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EXCEÇÃO DILATÓRIA
PRAZO PEREMPTÓRIO
DELIBERAÇÃO DA ASSEMBLEIA GERAL
AÇÃO DA SOCIEDADE CONTRA SÓCIO
Sumário
1 – A proposição de acção pela sociedade contra sócio depende de deliberação dos sócios, mesmo que a sociedade só tenha dois sócios. 2 – A deliberação da assembleia-geral constitui um pressuposto para a sociedade poder litigar contra o sócio, pelo que deve ser demonstrada com a apresentação da petição inicial. 3 – Não estando demonstrada a deliberação exigida por lei, o juiz deve designar o prazo dentro do qual deve ser obtida a deliberação e comprovada no processo. 4 – Não sendo a falta sanada no prazo fixado, o réu é absolvido da instância, quando a deliberação devesse ser obtida pelo representante do autor.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães (1):
I – Relatório
1.1. M. F., Lda., intentou acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra M. C. e X Imobiliária, Lda., formulando os seguintes pedidos:
«a) Deve ser judicialmente anulada ou declarada nula a escritura pública de compra e venda da fracção autónoma designada pela letra “B”, rés-do-chão e entrepiso, para pavilhão industrial ou armazém, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número ... – B, da freguesia de ..., registada a favor da 1.ª ré pela inscrição apresentação ..., de ..., inscrita na matriz urbana sob o artigo ...-B, com o valor patrimonial tributário de € 112.638,60, localizada no prédio urbano situado no Lugar ..., Lote número ..., freguesia de ..., concelho de Guimarães, descrito na referida Conservatória do Registo Predial sob o número ..., da freguesia de ..., afecto ao regime da propriedade horizontal nos termos da inscrição apresentação ...., realizada no Cartório Notarial do Dr. C. T. no dia 11 de Outubro de 2019 a favor da 2.ª ré; b) Declarar-se, que a fracção autónoma designada pela letra “B”, rés-do-chão e entrepiso, para pavilhão industrial ou armazém, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número ... – B, da freguesia de ..., registada a favor da 1.ª ré pela inscrição apresentação ..., de ..., inscrita na matriz urbana sob o artigo ...-B, com o valor patrimonial tributário de € 112.638,60, localizada no prédio urbano situado no Lugar ..., Lote número ..., freguesia de ..., concelho de Guimarães, descrito na referida Conservatória do Registo Predial sob o número ..., da freguesia de ..., afecto ao regime da propriedade horizontal nos termos da inscrição apresentação ...., pertence ao acervo patrimonial da sociedade comercial autora, que gira sob a firma “M. F., Lda.” NIPC: ..., com sede social na Rua da …, da freguesia de ..., Guimarães; c) Serem as rés condenados a reconhecer a titularidade e propriedade da fracção autónoma designada pela letra “B”, rés-do-chão e entrepiso, para pavilhão industrial ou armazém, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número ... – B, da freguesia de ..., registada a favor da 1.ª ré pela inscrição apresentação ..., de ..., inscrita na matriz urbana sob o artigo ...-B, com o valor patrimonial tributário de € 112.638,60, localizada no prédio urbano situado no Lugar ..., Lote número ..., freguesia de ..., concelho de Guimarães, descrito na referida Conservatória do Registo Predial sob o número ..., da freguesia de ..., afecto ao regime da propriedade horizontal nos termos da inscrição apresentação ...., como pertencendo à autora – sociedade comercial por quotas com a firma “M. F., Lda.”; d) Serem ordenadas em consequência, as rectificações, anotações e averbamentos necessários junto da competente Conservatória do Registo Predial de ... e respectiva Repartição de Finanças, em vista a efectivação e afectação da fracção autónoma em apreço nos autos à sociedade comercial por quotas com a firma “M. F., Lda.” e) Quando assim não se entender, o que não se concebe nem admite, sempre deve a 1.ª ré ser condenada a depositar integralmente o preço recebido de € 120.000,00 pela venda da fracção autónoma, na conta bancária da autora – sociedade comercial por quotas com a firma “M. F., Lda.” NIPC: ..., por se concluir tratar-se de um activo do acervo patrimonial desta».
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Com relevo para o objecto do presente recurso, contestou a 2ª Ré invocando que a sociedade M. F., Lda., se obriga com as assinaturas de ambos os sócios, mas da procuração junta apenas consta uma assinatura, além de que a propositura da acção contra sócio-gerente sem a deliberação exigida pela alínea g) do nº 1 do artigo 246º do CSC conduz à absolvição da instância.
Também a 1ª Ré invocou a irregularidade do mandato judicial conferido ao mandatário que propôs a acção, em virtude de a procuração só se mostrar assinada por um dos gerentes quando é necessária a assinatura de ambos os gerentes.
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1.2. Depois de realizada a audiência prévia, em 05.01.2021 foi proferido despacho a conceder à Autora o prazo de 45 dias para juntar aos autos acta de deliberação em Assembleia-Geral consentindo na propositura da presente acção e ratificando o processado anterior, com a advertência de que, caso o não fizesse, se tomaria imediatamente posição sobre a excepção dilatória subjacente.
* 1.3. Por despacho de 15.09.2021, determinou-se o desentranhamento e a devolução à apresentante, por extemporâneo, do documento/acta junto com o requerimento de 09.06.2021 e declarou-se «verificada a excepção dilatória da falta de autorização ou deliberação que a Autora devesse obter, absolvendo as Rés da instância».
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1.4. Inconformada, a Autora interpôs recurso de apelação daquela decisão, formulando as seguintes conclusões:
«1) A sentença datada de 15 de setembro de 2021, de que ora se recorre, com o devido e justo respeito, cumpre ser revogada, sendo substituída por outra, que decrete que não obstante não ser obrigatório in casu a junção aos autos de deliberação que a Autora devesse obter, admite-se a junção tempestiva da ata junta em apreço, com as legais consequências;
2) DA ILEGALIDADE DECISÃO RECORRIDA EM SEDE DA QUESTÃO DA TEMPESTIVIDADE DA REALIZAÇÃO DA ASSEMBLEIA E DA JUNÇÃO DA ATA:
i) o Ilustre Tribunal a quo, com o devido e justo respeito, labora em manifesto erro e violação de lei expressa, porquanto:
a) Fixa o Decreto-lei n.º 22-A/2021, de 17 de março, no seu artigo 12.º: “são repristinados os artigos 18.º, …, do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, que passam a ter a seguinte redação:
«Artigo 18.º Prazos de realização de assembleias gerais
1 — Não obstante a possibilidade de realização de assembleias gerais através de meios telemáticos nos termos legais, as assembleias gerais das sociedades comerciais, das associações ou das cooperativas, que devam ter lugar por imposição legal ou estatutária, podem ser realizadas até 30 de junho de 2021. 2 — Sem prejuízo do disposto no número anterior, no caso das cooperativas e das associações com mais de 100 cooperantes ou associados, as assembleias gerais que devam ter lugar por imposição estatutária podem ser realizadas até 30 de setembro de 2021”;
b) Destarte, não carecia a A. de fazer qualquer requerimento aos autos a pedir qualquer prorrogação do prazo, como não teve que fazer para peticionar a suspensão do prazo judicial;
c) De facto, é o próprio Decreto-lei n.º 22-A/2021, de 17 de março, que determina que a Assembleia Geral em apreço podia ser realizada até 30 de junho de 2021;
d) E não se diga (invocando que o Decreto-lei em apreço se refere às assembleias impostas por Lei ou Estatutos) que há assembleias que por razões de saúde pública podem ser celebradas até um prazo e há outras que têm de ser celebradas antes, porquanto tal interpretação estaria ferida de inconstitucionalidade material, violando de forma expressa e direta os mais elementares princípios do direito, incluindo o princípio da igualdade fixado no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa;
e) Perceba-se, aliás: a assembleia em apreço é imposta, no entendimento do tribunal, com o qual não concordamos, pelo fixado no artigo 246.º, n.º 1, alínea g), do C.S.C., e, como tal, também a sua realização também seria imposta por imposição legal;
f) Conclusão: a assembleia em apreço, por razões excecionais vertidas no Decreto-lei n.º 22-A/2021, de 17 de março, podia ser realizada até 30 de junho de 2021, sendo claramente tempestiva a sua junção no tempo em que o foi;
g) Foi público e notório que por razões sanitárias, considerando, inclusive, a idade avançada do sócio-gerente, atento o estado de emergência e de calamidade, e que na sede da empresa ocorre manuseamento e produção de bens alimentares, bem como considerando o número de trabalhadores da empresa, não era possível concretizar a Assembleia-Geral em apreço até à data em que o foi;
h) Aliás, o estado de emergência só foi levantado no dia 30 de Abril de 2021, passando o país a estar em estado de calamidade (não olvidando a suspensão dos prazos judiciais desde 22 de fevereiro a 5 de abril).
i) Mais: a Ré foi devidamente notificada para a Assembleia Geral, com carta registada com aviso de receção, e só se concedeu mais prazo de segurança, precisamente para se evitar qualquer imprevisto. Cfr. documentos apud acta.
3) Conclusão: atentas as razões acima avançadas, mormente o fixado no Decreto-lei n.º 22-A/2021, de 17 de março, a ata em apreço foi remetida aos autos em devido tempo e não antes, por impossibilidade objetiva em resultado do estado de emergência e calamidade, atentas as questões sanitárias que são facto notório e do conhecimento geral, logo, não carecendo de demonstração e prova.
4) Tendo o tribunal a quo decidido em sentido contrário, violou de forma expressa, nomeadamente, o vertido no Decreto-lei n.º 22-A/2021, de 17 de março, no seu artigo 12.º, em que se faz a repristinação do artigo 18.º do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, com a redação nova, bem como ocorre inconstitucionalidade (o que ora se argui para todos os legais efeitos) da interpretação da referida norma do citado artigo 18.º, do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, quando interpretada no sentido de não ser aplicável tal prazo a assembleias gerais fixadas por despacho judicial, por violação, nomeadamente, do princípio da igualdade fixado no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa.
5) DA ILEGALIDADE DECISÃO RECORRIDA EM SEDEDA QUESTÃO DA VERIFICAÇÃO DA EXCEÇÃO DA FALTA DE AUTORIZAÇÃO OU DELIBERAÇÃO QUE A AUTORA DEVESSE OBTER:
a) Com todo o respeito, a A., ora Recorrente, também nesta parte, não pode concordar com a, aliás, douta Sentença do Ilustre Tribunal a quo de que ora se recorre;
b) Nos presentes autos foi alegado, aliás, doutamente, pelas RR. em sede de contestação, quer a irregularidade do mandato quer a falta de autorização ou deliberação que a Autora devesse obter;
c) No que concerne a tais exceções dilatórias, foi avançado pela A.: “impõe-se perguntar:
1) O contrato de sociedade da A. impõe a assinatura dos dois gerentes para vincular a sociedade?
2 - Bem como, nos termos do artigo 246.º, do Código das Sociedades Comerciais, é exigido deliberação por parte dos sócios para efeitos do recurso a tribunal?”
d) No contexto de tais questões, importa, com a devida e justa vénia e sempre com respeito por opinião contrária, aplicar a Lei ao caso concreto em apreço, tendo presente, quanto à questão da necessidade da deliberação da sociedade para o recurso à via judicial, que:
1 - Considerando que estamos perante uma sociedade com apenas dois sócios e que se visa intentar uma ação pela sociedade contra um dos sócios, e atento o princípio da celeridade e economia processual e do seu corolário princípio da proibição da prática de atos inúteis, imperativo é dar-se como dispensável a deliberação da sociedade para intentar ação contra o outro sócio (exigida pelo artigo 246.º, n.º 1, alínea g), do C.S.C.);
2- Com mais rigor: no caso de se pretender intentar ação contra um sócio, a norma do artigo 246.º, n.º 1, alínea g), do C.S.C., deve ser interpretada como o seu regime só ser aplicável caso a sociedade tenha mais de dois sócios;
3- De facto, sendo a sociedade apenas constituída por dois sócios com quotas rigorosamente iguais, quando um dos sócios propõe a ação em representação da sociedade contra o outro, como há conflito de interesses entre o sócio demandado e a sociedade, aquele não pode votar a deliberação, resumindo-se a vontade da sociedade à do sócio que intenta a ação (cfr. Artigo 251, n.º 1, do C.S.C.);
4- Existindo, como é o caso, uma situação clara de conflito de interesses entre a sócia que é demandada e a sociedade, aquela não pode votar, logo, o sócio que se apresenta a representar a sociedade in casu iria votar sozinho a deliberação social de instaurar uma ação contra a outra sócia;
5- E isso fica suprido por se apresentar a demandar em representação da sociedade A., pois que, a sua vontade será sempre, nestas circunstâncias, a vontade da própria sociedade;
6- Aliás, atua em abuso de direito, nos termos do artigo 334.º, do Código Civil, o sócio que exerce o direito de voto em situação clara e ostensiva de conflito de interesses, o que seria lapidar no caso dos autos;
6- Destarte, com a devida e justa vénia, não carece de deliberação formal da sociedade A. o intentar da presente ação, o que cumpria ser decretado pelo tribunal a quo;
7 - Tendo o tribunal a quo decidido em sentido contrário, violou de forma expressa o vertido nos artigos artigo 246.º, n.º 1, alínea g), e 251, n.º 1, ambos do C.S.C. e artigo 334.º do Código Civil (cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Évora, com votação por unanimidade, datado de 19 de Janeiro de 2012, in www.dgsi.pt);
8- Por todas estas razões acima avançadas, com o devido e justo respeito, cumpre ser revogada a sentença de que ora se recorre, sendo substituída por outra, que decrete que não obstante não ser obrigatório in casu a junção aos autos de deliberação que a Autora devesse obter, admite-se a junção tempestiva da ata junta em apreço, com as legais consequências,
Nestes termos e nos mais de Direito, que V. Exas. doutamente suprirão, deve o presente recurso ser considerado procedente, revogando-se a sentença de que ora se recorre, substituindo-a por acórdão que decrete que não obstante não ser obrigatório in casu a junção aos autos de deliberação que a Autora devesse obter, admite-se a junção tempestiva da ata junta em apreço, com as legais consequências».
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Não foram apresentadas contra-alegações.
O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
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1.5. Questões a decidir
Tendo presente que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635º, nºs 2 a 4, e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, constituem questões a decidir:
a) Se é tempestiva a junção da acta da assembleia da sociedade Ré, que deliberou autorizar a demanda da 1ª Ré, apresentada com o requerimento de 09.06.2021;
b) Se o entendimento do Tribunal a quo, relativo à extemporaneidade da junção, viola «o princípio da igualdade fixado no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa»;
c) Caso se responda negativamente às duas anteriores questões, se era necessária uma deliberação dos sócios da Autora, enquanto sociedade por quotas com dois únicos sócios, para intentar a presente a acção contra a 1ª Ré, sua sócia, e, nesse caso, qual a consequência de essa deliberação não existir.
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II – FUNDAMENTOS
2.1. Fundamentos de facto
Os factos relevantes para a apreciação das apontadas questões são os descritos no relatório e ainda os seguintes:
2.1.1. Por despacho de 28.06.2020, com a referência 168707149, tendo em vista a «decisão da excepção dilatória de irregularidade do mandato por falta de poderes do sócio gerente J. F. para conferir procuração forense com vista à propositura da presente acção», ordenou-se a notificação da «Autora para, em dez dias, juntar aos autos: - acta da assembleia-geral em que foi deliberada a propositura da presente acção contra a sócia M. C. (cfr. artigo 246º, n.º 1, alínea g) do Código das Sociedades Comerciais); - pedido de registo da renúncia, da Ré M. F., ao cargo de gerente da sociedade Autora». 2.1.2. Por requerimento de 08.07.2020, sob a referência 36015566, o Sr. Dr. Paulo Dias declarou «renunci[ar] expressamente à procuração junta aos autos em epígrafe e subscrita pela Autora M. F., Lda.». 2.1.3. Por despacho de 05.01.2021, mencionando-se que «na sequência dos despachos proferidos pelo tribunal a 28.06.2020, 10.07.2020 e 11.09.2020, veio a Autora, por requerimento de 20.10.2020 informar que não existe deliberação social a autorizar a propositura da presente acção e, bem assim, que se trata de acto dispensável, inútil, na medida em que a sociedade é constituída apenas por dois sócios e o Réu, por se encontrar em situação de conflito de interesses, não pode votar na assembleia designada para o efeito, pelo que a vontade da sociedade se resume à do outro sócio», decidiu-se:
«- concedo à Autora o prazo de 45 dias para juntar aos autos acta de deliberação em Assembleia-Geral consentindo a propositura da presente acção e ratificando o processado anterior; - com a advertência de que, caso o não faça, se tomará imediatamente posição sobre a exceção dilatória subjacente». 2.1.4. Por requerimento de 19.05.2021, com a referência 38916614, a Autora expôs o seguinte:
«1.º É facto público e notório que por razões sanitárias, considerando, inclusive, a idade avançada do sócio-gerente, atento o estado de emergência e de calamidade, não era possível concretizar a Assembleia-Geral em apreço. 2.º Acresce: a ASAE, por razões sanitárias, selou as instalações e sede da A., no processo NUIPC 00002/21.3EAMDL. 3.º A referida selagem foi ultrapassada agora, estando a situação regularizada. 4.º A Assembleia-Geral em apreço realizar-se-á no dia 8 de Junho, pelas 10h30, vinculando-se a A. a remeter ata de reunião de imediato. 5.º A Assembleia-Geral tem a seguinte ordem de trabalhos: 1. Autorizar e aprovar, ratificando (processo n.º 7265/19.2T8GMR, pendente Juízo Central Cível de Guimarães – Juiz 5), a proposição de ação judicial pela sociedade contra a sócia M. F., atenta a hostil alienação ilícita e inválida (nula) do armazém propriedade da empresa; 2. Ratificar a renúncia à gerência, por carta datada de 8 de Novembro de 2019, da sócia M. F. ou destituição com justa causa da gerência da sócia M. F., com efeitos retroativos a 8 de Novembro de 2019; 3. Aprovar acordo de pagamento na execução n.º 1710/21.4T8GMR, pendente na Juízo de Execução de Guimarães – Juiz 2, em que é exequente a Caixa …, Caixa …, S.A.. 6.º Conclusão: atentas as razões acima avançadas, a ata em apreço será remetida aos autos no dia 9 de Junho de 2021». 2.1.5. Por requerimento de 09.06.2021, foi requerida pela demandante «a junção aos autos de ata n.º 7 da Assembleia Geral da A., em que aprova e consente o instaurar da presente ação, ratificando integralmente o processado, bem como ratificando a constituição de mandatários e delibera a destituição formal da gerência (por forma a ter título para registar a saída da gerência), da ora ré M. F., com efeitos à data de apresentação da sua renúncia à gerência, isto é, 8 de Novembro de 2019». 2.1.6. Em 15.09.2021, sob a referência 174360983, foi proferida a decisão recorrida, com o seguinte teor:
«Por despacho proferido nos presentes autos a 05.01.2021 (fls. 110), foi concedido à Autora o prazo de 45 dias para juntar aos autos acta de deliberação em Assembleia-Geral consentindo a propositura da presente acção e ratificando o processado anterior, com a advertência de que, caso o não fizesse, se tomaria imediatamente posição sobre a exceção dilatória subjacente. Tal despacho, remetido às partes no dia 06.01.2021, considera-se-lhes notificado a 11.01.2021 (1º dia útil depois do 3º contado da expedição da notificação). Contados desde 11.01.2021, os 45 dias concedidos pelo despacho em apreço foram suspensos ao 11º, no dia 22.01.2021, por força da suspensão de prazos determinada pela Lei n.º 4-B/2021 de 01.02.2021, até ao dia 05.04.2021. Assim, o prazo concedido à Autora terminou no dia 09.05.2021 que por ser Domingo se transferiu para o dia útil imediatamente seguinte: 10.05.2021. No decurso do prazo em apreço, a Autora não juntou aos autos a deliberação da Assembleia-Geral consentindo a propositura da presente acção e ratificando o processado anterior, nem solicitou pedido de prorrogação invocando as dificuldades de convocação da assembleia que mais tarde veio referir. Findo o prazo em apreço, só em 19.05.2021 apresentou aos autos requerimento invocando que por razões sanitárias a ASAE selou as instalações e sede da Autora e que a Assembleia-Geral em apreço se encontrava agendada para o dia 8 de Junho, pelas 10:30 horas. Se os constrangimentos causados pela Pandemia Covid 19 no decurso dos últimos dois anos, de que o encerramento forçado das instalações da Autora é um reflexo, determinaram o atraso na convocatória da Assembleia-Geral, afigura-se claro que a Autora dispôs de todo o tempo decorrido até 10.05.2021 para de tais razões dar nota ao tribunal, sujeitando-se ao necessário contraditório, tanto mais que o auto de apreensão do seu estabelecimento comercial data de 19.02.2020 (cfr. documento que juntou com o requerimento de 21.05.2021), de modo a obter dilação do prazo que lhe havia sido concedido. Não o tendo feito, deixando expirar o prazo que lhe havia sido concedido com expressa advertência de que o tribunal tomaria imediato conhecimento da excepção dilatória em apreço, só da sua inércia se pode queixar. Pelo exposto: - determina-se o desentranhamento e a devolução à apresentante, por extemporâneo, do documento / acta junto com o requerimento de 09.06.2021. - toma-se, em seguida, posição sobre a excepção dilatória resultante da falta de autorização ou deliberação que a Autora devesse obter.
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Nos termos previstos pelo artigo 246º, n.º 1 alínea g), do Código das Sociedades Comerciais:
1 - Dependem de deliberação dos sócios os seguintes actos, além de outros que a lei ou o contrato indicarem: (…) g) A proposição de acções pela sociedade contra gerentes, sócios ou membros do órgão de fiscalização, e bem assim a desistência e transacção nessas acções (…). A falta de autorização integra o vício processual previsto no artigo 29º, n.º 1, do Código de Processo Civil, o qual, não sendo sanado no prazo que for concedido para o efeito, implica a absolvição da instância em obediência ao disposto nos artigos 29º, n.º 2, 576º, n.º 2 e 577º, alínea d), todos do mesmo diploma legal. No caso vertente, notificada para proceder à sanação do vício no prazo de 45 dias, a Autora não o fez, nem apresentou justificação para a sua omissão ou pedido complementar de prazo para o efeito. Termos em que declaro verificada a excepção dilatória da falta de autorização ou deliberação que a Autora devesse obter, absolvendo as Rés da instância.».
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2.2. Do objecto do recurso
2.2.1. Da tempestividade da junção da acta
Na decisão recorrida considerou-se extemporânea a junção, em 09.06.2021, da acta da assembleia-geral da sociedade M. F., Lda., que, além do mais, deliberou autorizar a demanda da 1ª Ré.
A Recorrente sustenta que o Tribunal a quo labora em manifesto erro e violação de lei expressa, porquanto, «a assembleia em apreço, por razões excecionais vertidas no Decreto-lei n.º 22-A/2021, de 17 de março, podia ser realizada até 30 de junho de 2021, sendo claramente tempestiva a sua junção no tempo em que o foi».
Salvo o devido respeito, não assiste razão à Recorrente.
O que está em causa na decisão recorrida não é propriamente a data da realização da assembleia-geral da sociedade, mas sim o facto de a Autora não ter juntado a acta da referida deliberação no prazo que lhe foi fixado no despacho de 05.01.2021, nem nada ter requerido até ao termo de tal prazo, designadamente o diferimento da apresentação daquele documento.
O fundamento do despacho radica no decurso de um prazo peremptório para a prática de um acto processual, com a consequente e legalmente imposta extinção do direito de o praticar (artigo 139º, nº 3, do CPC).
A Recorrente aparta indevidamente a questão do plano em que a mesma se coloca: o Tribunal a quo, no seu despacho de 05.01.2021, não ordenou a realização de qualquer reunião da assembleia-geral no prazo de 45 dias, mas sim a comprovação nos autos da existência de deliberação da «assembleia-geral consentindo [n]a propositura da presente acção e ratificando o processado anterior», com «a advertência de que, caso o não faça, se tomará imediatamente posição sobre a exceção dilatória subjacente».
Se a deliberação já então existia ou se iria ser tomada no futuro, já era uma circunstância que apenas à Autora respeitava. O Tribunal recorrido, com uma finalidade bem especificada e integralmente explícita, apenas convidou a Autora a suprir a excepção dilatória que a 2ª Ré logo havia invocado na sua contestação, em 29.01.2020, e para a sanação da qual foi sucessivamente alertada em despachos proferidos no processo (v. os datados de 28.06.2020, 10.07.2020 e 11.09.2020), bem como pela posição reiteradamente expressa pelas Rés, em especial pela 2ª Ré, que em diversos requerimentos invocou a falta de comprovação de deliberação da sociedade Autora para instaurar a acção contra a sócia, aqui 1ª Ré.
Como é óbvio, nos autos apenas se sabia que a Autora no dia 20.10.2020, em requerimento então apresentado, havia declarado que, ao tempo, não existia deliberação social a autorizar a propositura da presente acção, ignorando-se se desde então a assembleia-geral havia reunido para o efeito.Não só a deliberação poderia perfeitamente ter sido tomada no período subsequente à apresentação do requerimento de 20.10.2020 (até 05.01.2021), encontrar-se então, no dia 05.01.2021, marcada a assembleia-geral para uma data posterior a 05.01.2021 ou só ser convocada depois da notificação do despacho.
Aliás, a cópia da acta deveria ter sido junta com a petição inicial, em 2019. O despacho de 05.01.2021 limitou-se a fixar um prazo peremptório para a sanação da excepção dilatória em causa, com expressa advertência das respectivas consequências.
Ora, num quadro destes, estando a decorrer um prazo peremptório para a prática do identificado acto processual, a iniciativa (e inerente responsabilidade) recaía sobre a Autora: ou juntava a cópia da acta contendo a dita deliberação ou, não existindo ainda deliberação, requeria a dilação do prazo em curso, antes de o mesmo se exaurir.
Não fez nem uma coisa nem outra; pura e simplesmente, deixou decorrer o prazo sem nada requerer. Aliás, só veio aos autos em 19.05.2021, comunicar que juntaria a acta em 09.06.2021, depois de a 1ª Ré, por requerimento de 18.05.2021, ter requerido que o Tribunal recorrido declarasse extinto o direito de praticar o acto e tomasse posição sobre a excepção dilatória.
Estando-se na fase de sanação de uma excepção dilatória e não tendo a Autora comprovado o facto que a supria no prazo peremptório fixado, o qual terminava no dia 10.05.2021 (2), a consequência só poderia ser a de considerar que se extinguira o direito de praticar o acto e que era extemporânea a junção do documento em 09.06.2021. Como bem se salienta na decisão recorrida, a Autora, «deixando expirar o prazo que lhe havia sido concedido com expressa advertência de que o tribunal tomaria imediato conhecimento da excepção dilatória em apreço, só da sua inércia se pode queixar». E se havia razões que justificavam a comprovação do facto em data posterior à do termo do prazo fixado, a Autora tinha de as invocar enquanto o prazo estava em curso, requerendo em conformidade. Por isso, tal como se concluiu na decisão recorrida,«a Autora dispôs de todo o tempo decorrido até 10.05.2021 para de tais razões dar nota ao tribunal, sujeitando-se ao necessário contraditório, tanto mais que o auto de apreensão do seu estabelecimento comercial data de 19.02.2020 (cfr. documento que juntou com o requerimento de 21.05.2021), de modo a obter dilação do prazo que lhe havia sido concedido».
Em suma, o Tribunal a quo fez aquilo que a lei lhe impunha: convidar a parte a praticar o acto necessário à sanação da excepção dilatória, fixando-lhe prazo para o efeito; decorrido tal prazo sem que a parte nada tenha requerido, tinha o dever legal de retirar as consequências da falta da prática do acto no prazo fixado; em tais consequências inseria-se a inadmissibilidade da prática do acto depois de decorrido o prazo peremptório de que dispunha para o fazer, por já se encontrar extinto o direito de o praticar.
Estando em causa um prazo peremptório para a prática de um acto processual, que não do acto substantivo, é absolutamente irrelevante saber se a assembleia-geral podia ser realizada até 30.06.2021. A circunstância de a assembleia poder realizar-se até 30.06.2021 não afasta a inequívoca constatação de que a Autora deixou decorrer o prazo peremptório de que dispunha para sanar a excepção dilatória sem nada fazer, seja praticar o acto processual devido ou solicitar um prazo complementar para sanar a falta de deliberação que a demandante devia obter.
Aliás, como já salientamos atrás, a parte foi convidada a comprovar um facto e não a realizar uma assembleia-geral, a qual poderia ter tido lugar antes ou após tal despacho.
Depois, mesmo que isso em concreto seja irrelevante para o caso dos autos, nada obstava à convocação de assembleias-gerais durante o período de vigência das medidas restritivas do estado de emergência, desde que adoptados meios não presenciais na realização das assembleias, tal como expressamente ressalvava o artigo 18º, nº 1, do Decreto-Lei nº 10-A/2020, de 13 de Março, com a redacção que lhe foi dada pelo artigo 12º do Decreto-Lei nº 22-A/2021, de 17 de Março, que o repristinou. Com efeito, o artigo 377º, nº 6, al. b), do Código das Sociedades Comerciais (CSC), aplicável às sociedades por quotas ex vi do artigo 248º do mesmo diploma, permite, salvo se existir disposição em contrário no contrato de sociedade, a realização de assembleias-gerais por meios telemáticos.
Pelo exposto, improcedem as conclusões relativas a esta questão.
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2.2.2. Da inconstitucionalidade do entendimento do Tribunal a quo
Na conclusão 4ª das suas alegações, a Recorrente invoca que «ocorre inconstitucionalidade (o que ora se argui para todos os legais efeitos) da interpretação da referida norma do citado artigo 18.º, do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, quando interpretada no sentido de não ser aplicável tal prazo a assembleias gerais fixadas por despacho judicial, por violação, nomeadamente, do princípio da igualdade fixado no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa».
A Recorrente alicerça a alegada inconstitucionalidade num pressuposto que não se verifica: a decisão recorrida não se baseia no disposto no artigo 18º do Decreto-Lei nº 10-A/2020, de 13 de Março. Não invocou tal norma nem fez qualquer interpretação da mesma.
Mais, não estamos perante «assembleias gerais fixadas por despacho judicial». O despacho de 05.01.2021 não determinou a realização de qualquer assembleia-geral; limitou-se a convidar a parte a suprir uma excepção dilatória invocada pela parte contrária, através da comprovação de um facto – a existência de uma deliberação social com um certo conteúdo.
E o Tribunal recorrido, quando decidiu e nos termos em que o fez, limitou-se a definir a consequência de não ter sido comprovado tal facto no prazo peremptório fixado, sendo certo que tal comprovação só ocorreu já depois de o prazo se encontrar exaurido.
Nesta conformidade, sendo um dos traços definidores do nosso sistema de controlo da constitucionalidade o respectivo carácter normativo, verifica-se que, na decisão recorrida, a norma cuja interpretação é tida por inconstitucional pela Recorrente não foi ratio decidendi. A norma em causa não foi aplicada nem foi interpretada no despacho recorrido.
Por outro lado, a Recorrente nem sequer invocou perante o Tribunal recorrido a norma do artigo 18º do Decreto-Lei nº 10-A/2020, de 13 de Março, ou deduziu qualquer pretensão com base na mesma. Por conseguinte, também não confrontou o Tribunal recorrido com a questão, de modo a possibilitar a formulação de um juízo de inconstitucionalidade determinante da prolação de uma decisão em sentido diferente daquele que veio a acolher.
Pelo exposto, improcede a conclusão formulada.
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2.2.3. Da (des)necessidade de deliberação
Resta saber se era necessária uma deliberação dos sócios da Autora, enquanto sociedade por quotas com dois únicos sócios, para intentar a presente a acção contra a 1ª Ré, sua sócia, e, na afirmativa, qual a consequência de essa deliberação não existir.
Tendo o Tribunal recorrido fundamentado a sua decisão, ao julgar procedente a excepção dilatória emergente da verificação do vício processual previsto no artigo 29º, nº 2, do CPC, em não ter sido comprovada a existência de deliberação a autorizar a Autora a intentar acção contra uma sua sócia, a Recorrente sustenta que «não carece de deliberação formal da sociedade A. o intentar da presente ação».
A Recorrente invoca em abono da sua posição o acórdão da Relação de Évora, de 19.01.2012, proferido no processo 76/08.2 (Canelas Brás) (3), o qual é representativo da tese defendida no recurso.
Porém, é claramente prevalecente, tanto na doutrina como na jurisprudência, a tese de que é necessária prévia deliberação para a propositura de acção judicial contra o sócio no caso de a sociedade só ter dois sócios. É ilustrativo desta tese dominante o acórdão da Relação de Lisboa, de 01.02.2012, proferido no processo 4130/11.5TCLRS-A.L1-2 (Pedro Martins), o qual seguimos de perto. Nesse acórdão é desenvolvida a questão ora em apreciação de forma exaustiva e profunda, em termos que se nos afiguram convincentes.
O argumento alegado pela Recorrente para sustentar a sua posição circunscreve-se à afirmação de que o sócio contra o qual se pretende propor a acção está impedido de votar a deliberação, pelo que a vontade da sociedade se resume à do outro sócio. In casu, como iria votar sozinho a deliberação social de instaurar uma acção contra a outra sócia, «isso fica suprido por se apresentar a demandar em representação da sociedade A., pois que, a sua vontade será sempre, nestas circunstâncias, a vontade da própria sociedade». No fundo, traduzido por outras palavras, entende que é inútil uma tal deliberação, uma vez que não há que discutir e votar em assembleia-geral o que dependeria da exclusiva vontade do sócio que pretende que a sociedade intente acção contra o outro sócio, pelo que a falta da deliberação é suprida pela constatação de que o sócio, cuja manifestação de vontade é relevante, se apresenta na acção em representação da sociedade autora.
Analisada a argumentação da Recorrente, desde logo se verifica que a mesma é destituída de uma concreta base legal: inexiste norma a dispensar a sociedade que pretende demandar judicialmente um seu sócio de obter deliberação prévia a consentir na propositura da acção. Pelo contrário, existe disposição legal expressa a fazer depender a proposição de acção pela sociedade contra qualquer sócio de prévia deliberação social – artigo 246º, nº 1, al. g), do CSC.
Se o legislador não distingue entre sociedades com vários sócios e sociedades com apenas dois sócios, não é lícito ao intérprete distinguir, estabelecendo um regime diverso para uma das duas hipóteses, a menos que exista uma razão substancial para fazer operar a distinção.
E a realidade é que inexiste qualquer fundamento substancial para efectuar a apontada distinção.
Como antecedente remoto da aludida tese, é costume invocar-se a posição de Raúl Ventura, a propósito da exclusão de sócios nas sociedades por quotas, segundo a qual «[a] orientação legislativa que se induz dos três preceitos legais acima citados [arts. 186º, nº 3, e 257º, nº 5, do CSC e 1005º, nº 3, do Código Civil] é no sentido de proteger o sócio excluendo, forçando o outro a usar a via judicial (…). Afastada a deliberação, como via de exclusão, afastada está ela também como pressuposto da acção judicial de exclusão, pois tão inútil é num caso como no outro» (4).
Sucede que o referido autor não sustentou que “a sociedade” pode demandar o sócio sem que exista prévia deliberação sobre a propositura de tal acção judicial. Defendeu algo essencialmente distinto, com base no disposto no artigo 257º, nº 5, do CSC e em complemento do artigo 1005º, nº 3, do Código Civil: se a sociedade tiver apenas dois sócios, a exclusão do sócio pode ser decidida “em acção intentada pelo outro”, pelo que «não pode entretanto o outro sócio ser considerado “a sociedade” para propor a acção».
Portanto, para este ilustre Professor, numa sociedade com apenas dois sócios, a acção judicial, com vista à exclusão de um sócio, pode ser intentada sem necessidade de prévia deliberação social, mas nesse caso a acção é proposta pelo sócio, mas não pela sociedade.
Ora, a situação dos autos é diferente, na medida em que a acção é proposta pela sociedade e não pelo sócio contra a outra sócia (5). Não estamos perante um caso de sócio autor da acção contra a outra única sócia.
Afastado o pretenso apoio doutrinal da tese sustentada pela Recorrente, permanece a questão da inutilidade da deliberação e da sua substituição pela vontade que o sócio que se apresenta a representar a sociedade manifesta através da propositura da acção contra o outro sócio.
Desde logo, a posição que vê na tomada de uma tal deliberação um formalismo excessivo e inútil desconsidera a existência da sociedade e dos seus órgãos, prescinde da manifestação de vontade desta, apenas atribui relevância à realização do interesse e vontade do sócio não impedido de votar e, de atacado, esvazia de conteúdo um conjunto de direitos do outro sócio, os quais representa como um estorvo. É certo que o sócio a demandar em acção judicial está impedido de votar relativamente à matéria da deliberação (artigo 251º, nº 1, al. b), do CSC), mas daí não resulta qualquer restrição ao exercício dos demais direitos, como o de participação (6) na assembleia-geral, de obtenção de informação pertinente (7) e de exposição do seu ponto de vista (8). A “participação” do sócio nas deliberações compreende, além do direito de estar presente nas assembleias e de nelas discutir os assuntos sobre que se deliberará (caso das deliberações tomadas em assembleia convocada), o direito de votar as propostas. Se o sócio estiver impedido de votar, continua a ter o direito de estar presente, de controlar a regularidade da convocação e funcionamento da assembleia, e de discutir os assuntos que irão ser objecto de deliberação (9).
Sendo a deliberação a expressão da vontade da pessoa colectiva sociedade, também não deixa de constituir o culminar de um processo, ou seja, de um conjunto de actos que a precedem, que envolve regras de convocação e participação na assembleia, os quais não podem ser vistos como dispensáveis só por vontade de um sócio, como se não se estivesse perante uma sociedade.
Desenvolve exaustiva e convincentemente este ponto Carolina Cunha (10), em termos com os quais concordamos inteiramente:
«A deliberação é o instrumento de expressão da vontade da pessoa colectiva sociedade, única titular do direito potestativo cujo exercício requer a subsequente intervenção do tribunal. Poucos contestarão, fora dos casos em que a sociedade é formada por dois sócios, que a acção judicial deva ser precedida de uma deliberação, cuja falta não pode ser suprida pela intervenção do tribunal. E as razões apresentadas para rejeitar a mesma solução, na hipótese de os sócios serem apenas dois, são, a nosso ver, insubsistentes. Afirma-se, em primeiro lugar, que tal implica a realização de um acto inútil: se se afasta a (simples) deliberação como via de exclusão, não fará sentido “repristiná-la” como pressuposto de uma acção judicial que necessariamente tem de ser proposta. Em primeiro lugar este argumento prova demais: idêntica lógica deveria, então, conduzir à dispensa de deliberação sempre que os sócios não excluendos (fossem eles em número de dois, de três ou em número superior) optassem pela proposição conjunta de uma acção de exclusão. Por outro lado, não distingue devidamente o papel da deliberação enquanto meio de expressão da vontade social de exercer o direito potestativo em causa (papel que sempre desempenha, em obediência às regras que pautam a organização interna de uma sociedade comercial), e o papel da deliberação enquanto veículo de exteriorização da decisão tomada, a permitir a produção dos respectivos efeitos extintivos (papel que claramente já não desempenha nos casos de intervenção obrigatória do tribunal). Sustenta-se, também, uma interpretação do regime da exclusão à luz da doutrina consagrada no art. 257º/5 (…) mas não vislumbramos a que título se chama à colação a disciplina da destituição de gerentes com justa causa, já que em tal quadro – e independentemente do número de sócios que compõem a sociedade – “pode qualquer sócio requerer a suspensão e a destituição do gerente, em acção [por si] intentada contra a sociedade” (art. 257º/4). Estamos perante uma situação especial de atribuição de legitimidade processual activa a sócios, atribuição que não depende do seu número e que não encontra paralelo no regime de exclusão. Em suma, defender, ao arrepio do expressamente estatuído pelo art. 242º/2 (…) a desnecessidade de deliberação nas sociedades constituídas por dois sócios, equivale a confundir dois planos: o plano da pessoa colectiva, dotada de órgãos próprios, e o plano do respectivo substracto pessoal, formado por sujeitos dotados de vontade própria. A dificuldade em distinguir estes planos, na hipótese em apreço, assenta na circunstância de a vontade da pessoa colectiva materialmente tender a coincidir com a vontade do sócio não excluendo, cujos votos são, afinal, os únicos que contam para a tomada da deliberação. Daí a concluir que a exigência de uma deliberação prévia redunda num “excessivo formalismo” vai um passo. Cremos que o “formalismo” de uma deliberação prévia não é excessivo, nem tão-pouco inútil. O sócio excluendo está impedido de votar, mas não impedido de ocupar o seu lugar na assembleia destinada a deliberar sobre o exercício (ou não) do direito de exclusão. A presença na assembleia (não se esqueça que o art. 247º/8 torna imperativa a realização de uma assembleia), a intervenção na discussão, a exposição do seu ponto de vista são ainda modos de participar na tomada da deliberação – direito reconhecido a todos os sócios pelo art. 21º/1d) – e, por esta via, modos de contribuir para a formação da vontade juridicamente imputável à sociedade. Algo, portanto, que não é manifestamente substituível pela posterior faculdade de contraditar, em tribunal, uma acção de exclusão. Além do mais, nas sociedades por quotas, a participação nas assembleias gerais tem foros de regra imperativa (…). Ora, aquilo que o legislador entendeu pôr a salvo até mesmo do consenso expresso nos estatutos (…) acaba por ser drasticamente suprimido pelas teses que sustentam a desnecessidade de deliberação prévia – a tal deliberação que reputam de “excessivamente formal” e “inútil”, mas cujo processo constitutivo permite, na verdade, salvaguardar um direito central do sócio excluendo. Quanto ao sócio não excluendo, a realização da assembleia visando a tomada de uma deliberação sobre a exclusão representa uma simples decorrência da própria opção pelo mecanismo societário: os eventuais incómodos que a recusa de uma directa legitimidade processual activa lhe suscitam são uma natural consequência das regras próprias da organização e do funcionamento das sociedades comerciais».
Também Jorge. M. Coutinho de Abreu e Maria Elisabete Ramos referem (11), a propósito de uma regra e situação semelhante, em comentário ao artigo 75º, nº 3, do CSC, que «em razão do conflito de interesses entre o sócio-administrador (presumível lesante) e a sociedade (presumível lesada) – a sociedade procura o ressarcimento do dano alegadamente causado pelo administrador; este tem interesse em que não se constitua a obrigação de indemnizar -, estabelece o impedimento de voto. Este impedimento abrange exclusivamente o exercício do direito de voto, já não o direito de participar na assembleia. E o sócio-administrador impedido de votar mantém o direito de pedir a declaração de nulidade ou anulação de deliberação que autorize a ação social de responsabilidade. (…) A propositura da ação social de responsabilidade sem a deliberação social exigida pelo artigo 75º, 1, determina as consequências processuais previstas no art. 29º, 1, do CPC: fixação de prazo para a tomada de deliberação e suspensão dos termos da causa. Se o vício da falta de deliberação não for sanado, o administrador demandado será absolvido da instância (arts. 29º, 2, 576º, 2, do CPC – a falta de deliberação dos sócios sobre a ação social de responsabilidade é exceção dilatória (art. 577º, d), do CPC)».
Ainda Jorge M. Coutinho de Abreu, desta feita asolo (12), na sua obra Curso de Direito Comercial, vol. II, 5ª edição, 2017, Almedina, págs. 396 a 398, depois de enunciar que «[o]s sócios devem começar por deliberar a propositura da acção de exclusão (art. 242º, 2)», discorre sobre as diversas situações que podem ocorrer «nas sociedades com dois sócios», pressupondo a necessidade de deliberação, mas admitindo, a título excepcional, nos casos de impossibilidade material de a obter, a legitimidade do sócio, enquanto tal e nas vestes de autor, propor a acção de exclusão contra o outro sócio. Se assim é quando esteja em causa a exclusão de um sócio, por maioria de razão será necessária a deliberação sobre a propositura da acção contra o outro sócio visando a sua responsabilização perante a sociedade.
Em conclusão, além de o artigo 246º, nº 1, al. g), do CSC expressamente fazer depender de deliberação dos sócios a proposição de acção pela sociedade contra sócio, inexiste fundamento para considerar dispensável tal deliberação nas sociedades por quotas com dois sócios.
A deliberação da assembleia-geral constitui um pressuposto para a sociedade poder litigar contra o sócio, pelo que deve ser demonstrada com a apresentação da petição inicial.
A falta de tal deliberação constitui uma excepção dilatória, nos termos do artigo 577º, al d), do CPC, de conhecimento oficioso (art. 578º do CPC).
Não estando demonstrada a deliberação exigida por lei, o juiz deve designar o prazo dentro do qual deve ser obtida a deliberação – artigo 29º, nº 1, do CPC.
Não sendo a falta sanada no prazo fixado, o réu é absolvido da instância, quando a deliberação devesse ser obtida pelo representante do autor – artigo 29º, nº 2, do CPC.
No caso dos autos a falta não foi efectivamente sanada no prazo de 45 dias fixado pelo Tribunal a quo, pelo que se impunha a absolvição das Rés da instância, tal como se decidiu na decisão recorrida.
Termos em que improcede a apelação.
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2.3. Sumário 1 – A proposição de acção pela sociedade contra sócio depende de deliberação dos sócios, mesmo que a sociedade só tenha dois sócios. 2 – A deliberação da assembleia-geral constitui um pressuposto para a sociedade poder litigar contra o sócio, pelo que deve ser demonstrada com a apresentação da petição inicial. 3 – Não estando demonstrada a deliberação exigida por lei, o juiz deve designar o prazo dentro do qual deve ser obtida a deliberação e comprovada no processo. 4 – Não sendo a falta sanada no prazo fixado, o réu é absolvido da instância, quando a deliberação devesse ser obtida pelo representante do autor.
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III – DECISÃO
Assim, nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar improcedente a apelação, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas a suportar pela Recorrente.
Joaquim Boavida (relator)
Paulo Reis (1º adjunto)
Joaquim Espinheira Baltar (2º adjunto)
1. Utilizar-se-á a grafia anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, respeitando-se, em caso de transcrição, a grafia do texto original.
2. O despacho proferido a 05.01.2021 foi remetido às partes no dia 06.01.2021, pelo que se considera notificado a 11.01.2021. O prazo de 45 dias foi suspenso ao 11º dia, ou seja, a 22.01.2021, por força da suspensão de prazos determinada pela Lei nº 4-B/2021 de 01.02.2021 (embora vigorando desde 02.02.2021, produziu efeitos a 22.01.2021), até ao dia 05.04.2021 (a Lei nº 13-B/2021, de 5 de Abril, entrou em vigor no dia 06.04.2021, data em que se retomou a contagem dos prazos, nos processos não urgentes), pelo que terminava a 10.05.2021 (1º dia útil subsequente ao termo do prazo).
3. Disponível em www.dgsi.pt, tal como todos os demais que se citarem sem indicação da respectiva fonte.
4. Sociedade por Quotas, vol. II, Almedina, 1989, págs. 56 a 58.
5. Aliás, em casos como o dos autos só pontualmente se vê defendida a tese propugnada pela Recorrente. A questão mais controvertida e debatida é a da aplicação, por analogia, à situação de exclusão de um sócio numa sociedade com apenas dois sócios, do regime previsto no n° 5 do artigo 257º do CSC para o caso da destituição de gerente em sociedades com apenas dois sócios.
6. Todo o sócio tem direito «a participar nas deliberações de sócios, sem prejuízo das restrições previstas na lei» - art. 21º, nº 1, al. b), do CSC. O direito de participação é mais amplo do que o simples acto de votar, não se confundindo nem se reduzindo a este.
7. Art. 21º, nº 1, al. c), do CSC. O direito à informação é um direito instrumental ou acessório de outros direitos sociais, designadamente do de participação nas deliberações. Pode ser exercido, na perspectiva aqui relevante, na assembleia-geral. É o que resulta do disposto no artigo 290º, nºs 1 e 2, do CSC, aplicável por remissão do artigo 214º, nº 7, do mesmo código, às sociedades por quotas.
8. Não só o sócio visado com a deliberação proposta pode tentar convencer o outro sócio da falta de fundamentação da demanda, como pode eventualmente propor uma solução que evite a acção judicial.
9. Como refere Jorge M. Coutinho de Abreu, in Curso de Direito Comercial, vol. II, 5ª edição, Almedina, pág. 230, «os sócios sem direito de voto ou impedidos de votar, não tendo embora direito de participar plenamente, têm direito de participação limitada nas deliberações tomadas em assembleia geral».
10. A Exclusão de Sócios (Em Particular nas Sociedades por Quotas), in Problemas do Direito das Sociedades, IDET, 2002, págs. 203 a 206.
11. Código das Sociedades Comerciais em Comentário, vol. I, 2ª edição, Almedina, págs. 938 e 939.
12. Curso de Direito Comercial, vol. II, 5ª edição, Almedina, págs. 397 a 399.