo, não se verificou qualquer violação do princípio do contraditório e do princípio constitucional da tutela jurisdicional efetiva por ter sido proferido um despacho saneador-sentença.

25) Sendo certo que o direito que a Recorrente alega lhe ter sido negado, simplesmente não existe, pois foi requerido em articulado extemporâneo!

26) E, aliás, o tribunal a quo cumpriu todos os trâmites legais para que fosse possível conhecer do mérito da causa naquele momento.

27) Pois, procedeu à marcação da audiência prévia para os fins previstos no art. 591.º do C.P.C.., entre os quais, “facultar às partes a discussão de facto e de direito, nos casos em que ao juiz cumpra apreciar exceções dilatórias ou quando tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa”.

28) Assim, tendo sido facultada tal possibilidade às partes, não se pode conceber que venha a Recorrente alegar a violação do princípio do contraditório.

29) Da unificação do que antecede, só poderá concluir-se que o douto despacho recorrido não padece de qualquer nulidade, pois, não existindo qualquer obstáculo ao conhecimento imediato do mérito da causa, e considerando-se o tribunal a quo apto para tal, tratando a discussão de matéria de direito de direito, a prolação de saneador-sentença era totalmente admissível.

Pede, por fim, seja negado provimento ao recurso.


II

Os factos a considerar, reportados à condução dos autos e à sua expressão decisória no contexto contemplado pelo recurso, resultam do relatório supra.

III


Na consideração de que o objeto dos recursos se delimita pelas conclusões das alegações (artºs. 635º, 3 e 639, 1 e 2 CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art.608º in fine), é a seguinte a questão a decidir:

- Se, ao decidir de forma e de mérito no saneador proferiu o tribunal a quo uma “decisão surpresa” por violação do princípio do contraditório e, em sentido oposto ao anteriormente anunciado ou sugerido pelo tribunal.

Estando desse modo as decisões feridas de nulidade por omissão da prática de um ato a que lei obriga (notificação para pronúncia e/ou notificação para prova), com influência decisiva na decisão da causa.

Importa ter presente o seguinte: não se pode confundir a garantia do contraditório e o direito à prova com critérios de julgamento.

O direito ao contraditório mostra-se consagrado no art. 3º do CPC.

Do mesmo resulta que o direito ao contraditório tem um conteúdo multifacetado: a parte tem o direito a conhecer que contra si foi interposta uma ação ou requerida uma providência e (salvo casos excecionais onde interesses legítimos se sobreponham) a ser ouvida antes de ser tomada qualquer decisão. Tem igualmente o direito a conhecer todos os comportamentos assumidos pela contraparte no processo e a pronunciar-se sobre os mesmas.

Não pode o tribunal, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir de direito de facto, mesmo relativamente a questões de conhecimento oficioso, sem dar às partes a possibilidade de sobre elas se pronunciarem. Prevenindo o efeito surpresa.

O art. 3º, nº 3 CPC impõe ao juiz o dever de observar e fazer cumprir ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório.

A violação do contraditório configura uma nulidade processual regra (art. 195º CPC) porque, constituindo um princípio fundamental do processo civil, decorrente do princípio da igualdade das partes, a sua violação é suscetível de influir no exame ou na decisão da causa.

Em suma, a parte tem o direito à audição prévia e tem o direito de resposta, cominando a lei, a ofensa a esses direitos, com a nulidade do ato.

A parte tem ainda o direito à prova e a contraditar a prova contra si produzida (artºs 413º e 415º CPC).

O exercício de qualquer um destes direitos (pronúncia e prova) deve ser exercido nos momentos próprios definidos no Código de Processo Civil.

É na fase dos articulados que as partes devem expor os factos essenciais que constituem a causa de pedir ou, defender-se por exceção e impugnação e, apresentar os respetivos meios de prova (art.s 552º, 6 e 572º, d) CPC). Sendo os factos supervenientes, poderão ser alegados nos termos do art. 588º do CPC.

Pode também o requerimento probatório apresentado nos articulados ser alterado na audiência prévia quando haja lugar a esta nos termos do disposto no artigo 591º (audiência prévia) ou, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 593º do CPC, se tiver ocorrido dispensa de audiência prévia.

Podendo o rol de testemunhas ser aditado ou alterado até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, quando a mesma seja de realizar, sendo a parte contrária notificada para usar, querendo, de igual faculdade, no prazo de cinco dias (art. 598º CPC).

O despacho saneador constitui um dos momentos-chave, seja para apreciar os aspetos jurídicos processuais, seja para conhecer do mérito da ação. Dispondo a alínea b) do art. 595º do CPC que:

“1 - O despacho saneador destina-se a:

(…)

“b) Conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma exceção perentória.”

Privilegiando a lei processual a sua prolação oral (em audiência prévia), mas prevenindo o legislador a possibilidade de o fazer por escrito, em razão da complexidade.

Assim o art. 595º, 2 CPC:

“2 - O despacho saneador é logo ditado para a ata; quando, porém, a complexidade das questões a resolver o exija, o juiz pode excecionalmente proferi-lo por escrito, suspendendo-se a audiência prévia e fixando-se logo data para a sua continuação, se for caso disso.”

Por sua vez, ainda que o julgamento de mérito se realize por norma na sentença final, pode esse ato ser antecipado para o despacho saneador.

A decisão dessa antecipação não depende da pronúncia favorável das partes.

Sempre que o estado do processo permita, sem necessidade de mais provas, a apreciação total ou parcial de um dos pedidos ou de alguma exceção, o juiz deve conhecer imediatamente do mérito da causa em correspondência com essa possibilidade, nos termos do art. 595, nº 1 b).

A opção por decidir de mérito no saneador com base no estado dos autos é do julgador. Não está na disponibilidade das partes. Trata-se de um critério de julgamento. Não pode a parte impor uma audiência de julgamento quando o juiz a considere dispensável ou inútil, face à suficiência probatória dos autos e tendo ele o poder/dever de dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere (art. 6º CPC).

Essa opção de julgamento imediato não poderá postergar o direito das partes à discussão e à prova, devendo o julgador assegurar-se que as partes tiveram a possibilidade de discutir e de produzir prova nos momentos disciplinados pela lei processual.

A opção pelo “julgamento imediato” não tem de ser pré-anunciado às partes como uma certeza, mas deve ser anunciada como uma possibilidade.

O julgador nem sempre consegue antever com a necessária segurança o resultado decisório do litígio, sem antes percorrer o processo intelectual decisório, que é, por regra um processo de resolução de dúvidas, seletivo e dialético, logo, um processo que reclama um tempo e um modo de ponderação próprios.

A mesma necessidade de ponderação se pode colocar na avaliação prévia entre dispensar ou não dispensar demais prova.

O que deve ser comunicado às partes é sim, na dúvida, a afirmação dessa possibilidade legal, assegurado que esteja o seu contraditório de pronúncia e prova, nos termos anteriormente expostos.

Definido de forma sumária o enquadramento legal, os princípios e os limites onde se abriga o princípio do contraditório, analisemos da sua eventual ofensa no caso em discussão.

Foi realizada nos autos uma audiência prévia.

O Tribunal havia primeiramente ordenado por despacho de 18-09-2020, a notificação das partes para se pronunciarem quanto à possibilidade de não se oporem a que fosse dispensada a realização de audiência prévia, considerando o aumento de casos de contágio por COVID-19 e, o facto de as partes já terem exercido o contraditório relativamente às questões suscitadas, tendo já apresentado os respetivos requerimentos probatórios e, a embargante opôs-se, ainda que, em rigor, tivesse dirigido a sua não anuência a um outro propósito: a que a decisão de mérito fosse tomada de imediato.

Invocou então a sua pretensão de acionar uma cláusula do contrato de mútuo e hipoteca dado à execução, na qual se previa a obrigação dos mutuários manterem um seguro de vida durante toda vida do contrato. Tendo falecido uma das mutuárias em 24-10-2019, deu conta de ter diligenciado junto da Autoridade de Supervisão de Seguros, com vista à identificação da Companhia Seguradora tomadora do Seguro para eventual promoção da sua Intervenção Principal nos autos. E requereu a notificação da embargada para juntar cópia da referida Apólice e/ou pronunciar-se sobre o peticionado.

Em 08-01-2021 a Embargada veio informar que, não obstante todos os executados se tivessem obrigado a manter um seguro de vida, durante toda a vigência do empréstimo, que garantisse o capital em dívida em caso de morte ou invalidez permanente, por razões que só eles poderiam esclarecer, a falecida executada C…. não cumprira o disposto nessa cláusula pelo que não existia qualquer apólice de seguro vida.

Acolhendo a não anuência e o incidente suscitado, por despacho de 09-04-2021 o tribunal designou data para a realização de audiência prévia, destinada aos seguintes fins, que elencou:

“a) realizar tentativa de conciliação;

b) facultar às partes a discussão de facto e de direito, nos casos em que ao juiz cumpra apreciar exceções dilatórias ou quando tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa;[3]

c) discutir as posições das partes, com vista à delimitação dos termos do litígio, e suprir as insuficiências ou imprecisões na exposição da matéria de facto que ainda subsistam ou se tornem patentes na sequência do debate;

d) proferir despacho saneador;

e) determinar, após debate, a adequação formal, a simplificação ou a agilização processual, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 6.º e no artigo 547.º NCPC;

f) proferir, após debate, o despacho previsto no n.º 1 do artigo 596.º NCPC e decidir as reclamações deduzidas pelas partes; e

g) prover pela audição dos mandatários nos termos e para efeitos da programação da audiência final.”

Ou seja, o tribunal salvaguardou todas as finalidades legais previstas no art. 591º CPC.

Realizada em 12-05-2021, a audiência prévia serviu os seguintes atos (conforme ata):

-Foi tentada a conciliação entre as partes “que não se mostrou possível, resultando a mesma infrutífera, mantendo as partes as posições já vertidas nos articulados”.

- Foi concedida a palavra aos Mandatários para os efeitos do disposto no artigo 594.º, n.º 4 (razões para persistência do litígio), do CPC, sendo que “Por ambos foi dito que oferecem o merecimento dos autos”,

- Foi facultada às partes a discussão de facto e de direito nos termos e para os efeitos previstos no art. 591.º n.º1 al. b) do NCPC, tendo ambos os mandatários, “mantido tudo quanto haviam alegado nos articulados/requerimentos respetivos.

- Foi dada a palavra às partes para discutirem as respetivas posições com vista à delimitação dos termos do litígio nos termos do art. 591.º n.º1 al. c) NCPC, “tendo os Ils. Mandatários dado por reproduzido o já alegado nos articulados/requerimentos”.

Após essa ampla discussão, a julgadora anunciou que face à complexidade das questões a resolver, o despacho saneador será proferido por escrito, sendo lavrado para o efeito termo de conclusão”.

E no mesmo ato auscultou as partes para que dissessem se anuíam no mais, nomeadamente quanto à prolação do despacho saneador, à dispensa da audiência prévia (querendo naturalmente referir-se a uma segunda sessão de audiência prévia, pois que, estava-se em plena audiência prévia), bem como a ser proferido por escrito – “se a ação houver de prosseguir” - despacho a identificar o objeto do litígio e a enunciar os temas da prova, sem prejuízo de posteriormente à prolação de tais despachos, deduzirem, caso entendessem, reclamações e requerimentos de alteração dos requerimentos probatórios.

Por ambos os mandatários foi dito anuírem à tramitação nos termos propostos pela Mm.ª Juíza de Direito.

Em 16-06-2021 o tribunal a quo proferiu saneador sentença.

Sendo certo que a proposta apresentada pela Mm.ª Juíza e que teve a anuência das partes, não antecipava qualquer opção do tribunal quanto ao momento do conhecimento de mérito, prevenia, contudo, da possibilidade de tal acontecer no momento do saneador. A elaboração de despacho a identificar o objeto do litígio e a enunciar os temas da prova, eventuais reclamações e alteração dos requerimentos probatórios ficou dependente de uma condição, expressa em audiência prévia “se a ação houver de prosseguir”. Por interpretação a contrario, se o processo não houver de prosseguir, a decisão será imediata.

O julgador não se vinculou a prosseguir com a ação, ou seja, a não decidir de imediato.

Por isso a prolação de saneador sentença não foi uma surpresa. Foi antecedida dum aviso implícito dessa possibilidade. Como anteriormente referimos a opção pelo “julgamento imediato” não tem de ser pré-anunciada às partes como uma certeza, mas sim, como uma possibilidade. As partes devem estar prevenidas para essa possibilidade, o que aconteceu no caso em discussão.

E como resulta à evidência da ata de audiência prévia as partes tiveram ampla possibilidade de discussão dos contornos do litígio. Quer do litígio inicial, quer do incidente suscitado pela embargante a propósito da possibilidade de se ter celebrado um contrato de seguro vida de que a mutuante beneficiaria por força do contrato de mútuo e hipoteca.

Não tendo da parte da embargante sido transmitida qualquer outra informação alusiva ao mesmo, nomeadamente do resultado das diligências que teria efetuado oito meses antes da realização da audiência prévia, junto da Autoridade de Supervisão de Seguros, para eventual identificação da companhia seguradora garante dum seguro vida.

Limitando-se as partes, em audiência prévia, a oferecer o merecimento dos autos e a remeter para o que anteriormente haviam alegado e requerido nos articulados respetivos, depois de lhes ter sido proporcionada uma ampla discussão.

Uma vez pré-anunciada a possibilidade de decisão imediata, não estava o julgador vinculado a mais.

Embora não estando em causa neste recurso, a bondade das decisões tomadas, faremos uma breve referência às mesmas, para ajuizar de um eventual prejuízo probatório da apelante, com a prolação imediata da sentença.

Ora, no saneador-sentença o tribunal decidiu que o requerimento/articulado deduzido em 28-09-2020 não era admissível por assentar numa realidade antecedente (a cláusula que previa a realização de um contrato de seguro constava do contrato executado e, o falecimento de uma das devedoras ocorrera em data anterior à dedução dos embargos), do conhecimento da embargante à data da dedução dos embargos e que não fora então alegada, sendo por isso um “fundamento novo”, não estando igualmente observados os pressupostos de admissibilidade dum articulado superveniente.

O Acórdão do Tribunal da Relação da Relação de Coimbra de 02-06-2020, proferido no Processo n.º 2212/19.4T8CBR-A.C1 [Fonte Ramos], invocado pela apelante em reforço da sua pretensão, não contraria esta posição, antes a confirma. No caso desse acórdão, o seguro de vida não só não estava em discussão, como constituiu fundamento originário dos embargos. Tendo a Seguradora sido logo demandada como terceiro na petição de embargos de executado. O que a Relação admitiu.

No presente caso, o fundamento decisório, assente em razões formais e adjetivas, não dependia de prova a produzir.

E quanto ao mérito, sendo as questões subjacentes, as da inexistência ou inexequibilidade do título e da iliquidez da obrigação exequenda, não se conjetura que outra prova poderiam as partes trazer aos autos, com consistência e utilidade probatória, além dos documentos já juntos (contrato e documento complementar) e, o parcial acordo de factos alegados.

Não se vislumbra, assim, qualquer prejuízo probatório para a embargante, na antecipação dessas questões.

Concluindo, o Tribunal a quo observou e fez cumprir o princípio do contraditório ao longo do processo, tendo dado às partes a possibilidade de se pronunciarem previamente sobre a dispensa da audiência prévia, tendo nesta dado às partes uma ampla possibilidade de discussão de facto e de direito, ouvindo-as por fim sobre a prolação do saneador por escrito com dispensa de nova sessão para esse efeito, salvaguardando nessa audição a possibilidade de conhecimento imediato. Proposta que teve a anuência de ambas as partes.

Não se verifica, por isso, o invocado vício de nulidade por violação do princípio do contraditório, devendo o recurso (mais propriamente, a arguição de nulidade) improceder.

(…)

IV

Por todo o exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pela apelante.


Évora, 27 de janeiro de 2022

Anabela Luna de Carvalho (relatora)
Maria Adelaide Domingos
José António Penetra Lúcio

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[1] Cremos que se referia antes ao art. 595º CPC.

[2] Articulados supervenientes.

[3] Sublinhado nosso.