INJURIAS
AMEAÇAS
Sumário

– As expressões dirigidas pelo arguido ao assistente “gordo de merda” no contexto de “oh gordo da merda, que nem a camisola cabe dentro dos calções, nem consegues apertar os sapatos” e “filho da puta”, esta repetida, comportam, no quadro conflitual e de disputa em que foram proferidas, um indiscutível sentido pejorativo, que transcende a mera consideração da forma corporal. Ambas transportam o sentido de degradação e desqualificação da pessoa no concerto do tecido social, lesivo da honra e consideração devidos a quem são dirigidas essas palavras.

– Provado ainda que o arguido proferiu ainda as expressões que dirigiu ao assistente: “Cuidado que os acidentes acontecem, quando menos esperares, o teu vai acontecer, podes ter a certeza, oh filho da puta, gordo de merda, não tenho nenhum medo de ti”, “tira os óculos e olha bem para mim, porque um dia irá acontecer”, “oh gordo da merda, que nem a camisola cabe dentro dos calções, nem consegues apertar os sapatos” e, bem assim, que «estabelecendo contacto com o assistente e a sua companheira, o arguido começou a passar a mão pelo pescoço como que dizendo “que lhes iria cortar o pescoço”», tendo o evento global uma componente dirigida a atingir a honra e consideração do assistente, acompanhada de alusões vagas a um mal futuro e a que o arguido não tinha medo do assistente (o que assume, no quadro de circunstâncias, uma afirmação de superioridade, desde logo no plano físico-atlético), numa escalada da animosidade intersubjetiva, o gesto que anuncia o corte futuro do pescoço do assistente, na zona da garganta, representa um novo e mais elevado patamar da contenda.

– E, na perspetiva do visado, e à luz das regras de experiência comum, tomando como parâmetro a capacidade de entendimento e volição das mulheres e homens medianos, essa expressão não verbal, no quadro de circunstâncias em que foi proferida, comporta seriedade e aptidão a causar receito e temor pela integridade física e vida do visado, sendo adequada a coartar a livre determinação do assistente.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa



I.Relatório:


1.Nos presentes autos, NL apresentou denúncia contra LM pelos crimes de injúria e ameaça, e requereu a sua constituição como assistente, sendo admitido a intervir nos autos nessa qualidade por despacho de 15 de outubro de 2019 (fls. 2 a 6).

2.Notificado para deduzir acusação particular, veio o assistente apresentar peça de «acusação particular, com pedido de indemnização civil», imputando ao arguido LM a prática, como autor material e na forma consumada, de um crime de injúria p. e p. pelo artigo 181.º, n.º 1 do Código Penal (CP), e pedindo que o mesmo seja condenado no pagamento ao assistente de «quantia não inferior a cinco mil euros», a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros legais desde a notificação até efetivo e integral cumprimento (fls. 85 a 99).

Notificado da acusação deduzida, o arguido requereu, inter alia, a abertura de instrução (fls. 137 a 142).

3.Por seu turno, o magistrado do Ministério Público titular do inquérito determinou o arquivamento dos autos quanto ao crime de ameaça, p. e p. pelo artigo 153.º, n.º 1 do CP, considerando para o efeito que a expressão «cuidado que os acidentes acontecem, quando menos esperares, o teu vai acontecer» não preenche os elementos desse crime (fls. 118 e 119).

Notificado, o assistente apresentou requerimento para abertura de instrução quando aos «factos denunciados (...) passíveis de consubstanciarem a prática de um crime de ameaça», pugnando pela pronúncia do arguido pela prática de um crime de ameaça, p. e p. pelo artigo 153.º, n.º 1 do CP, e arrolando prova testemunhal (fls. 147 a 159).

4.–Aberta a instrução requerida pelo arguido e pelo assistente, foi indeferida a inquirição das testemunhas arroladas pelo primeiro.
Realizado debate instrutório, foi proferida decisão de não pronúncia, quer quanto ao imputado crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181.º, n.º 1 do CP, quer quanto ao crime de ameaça, p. e p. pelo artigo 153.º, n.º 1 do CP.

5.Inconformado, assistente NL interpôs recurso dessa decisão para este Tribunal, extraindo da motivação as seguintes conclusões:

«ADa prática do crime de injúria
1.–A decisão recorrida reconhece que a prova trazida aos autos, na fase de inquérito, através da audição do assistente bem como das duas testemunhas (...) permite considerar suficientemente indiciados todos os factos integradores do tipo de crime de injúria simples (...), mais admitindo, expressamente que a versão apresentada pelo assistente, quanto ao crime de injúria simples perpetrado pelo arguido em relação àquele, em sede de inquérito encontra base probatória suficiente e bastante de onde resultam indiciados os factos integradores do referido crime, sendo que em sede instrutória tais indícios não foram, em nada, abalados, havendo evidências de indícios suficientes que podem integrar tanto os elementos obiectivos, como o elemento subjectivo do referido crime imputado ao arguido, nos termos acabados de considerar (...).
2.–Contudo, contradizendo-se, veio o referido tribunal a quo entender que, no entanto, constata-se que a acusação particular formulada pelo assistente contra o arguido pela prática do crime de injúria simples, p. e p. pelo artigo 181º do C. Penal, pese embora enuncie todos os elementos objetivos do referido tipo de ilícito criminal, nada refere quanto ao elemento subjetivo, decidindo, a final, que o arguido não será pronunciado pelo crime por que se mostra acusado pelo assistente, uma vez que a acusação particular não contém todos os requisitos exigidos nos termos do disposto no art..º 285.°, n.º 2 do C. Penal, determinando, a final, de uma assentada só, o arquivamento do processo.
3.–O despacho de não pronúncia recorrido não elenca, ainda que resumidamente, os factos que possibilitaram chegar à conclusão da insuficiência de prova indiciária, mostrando-se ademais, a nosso, ver, contraditório nos seus fundamentos, como atrás já realçado.
4.–Estas circunstâncias - contradição nos seus fundamentos e omissão dos factos concretamente indiciados e não indicados, nomeadamente os referentes ao elemento subjectivo que invoca não estar preenchido ou alegado, a decisão instrutória recorrida padece de nulidade que aqui se invoca, sem prejuízo de, em abono do princípio da unidade, adequação formal e aproveitamento dos atos processuais, se entender poder essa Relação de Lisboa decidir como adiante se requer.
(...)
5.–A decisão recorrida não se mostra coerente nem condizente com teor efectivamente constante da acusação apresentada pelo assistente - onde o elemento subjetivo se encontra suficientemente descrito e invocado em termos factuais.
6.–O Assistente apresentou a sua Acusação Particular em relação ao único crime por si denunciado que, dada a sua natureza de crime particular, dependia dessa mesma acusação particular, tendo-o feito com dedução cumulativa de pedido de indemnização civil, peça que designou por "Acusação Particular com Pedido de Indemnização Civil" e na qual, no que aqui releva, após devidamente contextualizado o episódio trazido aos autos em termos de tempo e lugar, alegou expressamente, nos artigos 18°, 24°, 25°, 26°, 33° e 34º da referida peça processual, o seguinte:
(...)
7.–Admite-se que o assistente poderia ter sido mais expansivo na exposição fatual quanto ao elemento subjectivo, mas tal não retira nem afasta a realidade de que tal elemento ali consta, de forma expressa e bastante, resultando ali suficientemente alegado que o arguido atuou com a intenção de molestar o assistente no seu bom nome, honra e consideração, pessoal e com consciência de que a sua atuação era adequada para tal, quando lhe dirigiu as expressões que lhe são imputadas, sabendo da ilicitude de tal conduta.
8.–Também se reconhece que, por lapso informático, parte destas referências factuais ao elemento subjectivo constantes da referida peça processual, nomeadamente as duas últimas acima referidas, encontram-se expostas apenas na parte que o assistente subintitulou de "Pedido de Indemnização Civil".
9.–Contudo, é certo que a peça processual é uma só, bem como que o pedido de indemnização civil é uma decorrência indissociável do crime/ da acusação que o sustenta pelo que se mostra não só adequado como necessário considerar  como  suficientes os   factos  constantes  da peça processual/acusação particular apresentada como bastantes para, se provados, levar à condenação do arguido pela prática do crime de injúria p. p. pelo artigo 181.º do Código Penal que lhe é imputado, pelo que a acusação não devia ter sido rejeitada.
10.–Ao assim não ter entendido, o Tribunal a quo, longe de refletir qualquer preocupação substancial ou material com a defesa dos direitos do arguido, apenas o veio premiar, frustrando os objetivos do próprio sistema processual penal em desrespeito do disposto no art.º 283.º, n.º 3 aplicável ex vi art.º   285°, n.º 3, ambos do Código do Processo Penal, impondo-se a sua revogação como peticionado in fine.
Ainda que assim se não entenda,
11.–Aceita-se que, ocorrendo, a falta na acusação do elemento subjectivo, determina a nulidade da acusação particular, nos termos do artigo 283.º, n.º 3, al. b) do CPP, por falta de narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, caso em que seria manifestamente infundada.
12.–Contudo, nem o ne bis in idem, nem o acusatório, exigem que qualquer invalidade ou erro processual sejam fatais, exigindo apenas que se respeitem os limites do objeto do processo e que se mantenha a continuidade do processo. Pelo que não seria contrár ao ne bis in idem uma interpretação do artigo 311.º n.º 2, [do CPP] segundo a qual esta rejeição admitiria ainda a reformulação da acusação, quando lhe faltem os requisitos referidos no n.º 3 - Inês Ferreira Leite, in obra citada, vol. II, pp. 573/574 sendo certo que o arguido não tem propriamente um direito a que os erros ou imprecisões funcionem sempre a seu favor.
13.–Estamos perante vícios formais da acusação - falta de identificação do arguido, falta de narração dos factos e falta de indicação das disposições legais aplicáveis e das provas que a fundamentam - que não relevam necessariamente da viabilidade processual ou substantiva da ação penal, valendo para o vício previsto no art 311.º nº 3 [als a), b) e c)], como para a nulidade sanável prevista no art. 283.º do CPP, o princípio do aproveitamento dos atos imperfeitos expresso nos n.ºs 2 e 3 do art.º 122.º do CPP, imposto nestes casos pelo interesse público na perseguição e sujeição a julgamento dos ilícitos penais indiciados - Ac RE de 06/03/2012 - Proc. 790/ 10.2TAABF.E1.
14.–Ora, a sanação destes vícios formais, seja pela indicação do nome do arguido, a indicação da prova ou das disposições legais ou a mera articulação de factos omitidos, não contende com garantias ou direitos fundamentais dos arguidos, nem, tão pouco, com princípios estruturantes do processo penal, sendo certo que não ocorre qualquer violação de caso julgado material, uma vez que, no despacho que rejeitou a acusação ou determinou a não pronúncia por falta da referência ao elemento subjetivo, o tribunal não se debruçou sobre o mérito da causa.
15.–O poder-dever de perseguir criminalmente os autores de crimes não pode ser posto em causa por questões meramente formais que não envolvam a ofensa de direitos fundamentais e garantias processuais dos arguidos, situação que não se verifica minimamente em hipóteses como a presente de mera imperfeição formal da acusação.
16.–Confirmando a correção e adequação deste entendimento e solidificando a vasta jurisprudência que depois se lhe seguiu em sentido idêntico, veio o Tribunal Constitucional no seu Acórdão n.º 246/2017 (Processo n.º 880/2016) "não julgar inconstitucional a norma extraída da conjugação dos artigos 311.º, n.ºs 1, 2, alínea a), e 3, alínea d), e 283.º, todos do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual, tendo sido deduzida acusação contra um arguido, imputando-lhe a prática de um crime, e tendo esta acusação sido liminarmente rejeitada por insuficiente descrição de um elemento típico, poder vir a ser validamente deduzida nova acusação pela prática, nas mesmas circunstancias de tempo e lugar, do mesmo crime, suprindo a omissão da descrição do sobredito elemento típico, sujeitando-se a julgamento e condenando-se o arguido pelos factos e qualificação jurídica dela constantes."
17.–Com a fundamentação para a qual remetemos, este Acórdão do Tribunal Constitucional conclui que se afigura pois, razoável que, no processo penal, o legislador encontre soluções que permitam a correção de lapsos e omissões, até certo ponto, ultrapassando a "não aptidão" da acusação, desde que sejam respeitados certos limites (...) e se continue a assegurar ao arguido um julgamento justo e com as devidas garantias de defesa."
18.–Ora, o domus do inquérito é o Ministério Público, não é o juiz de julgamento, nem o juiz de instrução pelo que se este rejeita a acusação, ou melhor, entende não pronunciar o arguido com o fundamento na insuficiente descrição de um elemento típico não deve o mesmo determinar, tout court, o arquivamento dos autos mas sim devolver ao Ministério Público ou ao Assistente o poder de corrigir tal imprecisão, deduzindo nova acusação.
19.–Nestes termos, a rejeição liminar da acusação particular por insuficiente descrição de tipo de crime não deve determinar o imediato arquivamento dos autos mas sim a notificação da entidade acusadora (MP/assistente) para, respeitando o mesmo condicionalismo naturalístico, suprimir a dita insuficiência através da dedução de novo libelo acusatório.
20.–E diga-se, este o entendimento que vem vingando, de forma segura, na nossa jurisprudência, muito na senda do que foi confirmado pelo referido Acórdão do Tribunal Constitucional nº 246/2017 - veja-se, a título de exemplo, entre outros, os Acórdãos da Relação de Évora de 06-03-2012 (Proc. 790/10.2TAABF.E1), de 05-07-2016 (Proc. 132/13.5TAABF.E1), de 10/04/2018 e de 12/01/2021 (Proc. 482/19.7T9FAR.E1), Acórdão da Relação de Guimarães de 12.10.2020 (Proc. nº 2065/19.2T9VCT.G1), Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 08/05/2018 (Proc. 542/16.6GCVIS.C1)
21.–E como bem realçado no Ac. RG de 12.10.2020 - Proc. nº 2065/19.2T9VCT.G1, qualquer outra solução jurídica que não passasse pela possibilidade de tal reformulação, colocaria em causa os objetivos do próprio direito penal e processual penal. Nenhum cuidado compreenderia que o poder punitivo do Estado e a realização da justiça material pudessem ficar por realizar em virtude de erros, lapsos e omissões suscetíveis de serem reparáveis, desde que, claro está, seja assegurado ao arguido um julgamento justo e com todas as garantias de defesa.
22.–Ou seja, não podendo o tribunal a quo substituir-se e acrescentar tais factos (elemento subjetivo), deveria o mesmo determinar a possibilidade do assistente apresentar nova acusação em que supra a deficiência apontada e não determinar, sem mais e como o fez, o arquivamento dos autos, impondo, portanto, a revogação de decisão recorrida como melhor peticionado in fine.

B–Da prática do crime de ameaça
23.–Dando como comprovada a ocorrência das expressões "cuidado que os acidentes acontecem, quando menos esperares o teu vai acontecer, podes ter a certeza oh filho da puta", "tira os óculos e olha bem para mim porque um dia irá acontecer", entre outras, proferidas pelo arguido, a par das injúrias, dirigidas a si, conforme versão relatada pelo assistente e avaliando as mesmas, concluiu o tribunal a quo que os factos supra referidos são insuficientes para que se possa sequer considerar a existência de indícios suficientes da prática do crime de ameaça simples, em causa, ou seja considera que os factos indiciados não são suficientes para integrarem, ainda que de forma indiciária, os elementos objetivos do crime de ameaça simples, p.p. pelo art.º 153º, n.º 1 do Código Penal.

24.–Verifica-se, contudo, que:
O tribunal a quo omitiu e não avaliou outras expressões denunciadas, proferidas nesse episódio/ dia, nomeadamente expressões gestuais, de relevo;
nos parece ser evidente a qualquer homem médio ter sido a integridade física e a vida do assistente os bens pessoais que o arguido anunciou querer atingir;
nunca foi relatado (muito menos pelo próprio arguido que se remeteu ao silêncio em todo o processo), porque inexistente, um qualquer contexto de desentendimento mas apenas de "ataque" premeditado, não provocado e unilateral por parte do arguido;
este comportamento unilateral do arguido está longe de se mostrar um comportamento isolado ou ˙nico, tendo, "apenas", dado o contexto em que foi executado, sua gravidade e impacto, sido a "gota de água" que impôs que o assistente se defendesse com recurso às regras do Estado de Direito;
as circunstâncias em que foram proferidas as ditas expressões foram, a nosso ver, incompreensível e gravemente desvalorizadas pelo tribunal a quo, ou melhor e mais grave, foram invertidas na sua relevância, pois as mesmas não só se demonstram a idoneidade de tais expressões serem consideradas como sérias pelo assistente como, a nosso ver, agravam, em muito, essa virtualidade, resultando num compreensível e evidente medo e inquietação, susceptíveis de prejudicar a liberdade de determinação do assistente, como prejudicaram.
25.–O arguido, sabendo que não o podia fazer, ao proferir ao assistente, a par e em simultâneo com as intensas injúrias que lhe dirigiu, entre outras, as expressões: "cuidado que os acidentes acontecem, quando menos esperares, o teu vai acontecer", "tira os óculos e olha bem para mim porque um dia irá acontecer", pretendeu anunciar um mal futuro de ofensa à sua integridade fÌsica e vida, e intimidar, atemorizar e coartar mesmo, com o propósito maior de lhe causar perturbação e inquietação na sua vida, o que conseguiu.
26.–Nesse mesmo dia e ainda contextualizado no episodio relatado pelo assistente e conforme também denunciado pelo mesmo, o arguido fez questão de ainda "proferir", agora gestualmente, uma expressão que se pode traduzir, com alguma segurança e como comumente aceite na expressão verbal/escrita, em "vou-te cortar o pescoço", ou seja, "vou-te matar" - assim reiterando, de forma pensada, o anúncio de mal futuro sobre a sua vida previamente transmitidos.
27.–No contexto e circunstâncias relatadas, em que foram preferidas tais expressões (verbais e gestuais) - absolutamente autonomizáveis da injúria concretizada também nesse episódio, mostra-se evidente que o arguido pretendeu, friamente (e não a "quente"), deixar claro que, não tendo conseguido concretizar essas agressões ali in loco, dada a presença de terceiros e apenas por causa da intervenção física desses terceiros, como descrito na denuncia, o faria quando o assistente menos o esperasse e ninguém o pudesse impedir.
28.–E ao fazê-lo, o arguido agiu de forma pensada, deliberada, livre e consciente de que não o podia fazer e de que tais condutas eram proibidas punidas por lei.
29.–Estas expressões, verbais e gestuais - estas últimas nítida e incompreensivelmente, ignoradas na decisão ora recorrida - o contexto de premeditação e de terror constante - de que o episódio aqui em análise é apenas um deles, a inexistência de qualquer desentendimento, provocação ou contributo por parte do assistente para estes ataques e ameaças unilaterais do arguido, nomeadamente para o descrito na denúncia sub judice, são susceptíveis de à luz das regras de experiência comum e do normal comportamento humano, serem interpretadas por qualquer pessoa, no contexto e circunstâncias em que o assistente se encontrava, como uma efetiva ameaça futura por parte do arguido à sua integridade física e/ ou vida, incutindo, como incutiram tal como era intenção do arguido, forte receio e medo no assistente.
30.–Desvalorizar estas circunstâncias, fazer a inversão da relevância do contexto e dos sinais graves, constantes e claros, transmitidos pelo assistente, procurar desculpabilizar o arguido invocando contextos de desentendimentos que, na verdade, não existem, como o fez o julgador na decisão recorrida, não se mostra contra legem como conduz, não raras vezes, a resultados sociais trágicos que não só poderiam como deveriam ser evitados mediante a devida atenção do julgador, atenção e cuidado que, neste caso mais se impõe atento as relações familiares e contatos regulares existentes e que serão sempre necessários, o que apenas será possível salvaguardar com a censura jurídica de tal comportamento do arguido por via da sujeição do mesmo a julgamento.
31.–Ao entender não pronunciar o arguido como denunciado pelo assistente pelo crime de ameaça, o tribunal a quo não só não acautelou a defesa dos interesses públicos penalmente relevantes como desrespeitou o disposto no artigo 153º do Código Penal.
Nestes termos, deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que, julgando desrespeitado o disposto no art.º 283.º, n.º 3 aplicável ex vi art.º 285º, n.º 3, ambos do Código do Processo Penal, julgue admissível o procedimento criminal quanto ao crime de injúria e pronuncie o arguido pelos factos e com o enquadramento jurídico-penal descrito na acusação particular pelo referido crime de injúria simples, com a consequente remessa dos autos à distribuição ou, caso assim não se entenda quanto ao crime de injúria determine a devolução dos autos ao Ministério Público, titular da fase processual para o final da qual se regride, de modo a que se proceda à notificação da assistente para formular em 10 dias nova acusação particular pelo crime particular de injúria com sanação do vício formal apontado, a que se »

6.–Apenas o Ministério Público apresentou resposta, dizendo que não assiste razão ao recorrente, aderindo à posição assumida na decisão instrutória e respetiva fundamentação.
7.Admitido e subido o recurso a esta Relação, a Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, entendendo que o despacho em crise deve ser revogado e substituído por outro que pronuncie o arguido pelos crimes em causa.
8.Cumprido o disposto no n.º 2 do artigo 417.º do CPP, não foi apresentada resposta.

Cumpre apreciar e decidir.

II.–Fundamentação

A. Objeto do recurso e questões a decidir
9.Mostra-se sedimentado na doutrina e na jurisprudência o entendimento de que a delimitação do objeto do recurso decorre do enunciado das conclusões formuladas na motivação do recurso, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 2.ª ed., Ed. Verbo, pág. 335 e Ac. do STJ de 24/03/99, in CJ [STJ], ano VII, T1, pág. 247, entre muitos).

As questões colocadas são as seguintes, seguindo a ordem lógica dos respetivos efeitos:
i)-Irregularidade da decisão recorrida;
ii)-Verificação dos pressupostos de facto e de direito para a prolação de decisão de pronúncia, quanto a ambos os crimes imputados; e subsidiariamente a esta última questão, relativamente ao crime de injúria,
iii)-Concessão de novo prazo para o assistente deduzir acusação, com retorno do processo à fase de inquérito.

B. Da decisão recorrida
10.Importa começar por enunciar os termos da decisão recorrida, com destaque para os seus trechos mais relevantes para a decisão das questões enunciadas.

Depois do relato sobre as vicissitudes processuais relevantes, e de excurso sobre o objeto e finalidade da fase de instrução, bem como sobre os elementos essenciais dos crimes imputados ao arguido, lê-se no despacho recorrido:

«Quanto ao crime de injúria simples, p. e p. pelo artigo 181º, do C. Penal.
Na verdade, a versão apresentada pelo assistente – o arguido, nas circunstâncias que relata na denúncia e que confirma em sede de declarações, ao dirigir-se a AV e aos filhos do denunciante, na presença do assistente, ter-lhes-á dito “não vos convido para a festa por causa do gordo do vosso pai” e de seguida dirigindo-se ao assistente disse-lhe “vai para a cona da tua mãe” e “Vai para a cona da tua mãe …Sim… és um filho da puta” – é corroborada pelo depoimento presencial e lembrado prestado pelo referido AV .
Ora, considerando-se que tais expressões são, inequivocamente, de teor injurioso e que tudo indicia foram dirigidas, uma na presença do assistente, referindo-se a ele e as demais dirigidas ao assistente, perante a confirmação relatada por parte da referida testemunha, resulta que se mostram suficientemente e de forma bastante indiciados tais factos enquanto integradores dos elementos objectivos e subjectivo do crime em causa, nos termos supra explanados a propósito dos elementos do tipo de ilícito.
No entanto, constata-se que a acusação particular formulada pelo assistente contra o arguido pela prática do crime de injuria simples, p. e p. pelo artigo 181º, do C. Penal, pese embora enuncie todos os elementos objectivos do referido tipo de ilícito criminal, nada refere quanto ao elemento subjectivo.
Assim, por a acusação particular não conter quaisquer factos atinentes ao elemento subjectivo quanto ao referido crime, não pode o Tribunal substituir-se e acrescentar tais factos.
Nestes termos, o arguido não será pronunciado pelo crime por que se mostra acusado pelo assistente, uma vez que a acusação particular não contém todos os requisitos exigidos nos termos do disposto no artigo 285º, nº 2, do C. P. Penal.
Quanto ao crime de ameaça simples, p. e p. pelo artigo 153º, nº 1, do C. Penal, a versão apresentada pelo assistente e por si confirmada em sede de declarações – nas mesmas circunstâncias de tempo e de lugar, aquando da indiciada actuação injuriosa do arguido em relação ao assistente, o arguido terá, igualmente, dirigido ao assistente as seguintes expressões “Cuidado que os acidentes acontecem, quando menos esperares, o teu vai acontecer, podes ter a certeza, oh filho da puta, gordo de merda, não tenho nenhum medo de ti” e “tira os óculos e olha bem para mim, porque um dia irá acontecer” e “oh gordo da merda, que nem a camisola cabe dentro dos calções, nem consegues apertar os sapatos” e, estabelecendo contacto com o assistente e a sua companheira, o arguido começou a passar a mão pelo pescoço como que dizendo “que lhes iria cortar o pescoço” – foi, é certo, não só confirmada pela sua companheira, supra identificada, que presenciou tais factos, assim como foi relatada, no essencial, nos mesmo termos pela testemunha presencial AV .
Assim tais factos mostram-se corroborados, de forma credível, considerando-se que existem indícios suficientes de que tais expressões terão sido dirigidas pelo arguido em relação ao assistente.
Resta saber se as mesmas são passíveis de integrar os elementos objectivos do tipo de ilícito por que pretende o assistente seja o arguido pronunciado.
Para que tal possa ser, indiciariamente considerado, é necessário que as transcritas expressões se traduzam na ameaça a outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor e, por outro lado, que a ameaça, com tais características, seja de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação sendo tal teor aferido de acordo com o homem médio colocado na mesma situação e, independentemente, de causar ou não tais efeitos no concreto destinatário da ameaça.
Ora, manifestamente, os factos supra referidos são insuficientes para que se possa sequer considerar a existência de indícios suficientes da prática do crime de ameaça simples, em causa.
Efectivamente, não resulta de tais expressões qualquer concretização, por parte do arguido, que possa levar á conclusão de que bem pessoal pretenderia o mesmo atingir, se a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor.
Não se pode concluir, por insuficiência, que tais expressões consubstanciem uma ameaça pela prática de um crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor.
Por outro lado, o uso das ditas expressões, nas circunstâncias em que foram proferidas, na existência de desentendimento entre o arguido e o assistente, em que aquele, tudo indicia, terá injuriado este último, não se mostram como expressões idóneas a ser consideradas como sérias pelo assistente, porquanto não são proferidas de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, situação que é aferida de acordo com o homem médio colocado na mesma situação, ainda que o assistente relate os efeitos nefastos que tais expressões produziram na sua vida.
Assim, considera-se que os factos indiciados, nesta sede, não são suficientes para integrar, ainda que de forma indiciária, os elementos objectivos do crime de ameaça simples, p. e p. pelo artigo 153º, nº 1, do C. Penal.
Na verdade, a versão apresentada pelo assistente, quanto ao crime de injúria simples perpetrada pelo arguido em relação àquele, em sede de inquérito encontra base probatória suficiente e bastante de onde resultam indiciados os factos integradores do referido crime, sendo que em sede instrutória tais indícios não foram, em nada, abalados, havendo evidências de indícios suficientes que podem integrar tanto os elementos objectivos, como o elemento subjectivo do referido crime imputado ao arguido, nos termos acabados de considerar.
Efectivamente, em sede de instrução não foi produzida qualquer elemento de prova que de alguma forma infirmasse a acusação, quanto ao dito crime de injúria simples, sendo que, ao contrário, ao longo do inquérito foram colhidos indícios diversos da prática dos factos porque foi, então, o arguido acusado.
Ao contrário, a versão apresentada pelo assistente, quanto ao crime de ameaça simples supostamente perpetrada pelo arguido em relação àquele, em sede de inquérito não encontra base probatória suficiente e bastante de onde possam resultar indiciados sequer os factos integradores do referido crime, sendo que em sede instrutória tal falta de indícios se manteve inalterada.
Na verdade, em sede de instrução não foi produzida qualquer elemento de prova que de alguma forma pudesse reforçar a acusação, que acrescentasse elementos novos, quanto ao dito crime de ameaça simples.

***
Assim, tudo ponderado, quanto á acusação particular do assistente, em relação ao arguido, pela prática de um crime de injuria simples, p. e p. pelo artigo 181º, do C. Penal, não será o arguido pronunciado por falta de requisito fundamental – nada consta quanto ao elemento subjectivo -nos termos supra explanados e também não será o arguido pronunciado pela prática de um crime de ameaça simples, p. e p. pelo artigo 153º, do C. Penal, por que pretende o assistente seja o arguido pronunciado, por não resultarem indiciados factos bastante integradores quanto aos elementos objectivos do tipo de ilícito em causa, nos termos constantes supra.»

C. Apreciação

C.1. Da irregularidade da decisão recorrida
11.A primeira questão a conhecer decorre das conclusões 1.ª a 4.ª, nas quais o recorrente, depois de transcrever dois excertos da decisão recorrida, alega que o despacho recorrido não elenca, mesmo que resumidamente, os factos que suportam a conclusão pela insuficiência da alegação e prova indiciária, mostrando-se ainda contraditório nos seus fundamentos.

Vejamos.

Nos termos da n.º 1 do artigo 308.º do CPP, a decisão instrutória comporta a apreciação da suficiência indiciária dos factos que sustentam os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, devendo, em caso de resposta positiva, ser proferido despacho de pronúncia e, perante resposta negativa, despacho de não pronúncia.

O legislador processual penal concretiza no preceito apenas as exigências de forma e estrutura a que deve obedecer a decisão de pronúncia, fazendo-o através de reenvio normativo para a disciplina do n.º 3 do artigo 283.º do CPP, onde se enuncia o conteúdo que a acusação necessariamente comporta, com a cominação, na sua falta, de nulidade do ato. Haverá, no entanto, que considerar que também sobre o despacho de não pronúncia incidem as mesmas vinculações de fundamentação do juízo, de facto e de direito, que incidem em geral sobre as decisões judiciais (artigo 97.º, n.º 5 do CPP).

Assim, atendendo a que a decisão de não pronúncia desempenha, como a de pronúncia, a função material de comprovação judicial da sujeição do arguido a julgamento, deve a decisão de não pronúncia conter, mesmo que por remissão (artigo 307.º, n.º 1 do CPP), o enunciado dos factos tidos por suficientemente indiciados e, também, daqueles que se entende não o estarem, denotando que tudo foi apreciado, acompanhado de fundamentação para tais juízos de facto, compondo os pressupostos de facto da decisão instrutória. E também, no plano do direito, a fundamentação sobre o preenchimento dos elementos essenciais do(s) crime(s) que se tem por indiciariamente cometido(s) pelo arguido, revelando os pressupostos de direito em que assenta a conformação da decisão negativa sobre o prosseguimento do caso para julgamento.

Outro entendimento normativo desrespeitaria os princípios plasmados nos artigos 205.º, n.º 1, e 29.º, n.º 5, da Constituição, pois, sem o cumprimento de tais exigências, ficaria comprometida a função de acertamento material que a decisão de não pronúncia comporta, quando fundada em razões substantivas, indispensável para aferir da extensão dos seus efeitos consuntivos à luz do princípio ne bis in idem (sobre a questão, Inês Ferreira Leite, Ne (Idem) Bis In Idem, Proibição da dupla punição e de duplo julgamento: Contributos para a racionalidade do poder punitivo público, Vol. II, 2016, pp. 575-578 e Henrique Salinas, Os limites objetivos do Ne Bis In Idem e a Estrutura Acusatória no Processo Penal Português, 2014, pp. 625-).

12.Tomando a esta luz a decisão recorrida, verifica-se que, pese embora esteja longe de modelar, a sua fundamentação permite, ainda assim, compreender, sem defeito essencial ou contradição insanável de proposições fundamentadoras, qual o sentido dos seus pressupostos, mormente os pressupostos de facto em que assenta juízo de não pronúncia.

Concretizando esta asserção, é certo que a consideração isolada ou atomística das duas passagens do texto do despacho destacadas no recurso pode levar o leitor menos atento a concluir por uma oposição ou inconciliabilidade no texto do ato judicativo. Com efeito, numa primeira leitura, a afirmação de que «se mostram suficientemente e de forma bastante indiciados tais factos enquanto integradores dos elementos objectivos e subjectivo do crime em causa» parece incompatível com a menção de que a acusação particular não contém «quaisquer factos atinentes ao elemento subjetivo quanto ao referido crime».

Contudo, uma análise mais atenta do texto, na sua integralidade significante, denota que os referentes das duas expressões não são, afinal, os mesmos.

De facto, a menção inicial a «tais factos» encontra conexão com o início do segmento textual, que se anuncia como esforço de individualização, com remissão implícita para o texto da denúncia, onde se inscrevem e contextualizam as expressões verbais «não vos convido para a festa por causa do gordo do vosso pai», «vai para a cona da tua mãe» e «Vai para a cona da tua mãe... Sim... és um filho da puta”». É, pois, sobre esses factos que incide o juízo de que a alegação da denúncia se mostra indiciada e que, no plano do jurídico-penal, tais factos preenchem os elementos objetivos e subjetivo do crime de injúria p. e p. pelo artigo 181.º do CP.

A segunda proposição remete expressamente para o enunciado textual da acusação particular, que se entende ficar aquém dos factos constantes da denuncia, deixando por narrar (e imputar ao arguido) os factos correspondentes à intenção do agente na conduta, apesar de enunciados na peça inicial.

Temos, então, que as duas proposições não se confundem, pois integram distintas premissas do raciocínio que conduz à conclusão de que não estão reunidos, por falta de alegação, os pressupostos para a pronúncia do arguido pelo imputado crime de injúria. Assim, na sua formulação, não se encontra um qualquer entorse lógico, de modo a suportar a crítica de contradição que lhes é dirigida pelo recorrente.

Coisa diferente é saber se essas duas premissas são ou não válidas, perante, designadamente, o que consta efetivamente de cada uma das peças; mas esse argumento - efetivamente avançado pelo recorrente relativamente à segunda proposição -, releva já da crítica dirigida ao mérito do juízo, ou seja, consubstancia a alegação de vício de substância, e não a verificação de um vício formal, por falta de fundamentação do despacho recorrido.

13.A mesma ordem de considerações suporta o afastamento da pretendida omissão de enunciação no despacho dos factos indiciados e não indiciados.  

Decorre minimamente do texto da fundamentação que o tribunal recorrido considerou suficientemente indiciada tão somente a narração de factos constante da parte I do requerimento de fls. 85 a 99 (original a fls. 102 a 116), inscrita nos seus artigos 1.º a 18.º, e não os demais factos relativos à dinâmica da conduta e aos factos psicológicos que dominaram o arguido, narrados nos artigos 22.º a 41.º da mesma peça, compondo a parte II da peça, mormente a imputação de que «o Demandado/Arguido agiu com o propósito de atingir o Ofendido» e que «agiu de forma livre, voluntária e consciente, sabendo da ilicitude da sua conduta» (artigos 33.º e 34.º).
Cumpre, pelas razões indicadas, afastar a presença na decisão recorrida dos sustentados vícios formais.

C.2. Da pronúncia pelo crime de injúria
14.Afastados os invocados obstáculos formais ao conhecimento do mérito da decisão recorrida, cabe passar a apreciar se, como pretende o recorrente, estão reunidos indícios suficientes ter como verificado os pressupostos de que depende a aplicação de uma pena pelo crime imputado na acusação particular.

Como referido supra, a decisão recorrida comporta juízo positivo de indiciação relativamente aos factos narrados nos artigos 1.º a 18.º da acusação particular, o qual não é disputado no recurso. O sentido fáctico relevante inscrito nessa narrativa, expurgado de expressões valorativas ou conclusivas, é o seguinte:
§1.º-O assistente vive em união de facto com MF, ex-companheira do arguido LM ;
§2.º-Na sequência da separação de MF  do arguido, ocorrida em Abril de 2017, foi entre esta e o arguido convencionado, quando aos seus dois filhos comuns, DM, este já maior de idade, e GM, com 11 anos de idade, um acordo de regulação de responsabilidades parentais, em regime de guarda partilhada;
§3.º-Por sentença proferida em 29 de março de 2019, no Processo n.º 785/17.5PEAMD, transitada em julgado, foi o arguido condenado pela prática de um crime de violência doméstica, tendo como ofendida MF, na pena de 2 (dois) anos e 11 (onze) meses de prisão suspensa na sua execução por igual período, e nas penas acessórias de proibição de contactos com a ofendida, por igual período, incluindo a proibição de se aproximar a menos de 500 metros os locais onde aquela se encontre;
§4.º-Atendendo à proibição de o arguido proceder pessoalmente às entregas do menor GM a MF e face aos obstáculos e falta de colaboração do arguido, disponibilizou-se o assistente a colaborar nas entregas do menor;
§5.º-Através dos respetivos mandatários, foi acordado entre o arguido e MF  que, no dia 12 de setembro de 2019, aniversário do arguido, este procederia à recolha do menor GM na residência do assistente, pelas 16h00, tendo sido garantido aa arguido que MF se encontraria, nesse dia e hora, ausente de casa, a trabalhar, a mais de 500 metros, não tendo sido por este levantado nenhum obstáculo;
§6.º-Pelas 15h58 o menor GM recebe um telefonema do arguido, que lhe dá instruções para, sozinho, se deslocar de acordo com as suas instruções até um determinado local, localidade a duas ruas da residência do Assistente, dizendo-lhe que não teria que se preocupar pois o arguido teria um “amigo” a controlar;
§7.º-Apercebendo-se do conteúdo da conversa e do nervosismo do menor GM  durante o telefonema, o assistente solicitou ao menor que voltasse a ligar ao arguido e que transmitisse ao mesmo que, conforme combinado, poderia dirigir-se à porta de residência do assistente, uma vez não se encontrar MF no local, pedido ao qual, não obstante a insistência, o arguido não veio a aceder;
§8.º-Dada a situação, e perante o crescente estado de nervosismo e choro compulsivo do menor GM, o assistente decidiu acompanhar o menor até ao local onde o arguido informara aguardar o filho;
§9.º-O assistente e o menor fizeram-se acompanhar pelos dois filhos menores do assistente, de 9 e 11 anos de idade, e pelo colega de trabalho do assistente AV, seu conhecido, que nesse dia e hora se encontrava na sua casa;
§10.º-Aí chegados, identificaram o arguido dentro do seu carro, estacionado em local parcialmente escondido, debaixo de uma árvore, a meio da Avenida Brasília, acompanhado de DM, seu filho;
§11.º-De modo a evitar possíveis incidentes, o assistente guardou distância da viatura do arguido e despediu-se do menor GM, que se dirigiu até ao carro do mesmo;
§12.º-Inesperadamente, o arguido saiu do carro e, após cumprimentar o seu filho, dirigiu-se até ao assistente e restantes presentes, cumprimentou AV, seu conhecido, e os filhos do assistente, agradecendo a estes os desejos de parabéns, acrescentando de imediato a frase: “não vos convido para a festa por causa do gordo do vosso pai”;
§13.º-Não satisfeito, o arguido passou junto do assistente e, rindo-se, dirige-lhe em tom alto de voz a seguinte expressão: “Vai para a cona da tua mãe”;
§14.º-Incrédulo, o assistente solicitou ao arguido que não tecesse comentários ofensivos, muito menos em frente dos seus filhos, tendo o arguido, indiferente ao apelo, retornado na sua direção, proferindo as seguintes expressões: “Vai para a cona da tua mãe ... Sim ... És um filho da puta...”;
§15.º-Ao mesmo tempo e enquanto o assistente procurava afastar os seus filhos, por várias vezes, o arguido tentou atingir o assistente com murros, lançando os braços na sua direção, o que só não conseguiu por intervenção de um terceiro (AV colega de trabalho do assistente que se colocou à sua frente e o segurou;
§16.º-Simultaneamente, dirigindo-se ao assistente, o arguido proferiu as seguintes expressões “Cuidado que os acidentes acontecem, quando menos esperares, o teu vai acontecer, podes ter a certeza, oh filho da puta, gordo de merda, não tenho nenhum medo de ti ...”.
Para além destes factos, coloca-se no presente recurso a questão de saber se os factos referidos nos artigos 24.º, 25.º, 33.º e 34.º da peça de «acusação particular, com pedido de indemnização civil» podem ser atendidos, e encontram suporte indiciário bastante, ou seja, que, com referência à conduta atrás referida:
§17.º-O arguido agiu de forma deliberada, livre e consciente, com o propósito de atingir o assistente na sua honra e dignidade, sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei.

15.A resposta à questão colocada é afirmativa, nos dois planos, como bem refere a Sr.ª. Procuradora-Geral Adjunta.

É certo que a peça apresentada pelo recorrente é estruturada em duas partes, sendo a primeira designada «I.- Da acusação particular» e a segunda «II.- Do pedido de indemnização cível», encontrando-se os artigos referidos apenas na segunda. Contudo, essa circunstância não justifica que se possa encarar o impulso unitário deduzido pelo assistente nos termos e para os efeitos dos artigos 77.º e 285.º do CPP, como se de dois requerimentos separados e sem relação entre ambos se tratasse.

Com efeito, existe uma relação intrínseca entre o impulso acusatório e o pedido indemnizatório, que tem como causa de pedir e limite os factos que integram a conduta penalmente censurável, formando uma unidade de sentido jurídico. É essa associação indelével que, sem colocar em crise a ideia fundamental de autonomia da ação cível, inerente ao princípio da adesão, funda teleologicamente a norma de procedimento constante do n.º 1 do artigo 77.º, e a permissão nele concedida ao assistente de deduzir o pedido indemnizatório na própria acusação, em paralelo com a faculdade de o fazer em requerimento autónomo articulado, desde que apresentado no mesmo prazo da acusação.

Essa opção do assistente comporta, como em qualquer declaração, consequências relativamente à extração de sentido do enunciado. Quando a acusação e o pedido de indemnização sejam formalmente deduzidos em peças autónomas, haverá que compreender o respetivo sentido no seio de cada um dos textos, sem prejuízo de eventuais remissões, expressas ou implícitas. Quando, como no caso vertente, o assistente opte por integrar o pedido de indemnização no próprio laudo acusatório, haverá que efetuar uma leitura integrada do requerimento, abarcando as suas duas vertentes, delas extraindo a imagem global do facto antijurídico que constitui o objeto do processo e sobre o qual se pretenda que incida julgamento de mérito.

Ademais, são objeto da decisão instrutória, nos termos do disposto nos artigos 308.º, n.º 2 e 283.º, n.º 3, do CPP, não apenas os factos que integram a conduta típica, mas também «quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada», o que inclui elementos de contexto ou de enquadramento da conduta. E, bem assim, as consequências sofridas pelo ofendido em resultado da conduta punível [artigo 71.º, n.º 2, alínea a) do CP], amiúde descritas de modo mais detalhado no enxerto cível, caso deduzido. Quando com relevo para a vertente penal, por imposição do princípio da descoberta da verdade material (artigo 340.º, n.º 1 do CPP), tais factos devem ser relevados na decisão final da fase de instrução.

16.Por seu turno, a prova pessoal que suportou o juízo de indiciação dos factos que se vem de enunciar sob os parágrafos 1.º a 16.º, invocada na decisão recorrida (declarações do assistente e testemunho de MF e AV), conduz a que se formule idêntico juízo relativamente a esses factos internos, apenas acessíveis por dedução, in casu racionalmente fundada nos comportamentos exteriorizados pelo arguido.

Na verdade, o conteúdo e dinâmica do evento, mormente a repetição das expressões, com destaque para a expressão “filho da puta”, dirigida ao assistente por duas vezes, no quadro conflitual em que foram proferidas, não consentem outra avaliação da intenção que presidiu à conduta do arguido.

Desse modo, impõe-se modificar os pressupostos de facto em que assenta a decisão recorrida, de modo a integrar também os factos narrados no parágrafo 17.º, atinentes à intenção do agente, os quais devem ser tidos em conta na tarefa seguinte, de qualificação jurídico-penal da conduta, mormente a verificação do preenchimento dos elementos essenciais do crime de injúria p. e p. pelo artigo 181.º, n.º 1 do CP.

17.Nos termos desse preceito típico, comete o crime quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra e consideração.

O bem jurídico pela incriminação – o bom nome e a reputação – remete para valores a que o ordenamento constitucional confere proteção jusfundamental reforçada, por via do artigo 26.º, n.º 1 da Constituição, inscrevendo-os no elenco dos direitos, liberdades e garantias.

Na expressão de Beleza dos Santos (R.L.J., ano 92.º, pp.167-168), a honra consiste naquele mínimo de condições, especialmente de natureza moral, que são razoavelmente consideradas essenciais para que um indivíduo possa com legitimidade ter estima por si, pelo que é e vale; refere-se ao apreço de cada um por si, à autoavaliação no sentido de não ser um valor negativo, particularmente do ponto de vista moral. Por seu turno, a consideração é integrada por aquele conjunto de requisitos que razoavelmente se deve julgar necessário a qualquer pessoa, de tal modo que a falta de algum deles possa expor o sujeito à falta de consideração ou ao desprezo público. Refere-se ao juízo que forma ou pode formar o público, no sentido de considerar alguém um bom elemento do tecido social, ou, pelo menos, no sentido de não o julgar um valor negativo para a comunidade.

Não estamos, é bom salientar, perante conceitos opostos ou contrastantes, antes perante diferentes planos de um todo complexo, pois honra e consideração imbricam-se indissociavelmente na valoração social de cada um. Como refere Figueiredo Dias, «a jurisprudência e a doutrina jurídico-penais portuguesas têm correctamente recusado sempre qualquer tendência para uma interpretação restritiva do bem jurídico ‘honra’, que o faça contrastar com o conceito de ‘consideração’ (...) ou com os conceitos jurídico-constitucionais de ‘bom nome’ e de ‘reputação’. Nomeadamente, nunca teve entre nós aceitação a restrição da ‘honra’ ao conjunto de qualidades relativas à personalidade moral, ficando de fora a valoração social dessa mesma personalidade; ou a distinção entre opinião subjectiva e opinião objectiva sobre o conjunto das qualidades morais e sociais da pessoa; ou a defesa de um conceito quer puramente fáctico, quer – no outro extremo – estritamente normativo» (R.L.J., ano 115.º, p. 105. No mesmo sentido, Faria Costa, Comentário Conimbricense, Coimbra Ed., Tomo I, 2012, pp. 905-911).

Releva no presente caso a segunda modalidade da conduta prevista no tipo objetivo – dirigir a outra pessoa palavras ofensivas – pelo que a questão que se coloca é a de saber se as mesmas comportam uma carga comunitária ou social lesiva dos bens jurídicos tutelados, idónea a fundar a censura criminal, tarefa que não dispensa, usando a expressão de Faria Costa, o recurso a um «horizonte de contextualização» (loc.cit.), sabido que a linguagem é um corpo vivo, podendo uma frase ou epíteto num determinado contexto sociocultural assumir conteúdo pejorativo, enquanto noutro traduz unicamente linguagem desbragada ou mesmo obscena, tida como não ofensiva pelo conjunto dos falantes num específico registo de linguagem - por exemplo, no seio da família ou em convívio de amigos ou de pares.

18.Dentre as várias expressões verbais dirigidas pelo arguido ao assistente enunciadas na acusação, encontram-se alusões à sua imagem corporal, que não relevam propriamente das qualidades morais ou sociais do visado, assumindo antes um cunho estético e de conformidade com o conceito maioritário sobre a forma corporal ideal. Pese embora encerrem carga negativa, idónea a diminuir a autoestima do visado, não se vê que lesem a honra ou a consideração do mesmo.

Já as expressões “gordo de merda” e “filho da puta”, esta repetida, comportam, no quadro conflitual e de disputa em que foram proferidas, um indiscutível sentido pejorativo, que transcende a mera consideração da forma corporal. Ambas transportam o sentido de degradação e desqualificação da pessoa no concerto do tecido social, lesivo da honra e consideração devidos a quem são dirigidas essas palavras.

No plano subjetivo, os factos indiciados, mormente o que os factos referidos no parágrafo 17, suportam a imputação de tais condutas ao arguido a título de dolo direto, presentes os seus elementos intelectual (consciência das expressões e do seu significado) e volitivo ou emocional (vontade do agente dirigida à realização da conduta típica), assim como a consciência por aquele do desvalor da conduta e respetiva punibilidade criminal.
 
Haverá, então, que revogar a decisão recorrida nesta parte e determinar a sua substituição por outra que pronuncie o arguido LM pelo crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181.º, n.º 1 do Código Penal.

19.–Fica, desse modo, prejudicado o conhecimento da questão, invocada a título subsidiário, sobre a necessidade de conferir ao assistente um novo prazo para acusar, com retorno do processo à fase de inquérito.

C.3. Da pronúncia pelo crime de ameaça
20.No que concerne ao crime de ameaça, a argumentação levada à motivação do recurso assenta na crítica de que o tribunal recorrido não avaliou «outras expressões» denunciadas, nomeadamente expressões gestuais, que o assistente considera relevantes, entendendo que, em conjunto, a conduta era idónea a ser compreendida por qualquer pessoa como uma ameaça futura à sua integridade ou vida, preenchendo os elementos essenciais do crime de ameaça p. e p. pelo artigo 153.º do CP.
Esse entendimento mereceu concordância do Ministério Público nesta relação.

21.Comete o crime de ameaça tipificado no artigo 153.º, n.º 1 do CP, quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação. Com esse tipo penal protege-se o bem jurídico liberdade pessoal, na vertente da liberdade de decisão e de ação, sendo estruturado como crime de mera atividade e de perigo-concreto.
Para o seu preenchimento coexistem necessariamente na conduta três elementos essenciais: i) anúncio de um mal concreto; ii) projeção no futuro desse mal; e iii) capacidade do agente para o concretizar, em função apenas da sua vontade, cuja avaliação deve ser efetuada segundo critérios de adequação objetiva, no sentido de que a ameaça, tendo em conta as circunstâncias em que é proferida e a personalidade do agente e do visado, é suscetível de intimidar qualquer pessoa.
Como refere Taipa de Carvalho «O critério da adequação da ameaça a provocar medo ou inquietação, ou de modo a prejudicar a liberdade de determinação é objectivo - individual: objectivo, no sentido de que deve considerar-se adequada a ameaça que, tendo em conta as circunstâncias em que é proferida e a personalidade do agente, é susceptível de intimidar ou intranquilizar qualquer pessoa (critério do “homem comum”); individual, no sentido de que devem relevar as características psíquico-mentais da pessoa ameaçada (relevância das “sub-capacidades” do ameaçado» (Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo I, anotação ao artigo 153º).

22.Tomando a decisão recorrida, verifica-se que esta, ao contrario do referido no recurso, tomou posição sobre todos os factos narrados no requerimento de abertura de instrução, fazendo incidir sobre toda a matéria imputada um juízo de suficiente indiciação.
Como decorre da transcrição supra, entendeu-se que o arguido proferiu as expressões “Cuidado que os acidentes acontecem, quando menos esperares, o teu vai acontecer, podes ter a certeza, oh filho da puta, gordo de merda, não tenho nenhum medo de ti”, “tira os óculos e olha bem para mim, porque um dia irá acontecer”, “oh gordo da merda, que nem a camisola cabe dentro dos calções, nem consegues apertar os sapatos” e, bem assim, que «estabelecendo contacto com o assistente e a sua companheira, o arguido começou a passar a mão pelo pescoço como que dizendo “que lhes iria cortar o pescoço”». Matéria sobre a qual incidiu a apreciação de que «tais factos [se]mostram (...) corroborados, de forma credível, considerando-se que existem indícios suficientes de que tais expressões terão sido dirigidas pelo arguido em relação ao assistente».

Do mesmo jeito, decorre da decisão recorrida que se considerou igualmente indiciada a matéria imputada no plano subjetivo, constante dos pontos 38 e 39 do requerimento de abertura de instrução.

Neste plano decisório, diferentemente do que se viu ter sucedido quanto ao crime de injúrias, o motivo para a decisão de não pronúncia encontra-se inteiramente no plano do direito, por efeito do afastamento da tipicidade penal.

23.Com efeito, o tribunal a quo afastou a subsunção do tipo penal do artigo 153.º do CP, por duas ordens de razões: entendeu-se que as expressões não tiveram «concretização» e, também que, no quadro em que foram proferidas, não se mostram adequadas a provocar medo e inquietação numa pessoa média, por inidóneas a serem consideradas como sérias.

Trata-se, porém, ao que cremos, de uma avaliação incorreta do evento, mormente do seu desenvolvimento final.

Na realidade, o argumento da falta de concretização da conduta anunciada e do bem jurídico por ela atingidos poderia prosperar em função de dúvidas sobre a natureza eufemística ou literal da alusão a “acidente”, ou quanto à fonte e natureza do mal que futuramente - “um dia” -, iria acontecer ao assistente. Contudo, essas dúvidas são inteiramente dissipadas e removidas pelo significado do gesto efetuado poucos instantes depois pelo arguido.
O gesto de passar a mão pelo pescoço numa trajetória perpendicular, simulando uma ação de corte da garganta, constitui ato comunicacional com um sentido universal, de anúncio de morte futura do visado por ação de quem faz o gesto, pois a secção daquele órgão tem consequências quase sempre fatais. O sentido comunitário do gesto tem como equivalente verbal a expressão “vou-te cortar o pescoço”, ou seja, anuncia uma concreta conduta projetada no futuro, lesiva da vida do assistente ou, pelo menos, da sua integridade física.

O quadro de circunstâncias que envolveu essa conduta não afasta esse sentido, nem se vê, até pelos antecedentes do relacionamento do arguido com o assistente no próprio dia, que a conduta possa ser tida como uma mera bravata, sem foro de seriedade, inidónea a provocar medo e inquietação numa qualquer pessoa colocada na posição do assistente. Resulta mesmo pouco compreensível a menção à existência de um quadro de desentendimento entre o arguido e assistente como fator de descredibilização do gesto, quando, pela experiência comum, é justamente o oposto. Estranho seria se uma tal expressão, com a carga intimidante que comporta, surgisse do nada, desgarrada, sem nenhum contexto relacional entre os sujeitos. Aí sim, haveria fundamento para considerar que a generalidade das pessoas interiorizaria o gesto como desprovido de sentido, sem uma real volição atuante e, como tal, a conduta seria objetivamente inadequada a constranger relevantemente o livre desenvolvimento da personalidade do visado, valor com garantia constitucional perante agressões heterónomas (artigo 26.º, n.º 1 da Constituição).

Por outro lado, a noção de desentendimento compreende uma gama de comportamentos muito vasta, abrangendo tanto uma simples diferença de opinião como outros estados anímicos, de maior intensidade e potencial confrontacional. No curso da história dos povos, muitos conflitos bélicos tiveram origem em fenómenos que, na sua génese, podem ser descritos como desentendimentos. Novamente, tal como a propósito do crime de injúria, o significado operativo do desentendimento entre assistente e arguido para integrar a fattispecie do crime de ameaça depende do horizonte contextual em que surge e se desenvolve. Mormente, como bem refere a Sr.ª Procuradora-Geral Ajunta no seu douto parecer, a envolvente parental e afetiva, e também os factos que motivaram a condenação sofrida pelo arguido, com medidas de afastamento em execução na data da conduta aqui em análise.

Assim, tendo o evento global uma componente dirigida a atingir a honra e consideração do assistente, acompanhadas de alusões vagas a um mal futuro e a que o arguido não tinha medo do assistente (o que assume, no quadro de circunstâncias, uma afirmação de superioridade, desde logo no plano físico-atlético), numa escalada da animosidade intersubjetiva, o gesto que anuncia o corte futuro do pescoço do assistente, na zona da garganta, representa um novo e mais elevado patamar da contenda. Na perspetiva do visado, e à luz das regras de experiência comum, tomando como parâmetro a capacidade de entendimento e volição das mulheres e homens medianos, essa expressão não verbal, no quadro de circunstâncias em que foi proferida, comporta seriedade e aptidão a causar receito e temor pela integridade física e vida do visado, sendo adequada a coartar a livre determinação do assistente.

Acresce que os factos indiciados comportam claramente os elementos de uma atuação dolosa pelo arguido, também nessa dimensão do objeto do processo.

24.Em suma, também nesta parte, procede o recurso, impondo-se determinar a prolação de despacho de pronúncia, pela prática do crime de ameaça p. e p. pelo artigo 153.º, n.º 1 do Código Penal.

III.–Dispositivo

Pelo exposto, acordam os Juízes da 5.ª Secção Criminal desta Relação em:
Julgar procedente o recurso e revogar a decisão recorrida, determinando a sua substituição por despacho que pronuncie o arguido LM (com os sinais dos autos), pelos factos referidos nos pontos 14 e 19 do presente acórdão (a elencar em conjunto e de acordo com a sua cronologia) e pela prática, como autor, de um crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181.º, nº1 do Código Penal, e de um crime de ameaça, p. e p. pelo artigo 153.º, n.º 1 do mesmo Código, com as demais menções impostas pelos artigos 309.º e 283.º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Penal.
Não são devidas custas.
Notifique.

Texto elaborado em computador e revisto pelo relator (art.º 94.º, n.º 2 do CPP).
                                                               


Lisboa, 25 de janeiro de 2022



(Fernando Ventura- relator)                                                          
(Maria José Machado)