COMPENSAÇÃO DE CRÉDITOS
EXCEÇÃO PERENTÓRIA
RECONVENÇÃO
INSOLVÊNCIA
EXTINÇÃO DAS OBRIGAÇÕES
DIREITO DE DEFESA
RECURSO PER SALTUM
Sumário


I. A compensação de créditos depende da verificação dos requisitos previstos no art.º 847.º do Código Civil e, eficazmente invocada pelo devedor-credor, produz os mesmos efeitos do cumprimento, dando lugar, quando provada, à absolvição do pedido, assim constituindo uma excepção peremptória, nos termos do art.º 576.º, n.º 3, do CPC.
II. O art.º 266.º, n.º 2, al. c), do CPC não impõe que a invocação da compensação de créditos tenha de ser sempre feita através de reconvenção, apenas referindo que a compensação é admissível como fundamento da reconvenção, mas não que a compensação só possa ser feita valer por esse meio.
III. Não estão cobertos pela previsão do normativo acabado de citar os casos em que a compensação já tenha sido operada extrajudicialmente em momento anterior à propositura da acção, sendo então de invocar esse facto extintivo em sede de defesa por excepção.
IV. A insolvência superveniente da contraparte não deve afectar o efeito extintivo da obrigação que já se tenha produzido com a eficaz invocação da compensação de créditos, por via extrajudicial, nos termos dos art.ºs 848.º e 854.º do C. Civil.
V. Não pretendendo a ré o reconhecimento judicial do crédito que invocou, nem a obtenção da compensação processual de tal crédito com o crédito peticionado pela autora, tendo, ao invés, apenas invocado a inexistência deste mediante uma compensação de créditos que já operou extra processualmente, não se lhe impõe o meio da reconvenção.

Texto Integral

Cus


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Processo n.º 107694/20.2YIPRT.S1[1]




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Acordam no Supremo Tribunal de Justiça – 1.ª Secção[2]:


I. Relatório


Massa Insolvente Vougal Produção de Aves, S.A., requereu procedimento de injunção contra Savigal – Produtos Alimentares, Lda., ambas melhor identificadas no respectivo requerimento, apresentado em 9/12/2020, peticionando o pagamento da quantia de 84.560,82 €, correspondente ao capital de 78.835,00 € e juros de mora de 5.725,82 €. Fundamentou tal pretensão no incumprimento de um contrato de “fornecimento de bens ou serviços”, celebrado em 23/10/2019, conforme facturas que discriminou, as quais não foram pagas nas datas dos seus vencimentos.


A requerida deduziu oposição, alegando nada dever à requerente, porquanto o crédito peticionado foi extinto por compensação com outro crédito que lhe foi cedido por Crista Pura – Produção de Aves, Lda., que esta tinha sobre Vougal Produção de Aves, S.A., como foi comunicado a essa sociedade, em 28/11/2019. Concluiu pela procedência da excepção da compensação invocada e pela improcedência da pretensão da requerente.

Apresentados os autos à distribuição e distribuídos como acção de processo comum, a autora juntou réplica, que o Tribunal aceitou como resposta à excepção, onde aquela se opôs à invocada compensação, concluindo pela improcedência desta excepção.


Por despacho de 8/4/2021, foi a ré convidada a deduzir reconvenção para poder ser considerada a invocada compensação de créditos.


A ré respondeu que não pretende obter a compensação no âmbito destes autos, mas apenas fazê-la operar a título exceptivo. Entende que, não pretendendo qualquer reconhecimento judicial da extinção do seu crédito por via da compensação, é desnecessária a dedução de pedido reconvencional, insistindo no funcionamento da excepção para extinção do crédito peticionado.


Foi designada audiência prévia, a qual foi realizada, tendo sido facultada às partes a discussão de facto e de direito sobre a “exceção perentória invocada”.


Após, em 8/6/2021, foi proferido saneador-sentença, onde se decidiu julgar a presente acção parcialmente procedente e condenar a Ré a pagar à Autora a quantia de 78.832,81 €, acrescida de juros de mora calculados às taxas legais sucessivamente em vigor desde a data de vencimento das faturas identificadas no ponto 1.º da factualidade provada até efetivo e integral pagamento, absolvendo-a do demais peticionado.


Inconformada, a ré interpôs recurso per saltum para o STJ e apresentou as correspondentes alegações que terminou com as seguintes conclusões:

1. O presente recurso vem do douto despacho saneador sentença de 08/06/2021, referência ..., proferido em primeira instância pela Mma. Juiz do Juízo Central Cível ...  – Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., que condenou a Recorrente no pagamento à Recorrida da quantia de € 78.832,81, acrescida de juros moratórios calculados às taxas legais em vigor desde a data de vencimento das faturas identificadas no ponto 1.º dos factos provados até efetivo e integral pagamento.

2. Na oposição/contestação que deduziu, alegou ter notificado a sociedade Vougal – Produção de Aves, nos termos dos artigos 847º. e 848º. do CC, e para o efeito de operar compensação extrajudicial, muito antes da instauração destes autos.

3. Compensação que realizou porque era simultaneamente credora e devedora da referida Vougal, na medida em que, fruto de um negócio de cessão de créditos que havia celebrado, na qualidade de cessionária, com a sociedade Crista Pura, na qualidade de cedente, adquiriu a esta créditos que a mesma detinha sobre a Vougal, de valor equivalente ao do crédito reclamado nesta lide.

4. Termos em que na referida oposição/contestação invocou essa compensação de créditos como exceção peremptória, que determinou a extinção da obrigação de pagamento à Recorrida no plano substantivo, e deve importar a improcedência do pedido formulado pela mesma no plano subjectivo.

5. Na douta decisão recorrida, o Mmo. Tribunal a quo expende o entendimento de que a compensação operada deveria ter sido invocada em sede de reconvenção, e conclui pela inoponibilidade da referida compensação à Autora por não haver sido observado tal formalismo.

6. Não foi relevada a distinção essencial entre os casos em que (i) o Réu pretende invocar um contra-crédito para fazer a compensação operar processualmente e os casos em que (ii) o Réu invoca, a título de exceção, uma compensação de créditos que já operou extraprocessual ou substantivamente.

7. Na lapidar fórmula do douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 16/01/2018, processo 12373/17.1YIPRT-A.C1, trata-se da “distinção entre a invocação da compensação já efetuada em momento anterior à propositura da ação (compensação extrajudicial) e a realização, no próprio processo pendente da compensação entre créditos (compensação judiciária). No 1ª caso, o réu afirma que o crédito invocado pelo autor já se encontra extinto por uma compensação efetuada extrajudicialmente: essa parte alega, por isso, uma exceção perentória (artigo 576.º, n.º 3 CPC); no segundo, o réu pretende provocar a compensação entre os créditos: para conseguir essa compensação judiciária, tem de se servir da reconvenção” [9][3] (…).

8. Onerar o réu com a obrigação de deduzir reconvenção para ver reconhecido um crédito – que pretende invocar e fazer compensar contra o autor, em sede processual – é diferente de o onerar com a invocação de que o crédito já não existe porque sua a extinção ocorreu em momento anterior à instauração da ação quando, no plano material, uma das partes notificou a outra da compensação.

9. Nestes autos, não é da compensação processual que tratamos, mas antes da invocação da inexistência do direito de crédito objecto da acção, por efeito de compensação extrajudicial operada ex ante pela Recorrente.

10. A compensação extrajudicial constitui sempre exceção peremptória extintiva, pois não depende de qualquer pedido de reconhecimento judicial de um crédito (que objetivamente já nem existia), dispensando a declaração judicial da sua existência com valor de caso julgado.

11. Acompanhando o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 26/02/2019, processo n.º 2128/18.1YIPRT.C1, “I - A compensação assume-se, substantivamente, como figura autónoma – exceção perentória – e, como tal, e até ao valor do contra crédito, pode, adjectivamente, ser invocada na contestação – artºs 847º do CC e 571º do CPC. II – É que o artº 266º nº 2 al. c) do CPC apenas estatui que a reconvenção é admissível se se quiser invocar a compensação; e não que esta, até ao valor do contra crédito, apenas pode ser invocada via reconvencional”.

12. Acompanhando o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 10/12/2019, processo nº.78428/17.2YIPRT-A.C1, “1. – A compensação de créditos, figura civilística substantiva com regulação típica nos art.ºs 847.º e segs. do CCiv., uma vez operante (torna-se efetiva mediante declaração, judicial ou extrajudicial de uma das partes à outra), determina a extinção creditória, pelo que convoca factologia extintiva do direito invocado pelo autor, assumindo-se, processualmente, como exceção perentória, assim podendo ser invocada na contestação, nesse sentido devendo interpretar-se, conjugadamente, o disposto naqueles preceitos do CCiv. e nos art.ºs 571.º, n.º 2, e 266.º, n.º 2 al.ª c), do NCPCiv. 2. – As normas processuais devem ser interpretadas – se necessário, em termos restritivos -, na busca da coerência e harmonia do sistema jurídico, à luz do seu escopo de realização do direito substantivo, não podendo constituir entrave a tal realização”.

13. “Não estão cobertos pela previsão do art. 266º 2.c) os casos em que a compensação já tenha sido operada extrajudicialmente em momento anterior, pois aí o crédito do autor já está extinto quando a acção é proposta, sendo então de invocar esse facto extintivo em sede de defesa”[4][10].

14. A Recorrente não pretendeu o reconhecimento judicial dos seus créditos, que já reputava e reputa extintos, nem pretendeu obter a compensação processual de tais créditos com os créditos peticionados pela Autora, Massa Insolvente, agora Recorrida.

15. Pretendeu foi antes excecionar a inexistência dos créditos cujo pagamento a Recorrida lhe exigiu, determinada pela compensação que anteriormente operou extraprocessual e materialmente.

16. O que sempre seria matéria de exceção, sob pena de a omissão da sua dedução em reconvenção conduzir à destruição do efeito extintivo de direito material que operou anteriormente pelo exercício do direito (potestativo) previsto nos artigos 847.º e 848.º do Código Civil.

17. Tal representaria (e representa no caso concreto), um impedimento processual em contraposição com os efeitos substantivos já produzidos, com prejuízo para a segurança e certeza jurídicas e paz social cuja garantia se pretende do Direito.

18. Sem prescindir, a admitir-se que no caso se impunha a dedução de reconvenção para ver declarado e reconhecido o crédito da Recorrente como condição da compensação a operar judicialmente, abrir-se-ia a discussão sobre se tal pedido era admissível nestes autos [5][11].

19. Não obstante a compensação tenha sido realizada antes da declaração da insolvência da Autora/Recorrida, a presente ação foi instaurada pela respectiva massa insolvente após aquela declaração.

20. E não sendo admissível a formulação de pedido reconvencional contra a massa insolvente (o que não é seguro, e sempre dependeria de fazer intervir na ação outras partes), estaria a coartar-se, por limitação processual, o direito de defesa da Recorrente por invocação de compensação operada extrajudicialmente.

21. Coartar à Recorrente a possibilidade de ver salvaguardada a defesa dos seus interesses, defendendo-se por exceção, invocando a compensação até ao limite do crédito do autor, constituiria uma interpretação imprópria e excessivamente abrangente da alínea c) do n.º 2 do artigo 266.º do CPC, porque violadora do princípio da tutela jurisdicional efetiva, constitucionalmente consagrado no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa (CRP).

22. Sempre sem prescindir, existe uma forte corrente doutrinal, e jurisprudencial[6][12] no sentido de que a alínea c) do n.º 2 do artigo 266.º do CPC apenas diz que a compensação é admissível como fundamento da reconvenção, e/mas não que a compensação só possa ser feita fazer valer por esse meio (trata-se de uma possibilidade e não de um impedimento de dedução da compensação por via de exceção).

23. Tal norma não impede a possibilidade de invocar a compensação extrajudicial por via de exceção peremptória na contestação, até ao limite do crédito do autor, quando dele não se pretenda extrair os efeitos de caso julgado, como no caso concreto sucede.

24. Ao decidir como decidiu, violou o Mmo. Tribunal a quo o disposto nos artigos 847.º, 848º. e seguintes do Código Civil (CC), e no artigo 266.º do CPC, em particular, na alínea c) do seu n.º 2, e violou ainda o disposto nos números 1, ,2, 4 e 5 do artigo 20º. da CRP, todos que se impunha interpretar e aplicar antes nos termos supra preconizados.

TERMOS EM QUE, NOS MAIS DE DIREITO E COM O MUI DOUTO SUPRIMENTO DE VOSSAS EXCELÊNCIAS,

deve dar-se provimento ao presente recurso e, em consequência, ser revogada a douta decisão recorrida, que deve ser substituída por outra que admita e aprecie a excepção peremptória de compensação invocada pela Recorrente, tudo com as legais consequências.

Assim se espera, confiadamente, na certeza de que Vossas Excelências, …, farão a costumada J U S T I Ç A”.


Não foram apresentadas contra-alegações.


O recurso foi admitido como de revista, per saltum, por se verificarem os requisitos cumulativos previstos no art.º 678.º, n.º 1, do CPC, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, visto não ter sido prestada caução idónea, modo de subida e efeito que foram mantidos pelo actual Relator.


Tudo visto, cumpre apreciar e decidir o mérito do presente recurso.

Sabido que o seu objecto e âmbito estão delimitados pelas conclusões da recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser em situações excepcionais de conhecimento oficioso, e tendo presente que se apreciam questões e não razões, a única questão que importa dirimir consiste em saber se a compensação de créditos, que a ré alega ter invocado extrajudicialmente, pode ser considerada como meio de defesa por excepção ou se terá, necessariamente, de ser invocada em reconvenção.


II. Fundamentação


1. De facto


Na sentença recorrida foram dados como provados os seguintes factos: 

1 - No âmbito da sua atividade comercial (Avicultura, centro de abate de aves, produção própria e integrada e comercialização de aves e produtos à base de carnes), a Autora forneceu à Ré os bens a que aludem as faturas abaixo discriminadas, e que a Ré se comprometeu a devolver as Taras:

FAT51 ... 35 no valor de € 4.117,49, com vencimento em 7/11/2019;

FAT51 ...63 no valor de € 4.205,72, com vencimento em 9/11/2019;

FAT51 ...64 no valor de € 7.065,86, com vencimento em 9/11/2019;

FAT51 ...75 no valor de € 6.315,91, com vencimento em 12/11/2019;

FAT51 ...77 no valor de € 26,20, com vencimento em 12/11/2019;

FAT51 ...87 no valor de € 7.063,35, com vencimento em 13/11/2019;

FAT51 ... 95no valor de € 7.402,33, com vencimento em 14/11/2019;

FAT51 ...08 no valor de € 4.285,54, com vencimento em 15/11/2019;

FAT51 ...17 no valor de € 5.562,00, com vencimento em 19/11/2019;

FAT51 ...29 no valor de € 5.191,55, com vencimento em 20/11/2019;

FAT51 ...37 no valor de € 4.996,98, com vencimento em 21/11/2019;

FAT51 ...42 no valor de € 3.055,87, com vencimento em 22/11/2019;

FAT00 ...20 no valor de € 2,19, com vencimento em 23/11/2019, posteriormente anulada por uma nota de crédito;

FAT51 ...52 no valor de € 1.799,65, com vencimento em 23/11/2019;

FAT51 ...59 no valor de € 3.270,45, com vencimento em 26/11/2019;

FAT51 ...61 no valor de € 34,17, com vencimento em 11/11/2019;

FAT51 ...68 no valor de € 1.044,88, com vencimento em 27/11/2019;

FAT51 ...84 no valor de € 1.676,82, com vencimento em 28/11/2019;

FAT51 ...92 no valor de € 277,48, com vencimento em 14/11/2019;

FAT51 ...02 no valor de € 4.232,26, com vencimento em 30/11/2019;

FAT51 ...15 no valor de € 1.939,72, com vencimento em 3/12/2019;

FAT51 ...42 no valor de € 2.399,81, com vencimento em 6/12/2019;

FAT51 ... 43 no valor de € 1.923,18, com vencimento em 6/12/2019;

FAT51 ...50 no valor de € 646,03, com vencimento em 7/12/2019 e

FAT51 ...57 no valor de € 299,56, com vencimento em 12/12/2019.


2. De direito


A problemática em análise é, como vimos, a de saber se a compensação de créditos, que já tenha sido invocada extrajudicialmente, deve ser feita valer sempre em reconvenção ou se pode ser deduzida como excepção peremptória.

A compensação de créditos está prevista no art.º 847.º do Código Civil, podendo ser definida como “o meio de o devedor se livrar da obrigação por extinção simultânea do crédito equivalente de que disponha sobre o credor”.[7]

Antes da vigência do actual CPC era maioritária na jurisprudência uma orientação que conjugava as duas referidas vias (excepção e reconvenção) para a alegação da compensação: até ao montante do crédito do autor, o contra crédito do réu era alegado por via de excepção; na parte excedente do crédito do autor, o contra crédito era alegado por via de reconvenção.

O actual CPC, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, entrado em vigor no dia 1 de Setembro de 2013 (cfr. seu art.º 8.º), por isso, aqui aplicável, estabelece no artigo 266.º que:

«1- O réu pode, em reconvenção, deduzir pedidos contra o autor.

2 -A reconvenção é admissível nos seguintes casos:

(...)

c) Quando o réu pretende o reconhecimento de um crédito, seja para obter a compensação seja para obter o pagamento do valor em que o crédito invocado excede o do autor.”.

Apesar de esta alteração legislativa ter visado a clarificação da controvérsia relativa à forma de processualmente operar a compensação – por meio de reconvenção ou por via de excepção -, ainda hoje não se alcançou entendimento uniforme quanto à questão em causa, quer na jurisprudência, quer na doutrina, colocando-se ainda a dúvida se o citado normativo abrange toda e qualquer compensação, ou se apenas compensação judicial.[8]

Uma corrente jurisprudencial tem defendido que a actual redacção da alínea c), do n.º 2, do art.º 266.º do CPC prevê a reconvenção como o instrumento processual adequado para efeitos de invocação de contra crédito pelo réu, quer no caso de compensação parcial na parte em que o montante do contra crédito exceda o valor do crédito do autor e o réu pretenda a condenação deste último no pagamento do remanescente, quer nos restantes casos em que se invoque a compensação de créditos e mesmo que a invocação da compensação de créditos não seja feita por via judicial, mas sim extrajudicialmente – consagrando, assim, a tese da compensação-reconvenção.

Veja-se, a este propósito, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10-04-2018, proferido na revista n.º 23656/15.5T8SNT.L1.S1[9], cujo sumário é o seguinte:

“I. O devedor pode livrar-se da sua obrigação através da compensação, por extinção simultânea do crédito equivalente que possua sobre o seu credor.

II - A compensação depende destes requisitos: (i) existência de créditos recíprocos; (ii) fungibilidade das coisas objecto das prestações e identidade do seu género; (iii) exigibilidade do crédito que se pretende compensar. 

III - É judicialmente exigível a obrigação que, não sendo voluntariamente cumprida, dá direito à acção de cumprimento ou à execução do património do devedor. 

IV - O crédito (activo) a compensar não tem de estar reconhecido previamente para se poder invocar a compensação (salvo se esta for invocada na acção executiva); o reconhecimento será, obviamente, necessário, mas apenas para que a compensação se torne eficaz, podendo ocorrer em simultâneo na fase declarativa do litígio. 

V - O regime actualmente previsto no art. 266.º, n.º 2, al. c), do CPC, acolhe claramente este entendimento: não estando o crédito activo reconhecido, a compensação é possível, mas terá de ser pedida em reconvenção, passando o autor (titular do crédito passivo) a dispor de meios processuais adequados a contestar aquele crédito, invocando as excepções de direito material pertinentes.”.[10]

No mesmo sentido, ao nível dos Tribunais da segunda instância, indicam-se, a título de exemplo, os seguintes acórdãos: Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 22-06-2017 (proc. n.º 69039/16.0YIPRT.G1)[11]; Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 19-12-2019 (proc. n.º 74/18.8T8PTM.E1)[12]; Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 8-07-2015 (proc. n.º 19412/14.6YIPRT-A.P1)[13] e de 7-10-2019 (proc. n.º 4843/19.3YIPRT-A.P1)[14] e Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 16-11-2016 (proc. n.º 3942/15.5T8CSC-A.L1-4)[15] e de 23-02-2021 (proc. n.º 72269/19.0YIPRT.L1-7)[16].


Em sentido contrário, na jurisprudência, e a propósito de situação idêntica à que nos ocupa nos presentes autos, importa atentar no recente Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13-04-2021, proferido na revista n.º 69310/19.0YIPRT.G1.S1[17], que sumariza o seguinte entendimento sobre a problemática sob escrutínio:

 “1. O réu que alega ter invocado a compensação de créditos, por via extrajudicial (6 anos antes de ser demandado), e que pretende demonstrar esse facto na sua defesa, não tem de formular pedido reconvencional.

2. A compensação de créditos, eficazmente invocada pelo devedor-credor, produz os mesmos efeitos do cumprimento. Se na defesa apenas se pretende demonstrar que, à data da propositura da ação, autor e réu já não eram devedores e credores recíprocos (por se encontrarem compensados os créditos), trata-se de um modo de defesa por exceção.

3.  O réu que alega a operatividade extintiva da compensação extrajudicial de créditos tem como objetivo (demonstrado esse facto) vir a ser absolvido do pedido, nos termos do art.576.º, n.º 3 do CPC.

4.  Do teor do art. 266.º, n.º 2, alínea c) do CPC não se pode concluir que o legislador tenha imposto ao réu, que já tinha invocado a compensação por via extrajudicial, o ónus de formular pedido reconvencional.

5. A certeza e a segurança das relações contratuais devem permitir, a quem invoca eficazmente a compensação de um crédito, confiar que o efeito extintivo inerente ao exercício desse direito potestativo se produziu definitivamente na ordem jurídica. Tendo presente que o direito processual serve a correta ordenação das situações de direito substantivo, dificilmente se compreenderia a imposição de formular pedido reconvencional a quem não se sente credor da contraparte. O que o réu pretenderá demonstrar é que já não era devedor, quando foi demandado, porque o pagamento havia sido realizado por meio de compensação. Não pretende demonstrar que é credor da contraparte.

6.  Não admitir o réu a fazer prova da exceção respeitante à invocada compensação extrajudicial, por se entender que só podia ser feita valer em reconvenção, mas, ao mesmo tempo, entender que a reconvenção nunca seria admitida no caso concreto, porque, sendo a autora uma massa insolvente, tal estaria excluído pelas regras do art. 90.º e seguintes do CIRE, sendo o réu condenado no pedido, traduz-se numa significativa afetação dos direitos de defesa do réu.

7. A insolvência superveniente da contraparte não deve afetar o efeito extintivo da obrigação que já se tenha produzido com a eficaz invocação da compensação de créditos, por via extrajudicial, nos termos dos artigos 848.º e 854.º do CC.” (realce a negrito nosso).

No mesmo sentido - de que não se pode extrair teor do disposto no art.º 266.º, n.º 2, al. c) do CPC que em toda e qualquer hipótese em que o réu pretenda invocar a compensação tenha de o fazer através de reconvenção - ao nível dos Tribunais da segunda instância, vejam-se, a título de exemplo, os seguintes acórdãos: Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 20-05-2014 (proc. n.º 285518/10-8YIPRT.L1-7)[18]; Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 26-02-2019 (proc. n.º 2128/18.1YIPRT.C1)[19] e de 19-12-2019 (proc. n.º 78428/17.2YIPRT-A.C1)[20].


Ao nível doutrinal sobre esta matéria, defende Miguel Teixeira de Sousa[21] que o tratamento processual a dar à compensação diverge em função da finalidade pretendida com a respetiva invocação, “quando se fala da compensação em processo pode estar a falar-se de uma de duas situações: Da alegação pelo réu de que já antes da propositura da acção o crédito que o agora autor invoca se tinha extinguido por uma declaração de compensação que aquela parte tinha dirigido a esta última (art. 848.º, n.º 1, CC); Da alegação pelo réu de um crédito contra o autor com a finalidade de obter em juízo a extinção do crédito desta parte. Não há dúvida de que estas situações implicam, segundo o regime actualmente vigente, soluções processuais distintas:

- A alegação de que o crédito do autor se extinguiu por compensação é a invocação de um facto extintivo, o que deve ser realizado por via de excepção (art. 576.º, n.º 3, CPC);

 - A alegação pelo réu de um contracrédito com a finalidade de provocar a extinção do crédito do autor deve ser realizada por via de reconvenção (art. 266.º, n.º 2, al. c), CPC)

Também Antunes Varela, a propósito da invocação da compensação, consentia esta dualidade de configuração, ao defender que “(...) a compensação é, sob o ponto de vista processual, um instituto sui generis, equiparável à reconvenção em certo aspecto e identificável com a excepção num outro.”.[22]

Acompanhamos esta posição dualista, sendo que não se vê que do teor do art.º 266.º, n.º 2, al. c) do CPC resulte que a invocação da compensação de créditos tenha de ser sempre feita através de reconvenção. Saliente-se que o referido preceito legal apenas diz que a compensação é admissível como fundamento da reconvenção, mas não que a compensação só possa ser feita valer por esse meio (trata-se de uma possibilidade e não de um impedimento de dedução de compensação por via de excepção).

Entende-se, ademais, na esteira de Rui Pinto[23], que não estarão cobertas pela previsão do citado normativo os casos em que a compensação já tenha sido operada extrajudicialmente em momento anterior, “pois aí o crédito do autor já está extinto quando a ação é proposta, sendo então de invocar esse facto extintivo em sede de defesa[24].

Transferindo o prisma de análise para o caso sob escrutínio, temos por certo que a Ré, nos termos concretos em que alegou tais factos, não pretendeu o reconhecimento judicial dos créditos, cuja extinção defende, nem pretendeu obter a compensação processual de tais créditos com os créditos peticionados pela Autora. Ao invés, a Ré visou antes invocar a inexistência do crédito cujo pagamento é peticionado na acção, em função de ter operado anteriormente a compensação de créditos. E, no exercício interpretativo da alínea c) do n.º 2 do citado art.º 266.º, deve ser relevada a distinção essencial entre os casos em que o réu pretende invocar um contra crédito para fazer a compensação operar processualmente e os casos em que o réu invoca uma compensação de créditos que já operou extra processualmente.

Conforme salienta Rui Pinto[25], “quanto à al. c) do n.º 2 do artigo 266.º deve ser notado que ele supõe a necessidade de “reconhecimento do crédito […] para obter a compensação”. Ora, é bom de ver que se a compensação extrajudicial aqui coubesse o réu pediria o reconhecimento judicial de um crédito seu que já estava extinto pelo ato jurídico anterior da compensação. Mais: se o réu pudesse alegar a compensação extrajudicial na reconvenção, necessariamente isso implicaria que, afinal, aquela não tivera efeito, ignorando-se que o efeito do artigo 847.º, n.º 1 ex lege.”.

A este propósito, e no mesmo sentido, precisa o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13-04-2021 (revista n.º 69310/19.0YIPRT.G1.S1, acima citado), que “no plano processual, quando o réu alega que a compensação já tinha sido invocada e, por isso, produzido os seus efeitos antes de ser demandado, o réu está a alegar um facto que tem em vista extinguir o efeito jurídico dos factos articulados pelo autor, ou seja, está a invocar uma exceção perentória, visando a absolvição do pedido, nos termos do art. 576.º, n.º 3 do CPC. No caso concreto, se a ré, na sua defesa, apenas pretende demonstrar que, à data da propositura da ação, autora e ré já não eram devedoras e credoras uma da outra, por se encontrarem compensados os créditos (há cerca de 6 anos), trata-se de um modo de defesa por exceção.

A certeza e a segurança das relações contratuais devem permitir, a quem invoca eficazmente a compensação de um crédito, confiar que o efeito extintivo inerente ao exercício desse direito potestativo se produziu definitivamente na ordem jurídica.”.

E, concretamente, sobre a superveniência da insolvência da contraparte, densifica o mesmo aresto que tal situação “não deve projetar-se retroativamente na eficácia da compensação que havia sido exercida antes da declaração de insolvência, tendo presente que o art. 854.º do CC consagra o efeito retroativo da invocação da compensação ao momento em que os créditos se tornam compensáveis.”

Ora, no presente caso e como alegado pela ré, a compensação terá sido realizada antes da declaração da insolvência da autora.

Secundamos na íntegra o entendimento vertido no Acórdão acabado de citar.

Deverá, assim, concluir-se que a decisão recorrida, ao entender que a ré não se podia defender por excepção, porquanto a compensação só podia ser invocada através de reconvenção, não fez a correcta aplicação da lei e coartou o direito de defesa da ré, que, assim, ficou impedida de fazer a prova cabal dos factos por si alegados nesta parte.

Por isso, não pode a mesma decisão ser mantida.


Destarte, sem mais considerações, concede-se a revista, devendo os autos prosseguir para apreciação da excepção da compensação invocada pela ré na contestação.


Sumário:

1. A compensação de créditos depende da verificação dos requisitos previstos no art.º 847.º do Código Civil e, eficazmente invocada pelo devedor-credor, produz os mesmos efeitos do cumprimento, dando lugar, quando provada, à absolvição do pedido, assim constituindo uma excepção peremptória, nos termos do art.º 576.º, n.º 3, do CPC.

2. O art.º 266.º, n.º 2, al. c), do CPC não impõe que a invocação da compensação de créditos tenha de ser sempre feita através de reconvenção, apenas referindo que a compensação é admissível como fundamento da reconvenção, mas não que a compensação só possa ser feita valer por esse meio.

3. Não estão cobertos pela previsão do normativo acabado de citar os casos em que a compensação já tenha sido operada extrajudicialmente em momento anterior à propositura da acção, sendo então de invocar esse facto extintivo em sede de defesa por excepção.

4. A insolvência superveniente da contraparte não deve afectar o efeito extintivo da obrigação que já se tenha produzido com a eficaz invocação da compensação de créditos, por via extrajudicial, nos termos dos art.ºs 848.º e 854.º do C. Civil.

5. Não pretendendo a ré o reconhecimento judicial do crédito que invocou, nem a obtenção da compensação processual de tal crédito com o crédito peticionado pela autora, tendo, ao invés, apenas invocado a inexistência deste mediante uma compensação de créditos que já operou extra processualmente, não se lhe impõe o meio da reconvenção.

III. Decisão

Pelos fundamentos expostos, acorda-se em conceder a revista e, em consequência, revogar a decisão recorrida, ordenando-se o prosseguimento dos autos, com eventual produção de prova, para que se tome conhecimento da excepção da compensação invocada pela ré na contestação.

           

Custas:

- da revista pela recorrida (art.º 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC);

- da acção pela parte vencida a final.



*



Lisboa, 14 de Dezembro de 2021


Fernando Augusto Samões (Relator)

Maria João Vaz Tomé (1.ª Adjunta)

António José Moura de Magalhães (2.º Adjunto)

_________

[1] Do Tribunal Judicial da Comarca do …. – Juízo Central Cível de ...- Juiz ….

[2] Relator: Conselheiro Fernando Samões

1.º Adjunto: Juíza Conselheira Maria João Vaz Tomé

2.º Adjunto: Juiz Conselheiro António Magalhães

[3] [9] Vide o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 16/01/2018, proferido no âmbito do processo n.º 12373/17.1YIPRT-A.C1.

[4] [10] PIMENTA, Paulo, Processo Civil Declarativo, 2.ª Edição, Almedina, 2018, pág. 203, em anotação 459.

[5] [11] Vide Acórdão Uniformizador de Jurisprudência, de 08/05/2013, proferido no âmbito do processo n.º 170/08.0TTALM.L1.S1.

[6] [12] Vide Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra, de 16/01/2018, de 26/02/2019 e de 10/12/2019, proferidos, respectivamente, no âmbito dos processos n.ºs 12373/17.1YIPRT-A.C1, 2128/18.1YIPRT.C1, e 78428/17.2YIPRT-A.C1.

[7] ANTUNES VARELA, João de Matos, in Das Obrigações em Geral – Vol. II, 7ª edição (1991), pág. 197.

[8] Sobre esta problemática, veja-se Rui Pinto,  “A problemática da Dedução da Compensação no  Código de Processo de 2013, disponível no site https://www.academia.edu/35539814/A_problematica_da_compensacao ; o entendimento perfilhado por este autor é o de que a dita alínea c) do n.º 2 do art.º 266.º do CPCP apenas abrange a compensação judicial, pelo que a compensação extrajudicial terá sempre a natureza de excepção.

[9] Disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/99c83bddd6904f338025826b00489e90?OpenDocument

[10] No mesmo sentido, citados pelo referido Acórdão do STJ, veja-se P. Ramos Faria e Ana L. Loureiro, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, Vol. I, 236; Lebre de Freitas, CPC Anotado, Vol. 1º, 3ª ed., 522.

[11] Disponível em http://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/65618f6b9d619d6180258193003394d8?OpenDocument

[12] Disponível em

http://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/8b3781d9b0de0ed8802584f000348a56?OpenDocument

[13] Disponível em

http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/769ba8ae46f3bd3380257e8400558af6?OpenDocument

[14] Disponível em: http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/cbe636a5a887b19b802584b2003a09b2?OpenDocument

[15] Disponível em

http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/-/D51ACBB61DF79836802580A6003EA012

[16] Disponível em

http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/fced475ab8acfebb80258696004208d4?OpenDocument&Highlight=0,reconven%C3%A7%C3%A3o,compensa%C3%A7%C3%A3o,de,cr%C3%A9ditos

[17] Relatado por Maria Olinda Garcia, não publicado no site www.dgsi.pt.

[18] Disponível em: http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/e5cdf34b9da038ac80257d6a003fc301?OpenDocument

[19] Disponível em:

http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/c5df123414aecec7802583c80042b6f9?OpenDocument

[20] Disponível em:

http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/67183b5c82b6e804802584f000423e03?OpenDocument

[21] In “A compensação em Processo Civil - Uma Proposta Legislativa”, publicado no site:

https://www.academia.edu/38563274/TEIXEIRA_DE_SOUSA_M_A_compensa%C3%A7%C3%A3o_em_processo_civil_uma_proposta_legislativa_03_2019_pdf?pop_sutd=true

[22] In Das Obrigações em Geral, Vol. II (7.ª ed.), pág. 219.

[23] Ob. cit., pág. 8 e seguintes

[24] Cfr. Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, 2.ª Edição, 2018, pág. 203.

[25] Ob. cit., pág. 9